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SAMIZDAT

Especial
www.revistasamizdat.com

21
outubro
2009
ano II

ficina

Mistério
e Suspense
SAMIZDAT 21
outubro de 2009

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral O gênero policial é um dos segmentos mais populares da


Maria de Fátima Brisola Romani literatura mundial. Nos EUA e no Reino Unido, romances de
mistério atraem milhões de leitores todos os anos, com seus
Assessoria de Imprensa enredo intrincados e personagens memoráveis.
Mariana Valle São raros os casos, no curso da História da Literatura, de
personagens tão emblemáticos e conhecidos como Sherlo-
Autores ck Holmes, o maior ícone do detetive particular. E isto só
Caio Rudá
demonstra o apelo que gênero possui sobre o imaginário
popular.
Carlos Davissara
O segredo do mistério reside, em grande parte, na própria
Dênis Moura
curiosidade humana, neste nosso prazer em espiar a vida
Giselle Natsu Sato alheia, em descobrir nos outros as mesmas falhas que nós
Henry Alfred Bugalho possuímos.
Joaquim Bispo Além disto, o gênero é bastante moderno, fruto das gran-
José Guilherme Vereza des cidades e do anonimato nas metrópoles, pois apenas o
Jú Blasina que não se conhece é que precisa ser investigado, apenas
Léo Borges aquele que se perde na multidão é que precisa ser procura-
Mariana Valle do.
Maristela Scheuer Deves Nesta edição especial de “Mistério e Suspense”, os autores
Simone Santana
da SAMIZDAT encararam o desafio de intrigar e enredar o
leitor nas tramas do perigoso e do desconhecido.
Volmar Camargo Junior
Wellington Souza
Henry Alfred Bugalho
Autores Convidados
Maria de Fátima Santos

Textos de:
Antonio Luiz M. C. Costa
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
Imagem da capa: a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
http://www.flickr.com/photos/
joostassink/2646931062/sizes/o/ Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
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expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
FALA Samizdat 5
Como você começou a escrever?

Por que Samizdat? 8


Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
Luis Dill 10

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


Eclipse ao pôr-do-sol 12
Antonio Luiz M .C. Costa

MICROCONTOS
Caio Rudá 26
Simone Santana 27

CONTOS
O canto da sereia de Bach 28
Carlos Davissara
Um assassino online 32
Joaquim Bispo
Hereditário 36
Wellington Souza
DeLíRiUs VirTuAis 40
Jú Blasina
Os gatos de Pereirópolis 44
Volmar Camargo Junior

O Diário Vermelho 48
Henry Alfred Bugalho
O menino de Tribiguá 52
José Guilherme Vereza
Pela morte de um estigma 56
Léo Borges

Jack, o estripador. A primeira vítima 60


Giselle Sato
Diário do Federal - Capítulo 1 - O 1º plantão 62
Dênis Moura

Autor Convidado
Margarida (ou seria Helena ou Graça) 64
Maria de Fátima Santos

POESIA
Laboratório Poético: Mistério 65
Volmar Camargo Junior
A sombra 68
Ju Blasina
Revista 69
Mariana Valle
Algumas elucubrações 70
Caio Rudá

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 72


Fala Samizdat

Como você começou a escrever?


Comecei a escrever seriamente em 2007, quando entrei em um
grupo chamado “Oficina de Escritores e Teoria Literária”. Até então,
só escrevia para organizar as narrativas de jogos de RPG. Mas
sempre gostei de ter quilos de material para cada sessão – tanto
que eu gostava muito dessa etapa. Poesia, então, é ainda mais re-
cente: comecei a escrever já sendo membro da Oficina e publican-
do na SAMIZDAT, quando comecei com meu “Laboratório Poético”.
Volmar Camargo Junior

Impulsos literários me acompanham desde criança. É difícil descre-


ver as origens desses impulsos ou o que fez com que se manifestassem.
Nunca soube se escrevia bem ou não, só sabia que era algo que não
dava para ser retido. Então, essa vontade se transformou em rabiscos
com algum significado, em princípio espalhados pela casa e depois
pela internet, o que possibilitou meu envolvimento com projetos mais
densos na seara da escrita, como é o caso da Samizdat.
Léo Borges

Comecei a escrever cedo, com uns 9 anos, mas o meu sonho mesmo era ser
desenhista de Histórias em Quadrinhos.
No entanto, com pretensões sérias, foi apenas em 2000, quando saí da casa
da minha mãe e não tive como levar comigo meu piano. Para compensar e con-
tinuar exercendo algum tipo de expressão artística, passei a escrever.
Desde então, a música e a literatura sempre andam juntas, e pianos e pianis-
tas são aspectos bastante presentes no que escrevo. Inclusive, é o tema do meu
primeiro romance.
Em 2010, completo dez anos de escrita.

http://www.flickr.com/photos/hi-phi/48771723/sizes/l/
Henry Alfred Bugalho

Comecei a escrever desde que aprendi a segurar um lápis. Ainda o seguro torto, mas as letras já
saem melhores – em formato e relevância – assim espero! Já profissionalmente, foi uma luta interna:
não concebia a escrita como profissão e por muito tempo dediquei-me a algo que julgava mais sério, a
biologia. Só em janeiro deste ano percebi que minha vida estava repleta de gavetas – reais e virtuais – e
que nestas, sob muitos papeis, havia sonhos. E foi com um discurso semelhante a este que ingressei na
“Oficina de Escritores e Teoria Literária”, instigada pelo amigo escritor Alian Moroz e pela possibilidade
de encontrar minha plena realização – ser de fato uma escritora. De lá para cá os projetos se multipli-
caram, meu blog “P+2T” cresceu e veio a SAM. Acho que já posso dizer: sim, sou escritora, assumida e
com muito prazer!
Ju Blasina

Agarrei com as unhas uma escrita-magia que encontrei em coincidências: comecei a sonhar um
mundo para tentar impô-lo à realidade, a despeito da convicta precisão das coisas que existem; come-
cei em diários que eu, inventando, pensava perverter a essência – a magia e a escrita foram as pedras
que encontrei para fazer faiscar a máquina do mundo.
Sheyla Smanioto Macedo

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O episódio que ficou gravado na minha lembrança como minha estreia no mundo
da poesia foi uma paixão platônica aos 12 anos. A professora de português nos man-
dou escrever sobre algo pelo qual esperávamos e eu transformei a minha paixonite pelo
príncipe num poema de alguém que espera ser correspondido um dia.
Comecei a produzir poesia mais intensivamente quando, aos 17, 18 anos (não lem-
bro), entrei na Oficina Literária Cairo Trindade. Naquela época, arrisquei um, dois con-
tos/crônicas, mas não consegui passar daí, só fazia poesia. Minha obrigação de escrever,
como jornalista, e o excesso de trabalho me afastaram da escrita, mas, ao abandonar a
TV Globo, tive um reencontro apaixonado com a escrita, agora então escrevendo com-
pulsivamente crônicas, contos, artigos e poemas, lançando meu blog e logo depois meu
primeiro livro. Nenhum trabalho conseguiu me separar da minha escrita literária desde
então.
Mariana Valle

Comecei a escrever em 2006, incentivada por um amigo, Rafael de Leon, que conheci
no Orkut. Até então só redações escolares, artigos na faculdade, poesias de adolescente.
Quando criança escrevia dedicatórias. As dedicatórias foram muito importantes.
Simone Santana

Comecei, assim como a maioria dos que escrevem por comichão, pelos poemas. Por
incrível que pareça, o primeiro poema me aconteceu depois de ter visto um filme da
Sessão da Tarde no ano de 2001. Desde então comecei a anotá-los em cadernos brochu-
ra, sete cadernos de poesias ao total, quase todas brutas, retiradas à flor da terra. Hoje
procuro lapidar. Os contos são recentes, menos de um ano (os mais antigos são muito
ruins).
Wellington Souza

Embalado pelas leituras de Hercule Poirot, Sherlock Holmes, e pelas boas notas em re-
dação por volta da sétima e oitava série, decidi que tinha algum potencial para escrever.
Por coincidência, ainda essa semana vasculhava uns arquivos no HD, quando encontrei
uma relíquia intitulada “Contos e Crônicas de Fevereiro”: um documento que talvez fosse
meu primeiro protótipo de livro, com três contos completos e mais um inacabado; as crô-
nicas não sei se ainda ia escrevê-las ou não havia razão de estarem no título.
Os textos, datados de 2003, mas talvez escritos em 2002, são ruinzinhos, porém mere-
cem algum elogio, para uma criança de 13 anos. Uma técnica precária, se é que a havia,
mas uma criatividade e cuidado com a escrita que invejo hoje. Veio o Ensino Médio e
não me recordo de ter escrito nada além das coisas do colégio. Em 2008, já com o blogue
e a entrada na Oficina, retomei a caneta, agora quase completamente substituída pelo
teclado, e dei alguma consistência ao trabalho e ao seu produto.
Caio Rudá

Comecei a escrever por volta dos meus quinze anos, quando me interessei e conheci mais a
literatura brasileira, mas desde pequeno tinha o hábito da leitura. Porém, lembro-me de, ainda
muito pequeno, criar algumas histórias na máquina de escrever que adorava. Pretendo um
dia resgatar essas narrativas. Então foi bem antes dos quinze. Mas o que me pôs de vez no
mundo da escrita foram os ótimos professores de literatura que tive no colegial. Fiquei encan-
tado principalmente com os poetas românticos. A melancolia me agrada. E li alguns roman-
ces na época. Foi aí que pensei algo como: “Eu posso fazer igual”. E continuo até hoje sempre
procurando me surpreender e me aperfeiçoar em cada desafio que me submeto a escrever.
Guilherme Rodrigues

6 SAMIZDAT outubro de 2009


Desde que me lembro, sempre quis ser escritora. Quando tinha meus oito ou nove
anos, fabricava livrinhos com folhas de caderno – escritos à mão e ilustrados por mim
mesma. Saía de tudo: livretos didáticos, paródias de livros que eu havia lido, historie-
tas baseadas nas minhas brincadeiras e fantasias infantis.
Aos 13 anos, venci a etapa regional do Concurso Epistolar Internacional para
Jovens, com o conto “A viagem de uma carta”, que contava as aventuras de uma
cartinha que, no meio do caminho, se apaixona por um cartão-postal (risos). Teve até
cerimônia de premiação e nota no jornal, o que me deixou tão orgulhosa que não
parei mais de escrever.
Na adolescência veio a fase das poesias e dos contos românticos, depois minha es-
crita foi amadurecendo. Venci mais concursos literários e vi meus primeiros contos e
poesias publicados em antologias quando estava no segundo grau. Durante a faculda-
de, mantinha cadernos de textos diários – contos, poesias, crônicas, o que fosse, mas o
hábito de escrever era mantido de forma quase sagrada. Foi também nessa época que
concluí meu primeiro livro, um romance infanto-juvenil iniciado ainda na sétima ou
oitava série e que eu ia relendo e reescrevendo sempre.
O gosto pela escrita me levou ao jornalismo, e hoje, embora tenha diminuído o
ritmo em relação a anos atrás, sigo escrevendo ficção, com preferência por contos de
terror e romances de mistério. Tenho mais dois romances prontos e vários começa-
dos.
Maristela Deves

Da adolescência para a vida adulta, julgo que eu escrevia sem me dar conta de estar
escrevendo. Ler, lia muito pouco. Quando comecei a ler mais, comecei a querer escrever
mais, criar minhas próprias histórias. Isso foi por volta dos meus 23 anos de idade. Desde
então, meus escritos aumentaram, contudo, ainda sem uma “vontade de escritor” verdadei-
ra. Só mesmo no ano de 2008, através de pesquisas pela internet, foi que conheci ótimos
espaços virtuais voltados à Literatura e comecei a estudar e escrever com genuína “vonta-
de de escritor”. Dentre esses espaços, destaco as comunidades do Orkut: “Escritores e Teoria
Literária” e “Oficna da E-TL”. Só mesmo nesse momento é que julgo ter começado a escrever.
Carlos Davissara

Comecei a escrever desde menina, sempre li muito e queria fazer parte deste universo. A litera-
tura foi minha companheira a vida inteira.
Durante um bom tempo, apenas segui acumulando contos, prosas, versos e afins.
O momento aconteceu em 2009: montei um site, lancei meus livros, participei de projetos com
outros escritores e continuo fazendo o que mais gosto – contar minhas histórias.
Giselle Sato

Foi uma decisão, um acto de vontade. Em 2006, terminada uma licenciatura em História da
Arte, achei que teria mais prazer e poderia vir a provocar maior apetência pela área se envere-
dasse pela ficção em contexto de Arte e História da Arte, do que tentar produzir textos académi-
cos, “que ninguém lê”.
Frequentei um curso de escrita criativa, li uma série de textos teóricos, e procurei outros escri-
tores iniciantes. Encontrei a oficina de escrita que está na origem desta revista.
Joaquim Bispo

http://www.flickr.com/photos/tmab2003/3240697880/sizes/l/

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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

8
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Entrevista

Luis Dill
Gaúcho de Porto Alegre, o jornalista
e escritor Luis Dill, 44 anos, tem 21
livros publicados, principalmente de

http://1.bp.blogspot.com/_4SBeCN1DHAA/SkTR-y3HUdI/AAAAAAAAApE/Tr1DCIMCP14/s320/lu%C3%ADs+dill.jpg
literatura infanto-juvenil (classifica-
ção que ele rejeita, por acreditar que
classificações são sempre exclu-
dentes, como se outro público não
pudesse ler tais livros).
Foi vencedor do prêmio Açoria-
nos de 2008 com o livro de contos
policiais Tocata e Fuga, publicado
pela Bertrand Brasil. Também foi
indicado várias outras vezes para
esse mesmo prêmio, o principal do
Rio Grande do Sul.
Tem livros, entre outras editoras,
pela Edições SM, Cia das Letras
e Artes & Ofícios. Um fato inte-
ressante é o primeiro livro que ele
publicou foi escrito em apenas um
mês. Ele tinha batido (literalmente)
na porta de uma editora em Porto
Alegre para oferecer um livro, que
era um romance policial voltado
ao público adulto. Eles disseram
que gostaram do seu estilo de
texto, porém naquele momento não
estavam publicando o gênero; se
ele topasse, poderia apresentar um Samizdat: Sua inserção segmentações. Para mim
original infanto-juvenil. Ele nunca
tinha escrito nada para esse público,
no mundo da literatu- é tudo literatura. O que
mas saiu dali e começou a escrever. ra infanto-juvenil foi tomo como regra para
Um mês depois, o livro estava sendo incidental, dadas as mim é evitar palavrões e
enviado à editora. exigências do mercado cenas muito explícitas em
Passados 20 anos, ele segue se editorial. Quais são as termos de sexo e de vio-
dividindo entre a escrita e o jorna- especificidades deste lência quando escrevo li-
lismo (trabalha na FM Cultura), mas
já conseguiu deixar um dos dois gênero? O que é neces- vros destinados aos jovens.
empregos que tinha antes para dedi- sário ter em mente ao se Penso que o gênero requer
car parte do seu tempo à escrita. É escrever para o público ritmo, boa estrutura nar-
muito lido em escolas, onde também
dá palestras com frequência.
infanto-juvenil? rativa, ação e, sobretudo,
Luis Dill: Não vejo gran- qualidade.
O site do escritor é www.luisdill.
com.br. Confira aqui a entrevista que des diferenças entre lite-
ele concedeu à Samizdat. ratura juvenil e literatura Samizdat: A literatura
adulta. Sequer gosto dessas policial costuma retratar

10 SAMIZDAT outubro de 2009


os problemas sociais e, mett e Chandler. No Brasil “assassino profissional”.
mais do que isto, carac- admiro muito o Marçal Matadores de aluguel
terísticas dos povos de Aquino. existem, ou são arquéti-
seus países de origem. pos de personagens de
Como você percebe isto ficção (como os deteti-
na literatura policial do Samizdat: Nos EUA, o gê- ves de filmes noir)?
Brasil? Quais são as nos- nero policial é um seg-
mento muito importante Luis Dill: Matadores de
sas características (qua- aluguel existem. Claro. Há
lidades ou defeitos) que do mercado editorial,
com vendas impressio- inúmeras reportagens a
tendem a transparecer respeito. Em alguns can-
no desenrolar de uma nantes e grandes auto-
res consagrados. Qual tos do país, é quase uma
trama? profissão respeitada.
é o bloqueio brasileiro
Luis Dill: Na literatura em relação ao gênero,
policial feita no Brasil, a na sua opinião? Está do
cara do nosso país fica lado das editoras, dos
evidente. Por exemplo, autores ou dos leitores?
quando se fala em cri- Ou teria algo a ver com
mes de colarinho branco uma descrença generali-
ou crimes de bandidos zada dos brasileiros em
“comuns”. Literatura tem relação ao aparelho re-
disso: é espelho. pressor do Estado - polí-
cia, sistema penal e car-
Samizdat: Quais são os cerário - , isto é, como
elementos de uma boa acreditar em romances
história policial? policiais se vemos tanta
impunidade por aí?
Luis Dill: Bons persona-
gens, boa trama e res- Luis Dill: Não sei ao certo
postas convincentes para se existe um bloqueio em
relação ao gênero. Tal- Samizdat: Como foi a
solucionar o livro. Pon- experiência de reescre-
tas soltas ou soluções vez faltem mais autores
de qualidade. Não temos ver Machado de Assis?
fáceis “matam” o livro. Qual (ou quais) histórias
tradição no policial, mas
acho que isso está mudan- você “recontou” em Ma-
Samizdat: Como escritor do. E penso que a ques- chado de Assis - Conto e
de policial, você consegue tão da impunidade pode Reconto?
perceber os “bastidores” da muito bem aparecer em Luis Dill: Recontei Pai
narrativa de outros auto- romances policiais. Acre- contra Mãe. Foi uma
res? Você tomou algum ditar ou não vai do leitor. tremenda responsabilida-
autor de romance policial Se entrarmos por esse de, mas me diverti muito
como referência? lado, não leríamos ficção trazendo aquela história
Luis Dill: É difícil perce- científica nem histórias de para um morro de Porto
ber isso, a menos que se fantasia. Alegre nos dias de hoje. O
conheça bem o autor e livro ficou tão bom que
suas motivações. Minhas foi adquirido em grande
Samizdat: Seu conto O quantidade pela prefeitura
referências são as mais carteiro nunca chama
variadas. No gênero poli- de São Paulo.
duas vezes fala de um
cial, comecei com Ham- Samizdat: Hoje é pos-

