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Sobre o compromisso do antropólogo e seu papel

de mediador cultural
ALEXANDRA BARBOSA DA SILVA*

Resumo: Seguindo a linha de uma análise crítica sobre os fundamentos do fazer


antropológico, ou seja, da concepção da disciplina, do modo como lidar com seu objeto e
dos métodos adotados para tal, no presente texto coloco em discussão o lugar-comum,
estabelecido ao longo do tempo, segundo o qual os antropólogos têm um compromisso
para com os grupos com os quais trabalha. Para isto, lanço mão fundamentalmente do caso
dos Guarani do estado de Mato Grosso do Sul, onde os intensos conflitos fundiários entre
estes e não-índios impelem o antropólogo a ser mais do que meramente um pesquisador,
portando-se como um mediador, nos vários sentidos que as demandas se lhe impõem, até
mesmo sob pena de ver fracassados seus projetos de pesquisa.
Palavras-chave: antropologia crítica, compromisso do antropólogo, mediação cultural,
índios Guarani.

O compromisso como elemento constitu- desenvolve suas pesquisas despontam como


inte da pesquisa focos privilegiados de atenção. Foi desse modo
que a discussão do contexto colonial, no qual
Um dos temas que a antropologia vem essa ciência encontrou seu pleno desenvol-
abordando nas últimas décadas é a análise crítica vimento como uma prática institucionalizada,
da própria disciplina, o que, juntamente com uma com uma distinção profissional, tornou-se o ponto
historiografia da antropologia (delineada por A. de partida para se considerar as relações entre
Kuper e Stocking Jr., entre outros), acabou por antropologia e colonialismo, assim como os
ser relevante para um trabalho de pensar as corolários dessas relações, por exemplo, a
próprias bases, aventando-se uma reformulação interação entre pesquisadores (provenientes de
em termos de concepção da disciplina, do modo grupos dominantes) e grupos colonizados e
como lidar com seu objeto e dos métodos dominados, e entre pesquisadores e governos
adotados para tal. colonialistas, trazendo à baila uma discussão
A partir dos anos de 1960 e sobretudo de sobre a cumplicidade ou não existente entre
1970, toda uma linha de análises constituiu o que estes (a esse respeito, vide, entre outros, Asad,
se passou a considerar o “pós-modernismo” no 1973, 1991; James, 1973; Fabian, 1983, 1991;
campo da antropologia, em que o posicionamento Pels & Salemink, 1999).
do antropólogo e os contextos em que este Dado que esses textos são complexos em
suas discussões, a fim de que o leitor possa
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropo- orientar-se, faço aqui referência a algumas das
logia Social do Museu Nacional / UFRJ e pesquisadora do observações dos autores, apenas a título ilus-
Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desen-
trativo. Inicio, então, tomando uma afirmação
volvimento (Laced) / MN/UFRJ. Mestre pelo mesmo pro-
grama. E-mail: ale.barbosa@ig.com.br. de Talal Asad, que me parece sintetizar perfei-

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tamente o cerne do que intento referir. Diz esse mento desse raciocínio, de grande alcance
autor: metodológico, além de moral, é a constatação
da impossibilidade de intersubjetividade (ou seja,
Os antropólogos podem reivindicar ter contri- a anulação de distanciamento) que toda interação
buído para a herança cultural das sociedades social pressupõe, constituindo o que Fabian
que eles estudam por [terem feito] um registro denominou não de um anacronismo, mas
simpático das formas de vida indígenas, as
propriamente o expediente (existencial, retórico,
quais de outro modo estariam perdidas para a
posteridade. Mas, por outro lado, ocorre que
político) do alocronismo da antropologia.
eles também contribuíram, às vezes indireta- Já Pels & Salemink trazem uma interes-
mente, para a manutenção da estrutura de poder sante discussão sobre a autoridade do antro-
representada pelo sistema colonial. Que tais pólogo, tendo como ponto de partida a idéia de
contribuições não foram, por fim, consideradas que o lugar de produção de conhecimento
como cruciais para o vasto império que recebeu antropológico por excelência é a academia. Eles
conhecimento e forneceu patrocínio, não observam que, na verdade, a produção de
significa que isto não foi um ponto crítico para conceitos tornados centrais para a disciplina nem
a pequena disciplina que ofereceu conheci- sempre se deu na academia, mas a partir das
mento e recebeu patrocínio, pois a estrutura de viagens realizadas por comerciantes (cf. 1999).
poder certamente afetou a escolha teórica e o
Importa-me aqui, sobretudo, destacar a atenção
tratamento daquilo que a antropologia social
objetificou – em algumas questões mais que
dada pelos autores à percepção da etnografia
em outras. (Asad, 1973, p 17; trad. própria) como um processo prático e não como um texto
ou um método ideal, para isto sistematizando
É em continuidade a essa discussão que se uma divisão analítica do processo etnográfico
coloca a análise feita por James (1973), sobre em três fases, a saber, o pré-campo, a “ocasião
os contextos coloniais no qual desenvolviam suas etnográfica” e a “tradição etnográfica” (Pels
atividades antropólogos como Malinowski, Evans & Salemink, p. 12). O pré-campo é uma noção
Pritchard e Firth, centrando-se nas condicio- tomada a J. Clifford (o préterrain),1 implicando
nantes que lhes eram impostas pela ação dos este todas as relações e lugares que precon-
agentes coloniais. Em razão, observa James, da dicionam o trabalho da etnografia, ou seja,
impossibilidade de apresentação de uma postura
de convicção política ou obrigação moral, o que as relações espaço-temporais híbridas: práticas
mercantis, coloniais ou discursivas acadêmicas,
se destacou por parte dos antropólogos foi a
que definem a possibilidade e a necessidade
postura de um cientificismo/objetivismo como de ir ‘para lá’; meios de transporte e formas de
estratégia diante desses outros agentes, e de residência; relações de poder com e dentro das
crítica ao etnocentrismo dos missionários, admi- sociedades que o etnógrafo irá descrever, e os
nistradores e oficiais dos governos e também modos de produção e reprodução dessas
de crítica moral às teorias evolutivas e raciais. relações. (Pels & Salemink, p. 13)
Uma análise de Fabian, um pouco posterior
(1983), estabelece seu rumo com base na A “ocasião etnográfica”, poder-se-ia dizer,
observação de que, ao longo de sua démarche é, no jargão antropológico, o “campo” propria-
histórica de produção de conhecimento, mente dito, o qual os autores definem em termos
passando pelas correntes do evolucionismo, do da “situação de contato entre o etnógrafo e
culturalismo e do estruturalismo, a antropologia aqueles a serem descritos” (Pels & Salemink).
foi uma produtora de distância temporal na Por fim, a “tradição etnográfica” são os textos
construção do Outro. Colocá-lo em termos de que compõem o acervo da disciplina, os quais,
primitivo implica, entre outras coisas, o esta- observam Pels & Salemink, “tendem a obscu-
belecimento de patamares temporais diversos recer o que os contextualiza”. Ademais, para
entre o observador e os observados, negando- eles,
se, desse modo, ao Outro o caráter daquilo que
1. No texto “Traveling Cultures”, in L. Grossberg, C. Nel-
o autor considerou a coevidade, isto é, o compar- son e P. Teichler (eds.), Cultural Studies. New York and
tilhamento de um mesmo Tempo. O desdobra- London: Routledge. 1992.

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É crucial ver uma tradição etnográfica ela É de se lembrar, também, que o referido
própria como um processo prático, de modo a lugar-comum pode nem mesmo ser cogitado.
ver em que medida uma continuidade do pré- De fato, muitas vezes o sentido de se praticar a
campo, da ocasião etnográfica e da tradição
antropologia não está senão na mera reprodução
etnográfica persistiu, ou se mudanças maiores
no pré-campo e na ocasião etnográfica alteraram do jogo de prestígio e títulos do campo acadê-
o significado dos temas recorrentes ou dos mico.
lugares-comuns que marcam a tradição. (Pels No sentido propriamente “objetivo” do
& Salemink, p. 14) trabalho científico, detenhamo-nos por um
momento sobre o cânone da neutralidade axioló-
Pois bem, em continuidade com essa linha gica, que constituiu a antropologia como uma
de análise crítica, penso que um dos pontos a pretendida ciência. Vemos, então, que Norbert
merecer reflexão é uma questão para muitos Elias, hoje autor reconhecido no âmbito das
tida como despropositada, que é a do porquê, ciências sociais, é um dos seus mais notáveis
para que e, sobretudo, para quem se praticar defensores. No livro intitulado Engagement et
antropologia atualmente. Concomitante é, a meu distanciation, o autor tece uma análise sobre
ver, a necessidade de se questionar o lugar- os problemas com os quais se defronta o cien-
comum, que se estabeleceu ao longo do tempo, tista em geral. Parte ele de uma percepção
de que os antropólogos têm um compromisso (positivista) de que um controle das emoções
com os grupos com os quais trabalham. ter-se-ia operado ao longo do tempo no progres-
Ao se lidar com a idéia de que é próprio da so da ciência (o que por si implica uma visão de
antropologia como ciência analisar as lógicas de ciência como cumulativa), algo que haveria
entendimento do mundo de povos étnica, social permitido maior objetividade do cientista nas suas
e culturalmente diferenciados, contribuindo-se, análises. Essa visão da objetividade – e, portanto,
desse modo, para melhorar o diálogo entre eles, de uma neutralidade – tem suas raízes no
é de se observar, antes de mais nada, que isto seguinte raciocínio:
compreende um processo que envolve uma
multiplicidade de autores no campo2 acadêmico Como os outros homens, os cientistas se
e de agentes externos a este, todos os quais deixam guiar em seu trabalho, em uma certa
dispõem de concepções particulares. E se esse medida, por desejos e inclinações pessoais.
Eles são muito freqüentemente influenciados
processo acaba por resultar em um efeito de
pelos interesses de grupos aos quais perten-
propagação da informação da academia em cem. Eles podem ter em vista uma promoção
direção ao senso comum, isso ocorre de modo em suas carreiras, podem esperar que os
absurdamente lento e não-homogêneo, com resultados de suas pesquisas estejam de
apropriações variadas e muitas distorções. Em acordo com as teorias que eles sustentaram ou
suma, trata-se de um processo que é fundamen- com as exigências e os ideais dos grupos com
talmente político e, como tal, há sempre os os quais se identificam. (Elias, 1993, p. 12-13;
trad. própria)
beneficiados e os não-beneficiados pelos seus
resultados.
Elias concebe como “tendências ao enga-
jamento” do cientista uma falta de controle dos
2. Utilizo aqui a categoria “campo” com base em todo um seus afetos, diante dos quais deve necessa-
conjunto de análises de P. Bourdieu, que tem por objeto
conformar uma teoria dos campos – científico, literário,
riamente estabelecer um “distanciamento”.
econômico etc. Para esse autor, num espaço mais ou menos Reportando-se mais especificamente ao cientista
conformado (um campo), os agentes são portadores de ca- social, para quem esse problema se apresentaria
pitais (capital cultural, capital social etc.), observando ele
que, segundo as suas trajetórias, esses agentes têm uma pro- de modo muito mais incisivo do que para o
pensão a orientarem-se num duplo sentido: ou o da ortodo- cientista “da natureza”, o autor diz que
xia, quer dizer, o da conservação do estado de coisas – caso
daqueles que encontram-se já estabelecidos, consagrados –,
ou o da heresia, quer dizer, o da sua subversão. A título de
Entre os pesquisadores em ciências sociais não
ilustração de ordem empírica dessa proposta, ver Bourdieu, faltam as tentativas para se distanciar de uma
1994 e 1996. posição de testemunha engajada nos fenô-