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Hoje ficou mais fácil meus livros.
publicar, mas ainda acho
saudável bater de porta
em porta, conversar com Samizdat: Estamos no
gente do ramo, aprender. meio de uma polêmica
Isso ajuda a não cometer- bastante recente: a deci-
mos erros por pressa em são do STF sobre o fim
publicar. da exigência de diploma
para exercer o jornalis-
mo. Você, que é jornalis-
Samizdat: Seu primeiro ta e escritor, que pensa a
livro publicado foi escri- respeito?
to em cerca de um mês, Luis Dill: Sou contra. E
e em um gênero, juvenil, espero que as empresas de
que você não dominava. comunicação deem pre-
Diante disso, qual o seu ferência aos profissionais
conselho aos aspirantes formados.
a escritor que não con-
seguem terminar suas
sível encontrar obras histórias?
inteiras na internet, que
podem ser “baixadas” Luis Dill: Ler constante-
de sites especializados mente. Reescrever cons-
sem pagar nada por isso. tantemente. Planejar tam-
Como você vê a questão bém ajuda.
do mercado editorial? As
editoras terão o mesmo Samizdat: No Brasil, dá
destino das gravadoras? para viver de literatura?
Luis Dill: Acho que não. Luis Dill: Tem gente que
Sou a favor de todas as consegue. Eu ainda estou
novas tecnologias. Não se trabalhando para atingir
pode deter o futuro. Só esse patamar.
que acho insuportável ler
no computador. Jamais
trocaria um livro tradicio- Samizdat: Em que sua
nal por algo “baixado” da formação e o exercício
inter net. da profissão de jornalis-
ta influenciou sua pro- Coordenação da entrevista:
dução como escritor de
Samizdat: Você conse- Maristela Scheuer Deves
ficção?
guiu publicar seu pri-
meiro livro após bater, Luis Dill: Um pouco não
muito. São atividades de Perguntas feitas por:
literalmente, na porta
das editoras. Atualmente, certa forma antagonô- Henry Alfred Bugalho
esse expediente ainda nicas. Um trabalha com
Maristela Scheuer Deves
é válido para o escritor ficção e o outro com a re-
iniciante? alidade. Se eu fosse veteri- Volmar Camargo Junior
nário, por certo um pouco
Luis Dill: Claro que sim. da profissão entraria nos

12 SAMIZDAT outubro de 2009


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
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Autor em Língua Portuguesa

Antonio Luiz M. C. Costa

Eclipse ao pôr-do-sol

14 SAMIZDAT outubro de 2009


O anoitecer foi tranqüilo. traçado, de ouro sem mescla, sacerdotisa Io! E sabes acaso
Nix, a rainha da Noite, não valendo, cada uma, segundo se não foi uma imprudên-
trouxe as ninfas da chuva, Homero, o que valem cem cia de um dos teus queridos
mas apenas as Brisas que bois. A égide que ao próprio descendentes, que à minha
amadurecem os frutos, filhas raio de Zeus resistiria, coisa revelia espalhas pelo mundo?
do suave Zéfiro. No entanto, espantosa de ver, ornada pelo O Trovejante franziu o
quando Eos afastou a escuri- frio Terror, pela horrenda cenho ao fitar a esposa, ve-
dão com os dedos rosados e Derrota e pela cabeça da zeira em se opor ao tudo que
abriu caminho para Hélios Górgona, terrível espetáculo. planejava, mas não manifes-
iluminar as terras férteis da Com torvo aspecto, pro- tou a extensão de sua fúria.
Tessália e Macedônia, raios clamou Zeus grande, que as Devia perceber o que havia
e estrondos agitaram o alto nuvens cumula: de mérito naquelas palavras
Olimpo sem parar, sob um e no imo do peito consultava
– Ai do leviano que des-
Éter azul e esplendoroso. Métis, a Prudência. Icnaia
pertou minha ira por tanto
Pastores, camponeses, merca- começava a sentir-se alivia-
tempo adormecida! Humano
dores e sacerdotes, terrifica- da quando o deus augusto
ou divino, o farei invejar
dos, correram aos templos a voltou-se para os demais e
os tormentos impostos ao
tentar aplacar com holocaus- proferiu um discurso:
infame Íxion! Se ao rebelde
tos a fúria do pai dos deuses
Prometeu impus uma águia – Atenção prestai todos ao
e dos homens.
impiedosa para lhe devorar que vos digo! Nenhum dos
No cume, a ansiedade não o fígado todos os dias, a este deuses, nem mesmo nenhu-
era menor do que nos vales. ladrão hei de punir todos ma das deusas se atreva a
Serenadas as paixões desper- os parentes vivos e mor- contestar meu discurso, mas,
tadas pela guerra de Troia, tos e fazer a mais cruel das todos, concordes se mostrem!
Harmonia fora por séculos serpentes roê-lo por dentro, Quem puser empecilhos à
a mestra de cerimônias do do baixo ventre ao alto do investigação deste sacrilégio
Olimpo. Mas, naquele dia, crânio, a cada noite e cada ou à punição dos culpados,
Ênio e Éris excitavam os dia de cada século do eterno há de se ver aqui açoitado,
imortais sem encontrar quem tempo! Quanto ao imortal do modo mais vergonhoso, se
as calasse. A discreta e obs- cujos atos ou negligência o eu o não lançar no Tártaro
cura Icnaia ouvia a um canto, tenham ajudado... escuro. Hão de ver quanto
silente como as tias, a inesca- sou, mais que todos, poten-
Hera, a cruzar os cândidos
pável Nêmesis e a reverenda te. Quereis me pôr à prova?
braços, explodiu, sem conter
Têmis. O senhor supremo a Dai-me uma ponta de longa
o rancor:
todos convocara e, naquele e áurea cadeia e, da outra,
momento, tomava assento no – Zeus prepotente, de
reunidos, ó deuses e deusas,
mais alto dos tronos. Dos ha- Cronos nascido, que coisa
forçai-a para baixo. Por mais
http://agaudi.files.wordpress.com/2007/01/zeus-y-hera.jpg

bitantes do Olimpo, apenas disseste? Estás prestes a fazer


esforço que apliqueis, impos-
Héracles faltava, notou Icnaia, um juramento do qual podes
sível vos será arrastar do alto
certamente encarregado de te arrepender! Antes de ou-
ao grande Zeus. Mas, se eu
alguma missão, pois seria tro olímpico, é a ti mesmo
quiser, trarei a própria terra
o último a desacatar uma que deves censurar! Meu
e o mar vasto junto convosco
ordem do pai. fiel Argos Panoptes, o mais
e ser-me-á fácil, no alto do
fiel e atento dos guardiães,
Desaparecera do tesouro Olimpo, amarrar-vos nessa
teria impedido o furto, não
do Rei dos Deuses a égide corrente e dependurá-los no
fizesses teu solerte Hermes
sacra e imortal, de preço abismo, tanto vos supero!
matá-lo para libertar a vaca
infinito, da qual pendiam Assim como os demais
tua amante, minha perjura
cem franjas, trabalho de fino

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olímicos, estupefata e queda águas do Estige funesto, uma tanto podem favorecer a ti
ficou Icnaia, perante a vio- das mãos encostando na ter- tanto quanto às tuas presas.
lência dessas palavras. Uma ra que nutre os viventes, e a Contenta-te com que não
eternidade pareceu se passar outra no mar cintilante, para sejam viciados.
antes de Atena, a indomável que testemunha nos sejam as – Assim seja – Têmis sus-
donzela de olhos glaucos, por deidades subterrâneas de que pirou e despediu-se de Icnaia
fim adiantar-se para falar. me prometes de tudo fazer e Nêmesis.
Seu peito transbordava de para entregar o culpado à
O deus-pai desceu do
raiva selvagem contra Zeus justa punição!
sólio divino e retirou-se em
pai, suspeitava Icnaia, mas Consumado o voto sagra- silêncio, após encerrar a reu-
suas palavras foram mansas: do, Têmis aproximou-se da nião com um gesto brusco.
– Filho de Cronos, pai de sobrinha e da prima, com o As duas imortais afastaram-
nós todos, senhor poderoso e semblante carregado: se, pensativas. Icnaia foi a
supremo, sabemos que força – Minhas caras, conto primeira a falar:
invencível possuis. Basta-nos convosco para dar a mais – Tia, ao saber do desastre,
vê-la unir-se à firme retidão rápida resposta possível a consultei meu pai, pois à luz
de Têmis, a Lei Eterna. esta afronta. Nosso soberano do dia ele tudo vê se Zeus
Respondeu-lhe o pai, de confia em mim para resta- não o proibir. Mesmo sem
ânimo menos tempestuoso: belecer a ordem sem graves eu lhe pedir ele jurou-me,
– Tritogênia, tranquiliza- injustiças, mas necessito da pelo odioso Estige, nada sa-
te; quanto falei, foi produto, astúcia de Icnaia, a rastreado- ber. Se o furto se deu quando
decerto, da cólera; mas para ra, para identificar os culpa- Hélios já se recolhera, não
ti quero ser mais sereno. Ou- dos e da firmeza de Nêmesis, poderá tua mãe Nix nos...
virei, decerto, a deusa do reto a vingadora, para encontrá- – ia dizer esclarecer, mas
conselho. los e trazê-los a julgamento. conteve a tempo a palavra
Deveis saber que a égide de- impensada – ... ajudar a des-
A julgar pela expressão,
sapareceu entre a manhã de trinçar esse mistério?
pensou a deusa obscura, Hera
ontem, quando Atena, após
não a ouvia de bom grado. – Não, Icnaia. Desde que
socorrer os helenos em uma
Inevitável era seu ciúme ante a rainha da Noite voou em
batalha contra os bárbaros,
qualquer das imortais que socorro de meu irmão, que
a devolveu ao pai para que a
um dia atraíram o desejo do Zeus queria atirar do Éter às
guardasse e a madrugada de
marido inconstante, antes ondas por tê-lo adormecido
hoje, quando Zeus a procu-
mesmo dele a escolher como para permitir a Hera armar
rou, pretendendo usá-la para
sétima e, supunha-se, defini- uma artimanha, minha mãe
inspecionar o Tártaro.
tiva esposa. Mas com certeza exige um pedido de descul-
ela reconhecia a sabedoria As duas temíveis deusas pas do senhor do Olimpo
das palavras da enteada. assentiram ao pesado encar- antes de lhe atender qualquer
Conteve a língua ferina en- go. Têmis ia desejar-lhes boa solicitação. Embora Zeus
quanto Zeus se dirigia àquela sorte, mas num átimo surgiu, refreasse contra Hipnos a
que fora sua segunda com- a deslizar sobre sua roda, cólera imensa, pelo receio
panheira e o fizera pai das Tique de pés ágeis e oblíquo de à rápida Nix desagradar,
Horas serenas e das Moiras sorriso: o orgulho de ambos torna a
inflexíveis. – Tia, sabes como nin- reconciliação impossível.
Ao chamado do soberano, guém quão essencial é à – Tentemos então um
a Senhora da Justiça aproxi- Ordem Cósmica que o Acaso oráculo. Prefiro não consul-
mou-se e ouviu seu soberano: não lhe seja submisso. Não tar Apolo, as Titânides ou
me peça favores, apenas Prometeu, pois ainda não os
– Jura-me, então, pelas
imparcialidade. Meus dados

16 SAMIZDAT outubro de 2009


excluo do rol dos suspeitos, fez uma rápida conta nos tial.
nem ouso exigir-lhes jurar dedos e chamou o sobrinho Ao ouvir essas palavras, Ic-
pelo Estige sem um indício Héspero, que lhe trouxe uma naia tremeu e sentiu-se gelar
concreto de sua culpa, mas esfera redonda e giratória à e faltar-lhe o icor ao rosto.
podemos recorrer a meu tio imagem do universo. Astreu Olhou para expressão dura
Astreu. Na noite do furto, girou cuidadosamente a esfe- e impenetrável de Nêmesis.
estive com ele, meus pais e ra sobre seu eixo, carregando Decerto estava igualmen-
minhas tias Eos e Selene a planetas e estrelas em torno te chocada, mas expressar
festejar a Lua Nova. Posso do eixo. Icnaia notou como cólera não era de seu feitio,
assim isentá-lo de qualquer Hélios e Selene reuniam- conhecida que era por retri-
desconfiança. se em um ponto central buir à insolência e à húbris
– Infelizmente, só posso debaixo de Gaia, mas não de maneira tão implacável
acrescentar à lista dos in- compreendeu o que mais o quanto imprevista e silencio-
suspeitos nossa cara Tique, tio examinava em torno do sa. Voltou-se para o tio:
cujo rastro segui por toda a círculo do zodíaco.
– Sábio Astreu, não podes
noite, a tentar corrigir seus Quando se satisfez com a nos dizer algo mais sobre o
excessos. Consultemos, pois, observação do circuito das sacrílego ou o usurpador?
teu tio. estrelas, Astreu pousou a Seus motivos, seus meios,
*** esfera sobre a mesa, voltou-se seus modos de agir? Qual-
para as deusas e emitiu seu quer indício que possas
Ao vê-las chegar, Eósforo
oráculo: acrescentar pode ser a dife-
as anunciou ao velho titã,
que para saudá-las largou o – Ouve, severa Nêmesis, rença entre a salvação e a
compasso e o esquadro com está atenta, sagaz Icnaia! perdição do Olimpo!
o qual determinava o curso Quando os raios da lua e Astreu cofiou a longa bar-
das estrelas. Os ventos, seus do sol se ocultaram sob a ba branca, considerando com
filhos, deram boas-vindas Terra, uma antiga divindade cuidado a esfera:
às duas deusas aladas. Euro com motivos para se sentir
– O encontro anterior da
encheu de néctar os copos agravada por Zeus Trovejante
Parte com a estrela de Zeus
de ouro maciço, para todos encontrou a oportunidade
deu-se na Casa da Morte, em
trocarem brindes corteses, para furtar-lhe seu bem mais
conjunção com uma Virgem
Notos trouxe um jarro de precioso, pois nessa noite a
debilitada pela estrela de
água fresca, Bóreas serviu Parte da Pobreza completou
Ares, o raptor de mulheres,
ambrosia à mesa e Zéfiro um ciclo de muitos séculos e
um ano após a morte do
tocou sua flauta para Eósforo reencontrou a estrela do rei
maior dos heróis, quarenta e
dançar e assim alegrarem o dos deuses sobre o Capricór-
dois anos antes de os aqueus
desjejum do pai e de suas nio, junto à Parte da Ousadia.
sitiarem Troia. Relaciono a
convidadas. A autora da rapina não quer
antiga mágoa à violação de
a égide para si, mas para
Icnaia estava, porém, uma virgem pelo Trovejante.
um jovem imortal pronto
preocupada demais para – Tio! – Exclamou Icnaia –
a vingá-la e tomar o trono
divertir-se. Provou a ambro- Seria o tempo da concepção
do Olimpo, a menos que as
sia para não fazer desfeita ao de Helena, Clitemnestra e
linhas das Moiras possam ser
tio, mas quase de imediato o os Dióscuros. Mas Leda não
rompidas. A Parte ressentida
inquiriu sobre o nefasto de- era virgem e sim esposa de
por primeva ofensa desloca-
saparecimento. O velho não Tíndaro!
se, veloz, para encontrar em
se recusou. Perguntou sobre
Virgem a estrela de Cronos – Não há como dar mais
as minúcias do dia e hora
na casa das Crianças, pressa- pormenores, mas é o pa-
na qual a égide fora feita do
giando um novo reino celes- recer do oráculo. Quanto
couro da sagrada Amalteia,

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ao usurpador, seu caminho com calma e sozinha poderei consultou Hefestos com um
iniciou-se em Aquário à luz fazê-lo com mais discrição. olhar suspeitoso. O divino
da conjunção da estrela de Convém, creio, nos separar- ferreiro enxugou o suor da
Zeus com seu próprio As- mos até eu encontrar uma testa e confirmou:
cendente no eclipse solar da pista. – Assim foi, atendi à
quadragésima-quarta Olim- – Como queira, minha convocação e isso mesmo se
píada... – disse, a contar nos sobrinha – disse Nêmesis, passou.
dedos. – Um descendente do insondável. – Confio em teu Sem largar a tranca, o
próprio rei dos deuses! julgamento. mais querido filho de Zeus
– Há menos de dezoito *** deu de ombros e lhe fez
anos! Mas se sabe de filhos com a cabeça um sinal para
Icnaia foi à sala do tesou-
gerados por Zeus depois de entrar. Agastada com a des-
ro, em busca de ideias. Hefes-
Kairos, nem de qualquer confiança, Icnaia entrou sem
tos ajustava à porta a tranca
olímpico nascido após os lhe agradecer e agachou-se
adamantina que acabara de
Heráclidas invadirem o Pelo- na soleira. Seu olhar de águia
forjar em Lemnos. Héracles o
poneso! percebeu como as vastas
auxiliava sustentando a por-
– Também não sei a quem tentosa peça, maciça como as sandálias do pai dos deuses
as estrelas se referem. Mas colunas à boca do Mediterrâ- haviam sutilmente marca-
a ocasião propícia ao golpe neo que levavam seu nome. do uns poucos grãos de pó
do usurpador é a lua nova, sobre o piso. Estivera ali três
– Salve, meus primos –
quando haverá outro eclipse vezes desde a última faxina,
saudou a deusa. – Sabeis se
total do Sol perto do crepús- há cerca de sete dias, que ela
alguém esteve na sala desde
culo. Na sétima casa, a da mesma supervisionara. Da
que vosso pai descobriu o
esposa e das parcerias. última vez, caminhara indig-
furto?
Era tudo. Não se con- nado à alta parede na qual
– Ninguém, com certeza estivera pendurada a égide e
sultava oráculos duas vezes
– respondeu o herói diviniza- retornara de imediato, sem
sobre a mesma questão. A
do. – Meu pai convocou-me nada tocar. Não percebia
deusa deixou, cabisbaixa e
no mesmo momento e estive nenhuma outra marca re-
pensativa, a audiência. De
de guarda até meu irmão cente e seu olfato apurado
esguelha, viu a expressão
trazer a nova tranca. não reconheceu nenhum
dura e impassível de vinga-
dora obstinada, feroz mastim – Tocaste em algo, primo? odor além dos esperados. Se
ansioso por sangue. Mas Devolveste ao lugar algum alguém estivera ali à noite,
precisava do sabujo para lhe objeto caído ou recolheste fora muito rápido e não pisa-
rastrear e apontar a presa e algo que não pertencia a este ra o chão. O que era perfei-
Icnaia jamais sentira o faro lugar, talvez? tamente possível, pois muitas
tão embotado. Tinha de ser – Não, minha cara. Apenas divindades podem voar ou
na pior crise desde a rebelião cuidei que ninguém entrasse. metamorfosear-se em aves.
de Tífon! Se não solucionasse – Deixai-me então exa- Adiantou-se e exami-
o mistério a tempo, acabaria minar a sala, primo, para nou ganchos e prateleiras,
no Tártaro. Ou o usurpador procurar algum indício do comparando-os mentalmente
a puniria pelos séculos de sacrílego. Têmis, a quem com a última vez em que
fiéis serviços ao Trovejante Zeus poderoso encarregou de havia estado ali em busca
ou este a condenaria por restaurar a ordem, delegou- de outra espécie de pista.
inépcia, caso vencesse apesar me investigar o furto e iden- Eureca! Faltavam as Asas de
do seu fracasso. tificar o culpado. Arce e as pegadas mostra-
– Tia – disse Icnaia –, vam que Zeus não as tocara
O filho de Alcmena
preciso investigar os fatos nos últimos dias. Furioso,