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menos sociais e para se liberar da perspectiva expressa habilidades próprias da sociedade


limitada que este papel implica. (Elias, 1993, dominante, o antropólogo é encarado pelos
p. 24). indivíduos e grupos com quem lida como alguém
que pode ser útil na concretização de determi-
Atestando-se que esse cânone da neutra- nados interesses seus. Isto pode se expressar
lidade permanece bastante presente como desde a mera solicitação de dinheiro ou objetos
orientação e premissa, o que temos, na verdade, às mais diversas demandas. Obviamente que a
é um debate constitutivo das disciplinas (a negociação dos termos dessa troca é regida
antropologia inclusive), aquele da pura objeti- pelas reais condições de que o antropólogo
vidade científica versus o compromisso ético e dispõe. Isto posto, temos aberta a questão: dada
político com o grupo pesquisado. a complexidade dos elementos em jogo na
Tomo, então, como ponto de partida para interação pesquisador (antropólogo)–grupo
discussão a questão se os sentidos que esse pesquisado, quais devem ser as bases da troca
lugar-comum pode ter devem ser eles próprios que necessariamente se estabelece, nessa
objeto de questionamento. Em outras palavras, interação, entre essas partes?
a pergunta que me conduzirá e que permeará Em resposta, apresento inicialmente alguns
este texto daqui em diante é: quais as formas postulados que, no meu entender, devem ser
que esse compromisso pode assumir? diretrizes da postura ética de um antropólogo.
Uma das concretizações que essa discus- Seguindo a linha dos autores-críticos arrolados
são encontrou foi o debate estabelecido em neste texto, entendo que a pretensão de uma
alguns países da América Latina, fundamentado antropologia como um estudo politicamente
no confronto entre uma concepção de ciência desinteressado de “outras culturas” ou grupos
“aplicada” ou “prática”, estabelecida em oposi- sociais implica uma quimera que encobre as
ção a uma pensada como “pura”. Para ser mais condicionantes políticas, sociais, culturais e
precisa, essa discussão teve lugar em países econômicas de toda pesquisa (e não só as da
como México, Peru, Bolívia, locais onde se área “social”, mas também as da área “da natu-
estabeleceu uma aproximação entre antropo- reza” ou “exatas”), e que relega as condições
logia e indigenismo, estando em jogo a avaliação de desigualdade também política, social, cultural
dos “projetos de desenvolvimento social” a e econômica reinantes nas situações de domi-
serem aplicados aos grupos nativos, com o intuito nação não só sobre os povos indígenas, mas
de sanar problemas de ordem prática.3 também sobre as chamadas “classes trabalha-
Resta destacar o quão equivocada é essa doras”, “favelados”, “trabalhadores rurais”,
dicotomização, pelo velho princípio dialético da enfim, todas as categorias utilizadas para
relação entre teoria e práxis, ou seja, pela qualificar as partes dominadas no jogo das
consideração de que toda teoria, sendo gerada relações sociais entendidas de modo amplo.
pela prática, tem ela própria um efeito prático, e Penso que, antes de retomar e reificar uma
que uma experiência de atuação prática pode discussão da separação entre ciência e política,
em muito contribuir para o enriquecimento do teoria e prática, o que é efetivamente relevante
corpus teórico da disciplina. É também disto é ter uma postura na convivência no cotidiano
que trata uma proposta de refletir sobre os da pesquisa, de estabelecer um compromisso
fundamentos da antropologia. político com os interesses apresentados pelos
Pois bem, algo que não constitui novidade indivíduos e grupos com os quais se trabalha.
alguma nas reflexões antropológicas é que, Entendo também que ter como premissa que a
como membro das classes dominantes (vista a pesquisa se constituirá como uma interação,
origem da imensa maioria dos antropólogos, fato sendo premente um espaço para a manifestação
que no Brasil se mostra de modo bastante do “Outro” como ser dotado de interesses
evidente) e como alguém que domina códigos e próprios, interesses que, por sua vez, serão
3. Sobre a relação entre antropologia e indigenismo, ver,
confrontados com os do pesquisador, é uma
entre outros, Rojas, 1971, e Lima, 1995. postura metodológica que traduz uma intenção

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de reciprocidade e abre caminho para uma científica estabelece-se como orientação


relação de maior equilíbrio entre essas partes.4 apriorística para o pesquisador, e um compro-
O nó da questão parece-me estar na capacidade misso político pode dar-se num espaço e num
de o pesquisador dar-se conta do que está sendo momento externos à pesquisa. Desse modo, o
dele esperado, ou seja, da sua disposição para pesquisador pode até militar em alguma instância
ter essa percepção e, a partir disto, dialogar (ONG, sindicato, o que seja), mas a pesquisa é
abertamente com seus interlocutores. essencialmente um momento de busca dos dados
Nesse sentido, a pesquisa, como a concebo, que lhe interessam.
parte do princípio de que o grupo e suas O que merece questionamento, contudo,
condições de vida devem constituir o ponto de nesse ponto, é se o próprio fato de aliar-se
partida da investigação, e que um esforço, por politicamente, em alguma instância, aos “infor-
parte do antropólogo, de aproximação dos mantes” não é um fator preponderante para a
problemas e interesses de seus pesquisados é qualidade dos dados obtidos. Defendo que a
uma necessidade que se põe em qualquer qualidade da compreensão sobre os grupos
situação de pesquisa (e cuja percepção é pesquisados, indubitavelmente, está diretamente
fundamental, sob pena de ser criado um hiato relacionada ao “entendimento”, conforme o
intransponível e esterilizante de comunicação, compreendo. Ao se estabelecer no cotidiano
com prejuízos até mesmo fatais para a pesquisa). uma aproximação dos interesses dos sujeitos, o
Essa aproximação, eu a definiria em termos de nível de interação e a profundidade das infor-
um entendimento,5 em que o pesquisador dispõe- mações que vêm à tona são, visto que há uma
se explicitamente a buscar os meios para relação de compartilhamento em jogo, muito
atender a esses problemas e interesses, sendo superiores ao que seria possível em caso
esse esforço, ele mesmo, constitutivo da intera- contrário, em que se estabelece exatamente um
ção que a pesquisa representa. Expresso nesses “distanciamento”. Uma conseqüência é que os
termos, esse “entendimento” é bem diverso de sujeitos com quem nos confrontamos não se
um “compromisso” assumido como um apêndice constituem meramente como “informantes”, a
da pesquisa. Nesse último caso, a objetividade nos transmitir a matéria-prima que buscamos
para a concretização de nossa etnografia.
4. Nessa direção, tenho como orientação as reflexões de
Pels & Salemink (1999), remetendo-me à noção de “oca- Deve-se ter em mente que o exercício da
sião etnográfica” aqui já referida. O que me importa ressal- antropologia pode-se constituir em um mero
tar é que os autores pensam em termos de uma situação de exercício de poder se os métodos de pesquisa e
interação – e, nesse ponto, Fabian (1991) refletiria mais
em termos de um confronto –, com todo um background, os pressupostos teóricos, tidos por cânones,
digamos assim, que cada parte dessa interação traz consigo. definidos de um ponto de vista que é externo e
Ressalvo, no entanto, que retomo-lhes a intenção que dá
origem à noção, mas considerando-a restritiva, por preferir
temporalmente antecedente ao grupo que será
antes pensar em termos de uma “situação etnográfica”, abordado, não forem em nada alterados quando
uma vez que esta deixa mais clara uma idéia de contexto. da “ocasião etnográfica” (nesse caso, conforme
5. Nesse ponto, parece-me interessante abrir um parêntese a compreendem Pels & Salemink). Tomar isto
e fazer referência a um termo utilizado pelos Guarani con-
temporâneos, pela sua possível valia nesta discussão. Tra- como pressuposto não equivale meramente a
ta-se do termo oñontendê, o qual me foi referido para ex- reproduzir as velhas lições de manuais de
plicar como se dá a união entre duas pessoas – ou seja, o que metodologia, da necessidade de adequação das
chamaríamos casamento ou matrimônio. Para se unir, duas
pessoas precisam oñontendê (ao que parece, uma adaptação questões formuladas às circunstâncias dadas
do português “entender”, já que, em “guarani original”, um pelo “campo”. O que proponho é algo de
termo utilizado para “entender” é “oiko”); é o entendi-
mento que permite que um casal siga junto numa relação;
natureza totalmente diversa.
quando deixa de entender-se (ou seja, noñontendê), a rela-
ção acaba desfazendo-se, o que tem ocorrido com uma fre-
qüência bastante alta entre esses índios, estabelecendo-se As vicissitudes do campo
então novas relações, sempre com o intuito de conseguir o
entendimento. O termo pode também ser utilizado para as Esta introdução de caráter mais teórico
relações entre pais e filhos e entre parentes e aliados em sobre a relação antropologia–objeto, antro-
geral. Desse modo, a compreensão entre duas partes é um
valor de extrema relevância, cultivado com zelo pelas pes- pólogo–“informante” e esta proposta de
soas. condução do fazer antropológico têm raízes não