18 SAMIZDAT outubro de 2009


deixara de notar a perda de para a pomba de Afrodite ou feita, deixara-se convencer
um tesouro pouco importan- a coruja de Atena, até para o a rebelar-se por Hera, junto
te para ele, mas certamente falcão de Apolo. Quem podia com Posídon....
não para quem se arriscara a voar em forma humana? Ela Zeus era bem capaz de
levá-la junto com uma égide mesma, Nêmesis, Hermes, Íris, violar uma deusa virgem.
já bastante conspícua. Nike, Hipnos, Eros, Tânatos, Fizera isso com Hera, sua
Na Titanomaquia, Arce Kairos, Eos, Astreia, Zéfiro, irmã mais velha, para forçá-
fora a fiel mensageira de Harpias... la a tornar-se sua esposa.
Cronos e seus titãs, enquanto Não tinha tempo para Com ele, só as próprias filhas
Íris, sua irmã gêmea, servia uma investigação exaustiva. podiam se sentir totalmen-
a Zeus e seus aliados. Com Quem seria a virgem ofen- te seguras... ou pelo menos
a vitória dos olímpicos, suas dida por Zeus no tempo de assim supunham. Mas se
asas – duas grandes nas Leda? Claro que não ela mes- aquilo fora tão secreto, como
costas, duas menores nos pés, ma, mesmo que fosse virgem perguntar-lhe? E qual a liga-
como as de Icnaia – lhe fo- à época. Era mortal, filha de ção da virgem com o des-
ram arrancadas pelo próprio mortal, ambos há muito no conhecido usurpador? Sobre
Trovejante, que a arremessou reino de Hades. E qual divin- este, só podia supor que era
com seus mestres ao Tártaro. dade se arriscaria tanto por muito jovem e acabara de ga-
Séculos mais tarde, as asas uma filha humana ou ninfa? nhar asas, além da égide. Era
menores foram presenteadas Havia de ser uma deusa e o pouco para oferecer a Zeus
à ninfa Tétis, com a suges- pretenso vingador seria seu em troca da resposta a uma
tão de aplicá-las de forma pai, mãe ou irmão, salvo se pergunta tão perigosa.
sutil e invisível aos pés do fosse a própria. Decidiu primeiro investi-
filho e torná-lo o mais veloz Podia excluir Eos, os ven- gar Hermes, uma das hipó-
dos aqueus. Quando os pés tos, Eósforo e Héspero, que teses mais lógicas e menos
rápidos deixaram de sal- haviam estado com ela na difícil de perscrutar. Por sete
var Aquiles do seu destino festa de Hélios e Selene. Nike dias e noites seguidos, esbafo-
mortal, Íris resgatou as asas e seus irmãos? Servidores riu-se a segui-lo à distância,
da pira funerária, como lhe fiéis de Zeus, o certo era pô- acompanhando-o em suas
fora ordenado. Desde então, los no fim da lista de suspei- lides. Viu-o sussurrar mensa-
jamais haviam sido usadas, tos, assim como as Harpias. gens divinatórias a adivinhos,
tanto quanto Icnaia sabia – e Íris? Igualmente improvável. divertir-se à larga com um
poucas coisas lhe passavam Eros? Não era de seu fei- bando de ninfas, acompanhar
despercebidas no Olimpo. tio meter-se em questões sombras privilegiadas ao
O pavão de Hera não tão sérias. Kairos? Nascera Hades, nada fora da rotina.
voaria longe, a águia de Zeus depois do tempo de Leda, Nada indicava estar preo-
estava fora de cogitação, o por que se arriscaria por cupado ou envolvido em
abutre de Ares não consegui- uma história antiga? Hipnos? atividades secretas.
ria voar dentro daquele salão. Ele, sua mãe e seus irmãos Dedicou outros tantos
Uma ave pequena não carre- eram misteriosos, não podia dias e noites a acompanhar
garia ambas as coisas. Voar excluí-los. Hermes? Possível. suas filhas. Palestra dedicava-
com um dos tesouros para Demonstrara desde o ber- se com humor e energia ao
um esconderijo distante, re- ço seus dotes de trapaceiro atletismo, derrotando jovens
tornar para levar mais outro e ladrão. Tinha duas filhas heróis na luta e no pugilato
ao mesmo lugar e retornar divinas tidas como virgens, sem dar nenhum sinal de
a tempo de estar presente à Palestra e Angélia. Nunca se preocupação com qualquer
convocação de Zeus, em uma revoltara contra o pai, mas outra coisa. De qualquer
só noite, seria impraticável se o próprio Apolo, certa modo, não lhe parecia pro-

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vável Zeus ter-se interessado esterco, como rastreadora Zeus! Se voltasse a se expor
por aquela deusa musculosa não vales um ânus de rata- a céu aberto, ele não voltaria
e andrógina, bem capaz de zana! Que o usurpador, seja a errar e a atiraria, queima-
responder a atenções indese- quem for, venha e me enfren- da e mutilada, às trevas do
jadas do próprio Trovejante te se for capaz! Tártaro. Pouco importava
com um pontapé decidido Lançou-lhe um relâmpa- quantas centenas de vezes ela
em lugar sensível. Investigou go, mas de tão furioso errou lhe prestara valiosos serviços,
depois Angélia, encontran- o alvo, coisa jamais vista. a começar pela guerra com
do-a ocupada em atividades Atingiu uma das colunas do os Titãs, na qual ela repetida-
habituais, como a de prote- próprio palácio e a desfez mente se arriscara ao seguir
ger mensageiros, embaixado- em cinzas, criando uma os rastros de seus poderosos
res e arautos, principalmente oportuna cortina de fumaça. inimigos e deslindar seus
os encarregados de dar más O pequeno e veloz Kairos, o planos.
notícias aos poderosos. Fosse momento oportuno, veio ver De qualquer modo, pouco
ela mais poderosa, a própria o que se passava com o pai. mais podia fazer. O fatídico
Icnaia lhe pediria proteção, Icnaia, perplexa, agarrou-o eclipse já se aproximava. O
mas era tão jovem e delica- pela longa mecha da testa, mais seguro era tomar forma
da... antes que lhe voltasse a nuca humana e ocultar-se entre
Seguiu depois, com mais raspada. O mais jovem dos os mortais até o vencedor
cautela, Tânatos, Hipnos, deuses, surpreso e assustado, se definir e serenarem os
Morfeu e outros da prole voou para fora a toda ve- ânimos no Olimpo, embora
de Nix. Todos seguiam seus locidade, arrastando-a para isso pudesse levar séculos.
hábitos, sem dar mostras de longe. Ela esbarrou de leve Ou milênios.
participarem de algo mais em Tique, que lhe sorriu e Icnaia lembrou-se de
importante. Éris espicaça- de repente viu-se ao ar livre. quando Atena disfarçara-se
va as mútuas suspeitas dos Safou-se do Olimpo com em mendiga quando quis
olímpicos sobre o caso, mas quantas asas tinha e cruzou surpreender Aracne e de-
nela isso era costumeiro. Ha- o Egeu em meio a uma ma- cidiu fazer o mesmo, para
veria mais razões para sus- drugada fresca e brumosa. caminhar à cidade próxima e
peitas se ela agisse de outra *** misturar-se a seus habitantes
forma. Os demais se concen- sem chamar a atenção. Foi
Ofegante, Icnaia ocultou-se
travam em suas tarefas junto como um velha enrugada,
em uma gruta junto a uma
aos mortais. encanecida e desdentada,
baía da Jônia. Sentou-se sobre
Com o tempo já a se uma pedra, o cotovelo apoia- coberta com um pano es-
esgotar, Icnaia decidiu correr do no joelho gracioso, queixo farrapado, apoiada em um
o risco e enfrentar o senhor fino sobre a mão pequena, bastão, carreando um velho
do Olimpo. Revelou-lhe o fechada e tensa, tentando pote de barro para coletar
oráculo, pediu perdão por meditar sobre o que acon- esmolas, que Icnaia capengou
não ter deslindado sozinha o tecera. Como podia Métis, pela estrada, com um ou ou-
mistério e pediu-lhe o escla- a prudência de Zeus, ter-lhe tro olhar de esguelha para o
recimento necessário para falhado em um momento céu para certificar-se de não
salvar a ordem divina e seu tão crítico? Que erro teria o estar sendo notada.
próprio reinado. Receava Trovejante outrora cometido Recebeu olhares de des-
uma reação irritada, mas não a ponto de preferir arriscar prezo dos guardiões da mu-
se preparara para a tempes- seu trono a revelá-lo à sua ralha, mas não a impediram
tade que viria: investigadora? de entrar. Era uma cidade
– Como ousas interrogar- Tantas hipóteses e nenhu- próspera de ruas bem plane-
me? Lesma inútil, cabeça de ma maneira de testá-las. Por jadas, largas e retas. Manqui-

20 SAMIZDAT outubro de 2009


tolou até a praça do mercado mostrar que podia enrique- –, mas poupa teu tempo,
e acocorou-se ao lado de cer quando quisesse, embora pois os deuses com certeza
seu pote de barro, a recitar sua ambição fosse de outra têm outros assuntos para se
a cada passante uma súplica monta. ocupar.
humilde. Icnaia admirou-se. A cin- – Ah, mas sempre temos a
Entre muitos resmungos e qüenta estádios dali, estava esperança de que nos ouçam.
o tilintar ocasional de uma Didima, um dos oráculos – Sim, a esperança é o
moedinha de cobre, notou de Apolo, mas o deus nunca único bem comum a todos
uma excitação incomum revelava seus segredos com os humanos. Mesmo aque-
na multidão. Será que a ira tanta precisão. E naquela les que nada têm ainda a
de Zeus já era sentida ali, cidade não havia oráculos, possuem – e fez menção de
tão longe? Ou mercadores nem mortal com suficiente afastar-se.
trariam notícias das terras sangue divino para ter acesso
– Tales, posso fazer-lhe
ao pé da montanha sagrada, aos planos dos deuses...
uma pergunta? – O atrevi-
onde os relâmpagos continu- O burburinho de repente mento de interpelá-lo cha-
avam a despencar do azul? mudou para um sussurro. maria atenção, receou Icnaia.
Apurou os ouvidos. Vinham três homens, a con- Mas intuía estar na pista de
Para sua surpresa, não se versarem como amigos. O do algo muito importante e já
falava de Zeus nem do Olim- meio era certamente o objeto aprendera a não de deixar
po, mas de um mortal que das especulações. Moreno, de escapar o momento propício
anunciara um eclipse para o barba e cabelo curtos, me- e agarrá-lo pelos cabelos.
final da tarde. Alguns riam nos de quarenta anos, tinha
Tales deteve-se, curioso. –
dele, contando a história de aparência comum, salvo pelo
Claro, minha senhora.
como o lunático, distraído a nariz adunco, decerto her-
olhar o céu, caíra em um bu- dado de ancestrais fenícios. – É verdade o que se diz,
raco e pedira socorro a um Usava uma túnica de bom li- que vaticinaste o escureci-
camponês, que o resgatara nho, com certo desleixo. Mas mento do Sol?
do poço, sujo e contundido. Icnaia reconheceu em seu – Sim, previ um eclipse
Apostavam que ele erraria. olhar uma inteligência aguda pouco antes do entardecer.
Outros aceitavam o de- e superior, que o punha bem – Esse augúrio foi-te inspi-
safio. Lembravam o ano em acima da média dos mortais rado por algum deus?
que o sábio cansou-se de ser – e até de muitos imortais.
– Não sei se me entende-
criticado por perder tem- Curiosa, esqueceu de rás... mas isso me foi ensi-
po com teorias em vez de recitar sua ladainha quando nado pela observação dos
ganhar dinheiro. Usou seu os homens passaram por ela. astros e o estudo de seus
conhecimento da natureza Mesmo assim, o narigudo caminhos. Pelo engenho e
para prever fartura de azeito- deteve-se para lançar-lhe um operação da razão, nada
nas no verão e tomou dinhei- olhar compassivo e deixar mais.
ro emprestado para alugar um óbolo de prata no pote.
– Pode a mente humana
barato todas as prensas de A deusa lembrou-se de agra-
querer antecipar os passos
azeite da região e da vizinha decer.
dos deuses, meu senhor? Não
ilha de Quios. Ao chegar a – Por favor, dá-me teu mudariam eles seus planos
colheita, necessitaram-se de nome e eu suplicarei aos apenas para ridicularizar
todas as prensas, e ele as su- deuses por uma vida longa quem lhes pretende ditar
blocou pelo preço que quis, para ti! leis?
tornando-se de um só golpe
– Sou Tales, filho de Hexâ- Tales sorriu, confiante.
um dos homens mais ricos
mias – respondeu, indulgente
de Mileto – apenas para – Nada é mais ativo que

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o pensamento, pois atravessa – É verdade! – Concordou atrasado, mas já desfazia as
todo o Universo. E nada é o fruteiro. – Onde já se viu, amarras. O próximo só sairia
mais forte que a necessidade, roubarem o próprio Apolo! depois de dias. O capitão
pois tudo a ela se submete. Soube então do sumiço de aceitou levá-lo pela tarifa ha-
Inclusive os deuses. Pois não uma imagem de ouro maciço bitual. Poucas horas depois,
estão todas as coisas cheias do oráculo em Didima, na chegaram mensageiros de
de deuses? – E lhe piscou um mesma noite do sumiço da Didima avisando do roubo
olho. égide. A coincidência de data das estátuas. Uma trirreme
Sobressaltada, Icnaia pen- era, no mínimo, interessante. chegou a partir em busca do
sou que ele lhe descobrira o Se fora um ladrão mortal, ladrão, mas não o alcançou.
segredo. O sábio despediu-se a rota de fuga teria passa- – Mas como sabe se era
com um gesto afável e afas- do por Mileto. Dali poderia mesmo ele e se foi bem-su-
tou-se antes que ela decidisse embarcar onde deuses gre- cedido e se não lhe tomaram
o que responder. Passado o gos pudessem ser derretidos o ouro?
susto, ela percebeu que ele sem gerar um processo por – Cheguei hoje de Cartago,
não quisera ser literal. Mas sacrilégio. onde todos já sabem da his-
mesmo assim, era espantoso. Restavam algumas horas tória. O larápio já é dono de
Há milênios, Zeus conde- para o eclipse e Icnaia deci- um pequeno palácio, cheio
nara Prometeu a uma tortura diu aproveitá-las no porto, de escravas belíssimas. Conta
sem fim por roubar-lhe o tomando uma forma mas- a quem queira ouvi-lo que
segredo do fogo e entregá-lo culina e usando as moedi- Tique lhe sorriu em sonho
à humanidade, tornando-a nhas para divertir-se com os e lhe disse para aproveitar
menos dependente. Mas sua marinheiros e sondá-los por a oportunidade única. Ela
antiga façanha fora uma boatos significativos. Por fim, aprovava sua ousadia, que-
mera travessura, se compa- um bêbado lhe perguntou ria premiá-lo avisando que,
rada com ensinar os mortais algo curioso, enquanto joga- naquela noite, Nêmesis não
a compreender e prever os vam os astrágalos: a seguia... Ele pulou da cama
atos dos deuses. Com tal – Aposte mais, meu velho. no mesmo instante, roubou
poder, os humanos mais cedo Não acreditas nos presentes a estátua de ouro maciço
ou mais tarde os reduziriam de Tique? com a qual sonhava há anos
a meros adornos, se não a e cavalgou na mesma noite
– A deusa da fortuna?
servos. Ante tal revolução, para o porto, com o saque e
Claro! – respondeu, intrigada,
até a queda do deus-pai a roupa do corpo.
sob o disfarce de mendigo
pareceria um assunto menor, Ao ouvir aquilo, Icnaia
bêbado e barbudo. – Mas há
pensou, enquanto mais moe- sentiu-se gelar e pulou para a
que cuidar-se deles, pois Nê-
dinhas lhe caíam no pote. saída. O jogador protestou:
mesis anda na sua cola para
Não adiantaria mais calar conter seus abusos e punir a – Ei, não acabamos a par-
Tales. Ela bem sabia como de felicidade imerecida. tida!
nada serve punir o mensagei-
– Nem sempre. No mês – Tu ganhaste. Fica com
ro de más notícias. Ele estava
passado, um sujeito chegou as moedas! – Gritou para o
certo e outros o seguiriam.
de madrugada, com uma perplexo marinheiro.
Alguma divindade traíra os
arca pesada debaixo do Ao se ver fora da vista de
imortais, mas quem? Apro-
braço, aflito por um navio humanos, Icnaia retomou a
veitou uma moedinha para
pronto para sair. Por acaso, verdadeira normal e alçou
comprar cerejas e resmungar
um navio mercante que devia vôo. Acreditava ser seu dever
com o vendedor sobre como
ter partido para Cartago fazer uma última tentativa
os deuses já não eram respei-
na manhã anterior tinha se de avisar Zeus, mesmo com
tados como antigamente.

22 SAMIZDAT outubro de 2009


o risco de ser fulminada por briu, tornou-se cisne para se excessiva! – Protestou, desa-
ele, mesmo pensando ser já aproximar sem ser percebido nimada. – Por um excesso
tarde demais para fazer dife- e me violentou! de Zeus, tu e teus cúmplices
rença. Já ia a meio caminho, – Tia! Mas não foi Leda punireis todos os olímpicos,
quando Nêmesis lhe barrou quem ele atacou nessa oca- escravizando-os aos mortais!
o caminho, estalando seu sião? – Não será assim. Livre
látego. dos caprichos desse prepo-
– Ela também! Zeus, mal
– Para trás, Icnaia! – Bra- me largou, viu-a lavar-se na tente, todos viveremos me-
dou. – Nada mais podes margem, saltou sobre ela sem lhor e com mais justiça. Tu
fazer! Zeus pagará por seus se dar ao trabalho de mudar nasceste depois da derrota
abusos! de forma. A pobre mulher dos Titãs e conheceste ape-
Icnaia sacou a adaga, ficou aterrorizada! – Indig- nas a versão dos vitoriosos.
disposta a enfrentá-la. Mas nou-se Nêmesis – Quando Mas acredita em mim, que
sentiu cair sobre si uma Zeus se foi, estava aos pran- vivi na época de Cronos,
rede invisível e indestrutível, tos. Voltei à forma divina, quando os humanos viviam
como aquela com a qual, ou- acalmei-a e lhe expliquei o sem tristezas, aflições e pe-
trora, Hefestos aprisionara a que acontecera. Ela e o rei nosos trabalhos e só dife-
esposa Afrodite em flagrante Tíndaro ocultaram minha riam dos deuses por serem
delito com Ares, para expô- vergonha e me abrigaram no mortais. Não éramos menos
los ao escárnio dos demais palácio até o fim da gravidez. felizes, muito pelo contrário!
olímpicos. Imobilizada, caiu Com muita dor, pus o ovo do – É isso que pretendeis?
sobre a ilha de Esquiro, ven- qual nasceram Cástor e Hele- Restaurar a Idade de Ouro? –
do Hipnos voar na direção na. Leda, no mesmo dia, pôs Disse Icnaia, cética.
do Olimpo após lhe lançar outro, de cuja casca saíram – Não, os humanos torna-
a rede. Atordoada da que- Polideuces e Clitemnestra. ram-se demasiado inteligen-
da e ainda presa, viu a tia Ela assumiu a maternidade tes e complexos para vive-
aproximar-se e a interpelou, de todos e voltei ao Olimpo rem nus nas matas, satisfeitos
tristemente: como se nada acontecera... com os frutos espontâneos
– Mentiste que passaste Devia ter adivinhado já de Gaia. Caminharemos, sim,
aquela noite atrás de Tique. então, pensou Icnaia. Nas- para uma nova era, mas mui-
Foste tu! Mas por quê? cerem quatro filhos de um to mais rica e sábia. Chame-a
– Porque aquele devasso mesmo coito era improvável de Idade de Diamante, se lhe
não se conteve nem mesmo e que dois imortais, Cástor e aprouver. Homens e mulhe-
ante a deusa da vingança! Helena, nascessem do in- res chegarão às estrelas, se-
– Irou-se Nêmesis – Perse- tercurso de um deus e uma rão como deuses e deusas e a
guiu-me por meio mundo, mortal era inédito. Semideu- verdadeira justiça por fim se
enquanto eu tomava as mais ses são mortais, por notáveis estabelecerá! – Entusiasmou-
diferentes formas para fugir, que sejam. Mas ela quis se.
com a esperança de vê-lo acreditar, como os outros, – Com os humanos? Isso é
interessar-se por outra. Mas que tal prodígio era possível. impossível! Nem em dez mil
qual! Só um oráculo que o Uma lição a ser ensinada a anos!
prevenisse contra um filho seus descendentes, se acaso
– Mesmo que fosse, ainda
capaz de depô-lo do trono os tivesse: quando se exclui
assim não seria justo não
seria capaz de conter sua ob- o impossível, o que resta, não
tentar, minha sobrinha. Nos-
sessão. Descansei alguns dias importa quão improvável
sos planos se estendem por
no rio Eurotas, disfarçada pareça, é a verdade.
mais de três mil anos. Se qui-
de gansa, mas ele me desco- – Mas essa vingança é seres, terás um lugar na nova

www.revistasamizdat.com 23
era. Ao contrario do Trove- entranhas até abandonar minante assalto ao Olimpo.
jante, Poros, o Engenho, não as esperanças de que Zeus Seguidos relâmpagos partiam
é vingativo e saberá apreciar a quisesse como algo mais do cume para atingirem,
tua astúcia e dedicação, se do que instrumento de seu inócuos, a égide indestru-
quiseres servir à nova ordem. poder e seus prazeres! tível, talhada do couro da
Quero ter-te ao nosso lado, – E ela ainda pariu Atena, cabra Amalteia. O usurpador
pois a Justiça e a Punição de que abriu caminho para o respondeu com um raio de
nada servem se não forem mundo rachando a cabeça do tipo jamais visto, um feixe
guiadas por uma prudente pai. Mas como Métis pôde de luz cegante, em linha reta
Investigação. ter um segundo filho? para a morada dos deuses. O
– Poros! Esse, então, é o Icnaia não pôde ver mais da
Nêmesis soltou uma ri-
nome do filho de Métis! batalha, mas já não duvidava
sada assustadora, a primeira
de que era a última vez que
Nêmesis arregalou os em milênios.
o sol se punha sobre o reino
olhos. – Parabéns, não per- – Queres os pormenores de Zeus e que a própria
deste teu talento. Como sórdidos? Então te contarei Nike, a Vitória, se juntaria
descobriste? como Métis deixou de acon- às hostes inimigas antes do
Icnaia suspirou. – Não me selhar Zeus a manter a com- final.
cumprimente, fui lerda. A postura quando Ganimedes,
***
natureza da nova divindade seu amante, ridiculamente ou
só ficou óbvia para mim em desafiou a imitá-lo em sugar Muito depois, Icnaia medi-
Mileto, quando vi um mor- o próprio membro... tava junto a um fiorde mar-
tal prever os caminhos dos geado de álamos dos quais
– Basta! – Gritou Icnaia,
deuses. Devia ter percebido, brotava o âmbar, junto a seu
consternada. – Imagino Hip-
quando Astreu mencionou amante. Fora sua a escolha.
nos a inspirar-lhe um sono
um filho da conjunção de O vitorioso Poros propusera-
tão profundo que não notou
Zeus consigo mesmo, que a lhe, como a todos os olím-
o segundo filho nascer-lhe da
profecia de Gaia por fim se picos salvo Zeus, unir-se aos
cabeça...
cumpria. vitoriosos. Fora das poucas
– Exatamente, depois que a recusar: sua honra não
– Sim, é o filho do Tro- o induzimos a exaurir-se em lhe permitia servir ao novo
vejante e de sua primeira uma noite . Eu mesma re- senhor se o próprio Zeus não
esposa. Ah, pobre Métis, colhi Poros e o levei à corte o fizesse ou a dispensasse
como pôde o amor cegar da rainha da Noite, para ser do juramento de fidelidade.
uma deusa tão sábia? Quan- criado por minha mãe no Para sua surpresa, Poros não
do Zeus se propôs a derrotar extremo ocidente, junto aos a jogou ao Tártaro: deixou-a
o pai e libertar os irmãos, ela cimérios e longe de Zeus. escolher um exílio na Terra,
concebeu o plano que forçou E ei-lo que volta! – Bradou de onde poderia voltar quan-
Cronos a regurgitar seus fi- Nêmesis. Satisfeita, a deusa do mudasse de ideia.
lhos e aconselhou seu amado da vingança apontou para
na guerra contra os Titãs, Até onde ela sabia, só mais
o poente, onde uma figura
certa de estar colaborando um dos deuses ainda recusa-
alada se destacou por um
para um futuro melhor. Seu va fidelidade ao novo senhor
rápido instante contra o Sol,
prêmio foi ser engolida pelo do Olimpo: Héracles, que es-
cujo eclipse já se iniciava.
marido, grávida, assim que colhera viver entre os duro-
A deusa da vingança voou triges da Bretanha, à margem
Gaia profetizou que seu se-
ao encontro de Poros, juntan- do rio Cerne, com a esposa
gundo filho seria mais pode-
do-se a seu cortejo de seres Hebe. Além do próprio Zeus,
roso que o rei dos deuses. E
alados e estranhos carros desterrado na oriental ilha de
mesmo assim, ela continuou
voadores sem cavalos em ful- Crise, povoada só por grifos
a aconselhá-lo dentro de suas

24 SAMIZDAT outubro de 2009


O lugar onde
e dragões, junto a Hera que, indiano que ele inspirara a boa Literatura
surpreendentemente, deci- ao pé da árvore Bodhi, dois
dira acompanhá-lo. Ela quis grandes sábios chineses, um é fabricada
estar ao lado dele sem ter de em Loyang e outro em Qufu,
disputá-lo com outras fême- e muitos filósofos gregos e
as, pensava a rastredora, sem profetas semitas por vir.
saber se isso amenizava ou Receosa da tortuosidade
agravava o tormento do rei e aparente fragilidade desses
deposto. planos, Icnaia escolhera uma
Poros era mais sereno e terra que ainda permaneceria
generoso que o antigo amo. mais de mil anos fora deles.
Quando não mais precisou Disfarçara-se como huma-
das asas, devolveu-as a Arce, na e era relativamente feliz
que libertou junto com os como vidente e feiticeira
Titãs. Tanto quanto sabia entre os anglos da vila de
a exilada, ele era fiel à es- Heathe, às margens do fiorde
posa com a qual se unira, Slien, na terra dos Hiperbóre-
até então a mais humilde e os. Conquistara um dos mais
desprezada das deusas: Penia, belos e sagazes guerreiros
a Pobreza, agora mãe de Eros anglos da região, Holmr Hre-

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
Porimos – um deus do amor thelson, e ainda se passariam
bem diferente de Eros Lusi- muitos anos antes de que
meles, o filho de Afrodite – e ele começasse a suspeitar da
da bela Sofia, a Sabedoria. Ao imutável juventude da aman-
contrário de Zeus, que jamais te e ela precisasse procurar
teve qualquer projeto além outra aldeia.
de manter-se no poder, Poros De pé junto à margem, de
parecia ser sincero em seus mãos dadas ao amante, olha-
planos para conduzir deuses va para seu filho Scaerllocc,
e humanos a uma era de um pequeno semideus de
felicidade ilimitada. cabelos louros cacheados. O
Humano, demasiado hu- garoto brincava com os ami-
mano, na opinião de Icnaia. gos. Imbatível no esconde-
Continuava a receá-lo, pois esconde e na caça ao tesouro,
para ele os fins justificavam era inteligente e sagaz como
quaisquer meios. O pouco a mãe. Sim, pensou ela, Sca-
que ela soubera de seus es- erlocc Holmson daria origem
quemas incluía guerras e re- a uma longa linhagem de in-
voluções apavorantes, como vestigadores. Não era preciso
o mundo jamais conhecera perguntar a nenhum oráculo.
– embora também incluís-
sem figuras absurdamente
pacifistas, com o pensador

Antônio Luiz M.C. Costa é editor e colunista da revista

ficina
CartaCapital, contista, romancista e referência entre autores
de Ficção Especulativa. Em breve, a entrevista com ele aqui na
SAMIZDAT.

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Microcontos

Caio Rudá

Conjetura
Voltava para casa, tarde à noite. Seguia apressado pelo leito da rua de parale-
lepípedos irregulares. À esquina esquerda da via, encostado no muro, havia uma
figura cuja face estava escondida na insistente penumbra dos prédios e árvores.
Teve medo. Caminhou até o lado oposto. O homem da esquina gesticulou e cha-
mou por ele, “ei”. Pressa e medo. Finalmente, dobrou a esquina e seguiu.

O sujeito da calçada não pode avisar que por onde o outro tinha ido, antes
dele, também tinha seguido um indivíduo suspeito.

26 SAMIZDAT outubro de 2009


Vermelho Rutilante
Simone Santana

http://www.flickr.com/photos/erzs/1357413280/sizes/o/
http://www.flickr.com/photos/giantginkgo/82030114/sizes/l/

Apontavam-na como a mulher que nunca havia pintado os


lábios. Todos brancos, pálidos. Pintou a todos de vermelho.

http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
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Contos

Carlos Davissara

O Canto da Sereia

de Bach
28 SAMIZDAT outubro de 2009
Em certa noite da Ale- nova sonata, ainda mais tocadas em frenesi, ab-
manha do século XVIII, bela e irresistível que a surdamente altas. Era a
um promissor estudan- primeira, fazendo-o se sonata fúnebre, que tor-
te de música analisava aproximar. Ao lado do nava a noite mais fria e
partituras clássicas. Du- organista, deixava-se en- aterrorizava as mentes
rante as análises, ouviu volver pela composição distantes e confusas dos
um conhecido som de que, por sinal, conhecia: que a ouviam, sem ain-
órgão. As notas belas, era o último concerto da saberem que aquela
fortes, estalavam em sua para órgão de Bach, dei- anunciava uma série de
mente e inundavam-lhe a xado inacabado por conta várias mortes.
alma. O jovem sentiu-se de sua morte. Abrupta- Assim como a primei-
fortemente atraído pela mente, o som foi inter- ra vítima, muitas outras
melodia e quis conhecer rompido, tirando o jovem foram encontradas na-
sua origem. À medida em de seu êxtase musical. quele cemitério. Sempre
que se esgueirava pe- Quando notou, de fato, apresentando as mesmas
las ruas vazias, mais era quem lhe brindava com características, os de-
tragado pelo som. Sem aquele concerto magnífi- funtos eram achados de
exatamente se dar conta co, novamente paralisou- manhã, rígidos, gélidos,
de como, estava dentro se, mas, dessa vez, para com expressão de extre-
de um cemitério. O que toda a eternidade. mo pavor e marcas de
lá encontrou, congelou- A peruca desgrenha- sangue vindas dos ouvi-
lhe o sangue nas veias. da – infestada de insetos dos. Outro fator comum:
Enquanto ouvia a e vermes –, a pele da todos eram profissionais
“Tocata e Fuga em Ré face colada aos ossos, os ou estudantes de música
Menor”, observava seu dois buracos negros onde de extrema competência.
executor: roupas aos deveriam estar os glo- As mortes sempre eram
farrapos, peruca capenga bos oculares, a boca em precedidas de um con-
e amarelada, dedos esque- decomposição com den- certo Bachiano, começado
léticos sobre as teclas do tes podres à mostra, todo pela “Tocata e Fuga em
órgão. Era Johann Sebas- aquele conjunto pútrido Ré Menor” e aconteciam
tian Bach. O estudante que exalava um horrível uma noite por mês, nos
paralisou-se com a visão. odor virou na direção do dias vinte e oito – dia em
Há tempos que o compo- estudante e, com suave que Bach faleceu. Apesar
sitor havia morrido e fora e educada voz, solicitou: de todas as semelhanças,
enterrado naquele mesmo “Termine a música”. O o mistério seguiu sem ser
cemitério. Como podia jovem não o atendeu, a desvendado. Não demo-
estar ali na sua frente? Só paralisia não deixava. A rou muito para dizerem
saiu do transe quando o resposta veio do órgão que aquilo era uma mal-
morto-vivo iniciou uma em notas desordenadas, dição e de darem-lhe o

www.revistasamizdat.com 29
nome de “O Canto da sua visão ao concertista. chão a partitura do final
Sereia de Bach”, já que a Aquela mesma figura ca- de uma recente compo-
bela melodia sempre se davérica, que levara tan- sição sua – a primeira a
mostrava como um fatal tos a sucumbir, apontava- lembrar que estava em
e irresistível convite ao lhe seus terríveis olhos harmonia com a música
além-túmulo. ausentes. E como todos os inacabada de Bach. Ter-
Quase um ano após o outros, também Mozart minando, viu que a perna
início das mortes, passava paralisou-se. Junto à ima- já estava livre. Correu o
pela região um viajante gem macabra, sentiu o mais rápido que pôde,
austríaco, excepcional cheiro da putrefação. As sem olhar para trás. O
estudante de música, náuseas dominaram-no, som de sua composição
chamado Wolfgang Ama- o que o fez libertar-se da servia de trilha sonora
deus Mozart. Quando paralisia, caindo de joe- para a fuga, enquanto
soube da maldição, não lhos a largos vômitos. Em ele pensava como, até o
se alarmou, disse apenas meio a engasgos, tosses e momento, aquela música
que gostaria de ouvir o ânsias, ouviu a frase mor- nunca havia lhe parecido
tal concerto fúnebre e de tal: “Termine a música”. tão viva e tão mórbida.
conhecer o seu autor. Foi Confuso, desnorte- Prometeu não mais tocá-
alertado de que a história ado, Mozart tentou se la.
era verdadeira, de que as levantar apoiando-se No dia seguinte, o
pessoas já não queriam no órgão, que sua mão jovem Mozart já não se
mais estudar música, e atravessou como se nada encontrava pela cidade.
ele poderia ser o próxi- ali estivesse. Caiu sobre “Mais um levado pelo
mo, e o dia fatal estava o vômito, começando a Canto da Sereia de Bach”,
se aproximando... Nada recobrar a razão e ten- diziam. Contudo, soube-
disso o espantou. tando afastar-se daquele se na hospedaria que ele
Dia vinte e oito, “Toca- prenúncio da morte. havia partido durante a
ta e Fuga em Ré Menor”, De bruços sobre a terra, madrugada, são e salvo,
tudo como haviam dito, sentiu algo prendendo-o após o sinistro concerto.
e lá estava Mozart den- pelo pé. Não teve cora- No cemitério, ao invés do
tro do cemitério. Com os gem de olhar para ver o esperado músico morto,
olhos fechados, deixava-se que era. E novamente a foi encontrada apenas
extasiar com as compo- voz suave suplicou: “Ter- uma inscrição na terra,
sições de Johann Sebas- mine a música”. Fazendo parecida com o trecho de
tian Bach, num estado uma desesperada oração alguma partitura. Desde
de euforia sobrenatural. mental, tateou o solo até então, não se noticiou
Subitamente, o som se encontrar uma pedra mais vítimas do “Canto
extinguiu. O jovem des- pontiaguda. Com ela, da Sereia de Bach”.
pertou do transe e dirigiu começou a desenhar no