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apenas nas leituras citadas, mas também em acolhida, tendo-lhes sido possível um razoável
minha própria experiência prática entre grupos aprendizado da língua daquele grupo, ao
Guarani, em Mato Grosso do Sul. Esta expe- adotarem uma conduta de aprendizagem e
riência, por sua vez, deu continuidade àquelas reprodução das suas atividades cotidianas. Não
de diversos outros antropólogos, que desde os obstante essa boa receptividade, em determi-
anos 1970 vêm tendo grande relevância no nado momento de sua estada (ou seja, três
processo histórico das relações interétnicas meses após a chegada), o casal Grünberg viu-
envolvendo não-índios (brasileiros e paraguaios) se encurralado por problemas que os índios lhe
e os Guarani, na fronteira entre o Brasil e o apresentaram após a realização de uma reunião
Paraguai. interna. Esses problemas versavam em torno
Essa atuação dos antropólogos teve seu das questões, para o grupo, cruciais naquele
início de forma constante nos anos 1970, não momento – o que conformava uma determinada
apenas como pesquisadores, mas também com situação histórica.8 Um desses problemas era
a constituição de ONGs que desenvolveram como fazer para defender a terra deles contra
projetos de desenvolvimento – como o Projeto pessoas armadas, que ali nunca haviam estado
Paî Tavyterã (PPT) e o Projeto Kaiowa- e que se diziam proprietários dela; o outro era
Ñandéva (PKÑ).6 Paralelamente, passou a relacionado a doenças, mormente a tuberculose,
atuar também na região o Conselho Indigenista que fora introduzida pelos brancos e para a qual
não dispunham de remédios, apesar do vasto
Missionário (Cimi), de modo que, ao longo do
conhecimento de meios curativos que acumu-
tempo, foi-se constituindo o que Oliveira (1988)
lavam; o terceiro e último problema era a
denominou “campo de ação indigenista”. O
necessidade de documentos, cobrados pelos
antropólogo acabou por ser enquadrado num
militares no lado brasileiro da fronteira, que lhes
conjunto de vários outros atores, incluindo
agrediam por causa da falta desses papéis.9
proprietários rurais, a Funai, prefeitos, deputados
Complementando o discurso, disseram que, se
e, mais recentemente, o Ministério Público
os Grünberg pudessem ajudá-los, poderiam ficar,
Federal, este último sendo visto nesse “campo”
mas, do contrário, lhes seria desejada boa
na posição de aliado ou de oponente, dependendo viagem. Provavelmente seus parentes estariam
do contexto em pauta e das partes envolvidas. esperando-os com ansiedade, uma vez que ali
Nesses termos, nas próximas linhas vou estavam já havia bastante tempo (2000, p. 63-
refletir sobre questões como a presença e o papel 65). Os Grünberg acabaram por aceitar a tarefa
do pesquisador junto aos grupos com que proposta e criaram o Projeto Paî-Tavyterã (PPT),
interage, tomando como referência uma o qual empreendeu esforços para a garantia de
experiência do antropólogo Georg Grünberg e a terras, das quais os índios passaram legalmente
minha própria experiência de pesquisa. a dispor no Paraguai.
Numa conferência apresentada em 1991, Três décadas depois da experiência dos
Grünberg (2000) narrou sua inserção numa Grünberg e, como dito, tendo vários outros
comunidade Guarani no Paraguai7 no ano de antropólogos (e não só eles) estado entre os
1971. Conta-nos ele que, juntamente com sua Guarani, dos dois lados da fronteira, confrontei-
esposa, uma lingüista, recebeu uma muito boa
8. Seguindo a definição de Oliveira (1988): “[...] uso aqui a
6. Mais adiante, farei breve referência ao PPT, que se efeti- expressão situação histórica, noção que não se refere a even-
vou no Paraguai. Já o PKÑ foi, de algum modo, um corres- tos isolados, mas a modelos ou esquemas de distribuição de
pondente, no lado brasileiro, do PPT, e sobre suas ativida- poder entre diversos atores sociais” (p. 57).
des pode-se consultar Thomaz de Almeida (2001). 9. Para esse período referido por Grünberg, não disponho
7. Historicamente o território ocupado pelos Guarani, em no momento de dados para comparar a situação relativa à
seus três subgrupos considerados pela literatura pertinente saúde dos Guarani no lado brasileiro da fronteira, nem
(ou seja, os Kaiowa, os Ñandéva e os Mbya), inclui, entre tampouco sobre a atuação do sistema de policiamento do
outras regiões, a fronteira entre a parte oriental do Paraguai lado paraguaio, referente ao fluxo de pessoas naquela dire-
– Kaiowa (denominados Paî-Tavyterã), Ñandéva (denomi- ção. Contudo, no que tange ao problema fundiário, a situa-
nados Chiripa) e Mbya – e o estado de Mato Grosso do Sul ção de expropriação das terras de ocupação histórica dos
(Kaiowa e Ñandéva), área a que me importa aqui fazer refe- Guarani, em conseqüência do fomento dos governos à colo-
rência. nização, era comum nos dois lados da fronteira.

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me com grupos dessa etnia no sul de MS. É tornou-se um agente-chave como formulador
necessário, abrindo-se um parêntese, observar dos chamados laudos de identificação e
que entre Brasil e Paraguai há uma diversidade periciais de terras indígenas. Especificamente
tanto no que diz respeito às respectivas legis- nesse ponto é de se recordar que a construção
lações atinentes à terra, quanto aos processos do conhecimento em antropologia – sendo um
históricos de recuperação dessas terras por parte laudo antropológico também um produto dessa
dos indígenas. No que tange ao Brasil há, pode- ordem – não se dá por uma questão de simpatias,
se dizer, duas fases de delimitação da terra, a mas de conhecimentos e técnicas adquiridos em
primeira é a constituição de oito reservas criadas longos tempos de formação, com uma funda-
pelo então SPI entre 1915 e 1928, e a segunda, mentação sobre as informações prestadas pelo
a definição de áreas (atualmente em cerca de grupo, as quais devem passar pelo crivo
18, entre identificadas, demarcadas, homolo- propriamente técnico de uma análise antropo-
gadas e “em identificação”) a partir da reivin- lógica, a saber, o cotejo das informações entre
dicação dos próprios índios, num processo que diversos sujeitos, buscando-se o refinamento
se iniciou em fins dos anos 1970 – como se verá dessas informações. Um outro procedimento
logo adiante. Já no que se refere ao Paraguai, utilizado, quando necessário, é a busca de infor-
particularmente aos Paî-Tavyterã, com a mação histórica e de documentação que possa
atuação direta do Projeto Paî-Tavyterã e por dar respaldo a essas informações.
meio de um processo de negociação dos Deve-se ter em mente, então, que o fato
espaços delimitados, foram demarcadas 24 de ser o responsável imediato por esse trabalho
áreas até o ano de 1975. Com relação aos técnico faz com que, para os demais atores
Chiripa, foram 14 as áreas demarcadas até 1988 presentes na região, o pesquisador não fique
(para dados neste sentido, ver Melià et alii, 1976; separado da figura do técnico.
PPT/PG, 1977; Chase-Sardi et alii, 1990, Assim, no tocante a essa questão – e de
Thomaz de Almeida, 2001; Mura & Thomaz de modo complementar à questão da necessidade
Almeida, 2002). de tomar em consideração os interesses dos
A situação dos Kaiowa e dos Ñandéva de grupos pesquisados –, se para os atores referidos
MS, com quem passei a conviver no ano de a separação entre o técnico e o pesquisador não
2000, fez-me perceber que o problema da terra aparece, para o próprio antropólogo as coisas
existe para eles com o mesmo caráter de tornam-se ainda mais complexas, caso a tarefa
emergência que fora posto aos Grünberg no para a qual se prontificou não seja de caráter
Paraguai, não obstante as mudanças ocorridas técnico. Sendo ela de caráter acadêmico, e tendo
em conseqüência do processo histórico e de em conta sua preparação voltada para dar conta
termos atualmente uma nova situação histórica de questões elaboradas na academia, esse
nas relações interétnicas no sul de MS. A partir quadro de conflito fundiário como pano de fundo,
do final dos anos 1970, esses dois subgrupos mais que determinante nas relações interétnicas
Guarani iniciaram um esforço de recuperação locais, apresenta-lhe algumas complicações.
de seus lugares historicamente ocupados Conforme pude concluir, se na chegada a uma
(tekoha), esforço que tem alcançado um relativo determinada área indígena, pode até ser imedia-
êxito, mas que se mantém fortemente ativo, tamente acolhido por uma família indígena (em
sendo a demanda estimada (pois que não há vista dos recursos que ele possa trazer, além da
dados concretos nesse sentido) atualmente na sua utilização nas disputas internas do jogo
casa de algumas dezenas de tekoha. político e de prestígio entre as famílias, interna-
Essas conquistas tiveram início nos anos mente dentro das próprias áreas indígenas), de
1980, com a identificação da “terras indígenas”, modo geral, no nível da comunidade (com a qual
e adensaram nos anos 1990, sobretudo em razão ele necessariamente precisa interagir, no desen-
das mudanças introduzidas na Constituição de volvimento da pesquisa), a presença do antropó-
1988, com a afirmação dos direitos indígenas logo pode tornar-se problemática, caso ela (a
sobre a terra considerada como de ocupação comunidade) se encontrar imersa em uma
tradicional. Nesses termos, o antropólogo determinada ordem de problemas. Semelhante