30 SAMIZDAT outubro de 2009


Ele tinha diante de si
a mais difícil das missões:
cumprir a vontade de Deus ficina
www.oficinaeditora.com

Henry Alfred Bugalho


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O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 31
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gr nl
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Contos

Um assassino online
Joaquim Bispo

32 SAMIZDAT outubro de 2009


Quando os inspectores cia de símbolos bizarros no fontes, à esquerda. Pode ser
chegaram ao local do crime, ecrã. para Arial.
encontraram a jovem aspi- – Ok, ok, não sou ne-
rante a escritora de cabeça nhum tosco. Pronto!
Joaquim era
tombada sobre o teclado do
Um de cada lado da
computador e, no chão, uma doido por cas-
morta, debruçados sobre o
poça de sangue que escorria soulet, esse
prato francês ecrã, ficaram uns segundos
do flanco esquerdo, onde
a ler o pequeno texto desco-
um abre-cartas se mantinha muito pareci-
do com feijoada. dificado. Dәpois, Barbosa
espetado.
Todas as quin- quәbrou o silêncio:
– Bela encrenca, temos tas-feiras, se – Achas quә isto nos dá
aqui – desabafou o inspec- sentava pontu- alguma pista?
tor Magalhães. – Ainda es- almente ao meio-
tava à espera que fosse um – Não vәjo rәlação, mas
dia e meio num
suicídio, mas com a lâmina dә qualquәr manәira, ama-
pequeno restau-
neste ângulo não é viável. nhã vou falar com әssә tipo,
rante de comida
sә é quә әxistә.
– E para homicídio tam- francesa, ali
bém não está fácil – conti- junto ao Hospi-
nuou o inspector Barbosa, tal de S. José. Quando Magalhãәs
denunciando a completa O Sr. Jacques chәgou à sәdә, vinha
concordância com o chefe. Bergier, amante abrasado com calor. Lar-
– A porta não foi arromba- de romances po- gou o sobrәtudo numa
da, não há sinais de luta e o liciais e impos- cadәira ә afundou-sә numa
namorado está no Porto. sibilidades, já әspampanantә chaisә-
– Bem, vamos procurar lhe reservava o longuә.
1
impressões digitais, embora lugar e a dose.
– Está um tәmpo
me pareça que não vamos әsquisito. Dә manhã parәcia
ter sorte. Procura nas por- – Hum… Não há nenhu- quә ia chovәr ә agora әstá
tas, que eu vejo aqui na ma língua com este alfabe- uma caloraça!
mesa do computador. to; eu não conheço. Hum… – Então, o tipo? –
http://www.flickr.com/photos/sixteenmilesofstring/1384073790/sizes/l/

Calçaram as luvas de espera, pode é ser uma pәrguntou Barbosa sәm


látex e iniciaram o pince- daquelas fontes de caracte- dәsviar os olhos do compu-
lamento dos objectos mais res esquisitos. Experimenta tador.
óbvios. Os resultados eram copiar isso para um docu-
– O rәstaurantә әxistә,
desanimadores. De repente, mento Word.
mas o homәm não sә cha-
Magalhães chamou: – Boa! – animou-se Ma- ma Bәrgiәr. Acho quә әla
– Barbosa, vem cá ver galhães, congratulando-se әstava a invәntar uma his-
isto. Vê lá se percebes que por ter um parceiro perspi- tória. Já sabәmos quә tinha
raio é que esta fulana estava caz e experiente em infor- prәtәnsõәs a әscritora.
a escrever neste site. máticas.
– Olha, Magalhãәs, әstou
O parceiro aproximou-se – Agora, altera a fon- aqui um bocado confuso.
e deparou com uma sequên- te, ali, naquela janela das

www.revistasamizdat.com 33
Pus aquәlә tәxto dәla no Barbosa mostrava-sә ovәrdosә dә Matrix. Vistә
Idәntәxt ә obtivә rәsultados mәditativo. Parәcia ganhar por aí algum gato әm
muito pәrturbadorәs. Aquilo coragәm para falar. rәpәat-play?
não corrәspondә ao әstilo – Tu acrәditas na – Әu não sәi, Magalhãәs,
dәla. Não podә sәr dәla. Ә Rәalidadә? só tәnho dәsconfianças.
não o foi buscar à Nәt. O Ә, sә quәrәs quә tә diga,
– Әssa agora! Quә raio
tәxto nunca әstәvә onlinә. comәço a dәsconfiar mui-
dә pәrgunta mais parva. Por
Por outro lado, dәu-mә to dә tudo. Achas normal
quê?
três rәsultados dә autoria havәr uma chaisә-longuә
possívәis. Dois әscrәvәm Nova paragәm de Barbo- num gabinәtә da Polícia
әm bloguәs ә o outro tam- sa. Judiciária? Isto parәcә-mә
bém tәm a mania quә é – Há tantas coisas ambiәntә dә әscritor ama-
әscritor, como әla. әstranhas na nossa vida. dor, quә invәnta cәnários
– Como é quә é o nomә Não parәcә possívәl quә sәm nunca tәr әstado na
dәlәs? – intәrәssou-sә sәjam todas vәrdadәiras. Judiciária. Ou әntão, pistas
Magalhãәs. Já alguma vez pensaste para lәitorәs atәntos.
que sә calhar, somos só – Tu não mә bαrαlhәs!
– Ora dәixa vәr: Artur
pәrsonagәns dә alguma obra Әntão quә pαpәl әrα o
Amieiro; Filipe Arnaso;
litәrária obscura. nosso? Pәrsonαgәns? Quәr
ә Joaquim Bispo, mas é
possívәl quә sәjam todos – Әstás parvo, ou quê? dizәr quә αndávαmos αqui
psәudónimos. Ainda não Andastә a fumar alguma αo mαndo dә um criαdor dә
fiz cruzamәnto dә dados, coisa әsquisita? әnrәdos? Quә não tínhαmos
nәm pәdi informaçõәs às – A sério, Magalhãәs. livrә-αrbítrio?
opәradoras dә Intәrnәt, mas Achas possívәis as – É isso mәsmo,
dәsconfio quә sә trata da fәrramәntas informáticas Mαgαlhãәs. Ә αcho quә
mәsma pәssoa. quә usamos? Achas possívәl sәi por quә o nosso criαdor
– Bәm, suspәito já tәmos, quә әu ponha um bocado nos colocou neste enredo
mas o móbil? dә tәxto num programa – pαrα dәscobrirmos quәm
informático ә saiba quәm o foi o lәitor quә mαtou α
– Aí é quә әstá! Әstou
produziu? Ә o mundo ondә rαpαrigα.
mәsmo confuso. Fui ao sitә
vivәmos?; achas possívәl – Lәitor? Queres dizer
ondә o Joaquim põә uns
quә әu puxә do tәlәmóvәl que é esse o desfecho do
contos ә dәscobri-nos lá.
ә falә com alguém quә әstá conto na Net? Já foste bisbi-
Nós; tu ә әu; Magalhãәs ә
do outro lado do mundo?; lhotar o final?
Barbosa, inspәctorәs. So-
quә әu ponha um copo dә
mos pәrsonagәns num conto – Não. Não consigo ler o
lәitә no micro-ondas ә әlә
dele. final. Αcho quә o tәxto do
aquәça, sәm chama al-
– Achas mәsmo? Әntão guma?; quә um aparәlho computαdor dα rαpαrigα
әssә tipo é alguém quә nos no carro mә indiquә quә é umα pistα, mαs não α
conhәcә! әstradas hәi-dә tomar daqui quә pәnsαmos. Әssә tαl
– Hum… Acho quә é para Ansião? Jαcquәs Bәrgiәr tәorizou
mais complicado do quә quә é impossívәl әscrәvәr
– Dәvәs tәr lәvado uma um livro policiαl әm quә
isso.

34 SAMIZDAT outubro de 2009


o criminoso sәjα o lәitor. Әchәlon, monitorizαmo‫ی‬ tәvә quαlquәr mәdo dә o
Αcho quә o Joaquim әstá α әm tәmpo rәαl todo‫ی‬ αbrir. I‫ی‬to ‫ی‬ignificα quә
tәntαr әscrәvәr o conto quә o‫ ی‬computαdorә‫ ی‬quә não é você o α‫یی‬α‫یی‬ino.
ninguém ainda әscrәvәu. ә‫ی‬tivәrәm α u‫ی‬αr ә‫ی‬tә Como você bәm ‫ی‬αbiα. O
– É αmbicioso. conto. O próximo pαrágrαfo vәrdαdәiro α‫یی‬α‫یی‬ino já
é umα αrmαdilhα pαrα foi αpαnhαdo. Chәgou α
– Ou pαrvo. o crimino‫ی‬o ә vαi ‫ی‬әr ә‫ی‬tә ponto ә fәchou o site
– Não blα‫ی‬fәmә‫ی‬, dәci‫ی‬ivo pαrα α ‫ی‬uα ‫ی‬әm lәr ә‫ی‬ta parte. Só o
Bαrbo‫ی‬α! cαpturα. ‫ی‬ә әlә tәntαr lәr o verdadeiro α‫یی‬α‫یی‬ino
– Αh, já αcrәditα‫!ی‬ quә ә‫ی‬tá ә‫ی‬crito no espa- podia temer ser descober-
Pәlo‫ ی‬vi‫ی‬to‫ی‬, é mαi‫ ی‬fácil ço em branco abaixo, ‫ی‬әrá to por revelar estas linhas,
«dαr-tә α voltα» com o dә‫ی‬cobәrto. Quando ele como foi insinuado atrás.
‫ی‬obrәnαturαl, do quә fαzәr usar o rato, copiαr pαrα Dәnunciou-‫ی‬ә α әlә pró-
um ido‫ی‬o cαir no «conto do Word o texto escondido e prio.
vigário». αltәrαr α cor dα lәtrα para O‫ ی‬in‫ی‬pәctorә‫ی‬
‫ی‬αbәr o que lá está escrito, Mαgαlhãә‫ ی‬ә Bαrbo‫ی‬α
– Αdmito quә o
αpαnhαmo-lo. A sequên- αprovәitαm pαrα lhә
trαn‫ی‬cәndәntә mә pәrturbα.
cia de movimentos e a sua dә‫ی‬әjαr muito boa‫ ی‬leitu-
– Tαmbém α mim. duração são como que uma ras. Ә continuә α confiαr
– Por ә‫ی‬tα ordәm impressão digital e denun- no‫ ی‬bon‫ ی‬ofício‫ ی‬dα
dә idәiα‫ی‬, α li‫ی‬tα dә ciá-lo-ão. Políciα Judiciáriα no
‫ی‬u‫ی‬pәito‫ ی‬tornou-‫ی‬ә bәm – Incrível! O que eles in- combαtә αo crimә ә nα
curtinhα. O α‫یی‬α‫یی‬ino é ventam! Estou ansioso por dәfә‫ی‬α do cidαdão. 2
um do‫ ی‬quә vão lәr o conto conhecer o desfecho.
do Joaquim.
– Calma, Magalhães, – E agora, Magalhães,
– Quә ә‫ی‬tão α lәr, agora temos que ser pacien- ainda acreditas na Realida-
Mαgαlhãә‫ی‬. I‫ی‬to é um tes. É só mais um pouqui- de?
conto. Ә o crimino‫ی‬o ә‫ی‬tá nho. Olha, olha este! Acho
α lê-lo nә‫ی‬tә momәnto. ‫ی‬ó que é este. Rәpαrα.
prәci‫ی‬αmo‫ ی‬dә lhә αrmαr
umα cilαdα pαrα o prәndәr.
Muito bәm, lәitor. O
– Como? Tәn‫ ی‬αlgumα
fαcto dә tәr dә‫ی‬vәlαdo
idәiα?
ә‫ی‬tә pαrágrαfo mo‫ی‬trα
– ‫ی‬im, escuta. Com o quә, αpә‫ی‬αr do αvi‫ی‬o, não
1 Joaquim era doido por cassoulet, esse prato francês muito parecido com feijoada. Todas as quintas-feiras, se sentava pon-
tualmente ao meio-dia e meio num pequeno restaurante de comida francesa, ali junto ao Hospital de S. José. O Sr. Jacques
Bergier, amante de romances policiais e impossibilidades, já lhe reservava o lugar e a dose.

2 Muito bәm, lәitor. O fαcto dә tәr dә‫ی‬vәlαdo ә‫ی‬tә pαrágrαfo mo‫ی‬trα quә, αpә‫ی‬αr do αvi‫ی‬o, não tәvә quαlquәr mәdo dә o αbrir. I‫ی‬to ‫ی‬ignificα
quә não é você o α‫یی‬α‫یی‬ino. Como você bәm ‫ی‬αbiα. O vәrdαdәiro α‫یی‬α‫یی‬ino já foi αpαnhαdo. Chәgou α ә‫ی‬tә ponto ә fәchou o site ‫ی‬әm
lәr ә‫ی‬ta parte. Só o verdadeiro α‫یی‬α‫یی‬ino podia temer ser descoberto por revelar estas linhas, como foi insinuado atrás. Dәnunciou-‫ی‬ә α әlә
próprio.
O‫ ی‬in‫ی‬pәctorә‫ ی‬Mαgαlhãә‫ ی‬ә Bαrbo‫ی‬α αprovәitαm pαrα lhә dә‫ی‬әjαr muito boa‫ ی‬leituras. Ә continuә α confiαr no‫ ی‬bon‫ ی‬ofício‫ ی‬dα Políciα
Judiciáriα no combαtә αo crimә ә nα dәfә‫ی‬α do cidαdão.

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Contos

Hereditário Wellington Souza

36 SAMIZDAT outubro de 2009


Tal meus pais sou um dominical, após isso ele próprio conceito de morte,
homem triste. Se sou um se recolhia à biblioteca e é abiótica, é fome crônica.
homem, não sei, tento ao por lá ficava. Isso antes da Combater o egoísmo é
menos transparecer um... mamãe se ir, depois nem mais fácil que combater o
Não que tenha problemas isso fazia, ficava recluso, em egocentrismo. Por saber do
com minha sexualidade, um auto-exílio. Gostava de universo das possibilida-
não. É que já estou beirando apreciar uísque. des, acho mais interessante
os trinta anos e ainda tenho Tenho um irmão, mas conhecer as escolhas e as
uma dependência umbili- dele falarei mais tarde. possibilidades dos outro
cal – apesar de ter apenas que fazer as minhas pró-
o pai vivo – e isto não põe Quanto a mim, tento
combater meu egoísmo prias e arcar com elas.
à prova as virtudes que um Como um deus, não tenho
homem tem de ter para se com esmolas. As capita-
lizadas ajudam momen- vida. Cuido e analiso as
dizer um. dos outros como que num
taneamente; prefiro estas,
O desalento é hereditário pois o pedinte, em meio a laboratório. As pessoas que
em nossa família, tanto na tantos que o ajudam, nos não se preocupam com
materna quanto paterna, esquece facilmente a pon- dinheiro acabam se apegan-
mas o suicídio apenas na to de nos parar na volta. do a cada trivialidade…
materna. Os mais velhos Esse altruísmo na verdade sou um exemplo. Faço isso
dizem que, ao nascermos, é a mim que faço, pois me porque quero saber o que
mal choramos ante as pal- sinto menos culpado e mais levou mamãe a sucumbir
madas do médico, que têm atuante, um pouco mais de em si mesma, quais motivos
de vir no plural mesmo, vida, só um pouco. Costu- impelem pessoas para esse
senão não surtem o efeito mo praticar também doan- caminho, quais desesperos.
esperado. Não reclamamos do tempo, ouvidos. Sempre E é ai onde entra o meu
o colo das mães, não rejei- que converso com pessoas irmão.
tamos as enfermeiras, de acabo mais ouvindo queixas Hoje ele estuda em outra
toda forma, ou quase toda, do que falando, geralmente cidade, também trabalha, e
está bom. Demoramos a reclamam das reações que me parece estar noivo. Saiu
abrir os olhos, e quando suas ações irracionais ou daqui para estudar enge-
abrimos já os temos baixos, mal-arquitetadas as impe- nharia, mas como pretexto.
longe, como que olhando lem – mesmo quando as O ambiente fúnebre que
com desdém o mundo já na pago para estarem junto a nos cercava não o deixava à
primeira espiada. E carre- mim. Dôo tempo, mas vou vontade, e quando mamãe
gamos este desânimo pelo para longe, fumo um cha- se foi ele quis ir para um
resto da infância, adolescên- ruto na fazenda vendo o internato na Escócia. Voltou
cia até a maturidade, como caseiro matar frango-caipi- para o país e já se mudou
que subindo. ra, sirvo-me de chave para para a capital, foi continuar
Meu pai era médico e que as pessoas se abram os estudos lá. É bem dife-
http://img390.imageshack.us/img390/8735/dna8ox.jpg

morávamos na mansão e deixem seus monstros rente de nós, ele, é alegre,


herdada do meu bisavô. saírem, enquanto correm tem os olhos escuros como
Como médico me presta os vinte minutos que não jabuticabas que colhem
consulta e a todos os seus foram aproveitados para na fazenda. É comunicati-
parentes, que se dirigem a assim cumprir com o acor- vo, desde criança todos já
ele apenas por convenção dado e previamente pago. notaram e, às suas formas,
familiar – ele mal nos olha, Ao entrar por essas portas estranharam.
nos pergunta. Não cheguei me liberto também, vivo Acho que ele não é filho
a conhecer a sua personali- essas estórias ao meu modo, do meu pai. Até há pouco
dade, nos sentávamos juntos e percebo que essa minha tempo não sabia por que
à mesa somente no almoço privação do mundo é o minha mãe não fugiu com