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SILVA, ALEXANDRA BARBOSA DA. Sobre o compromisso do antropólogo e seu papel...

ao que ocorreu com os Grünberg, em momentos Na área, os índios, em cerca de 350, entre
propriamente de mobilização na luta pela terra adultos e crianças, estavam confinados em um
– mas não apenas nesses casos, que devem ser espaço de 24 hectares, o qual fora resultado de
vistos somente como um exemplo possível, e um acordo estabelecido entre eles e o prefeito
observando-se que não necessariamente tem de (que tivera, junto com seu pai e o irmão, suas
estar em questão uma comunidade, mas também terras ocupadas e compreendidas na identi-
devem ser levadas em consideração as condi- ficação), por um prazo que já havia há muito
ções de sujeitos individuais ou de determinada tempo expirado. Sabendo de nossa presença na
família ou grupo, dependendo do universo com cidade e que nos dirigíamos ao acampamento, o
o qual o pesquisador esteja envolvido –, um pai do prefeito mandou-nos chamar. A ele
antropólogo que se posicione como um pesqui- expusemos nossa intenção de desenvolver
sador, com um interesse acadêmico específico, pesquisas junto aos índios e lá permanecermos
torna-se fora de lugar, supérfluo ou, quando inicialmente por alguns dias. Assim, ele solicitou-
muito, suportado (se não indesejado). nos que disséssemos aos índios para ficar calmos
e se manterem onde estavam até que tudo se
Minha experiência: o antropólogo como resolvesse – ou seja, que ele recebesse a indeni-
um mediador zação que lhe era devida e se retirasse com a
família. Um clima de desconfiança e certa tensão
Neste ponto, remeto-me novamente a
marcaram essa nossa conversa, embora o
minha própria experiência entre os Guarani. Esta
fazendeiro se esforçasse por mostrar-se cordial.
iniciou-se mais precisamente entre os Kaiowa,
Após esse episódio, estabelecemo-nos no
em agosto de 2000, junto a meu companheiro,
acampamento e fomos tomando ciência da
também antropólogo e que desenvolve pesquisas
situação altamente tensa que reinava entre os
entre os Guarani há alguns anos, em uma área
índios e a família do prefeito. No correr do tempo,
ocupada que recentemente recebera um grupo
tivemos conhecimento da série de proibições
técnico (GT) da Funai para a identificação.
impostas aos índios, com origem na impossi-
Com uma idéia em gestação de analisar os
bilidade de deixar o “chiqueirinho” – como estes
efeitos da atuação do Estado sobre o assenta-
mento de populações etnicamente diferenciadas chamavam o espaço de que dispunham. Era-
e levando em conta os diferentes motivos, os lhes vedado caçar, pescar, buscar sapê, e,
diversos atores e as agências governamentais sobretudo, cruzar a fazenda em direção à outra
envolvidos, tendo como referência uma mesma área indígena, situada já no Paraguai, a cerca
situação social (Gluckman, 1987), eu tencionava de 7 km de distância, com a qual mantinham
investigar tanto uma situação de ocupação de relações de parentesco e aliança. Conforme
terra pelo MST, quanto uma indígena. registrado na literatura, esse caminhar (oguata)
Portadores de uma carta de apresentação pelo território é de fundamental importância na
do antropólogo coordenador do referido GT, a vida dos Guarani, elemento que constitui e
nossa intenção de ali permanecer, a fim de mantém as relações tanto intra quanto interco-
melhor conhecer o modo como viviam, foi munitárias. Restritos a um espaço extremamente
acolhida. Evidentemente, a associação estabe- exíguo para suas características de morfologia
lecida entre nós e o antropólogo por eles conhe- e organização social, os índios viam-se numa
cido garantiu-nos de imediato essa acolhida, situação comparável a uma panela de pressão.
significando ela – como a cada dia, naquele Certo dia, aproveitando-se exatamente de
período, tornava-se mais perceptível para nós – nossa presença, o chefe político do grupo (o
um empenho de confiança e uma esperada capitão) veio dizer-nos que, na manhã seguinte,
reciprocidade de nossa parte. um grupo iria à referida área indígena no
Ao longo daqueles dias, as experiências que Paraguai e convidou-nos a acompanhá-los, o que
vivemos dizem muito sobre a posição do antro- fizemos. Ao saber do fato, a reação do fazen-
pólogo em MS, e eu passo a compor uma refle- deiro foi de grande irritação e, dali por diante,
xão nesse sentido, com breves contextuali- nossa presença foi diversas vezes por ele
zações. solicitada para conversas. Assim, até pouco

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antes de nossa partida, vimo-nos transformados presente e preponderante, avivada em todos os


em mensageiros por ambas as partes, de modo sentidos em face do objeto em disputa.
que, se a figura do antropólogo é vista como a Nesse contexto, aparecíamos como um
de um mediador, naquela situação isto se deu meio de enviar mensagens à parte oposta, cada
de modo literal. Os índios, sabendo que éramos qual marcando sua posição e com uma deter-
chamados pelo fazendeiro, apresentavam-nos a minada percepção da situação. Nossa consta-
demanda de poder ir além do “chiqueirinho”; o tação (dos antropólogos) era que não haveria
fazendeiro solicitava exatamente o contrário. nenhum avanço em termos de concessão, e
Essa situação estabeleceu-se em razão da vimos que os índios tinham essa mesma percep-
impossibilidade de diálogo entre as partes. Em ção. E, no entanto, o fazendeiro parecia esperar
termos mais exatos, comunicação existia entre que tivéssemos algum êxito, por dispor de uma
elas, e esta dava-se através dos incidentes que (suposta) autoridade perante os índios. Essa sua
ocorriam – como uma flecha atirada em direção atitude, por um lado, era devida claramente à
ao carro do filho do prefeito e a apreensão impossibilidade de pôr em prática a forma de
impetrada pelos índios de caminhões que comunicação historicamente utilizada pela sua
retiravam madeira cortada na área já então categoria na região: o uso da força. Por outro
identificada. Contudo, um diálogo direto lado, espelhava uma percepção de que os
mostrava-se impossível pela diversidade das Guarani não eram os mentores do movimento
posições e concepções em jogo. Dito de outro de reivindicação, havendo uma versão muito
modo, por tudo o que comportava a diferença arraigada entre os proprietários de terra de que
étnica naquele contexto social, político e as ocupações fundiárias têm sido fruto de
econômico, implicando isto a adscrição a valores, iniciativas e ações de “brancos” (ou melhor, de
conceitos e crenças e a um modo de se relacio- agentes de ONGs nacionais e estrangeiras, do
nar com a terra diametralmente diversos.10 Cimi e de antropólogos), dado que, de seu ponto
Para compreender melhor os elementos em de vista, eles “sempre tiveram uma convivência
causa, importa dizer que, num momento anterior, pacífica com os índios”. Certamente, para essa
era possível uma relação não apenas baseada visão contribuiu a postura não agressiva dos
no trabalho que alguns índios presentes no Guarani (expressão de um correto, apropriado,
acampamento prestavam havia anos a esse modo de ser perante o mundo e as pessoas, o
fazendeiro, mas também em algo a que este teko porã) e a evitação de conflitos abertos, o
imputava relevância: o fato de ser padrinho que os fazia figurar como um povo submisso,
desses mesmos índios. Desse modo, a seus visão que torna essência aquilo que é resultado
olhos, a presença deles no grupo reivindicante de uma luta com premissas e armas desiguais,
aparecia-lhe como uma traição – conforme num longo processo de dominação. Por outro
efetivamente nos informou. No discurso desses lado, é bem apropriado notar que a presença
mesmos índios, essa última relação não aparecia daqueles atores externos foi fundamental para
no horizonte dos fatos relevantes; o que surgia que surgissem as condições para uma modifi-
era o desabafo dos constrangimentos e da cação no jogo de forças estabelecido. Assim
subjugação acumulados ao longo do tempo, sendo, a idéia de mancomunação, com liderança
da parte dos “brancos”, estava firmemente
fundamentados todos sobre a expropriação da
arraigada no pensamento desses proprietários.
terra, que então se haviam disposto a reivindicar.
Após essa experiência, permaneci ainda
Como é perceptível, naquele momento a
por um período em uma outra situação de
diversidade étnica tornava-se absolutamente
reivindicação de tekoha e estive presente em
10. Para os Guarani, a terra (yvy) foi-lhes dada por Ñande
três das reuniões11 que aglutinaram represen-
Ru Vusu, uma das entidades supremas de seu panteão, para tantes de um grande número de tekoha de MS,
que ali vivessem e para que dela cuidassem, a fim de evitar nas quais os problemas e interesses de cada um
que males recaíssem sobre o local, ameaçando toda espécie
de vida que nela se desenvolve. Daí, como ocorre com vári-
os outros grupos indígenas, a concepção dos Guarani é que 11. Uma delas numa área que estava sendo reivindicada e
são eles que pertencem à terra (que é uma terra – no sentido onde foi assassinado o ancião Marcos Verón, então
de território – específica) e não o contrário. articulador dessa demanda.