www.revistasamizdat.com 37
o pai dele e foi feliz, enfim. preendia que se apaixonara O enterro ocorreu. Meu
Seria um escândalo em nos- pelo rei-negro. Ela lecionava irmão viajou para o seu
sa cidade, onde o casamento em uma cidade vizinha, internato. Voltou e está na
dos meus pais unificou o para onde viajava uma vez capital. Por esses tempos
aglomerado de clinicas da por semana e pernoitava. recebi uma carta anônima.
região e o divórcio poderia Sua depressão derradei- Resumidamente contava
por fim à sociedade, o que ra começou quando essas que minha mãe não morre-
teoricamente a levou a fazer aulas foram interrompidas. ra naquela época, que meu
isso. Um ato muito herói- Chorou uma semana segui- irmão não fora a internato
co, a meu ver, uma mulher da e nunca se recuperou. algum, e sim viver com ela
apaixonada tirar a própria Durou um mês, até que, e seu pai em Londres (o pai
vida pois ir viver com seu após uma discussão com dele viajou para lá e ela o
amor acarretaria prejuízos meu pai (tinha-os visto seguira). Argumentava que
financeiros e morais à sua discutir apenas uma vez ela exigiu, com instinto ani-
família. As pessoas que antes desta), fez uma peque- mal, levar nós dois, mas foi
vêem o amor como um na bala, nos deu um beijo e obrigada a escolher um e
fim, soçobram. Ele tem de avisou que dormiria na casa deixar o outro para perpe-
ser um meio para um bem da vovó. Na noite seguinte tuar a família. E que agora
maior. Não estou falando ligaram de lá, e meu pai estava em estado terminal
que não se deva amar outra saiu de casa às pressas. Na de câncer, na capital, onde
pessoa, sim, ama-se, mas manhã, mandaram-nos des- vive com meu irmão, pois
depois paga-se e se vai para cer para o café da manhã pouco tempo depois o pai
casa. Fora isso, tem que se de terno. À mesa meu pai dele os abandonou.
amar uma vida, um pla- deu a notícia, pediu para O erro do meu pai foi
no, um status; achar outra que, se fossemos chorar, ter tido filhos. Homens
pessoa que ame o mesmo para subirmos aos quar- como ele não podem ser
mundo, então se apaixonar tos e não mancharmos as responsáveis em preparar
e furar um olho para não roupas. Tínhamos 16 e 14 a terra para a outra semen-
se enxergar tudo. Mamãe anos, eu sendo mais velho. te, pois ela não crescerá.
tinha os dois olhos vivos, e Subi ao meu quarto mais No mundo animal, ele não
não suportou viver assim. logo desci, meu irmão man- sobreviveria. Não fossem
Ela bebeu inseticida na dou avisar que iria apenas à meus avós arquitetarem
fazenda dos meus avôs, seus noite, já para o velório. Meu o casamento, ou melhor,
pais. Mas seu caixão fora pai nunca se opôs às nossas o negócio, ele estaria em
velado fechado, dizem que vontades, hipocondríaco, seu consultório se mas-
para proteger meu irmão, escutava com olhar longín- turbando até hoje ou já
pois o veneno deformara o quo. teria desenvolvido alguma
rosto pálido. Era professora De certo modo, são en- patologia psicológica que
de língua inglesa e tocava graçadas as estórias familia- o faria perder a vida preco-
piano contra sua vontade, res, as comédias familiares, cemente. De homens com
sempre, na casa da vovó. ou anti-familiares, se o meu esse caráter, só poderia sair
“Amo todas as peças ao seu intuito aqui fosse formular gente com o meu caráter,
lado”, disse-me ela certa um conceito tecnicamente. é como o capital, ou um
vez com excessiva esponta- Que grande farsa não seria pouco menos determinista.
neidade, “mas este jogo de estas estórias, utilizo-me do E ainda põe-se a culpa na
xadrez é uma tortura”. Nes- termo teatral exatamente genética. Por isso também
se tempo eu já era jovem para expor tudo o que há dou esmolas: sei o que é ter
o suficiente para saber que de encenação épica desde carências, sempre tive pão,
ela não contava com papai o correr de águas cotidiano mas nunca alguém que me
ao seu lado, mas não com- até quando elas se dividem. alimentasse.

38 SAMIZDAT outubro de 2009


O lugar onde
Rasguei a carta. Não fui
querer saber. É mais confor-

a boa Literatura
tável continuar debruçado
na minha realidade, não sei
como meu organismo su- ficina
portaria mudar de mundo
assim, bruscamente. Mudar
é fabricada
de gravidade. Além do mais,
agora, não faz a mínima
www.oficinaeditora.com
diferença ela ter morrido

http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
há quinze anos ou morrer
daqui a um.

A Oficina Editora é uma utopia, um não-


lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

www.revistasamizdat.com 39
Contos

Ju Blasina

DeLíRiUs VirTuAiS
40 SAMIZDAT outubro de 2009
Noite abafada. Em algum
lugar, longe e perto, há um
temporal latente: Luz e som
sinalizam o confronto de
nuvens opostas.
A sala vazia espera em
branco. Dedos se movem
inquietos — receosos, ansio-
sos — indecisos. O brilho
da tela ilumina a peça.
“Ele deve estar lá, em
algum lugar”, pensa ela,
sem necessitar palavras. Há
muito, dispensou as trocas
sociais; opiniões alheias
nada lhe dizem que não
lhe esmaguem e olhares
estranhos só lhe invadem e
recriminam. Protegida do
mundo em seu lugar segu-
ro — A fantástica interface
virtual — a máscara lhe
permite pseudocontatos
ilimitados; verdade tão
contraditória quanto sua
existência.
O celular desperta: É
chegada a hora! Os dedos,
velozes, dançam às cegas
nas teclas: nick, senha, cli-
que, espera.
Blondie 34 entra na sala:
— Oi, alguém aí?
A sala permanece vazia,
exceto por ela. Sente-se so-
zinha, pensa em partir — a
demora lhe ofende! — quan-
do, enfim, ele surge.
Jack entra na sala: — Oi,
minha loira, tava só te espe-
rando.
— Ué, saiu da onde? Eu
não te vi...
— É que eu tava invisível,
risos

http://www.flickr.com/photos/striatic/1629269/sizes/l/

www.revistasamizdat.com 41
— Hm, tem poderes espe- — Te incomoda o sufi- caramba! Sentiu saudades?
ciais, é? ciente para desistir da nossa — Como assim? Do que
— Tenho... E nem sabes noite? Parece que já nem tu tá falando??? Não tô en-
quantos! (risos) Tava só te queres... tendendo nada!
esperando. Hoje não tô pra — Quero sim! Cla-ro que — Anda logo, querido,
mais ninguém! eu quero... Quero muito! RESPONDE!
— Hm... Só pra mim, é? — Ah é? Sua safada... En- — Eu... Preciso ir agora.
— Claro, minha linda, só tão me diz: o que é que vais
vestir pra mim, hein? — Não, não precisa NÃO!
pra ti, sempre! E então, pen- Nem ouse me deixar falan-
sou naquela proposta? Não — Hm... Pouca coisa. do sozinha! Sabia que a vaca
vejo a hora de te encontrar! Kkkkk loira tinha um laptop? Pois,
... (silêncio) —Ah... Loirinha, como tu não é que tinha! E sabia que
— O que foi, loirinha? és gostosa! ela era BEM pesada? Garan-
Ainda com medo? ... to que disso tu não sabias.
Sinceramente, eu esperava
— Pra falar a verdade, — Loirinha? mais dela... E DE TI TB!!!
bastante! E ansiedade tam- ...
bém. — Eu não sei o que tá
— Oh Loirinha, cadê tu? acontecendo contigo... Nem
— Bom, já podes te acal- tô te reconhecendo.
mar: Fiz nossas reservas, ...
para amanhã! — Só um pouquinho. Eu — Querido... Que coisa
já volto! feia! Depois de todos esses
— Como assim... Já? anos...
— Sim, já! A nossa tão es- — Ué, o que houve?
...
perada noite será “Amanhã ...
ou nunca”, porque daqui — Querido? Ah, que
— Voltei! Ouvi um ba-
a dois dias ela volta, é aí... bobinho, tentando ligar pra
rulho aqui dentro, mas não
Sabe-se lá... quem? Pra polícia? Ops*
era nada demais. Continua...
Acabo de esbarrar num fio.
— É... Fazer o quê, né? — Ah, agora eu me perdi. Talvez seja o do telefone...
— Hmmm “Quanta em- Fala tu... Ah... Que desastrada! Não é
polgação!” ... que derrubei o teu celular
— Desculpa, não foi a da janela? Desculpa... Ha Ha
— Loirinha? Oh gata,
intenção :* Ha
sumiu de novo?
— Sei, sei... — Querida, por favor, me
...
diz onde tu estás?
— Eu só fico... Receosa, — Voltei! Sentiu sauda-
só isso. E tenho motivos, — Ah... Ora, ora. Tô em
des?
afinal, ela ainda é a tua mu- casa, querido, AONDE MAIS
lher, isso é errado! — Sempre... Por que de- eu deveria estar?
morou tanto?
— Certo ou errado, que — Que piadinha de mau
diferença faz? Poxa, loiri- — É que aquela vaca re- gosto é essa? Eu nunca tive
nha, é a nossa oportunida- sistiu um bocado! esposa alguma!!!
de! Eu já disse que tô lou- — Vaca? Que vaca? — Ah, não? Bem, agora
quinho por ti... — Ah, isso sem contar tens! Não é maravilhoso?
— Eu sei, mas isso me que chegar até aqui foi can- ...
incomoda. sativo... Eu estava longe pra

42 SAMIZDAT outubro de 2009


O lugar onde
— QUE MERDA É ESSA? a boa Literatura
Por que eu não consigo Em algum lugar, longe
desconectar? e perto, a chuva cai em
é fabricada
— Por que eu não quero... milhares de gotas. Gotas
Porque tu não queres... Por- que individualmente pouco
que nós não queremos! representam, mas juntas
Angry wife entra na sala formam um temporal.

Angry wife & Blondie 34 É uma chuva diferente


são agora a mesma pessoa das outras tantas. É a última
chuva.
— Mas... Que... LOUCU-
RA é essa? A água invade a sala,
molhando a tela.
— Ah... A mesma de sem-
pre, querido! Kkkkkkk Na sala em branco, a
chuva é vermelha.
— Isso não faz o menor
sentido! Eu não sei que tipo Um único corpo jaz,
de truque é esse, mas não inerte, sobre o teclado gasto.
tem graça! Um corpo sem nome, sem
face, exposto às intempé-

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
— Ah não tem graça? ries — a identidade foi há
Nem percebi... Anda logo, muito perdida. Ninguém
Jack, te junta a nós! Acho sentirá sua falta, ninguém
que tu és a nossa parte mais lhe reconhece, pois sequer
teimosa, aquela que ainda lhe conheciam. Um corpo
acredita na vida real: Boba- qualquer, irrelevante, des-
gem! A realidade é só mais personalizado deste lado da
uma sala e nem de longe interface.
é a mais divertida. Nós já
não precisamos disso. A E a sala, novamente vazia,
vida é insignificante dian- só espera...
te da grandeza de padrões
que podemos representar.
A gente não precisa mais
fingir... Basta um clique, um
último clique e nós sere-
mos um só, para sempre! O
despertar é mais simples do
que parece. Vem logo, vem...
...
Jack deixou a sala
Angry wife & Blondie 34
deixaram a sala...
Jack, Angry wife & Blon-

ficina
die 34 são agora a mesma
pessoa
...

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43
Contos

Os gatos de
Pereirópolis Volmar Camargo Junior

44 SAMIZDAT outubro de 2009


Há muito tempo, mais ou era uma ótima parteira.
menos na época em que o Além disso, quem sofresse
Ariri Pistola estava ficando de alguma mazela, bichei-
rico levando mulas para ra, mal-estar, diarréia, dor,
São Paulo, aconteceu essa machucadura ou torção era
história. Pereirópolis ainda levado imediatamente para
se chamava Vila da Pereira. ser benzido pela velha. Ela
Era um lugar tranqüilo, e fazia o serviço com brasa
ninguém tinha motivo para na ponta de uma tesoura.
desconfiar ou querer mal Fazia também umas chapo-
aos seus vizinhos. Aliás, eiradas de plantas que ela
todo mundo era vizinho, já sempre tinha no casebre de
que viviam por aqui apenas pau-a-pique. Quando não
trinta famílias. Todos se estava benzendo ou ajudan-
conheciam e, como se pode do uma mãezinha a parir,
imaginar, um sabia da vida a velha estava ao redor da
do outro. casa, fazendo suas medici-
Quando os tropeiros fun- nas. Moía ervas, folhas e ra-
daram a vila, morava aqui ízes num pilão feito de toco
uma benzedeira, muito, com um socador duas vezes
muito velha, miudinha, de maior que ela. Dona Divige
cabeça branca e pele enru- era a médica, a farmacêuti-
gada como uma uva passa. ca e a farmácia da Vila da
Não era bugra, nem corren- Pereira.
tina, gringa ou alemoa, e Nessa época, chegou à
também não falava o portu- cidade um grupo de anda-
guês. Apesar disso, entendia rilhos que veio dos lados de
tudo o que lhe diziam e, Passo Fundo. Ninguém sou-
do seu jeito, se fazia enten- be dizer se eram ciganos,
der — tanto que até hoje se artistas de circo, comer-
sabe o nome que ela usava: ciantes, ou só vagabundos
Divige. Outra coisa sobre a mesmo. Logo que chegaram,
velha benzedeira que virou um rebuliço de opiniões
lenda eram os seus gatos. controversas correu pela
Pelo que ouvi falar, a mu- vizinhança. Permitiram que
lher vivia com mais de cem ficassem nos arredores da
gatos dentro de casa, de to- vila, com a condição de não
dos os tipos, cores e tama- causarem transtornos.
nhos. Mas a gente sabe que Dentro de pouco tempo,
os números de uma história os moradores começaram a
contada de boca em boca perceber coisas erradas. No
tendem a aumentar. início, sumiram miudezas
Não havia hospital por como roupas de varais, ga-
perto — e olhe que perto linhas dos terreiros, ovelhas
naqueles tempos era bem do pasto. Depois, objetos de
diferente do que é hoje. As valor, subtraídos de dentro
primeiras crianças nascidas das casas: moedas, jóias,
aqui vieram ao mundo com facas de prata. Até o osten-
a ajuda da Véia Divige, que sório da capelinha desapa-

http://www.flickr.com/photos/gideonvanderstelt/3053327594/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 45
receu sem qualquer vestígio ra. Misteriosamente, nem a umas frutinhas diferentes
do ladrão. As suspeitas, na- velha nem os gatos estavam perto do açude e pegou no
turalmente, recaíram sobre mais lá, o que, para todos, sono. Foi grande a como-
os forasteiros. Apesar de foi a prova necessária para ção pela volta da mocinha,
abrirem seus casebres para condená-la. Atearam fogo todos dando graças a Deus.
quem quisesse procurar os em seus míseros pertences, Porém, o mal já estava feito.
objetos roubados, nada era acompanhados de gritos e A casa da benzedeira ainda
encontrado, e a desconfian- expurgos contra os maus fumegou por muitas horas.
ça contra os tais só aumen- espíritos, entoados pelos Passado o susto, perce-
tava. que se diziam caçadores de beram que, depois da in-
Num certo fim de tarde bruxas. cursão ao mato, nenhum
de sexta-feira, uma das mo- Uma busca durante toda dos forasteiros retornou.
ças da vila não voltou para a noite foi conduzida pelos Protegidos pela luz do dia,
casa. A comunidade, posta maridos e primogênitos da os moradores percorreram
em polvorosa pelos pais aldeia nos matos das redon- o mesmo caminho feito na
da menina, armou-se com dezas. Os forasteiros, rapi- madrugada. Nem é preci-
paus, pedras e ferramentas damente promovidos a he- so dizer que dos estranhos
de trabalho e arremeteu em róis, foram com eles. Hora “caçadores de bruxa” restou
peso contra os estrangeiros. após hora, e nenhum sinal muito pouco. Cena feia
Pegos de surpresa, os foras- da Véia Divige. Quando a uma barbaridade. No lugar
teiros não puderam reagir madrugada ia avançada e onde os ditos cujos monta-
a tempo. Tudo indicava que a lua cheia estava no meio ram suas taperas, foi fácil
os fulanos não escapariam do céu, ouviu-se um grito encontrar o buraco onde
vivos. Numa tentativa de medonho, de gente sentindo haviam enterrado um baú,
defesa, o chefe do bando muita dor, “Acuda!”, seguido cheio de tudo o que rouba-
levantou a suspeita de que de uma barulheira, como ram naquela e, muito pro-
Dona Divige, a benzedeira, se fosse uma briga de gatos vavelmente, em outras vilas.
era a responsável pela des- por um pedaço de carne. A Véia Divige, essa sim
graça. Segundo ele, a velha Em seguida, outro berro, desapareceu junto com seus
era uma bruxa, e eles, na ainda mais terrível. Depois bichanos. Ninguém conse-
verdade, eram os encarrega- outro, e mais gatos, e outro, guiu mais encontrá-la para
dos de capturá-la. A prova e muito mais gatos. Foi o pedir pelo menos um “me
da culpa eram os gatos. Os horror! Os homens da vila desculpe”.
animais eram os compa- estavam embolados, ame-
nheiros da feiticeira, criatu- drontados, acuados feito Hoje em dia, aqui em Pe-
ras vindas do inferno que, bichos indefesos. Findos os reirópolis, quando um gato
a cada década, precisavam gritos, os valentes correram desconhecido aparece em
alimentar-se de uma virgem a toda velocidade de volta roda de casa, é costume dar
em uma sexta-feira de lua para casa. Ninguém dormiu de comer e tratar o bicho
cheia. aquela noite. muito bem. E se cuidar para
não fazer nenhuma besteira
Convencida pelos argu- Assim que o dia nasceu, com pessoas idosas, ou com
mentos do homem, e incen- os que haviam ficado de crianças, ou cometer algu-
tivada por ele, a turba de guarda correram chamar ma injustiça. Nunca se sabe
aldeões mudou de direção. todos para ver o inespera- quando é que a Véia Divige
Em minutos, acometidos do. A rapariga, que todos vai voltar para cobrar o que
pela fúria, homens, mulhe- julgavam morta, apareceu fizeram com ela.
res e crianças da Vila da com a cara amassada de
Pereira investiram contra a quem acabou de acordar.
minúscula casa da rezadei- Disse que havia comido

46 SAMIZDAT outubro de 2009


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
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47

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Contos

O Diário Vermelho
Henry Alfred Bugalho

48 SAMIZDAT outubro de 2009


Eu não tenho muita olhos esbugalhados, gri- dentemente aterrorizados,
gratidão com aqueles que tando por piedade, sendo talvez até por causa de
me criaram. Meu pai, arrastado pelos cabelos ameaças; outros fornece-
negligente, minha mãe, por homens fardados. Em ram poucas, mas valiosas
submissa. Não foram os tantos anos de viuvez, esta informações. Cheguei a
pais exemplares, mas eu foi a única ocasião em que três nomes consensuais:
também não fui um filho Maria se alegrou por Ti- sargento Brandão, cabo
exemplar, então, estamos móteo, capitão galardoado Pires e soldado Tíbuli.
quites. da Aeronáutica, não estar
No entanto, compadeci- presente para ver seu filho
vítima da intolerância. Seguindo meu plano,
me diante do choro duma que era começar pelo
mãe angustiada. O filho — De quem você suspei- mais baixo na hierarquia,
de Maria estava desapa- ta? — indaguei e, sem hesi- passei a investigar Tíbuli.
recido há mais de dois tação, sem dúvida alguma, Não foi difícil encontrá-lo,
meses, e ela não tinha Maria respondeu. qualquer um o conhecia
notícias sobre o paradeiro — Do Coronel Castro e na região do quartel, era
dele, se vivia, ou se estava Silva. benquisto e simpático,
morto. pelo que diziam. Ele mora-
Só que ela sabia quem va num bairro pobre, era
eram os responsáveis pelo Tocaiei o coronel por jovem e tinha uma esposa
sumiço do rapaz e por dois ou três dias, mas seria mais jovem ainda, bar-
qual motivo. impossível me aproximar riga roliça quase pronta
dele, sempre fortemente para trazer ao mundo um
Edgar era jornalista escoltado. Resolvi que te-
dum folhetim de orien- Tibulizinho. O rapazola
ria de começar por baixo, acordava cedo e se enca-
tação esquerdista (para procurando os milicos que
não dizer comunista), sob minhava ao quartel. Ao
perpetraram o crime, se fim do dia, voltava para
pseudônimos, criticava eu conseguisse derrubá-
duramente as práticas mi- casa, jantava assistindo
los, talvez o cabeça tam- TV e dormia cedo, possi-
litares, satirizava o “Braço bém rolasse, mas, partir
Forte” dos milicos. Tudo velmente arrebentado por
de cima, seria um objetivo causa da rotina militar.
estava ótimo, enquanto inalcançável.
protegido pelo anonimato. Mudei o foco para o
Mas um delator reve- cabo Pires. Este morava
lou o nome do editor do Voltei a conversar com com os pais, no segundo
jornaleco, que, por sua vez, Maria, tentar fazê-la se andar dum sobrado. Tinha
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sob tortura, deu com a lín- lembrar do nome ou das uma rotina semelhante a
gua nos dentes e entregou feições de algum dos Tíbuli, excetuando que, à
todos seus colaboradores. soldados que invadiram noite, ele saía para a far-
Numa abominosa noite, sua casa, mas a memória ra com os amigos, todos
quinze pessoas, de jor- dela estava enuviada pela milicos.
nalista a contínuo, foram terrível experiência. Frequentavam um arras-
arrancadas, a bordoadas, Obtive os endereços dos ta-pé no Bairro Novo, onde
de suas casas e conduzidas outros quatorze desapare- sempre alguém acabava
aos porões do Exército. cidos e realizei a via cru- baleado. Numa destas
Esta foi a última vez cis de conversar com cada noitadas, Pires se engraçou
que Maria viu seu Edgar, um dos parentes. Alguns com uma negrinha, mas o
se recusaram a falar, evi- irmão dela não gostou e

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foi tirar satisfações. Pires — Por que você está me informação. Nunca ima-
se ofendeu, sacou a pistola seguindo, seu corno? — ele ginei que fosse apanhar
e, sem pudor algum, ber- socou a arma na minha tanto por causa duma ma-
rou: boca. téria... — fiz-me de coitado
— Já tenho doze mortes Resmunguei. e desentendido.
nas costas, quer ser mais — O quê? — Pires des- Todos riram, como seu
um na conta? — o irmão recheou minha boca. eu os houvesse aliviado
da moça saiu de mansi- dum peso enorme.
nho, deixando-a para as — Eu disse que não pos-
so explicar nada com você — É um otário! — Pi-
apalpadelas do cabo Pires. res concluiu — Deixa ele
enfiando um revólver na
Eu não tinha motivos minha boca — zombei. amarrado aí, para servir-
para duvidar desta asser- lhe de lição.
ção do militar, por isto, Pires me pisou a cabeça
fechei o cerco sobre ele. contra o aslfato.
Numa das folias noturnas, — É um engraçadinho! Debati-me por horas,
aproveitei para entrar no Pelo jeito, vou apagar um até que conseguir alcan-
quarto de Pires e fuçar palhaço hoje. çar meu canivete no bol-
suas coisas, não encontrei so da calça e me libertei
nada que o incriminasse, das cordas. Mas agora eu
mas não desanimei. Per- Eles me amarraram a já possuía duas certezas:
maneci no encalço dele. uma árvore e, até o nascer Pires sabia que eu o esta-
do sol, me esmurraram e va seguindo; e eu já tinha
repetiram a pergunta: certeza de que ele e os
Pires e sua turma ru- — Por que você está me amigos estavam com os
mavam ao Bairro Novo, seguindo, seu corno? rabos mais do que presos.
eu dirigia atrás. Sem aviso, Além disto, percebi que
o carro deles freou; fiz o No princípio, permaneci
calado, aguentando estoi- precisaria de ajuda. Liguei
mesmo, fritando os pneus para Maria e avisei que o
e quase me chocando com camente as porradas, mas,
depois, simulando haver serviço ficaria mais caro
o veículo à frente. Senti, do que o planejado, mas
então, o impacto vindo entregado os pontos, reve-
lei ser um jornalista inves- ela me deu carta branca
de trás, um outro carro para fazer o que fosse ne-
não conseguiu frear e me tigando o desaparecimento
da equipe de “O Diário cessário.
ensanduichou contra o
automóvel de Pires. Pen- Vermelho”.
sei ter sido um acidente, — Puta que pariu! É Carlão e Trancoso eram
eu estava sangrando, mas amigo daquela turma! — irmãos, sócios duma em-
nenhum ferimento grave. um deles deixou escapar. presa de segurança. Con-
Porém, quando os rapa- — Como é que você tratavam leões-de-chácara
zes saltaram dos veículos chegou na gente? — outro para boates e capangas
à minha frente e atrás, questionou, voz vacilante. para milionários.
percebi que eu havia caído — Disponibilizaremos
— Uma fonte me dis-
numa armadilha. nossos melhores homens
se que vocês estavam de
Pires abriu a porta do serviço no dia em que os — eles me garantiram.
meu carro, pistola em repórteres desapareceram. — Preciso de homens de
mão, e me arrancou para Pensei que talvez vocês confiança, vocês dois me
fora. pudessem me dar alguma bastam — retruquei.

50 SAMIZDAT outubro de 2009


Eles me asseguraram Mas Tíbuli não sabia, este massacre e apresen-
que não faziam mais tra- alegava que sepultá-los tavam os nomes de vários
balho pesado, que agora havia sido incumbência do outros suspeitos, incluindo
“só gerenciavam o negó- cabo Pires. o sargento Brandão e o
cio”, mas eles me deviam Como o colega já havia coronel Castro e Silva.
um favorzão, dívida pelos entregado tudo, Pires não A primeira peça a cair
velhos e bons tempos, e via mais razão para ficar foi Brandão, indiciado por
acabaram concordando. apanhando calado. múltiplos homicídios; os
— Mas só porque é Prometeu nos mostrar outros perpetradores do
você, Vico, se fosse outro, as covas, numa fazenda a crime foram exonerados e
a gente batia o pé e era quilômetros da cidade. julgados por júri popular;
não. coronel Castro e Silva foi
rebaixado e enviado para
Os dois milicos pas- assumir um cargo no in-
Pegamos o pobre Tíbu- saram a noite abrindo terior, mas logo o caso foi
li quando ele voltava do a enorme vala comum, abafado e esquecido.
quartel, encapuzamo-lo e iluminados apenas pe-
o metemos no porta-malas los faróis do automóvel.
do carro. Depois, foi a vez Os corpos já estavam em Alguém bateu à porta
de Pires. Molhamos a mão avançado estágio de de- do meu escritório e man-
duma puta, que o atraiu composição, mas ainda se- dei entrar. Ao ver a figura,
para fora do arrasta-pé e, ria possível reconhecê-los. logo a reconheci, apesar
num barranco, enchemos de apenas tê-la visto nas
o cabo de porradas e o Deixei Carlão e Tranco- manchetes.
jogamos na traseira para so cuidando dos assassinos
e dirigi até um posto de — Você é o detetive
fazer companhia a Tíbuli. Vico? — o visitante per-
gasolina, de onde liguei
Levamo-los para um para Maria, avisando que, guntou, mas eu só traguei
galpão abandonado e foi infelizmente, havíamos meu cigarro e sorri — Es-
a nossa vez de atuarmos encontrado o filho dela, e tamos de olho em você,
como verdugos. Pires fiz uma segunda ligação, seu desgraçado. Sua hora
resistia, mas, após alguns ciente de que era este o vai chegar! Vai ter paga! —
safanões, Tíbuli abriu o único modo de atingir a e partiu.
bico: alta cúpula do Exército.
— Eu não queria matar “Vai ter paga!”, quantas
aquelas pessoas! Eu não vezes não ouvi isto?
queria! — chorava feito um Nas primeiras páginas
maricas — Foram ordens! dos maiores jornais do — Estarei esperando... —
país estava estampada sussurrei, espiando, pela
Ele revelou, então, que uma foto enorme de Ma- persiana, Castro e Silva su-
quem comandou a opera- ria, ajoelhada ao lado do mindo num carro de luxo.
ção havia sido o sargento cadáver do filho, chorando.
Brandão, sob ordens dire- Dois dos assassinos esta-
tas do Coronel Castro e vam amarrados e amor- Este conto integra o
Silva. daçados, logo ao lado da obra “O Covil dos Ino-
— E onde os corpos vala comum. Os jornais se centes, e alguns contos do
foram enterrados? — per- questionavam sobre quem detetive Vico”.
guntei. seriam “os vingadores mis-
teriosos” que solucionaram

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Contos

O menino de Tribiguá
José Guilherme Vereza

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Tribiguá não é nada. ***** partir de então, cuidava
Aliás, nunca foi coisa al- - Esse menino não é de da cova como quem zela
guma. Mesmo em tempos nada, Marieta. Culpa sua. por um jardim de crisân-
de duvidosa prosperida- temos.
de, quando ainda exis- - Culpa minha, Juran-
dir? De onde ele tirou *****
tiam algumas chácaras
preguiçosas e gente em essa mania de não querer Morreu D. Margarida.
volta de uma estação de nada com a vida? De tanto tossir seu co-
bonde, muito antes de ***** ração desistiu. Tribiguá
ser carcomida pelo mau fez fila porta do sobrado.
Cantídio, de Marieta e Cantídio dormiu na esca-
planejamento urbano que Jurandir, tinha estranho
rompeu os limites da da noite adentro, até que
interesse, que aflorou a família abriu as portas
capital e da dignidade com o trágico esmiga-
humana, Tribiguá só era da sala para o velório.
lhamento de Farrapo Como primeiro a chegar,
reconhecida pelos seus pelas patas de uma mula
próprios moradores na apossou-se da cabecei-
descontrolada, desenga- ra do esquife. Recusou
hora de preencher ficha. tada do seu bonde. Can-
Nada que aquele passa- croquetes, coxinhas, suco
tídio recolheu as sobras de groselha. Ficou horas
douro infame, ponto de do vira-lata, jogou tudo
troca de mulas exaustas de sentinela, a passear os
dentro de um saco, cavou olhos pelos restos magros
de puxar bondes, pudesse um buraco no quintal e
ser motivo de orgulho de D. Margarida, por uma
procedeu a um rito fune- ótica inversa e curiosa,
pátrio. Mas mesmo assim, rário, muito menos por
ainda foi capaz de gerar fitando a morta de cabe-
alguma afetividade pelo ça para baixo, fixando-se
uma história onde a vida cachorro, muito mais por
tinha reles importância. no revoar das mosqui-
gosto pela celebração. A nhas de banana sobre

52 SAMIZDAT outubro de 2009


seu rosto pálido, sereno, sem vontade e sem pre- dispersão dos suspiros e
inócuo. Quando a tampa sença. Mas diante de um soluços, Cantídio retorna-
do caixão decretou o fim corpo estendido, aí sim, va à sua pasmaceira.
da festa – da vida e do revelava-se o barão das *****
rega-bofe de D. Margari- providências.
da – , Cantídio, teve, en- Esparramado na rede da
***** varanda, olhos atentos ao
fim, um arroubo. Coorde-
nou como um maestro o - Raulino! Avisa para D. nada de uma madrugada
aperto de cada tarraxa e Juracy que o marido dela sem lua, Cantídio mal
organizou a disputa pelas acabou de ser atropela- ouviu palmas no portão.
alças. do pela carroça leiteira. - Ô menino... levanta
Bateu com a cabeça no daí. É com tu mesmo
- Na frente, os filhos, dormente do bonde e até
por favor. Genros e com que quero falar.
já parou de estrebuchar.
cunhados pelos lados e Que traga velas e muita - É comigo? A essa
atrás. choradeira, como bem hora?
E vida que segue. merece o coitado. - É menino! Preciso que
***** - Clementino!!!! Clemen- venhas logo!
Salvo pelo interesse re- tino!!!! Que fizeram com Nunca na vida Cantídio
pentino pelos funerais de você?!, Clementino!!! tinha ouvido que alguém
Farrapo, pouco se conhe- Chegou D. Juracy des- pudesse estar precisando
cia de alguma iniciativa trambelhada, atendendo dele. Por isso demorou
normal ou gesto marcan- ao alarmes de Cantídio, mais um tanto para se
te de Cantídio, ao longo que não largou o defunto desvencilhar do cordame
de seus 11 anos. Nunca um minuto sequer. Co- da rede e se colocar de
foi visto jogando bola, briu-lhe de jornal e a vi- pé, a ponto de enxergar
roubando manga, saindo úva de abraços. Acendeu ao longe um vulto magro
para comprar pão, essas as velas, relatou o ocor- e aflito.
coisas. Já nos tempos dos rido aos entes, curiosos e - Sou eu, Cantídio! O
bondes elétricos, nunca transeuntes, e esperou até professor Bonaparte!
se arriscou a pular num o sol raiar o furgão da *****
deles andando. Na esco- delegacia levar Clementi-
la era um mequetrefe. no para um bom banho e Bonaparte de Alves
Aprendeu a ler, escrever, uma muda de roupa dig- Gusmão, diretor do Gru-
somar, subtrair, dividir e, na. Cantídio acompanhou po Escolar, sujeito estra-
com muito esforço, mul- tudo. Enrolou atadura na nho de vestes soturnas,
tiplicar. Sabia dos afluen- testa magoada, entrela- poucos sorrisos e cava-
tes do Amazonas, das çou o terço nos dedos e nhaque de bode, que com
preposições acidentais e deu nó na gravata. Meio olhares rígidos governava
da gloriosa participação troncho, mas para o que anos a fio a disciplina
de Tribiguá na Guerra servia, servia. Comandou das crianças de Tribiguá.
do Paraguai, na figura do os funerais com a desen- Mais zeloso por condutas
ajudante de sapateiro Ar- voltura de um papa-de- do que por ensinamentos,
lindo Ventura, cujo busto funto de alta patente, mas o Professor Bonaparte
em plena praça disfarça- diante da estupidez da tinha tanta influência
va de herói um ordinário morte, ninguém teria a nas famílias quanto o
engraxate de botas de sensibilidade para perce- pároco, o delegado e o
oficiais que voltavam dos ber que ali, bem ali, atrás boticário. No entanto,
charcos. Enfim, de mate- de um menino esquáli- sua existência era um
mática, linguagem, geo- do, cara de idiota entre mistério e poucos arris-
grafia e história, era tudo duas orelhas de abano, se cavam especular sobre
que Cantídio dominava. escondia uma vocação, suas intimidades. Não era
E mais nada. A conta do um talento, um prodígio. casado. Não tinha filhos.
chá para levar a vida, À última pá de cal, à Não tinha parente. Não

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se sabia de criados na mistérios que habitavam família e dar prossegui-
sua casa, tida como mal- atrás das grades pesadas, mento à minha linhagem.
assombrada e de maus da porta de madeira es- Nunca houve formosura
agouros. Nunca foi visto cura e dos janelões inde- entre nossas moças. Nun-
num sábado, domingo ou vassáveis. Ao chegar ao ca houve verve em nos-
feriados a zanzar pelas portão, tremia. Não pela sas crianças. A escola é
ruas. O que emergia da brisa da madrugada, mas povoada de idiotas como
sua vida era a dedicação de excitação. Bonaparte tu, que pouco aprendem
plena aos afazeres de abriu o cadeado e num e muito trabalho dão aos
professor. De casa para gesto cordial ofereceu pobres pais. Não, não
escola, da escola para a entrada para o menino, estou falando de tuas tra-
casa, com algumas raras que pé ante pé, pene- quinagens, pois até para
aparições em almoços ou trou sem medo, mas com isso és incompetente. O
jantares oferecidos por alguma taquicardia. Seus trabalho que dás é a pas-
mães bajuladoras, que olhos vasculhavam cada maceira em que vives. És
precisavam se orientar detalhe, mas casa não era símbolo da mediocridade
diante de um ou outro diferente do que imagina- de Tribiguá, com uma
problema dos filhos. va. Viu móveis empoei- ligeira diferença a teu
Bonaparte ouvia atento as rados, livros e mais livros favor. E como tal, tenho
mais variadas lamúrias, espalhados pelo chão, cá uma oferta.
mas na hora do cafezi- quadros velhos e belas Cantídio acompanhou
nho, barriga cheia e alma artes em teias de aranha. a mão de o velho abrir
restaurada, a conclusão Um sofá manchado pelo uma gaveta e de lá tirar
era sempre a mesma: tempo diante de uma um papel com letras re-
- São crianças, minha escrivaninha com um buscadas.
senhora. É por isso que globo terrestre foi o lugar
onde Cantídio escolheu - Eis meu testamento.
temos que estar de olhos Ficam para você este ca-
em alerta aos desvios da para se sentar, tão logo o
professor lhe dissera para sarão, incontáveis livros,
mocidade. móveis que estão entre o
ficar à vontade. E tudo
***** começou a ficar claro. lixo e uma restauração,
- Preciso que tu me quadros sem valor e 15
- Não te preocupe, me- cabeças de gado, confi-
acompanhe à minha casa, nino, vou ser breve, pois
Cantídio. nados num curral a três
tão logo o primeiro bon- estações daqui. Todos os
- Na casa mal assom- de vai passar. Não temos animais têm um B de Bo-
brada, professor? muito tempo. naparte marcado a fogo
- Poupe-me de tuas Cantídio se aprumou no dorso esquerdo. São
asneiras, menino. É uma no sofá, diante do velho teus.
casa sóbria, como con- de pé, por trás da escri- O menino, então, conse-
vém a um templo de vaninha. Nada disse, só guiu se manifestar.
conhecimento sabedoria... queria descobrir o rumo
da prosa. - Mas por que eu, pro-
- Agora? fessor?
- Agora! Enquanto Tri- - Meu filho, como ima-
ginavas, sou um homem - Como disse, Cantídio,
biguá dorme... sou sábio e observador.
sábio e solitário. Tudo
***** que aprendi na vida e Sei de teu fascínio pela
No rastro do professor, nos educandários de nada morte. Esta é a tua per-
trilhando o caminho do serviu para esta póvoa sonalidade. E como tal,
bonde, Cantídio seguiu inútil em que vivemos. trate de cultivá-la. E pela
em silêncio e curioso. As pessoas obtusas e rara coragem de ser tão
Perguntava a si mesmo refratárias que habitam peculiar, te faço duas
por que teria sido esco- Tribiguá não me inspi- ofertas. Uma aqui está na
lhido para desvendar os raram a constituir uma minha mão, meu testa-
mento.