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eram apresentados para os demais, constituindo realiza dentro de um limite específico, sendo este
esses eventos uma grande assembléia (a aty o que configurava no passado (e que permanece
guasu, donde aty = reunião e guasu = grande) como tal na concepção dos índios) um tekoha
e a instância de representatividade de caráter guasu – ou seja, um território caracterizado por
mais amplo existente entre os Guarani de MS, relações que se desenvolvem conectando e
de modo que tem sido a partir dessa inserção perpassando vários tekoha, embasadas quer por
que venho conhecendo líderes políticos e sendo parentesco, quer por aliança (casamento). Cada
por eles conhecida, ou seja, como alguém que família nuclear mantém, é importante destacar,
tem compartilhado de seus problemas. Desse como referência fundamental o tamõi (avô), e
modo, meu interesse em aprender sobre seu este tem por referência o tekoha ao qual
modo de viver tem sido acolhido com grande pertence. Assim, ao fim, o que temos são
paciência, dada a disposição de determinados famílias extensas que se reconhecem pelas
indivíduos para ensinar e explicar. O gesto de interações que desenvolveram e desenvolvem
levar mantimentos para as famílias e fazer as ao longo do tempo em um espaço específico.
refeições com elas é também um elemento de O aprofundamento desta pesquisa, ou seja,
aproximação e que possibilita o desfrute de a análise com metodologias próprias à antro-
conversas e de convivência. pologia, é que possibilitará explicar mais apropria-
Nessa convivência, mais de uma vez foi- damente, em termos científicos, os critérios que
me solicitado auxílio para a elaboração de embasam as iniciativas aguerridas com que os
projetos para obtenção de recursos – por exem- Guarani vêm reivindicando as terras que
plo, de bens que atendem a necessidades de consideram como de sua morada e existência.
produção, tais como sementes, carroças, tratores
e seus implementos. É nesse jogo de interação Conclusões
que venho obtendo uma ampla gama de dados,
muitas vezes mesmo inesperados por sua Na medida em que a antropologia e as
complexidade. pesquisas antropológicas têm sua história intima-
Importa dizer que findei por construir meu mente relacionada a contextos coloniais e, como
projeto de pesquisa para doutoramento tendo por já foi de algum modo apontado no início deste
objeto a investigação dos efeitos da territo- texto, tendo sido postas em questão as relações
rialização12 sobre o modo como os Kaiowa e entre antropólogos e agentes de governos colo-
os Ñandéva passaram a se estabelecer no seu nialistas, gostaria, neste ponto, de me reter sobre
território de ocupação histórica. Minhas o exemplo aqui exposto dos acontecimentos no
reflexões vão no sentido de investigar o modo acampamento indígena. Dados os elementos que
como esses indígenas concebem e vivenciam o conformaram, ele pode ser visto como um
um território, tanto como espaço cognitivamente exemplo-limite do papel de mediação atribuído
conhecido, quanto como local de experiências ao antropólogo, o que denota que há justamente
intra e interétnicas. um papel específico em questão. Esse exemplo
A observação a que tenho me dedicado – permite exatamente – ou antes, suscita – uma
dos efeitos que a socialização efetuada tanto reflexão sobre esse papel num nível mais amplo,
nas terras indígenas (TIs) constituídas, quanto e sobre sua relevância nos tempos atuais.
nas fazendas e nas cidades de MS, têm sobre a O que estou considerando como esse papel
identidade dos indivíduos e dos grupos e da de mediação não significa uma função política
construção e manutenção das redes de relações pretendida e assumida pelo próprio antropólogo,
que perpassam esses locais de estabelecimento mas fundamentalmente a tradução de interesses
– permite-me perceber que o fundamento exato das partes em uma interação, sob explícita
desses estabelecimentos está em que ele se solicitação destas. Assim, o quadro que pode se
delinear é o de um mediador entre diferentes
12. Entendida esta, segundo Oliveira (1999, p. 21), como princípios culturais e de organização social, um
“uma intervenção da esfera política que associa – de forma
prescritiva e insofismável – um conjunto de indivíduos e mediador entre os grupos sociais e as mais
grupos a limites geográficos bem determinados”. distintas instituições públicas e privadas.

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O que é de se observar é que não só BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ,
diferentes princípios culturais demandam, no R. (Org.). Pierre Bourdieu. 2. ed. São Paulo: Ed. Ática,
presente momento histórico, uma tradução entre 1994.
e para as partes, mas sobretudo que essa diver- _____. As regras da arte: gênese e estrutura do
sidade encontra concretização através de uma campo literário. São Paulo: Companhia das Letras,
estrutura hierárquica de poder, em que as 1996.
decisões são tomadas, com um caráter marca- CHASE-SARDI, M.; BRUN, A.; ENCISO, M. A.
damente tutelar, externamente aos grupos social, Situación sociocultural, económica, jurídico-
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pelas políticas dessas instituições públicas e
ELIAS, Norbert. Engagement et distanciation:
privadas. Em vista dessa estrutura atualmente
contribuitions à la sociologie de la connaissance.
existente, o antropólogo é um mediador Paris: Fayard, 1993 [1983].
imprescindível e, no meu parecer, esse papel de
FABIAN, Johannes. Time and the other: how
mediação deve ser exercido buscando-se ao
anthropology makes its objects. New York: Columbia
máximo conduzir à concretização dos direitos, University Press, 1983.
e mais ainda, dos interesses desses grupos
_____. Time and the work of anthropology: critical
sujeitados. No processo, é de se prever (e essays 1971-1991. Harwood, 1991.
fomentar) que o aprimoramento das organi-
GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social
zações representativas desses mesmos grupos na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO,
conduza a uma autonomia, a qual acabe por Bela (Org.). Antropologia das sociedades contem-
aportar transformações nesse papel. porâneas. São Paulo: Global, 1987 [1958].
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