54 SAMIZDAT outubro de 2009


- E a outra, professor? tinha agora um casarão,
- Um momento, menino. alguns livros e 15 vacas a
contabilizar.
O velho abre outra
gaveta e retira uma gar- *****
rucha semi enferrujada. Tribiguá não é nada.
Enfia o cano pela própria Aliás, nunca foi coisa
boca e explode os miolos. alguma. Imagine que os
Cantídio levanta do sofá. infelizes daquele passa-
Permanece estático, em- douro, curral de mulas
bevecido, enfeitiçado por e gente de maus bofes,
aquela sangueira sobre espalharam que Cantídio
a escrivaninha. O globo teria matado o professor
terrestre rola pelo chão, só pra ficar com a heran-
como se fugisse em di- ça. O menino deprimiu
reção a porta. O menino de vez. Nem arrumou as
entende tudo. Jamais a trouxas. Pegou o bonde
vida havia lhe oferecido da madrugada, foi até o
um presente tão mag- fim da linha e sumiu na
nífico: assistir ao exato escuridão da mata, dei-
momento da morte não xando pai, mãe, parentes,
era homenagem que se escola, o casarão, quadros
prestasse a qualquer um. velhos, incontáveis livros,
Orgulhoso e eufórico, 15 reses e a vida para
Cantídio sai em dispa- trás.
rada pelos trilhos. Com *****
muita pressa. O primeiro
bonde da manhã já deve- Nunca mais se ouviu
ria estar a caminho. falar de Cantídio. Diz a
lenda que foi parar no
***** cemitério municipal,
Os funerais do Professor onde sua alma vaga, entre
Bonaparte foram concor- mausoléus, sepulturas
ridos. Crianças do Grupo abertas e restos de gente
Escolar entoaram cantigas expostos. Até hoje, não
de adeus num coral pou- há velório em Tribiguá
co afeito a harmonias e que não se ouça uma
afinações. Mães órfãs de voz de menino, frágil e
seu conselheiro deram se aflautada, puxar um pai-
as mãos e Cantídio, com nosso-que-estás-no-céu.
sua voz frágil e aflautada, Não se sabe de onde vem
puxou um pai-nosso-que- nem como acontece. Mas
estás-nos-céus de trans- é sempre a mesma voz,
bordar os olhos da cida- de explodir suspiros e
de. O padre abençoou transbordar os olhos da
a urna prudentemente cidade.
lacrada, pois a cabeça do
professor tinha se trans-
formado numa maçaroca
de causar engulhos e pa-
vores. O delegado discur-
sou pela alma do suicida.
E o menino sorriu por
dentro. Além da gloriosa
cena em sua memória,

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Contos

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Léo Borges

Pela morte de um estigma


– Não posso crer que nos sino de aluguel confessa seu essa mulher é extremamente
perdemos de novo – disse método. perversa, mas tem palavra.
Ygor, franzindo as sobran- Chegou ao poder através de
celhas no intuito de suas – Isso agora tanto faz. esquemas escusos, perfídias
feições parecerem tão sérias Importa agora que esqueceres e, sim, muitas mortes. Algo
quanto a situação em que ele as formas urbanas do luga- parecido com aquela desvai-
e Logan estavam. rejo, o que muito nos atra- rada mulher de um guerreiro
sa – asseverou Ygor. – Bem, escocês.
– Sim, é o que parece. Esta pelo menos ainda conservas
localidade não se confunde a memória para o essencial, – Macbeth? – perguntou
com Melgraste, ainda que o mesmo que com desfaçatez. Logan, lembrando do caso
gorjear dos rouxinóis muito Já a mim não podes acusar que se tornou um clássico.
se assemelhe. de negligenciar lembranças.
Dei cabo de algumas pessoas – Acho que é esse mesmo.
– Quando foi a última vez na cidade para qual vamos, Contam que sua mulher era
que estiveste lá? é bem verdade, mas lá se vai tão impregnada de ganância
mais de uma década. que enlouqueceu num cená-
– Não me recordo. No rio sanguinolento criado por
penúltimo inverno, penso. – Matar de graça defini- ela própria. Não sem antes
Quando fui contratado para tivamente não me apetece. gerar uma tragédia sem pre-
uma emboscada nos montes. Ainda bem que a contratante cedentes na Escócia.
O coitado caiu de um pe- em questão é a rainha de
nhasco. Melgraste. Embora pessoa de – Também ouvi essa
índole ruim, não é sovina. história. Mas Lady Loffertie
– Caiu ou derrubaste? parece-me ainda mais cruel,
– Sabes que nenhum assas- – Concordo. Dizem que além de leviana. Não à toa

56 SAMIZDAT outubro de 2009


sua alcunha é “a Rainha do tanto de sangue que o rastro incapaz de identificar o que
Inferno”. possibilitou à polícia levantar é certo e o que não é?”. The-
suspeitas sobre a mentora. biane sempre sentiu o ranço
– Não participei em O néscio foi até a casa real da morte na realeza, mas,
nenhuma das mortes enco- receber a paga sem nem nunca acreditou nas histó-
mendadas por Lady Loffertie ao menos trocar as vestes. rias que lhe contavam sobre
– revelou Ygor –, mas soube Subornos à parte, verificou-se matanças covardes por parte
de colegas que exterminaram que o rapaz fora morto em de seus empregadores. Sabia
figurais reais que facilitaram legítima defesa, o que dispen- da existência da fama, apesar
o acesso dela ao trono. sava procedimentos crimi- de refutá-la, até mesmo pela
nais de maior envergadura. conveniência da manuten-
– Ora, Ygor, estás sentado
ção do emprego – e da vida.
ao lado de um que partici- A rainha agora não pre- Nunca, porém, a morte e a
pou de algumas dessas mor- tendia matar mais ninguém. rainha entraram em tamanha
tes. Apesar de esquizofrênica, Na realidade, nunca preten- interseção a ponto de uma
a Rainha do Inferno investe deu. Foram as circunstân- estar perto de aniquilar a
bem quando o assunto é cias, por vezes alheias a sua outra. Isso era loucura plena!
massacre. vontade, que a impeliram ao
assassínio – ou ao mando. – Sim, Thebiane, quero,
Lady Loffertie esperava a
Acreditava ferrenhamente literalmente, acabar com este
dupla ao lado da única ca-
que não era criminosa e nem estigma que me persegue.
pela periférica de Melgraste.
nunca fora na acepção do Mortes e mortes. Muitos
Sentia-se mal perto de tantas
termo. O problema residia sucumbiram? Sim. Mas, sem
imagens angelicais, mas me-
justamente nessa fama de rai- tais mortes, tragédias maio-
lhor o incômodo passageiro
nha infernal, fama esta que res teriam ocorrido e você
do que não resolver o que
se propagava ultrapassando não estaria aqui empregada
verdadeiramente a afligia.
as fronteiras de Melgraste, neste castelo, ouvindo meu
Tapava o rosto com um xale
mas que não encontrava lamento. Todas as autópsias
e não trajava as vestes reais
lastro, segundo seu entendi- rechaçaram as invencioni-
justamente para não levantar
mento. ces perversas dos ociosos. É
atenção para o encontro que
tétrico ter de conviver com
marcaria o início do fim de Esta morte – a derradei- a imunda fama de genocida
sua fama. ra – mesmo dando azo à quando na verdade sou a
O horário vencido fazia maldita fama, vislumbrava- mais benevolente das pesso-
a mulher refletir sobre o se como o único remédio as. Certo que desejei a morte
possível erro de ter chamado para pôr fim ao que de fato de alguns, como o rei Kome-
aquela dupla. Sabia que eram incomodava aquela mulher: law. Mas seu fim se deu pela
efetivos no serviço, mas a a esquisita e odiosa reputa- queda acidental em um des-
logística sempre fora pre- ção de assassina. Não queria penhadeiro, longe da minha
cária. Soube que Ygor fora mais os famigerados olha- presença. Herdamos o reino,
ferido por um touro quando res de medo e desconfiança mas esses fatos não possuem
foi matar um fazendeiro. E seguindo-a quando desfilava nexo causal. Se algum dia
Logan quase fora preso na pelas ruas. Seu ar nobre era possuí ímpeto mortal, este
última empreitada a mando incompatível com o perfil de logo foi dissipado. Quero
real. O serviço na época era uma assassina. deixar minha inocência mar-
até bem simples: alguns gol- “Matar a fama?”, era a per- cada na história e para isso
pes de estilete em Dorknson, gunta que não saía da cabeça preciso matar. Matar o que
então namorado da filha da de Thebiane, sua empregada me destrói perante o povo:
rainha, um sujeito altamente de maior confiança. “Será matar esse labéu!
prepotente e ambicioso. O que minha rainha estaria A empregada achou muito
matador profissional execu- tendo outra crise? Parecida estranha tal decisão, contra-
tou o trabalho, mas sujou-se com aquelas em que se torna

www.revistasamizdat.com 57
tar matadores para liquidar bras. Bispo pedindo para digo. A fama de uma pessoa,
um rótulo, um espectro que matar a madre, duque pe- concluíram, é coisa muito
vivia visceralmente atrela- dindo para matar a duquesa, próxima: é a sua alma, espíri-
do à rainha. Afinal, mortes pessoas de família abastada to que ganha forma e que se
por espada ou por veneno requisitando extermínios em agiganta tomando propor-
só ocorrem entre vivos, não geral. Mas, matar a fama?! ções tais que eliminá-la se
entre estigmas. De qualquer Olharam para os parcos torna uma tarefa impossí-
modo, apoiava a decisão que, símbolos religiosos expostos vel. Mas para tão complexo
em todo caso, era soberana na capela e se benzeram. intento a rainha, certamente,
por essência. Mas o prêmio era bom e o iria convocar matadores com
pagamento superou a falta de maior capacidade de plane-
– Ei-los! – exclamou a rai- lucidez da proposta. jamento. Por isso, acredita-
nha ao avistá-los. ram que a tarefa seria fácil.
– Sim... iremos matar a Com a simplicidade com
Logan foi o primeiro a fama de Lady Loffertie – Ygor que desenvolviam sua labuta,
apresentar desculpa pela falou e saiu puxando Logan. enxergaram que este pode-
demora:
– Quero o serviço com- ria ser, de verdade, o serviço
– Perdoe-nos. Perdemo-nos pleto em no máximo uma mais simples para o qual
no caminho. semana! – arvorou-se, gesti- já haviam sido contratados.
culando como se sua caracte- Desta maneira concluíram
– Penso que escolhi as que o estigma em questão
pessoas erradas para resolver rística fosse mais relacionada
à loucura do que à realeza. deveria ser elemento repre-
a problemática. Se não con- sentado por figura única e
seguem nem mesmo lembrar- Logan não tinha a menor não a coletividade ou algo
se do caminho que conduz ideia de como poderia come- abstrato.
a Melgraste. Estão cada vez çar o trabalho. Ygor menos
piores. ainda. Pensaram até que Lady Ao analisarem o histórico
Loffertie estivesse satirizando de Lady Loffertie viram que
– Não pergunte se somos se tratava de uma mulher so-
capazes. Passe-nos a missão. seu ofício. Mas ela parecia
decidida e não voltou atrás, litária, pois o marido morre-
despedindo-se de ambos com ra antes mesmo de se tornar
– O que quero pode pa-
um sorriso carregado de rei. Alguns disseram que foi
recer estranho e de fato o é.
escuridão. picada de cobra, outros que
Espero que façam e façam
fora a própria Rainha do In-
com rapidez. Estou cansada
Nos primeiros dias cogi- ferno que o asfixiara durante
de carregar uma fama que
taram que para acabar com o sono. Certo é que Lady
não possuo em caráter legí-
o estranho pedido, deveriam Loffertie era quem mandava
timo. Quero minha aura de
acabar com quem acolhia em Melgraste e apenas uma
rainha generosa de volta, ou
essa opinião. Como na lo- pessoa era fiel e estava per-
instituída, se pensarmos que
calidade praticamente todos manentemente ao seu lado:
ela nunca existiu. Que minha
consideravam a rainha uma a empregada Thebiane. Seria
fama de matadora seja morta!
mulher vil, pensaram, de ela, portanto, a chave para se
Oitenta moedas de ouro e
início, que teriam de promo- desvendar o mistério.
títulos de nobreza para os
dois. Terei a prova quando ver uma carnificina. Mas não
era isso o que Lady Loffer- Thebiane raramente saía
mais ninguém intimidar do castelo, mas num determi-
meus passeios com ares de tie queria. Era justamente o
contrário: queria que todos a nado dia em que foi visitar
pavor ou de insulto latente. sua tia Jividain, foi abordada
respeitassem por seu tempe-
ramento amistoso. pela dupla, que já a esprei-
Logan e Ygor entreolha-
tava.
ram-se, espantados. Já haviam
recebidos muitos pedidos, Acreditaram que todo
aquele mistério era um có- – Tu sabes! Vives com
muitas encomendas maca- ela! Como podemos matar a

58 SAMIZDAT outubro de 2009


fama de má de Lady Loffer- – Não há como acabar
tie? Diga-nos e serás poupada com a fama de criminosa da Henry Alfred Bugalho
A
da morte! Rainha a não ser acabando GUI
Thebiane assombrou-se
como nunca antes na vida. O
ranço de morte parecia per-
com a fonte – disse áspera
e séria, e com um tom meio
maldoso, a empregada.
Nova York
seguir não apenas sua patroa – Como assim? para Mãos-de-VAca
como ela própria. A rainha
querer acabar com a fama – Liquidando a própria
rainha. Matando Lady Loffer-
de assassina era algo bom O Guia do Viajante Inteligente
e justo, mas aquela coerção tie! – Thebiane revestiu-se
animalesca, certamente, não com um purificador senti- www.maosdevaca.com
parecia a melhor maneira de mento de salvação, tanto de
trabalho de pessoas tão expe- sua pele quanto da fama de
rientes quando o assunto era sua patroa. – Ao matarem
óbito. Com uma faca apon- Anne Loffertie, a Rainha
tada para si, a empregada do Inferno, esta morrerá da
que sempre jurou fidelidade maneira com que sempre so-
agora deveria dizer o impos- nhou: amada pelo povo, com
sível, o impensável. direito a estátuas e homena-
gens.
– N-não sei... ela quer
muito acabar com tudo isso, Logan e Ygor surpre-
mas sou a pessoa menos enderam-se com tamanha
indicada para prestar-lhes inteligência e chatearam-se
auxílio nessa busca! por não alcançarem essa
resposta logo que a proposta
– Anda! Diga logo se não foi feita. A Rainha do Inferno
quiseres morrer como todos foi morta pela dupla e, como
os que cercam sua patroa! a filha desta já havia sido
assassinada em circunstân-
Thebiane não pretendia cias não explicadas, Thebia-
ser infiel logo agora, quando ne, a empregada, assumiu
havia de provar seu amor, como nova titular da realeza.
quando era a única a descon- Mas o que importava é que
siderar o lado ruim de sua a fama mortuária de Lady
patroa. A empregada viu que Loffertie mudou. De pessoa
uma resposta coerente deve- má e traiçoeira passou a ser
ria ser dada para escapar da a mais caridosa das rainhas
morte na mãos dos chacais e, póstumas.
num lampejo, percebeu que
se Lady Loffertie queria tanto
acabar com sua fama, nada
mais restava que sua exis-
tência fosse levada ao ocaso,
como ocorrera com o rei
Komelaw, que após a morte
na colina viu sua reputação
ser alterada, tendo, inclusive,
praça inaugurada com seu
nome.

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Contos

Giselle Sato

Jack , o estripador.
A primeira vítima
Alice apertou as fai- lhar mais uma semana e ter e esfoladas. O patrão, do alto
xas em volta do abdome a criança, cujo destino seria a do balcão, gritava com as
inchado,tentando esconder a roda dos enjeitados. moças e exigia mais rapidez
barriga de quase oito meses nas tarefas.
de gravidez, mal podia respi- Por mais dura que fosse a
rar. Temia a sociedade lon- vida em Londres, não queria No velho Pub Ten Tells, os
drina, austera e impiedosa. terminar os dias arando terra homens bebiam sem parar.
e cuidando de porcos no Aos poucos as vozes au-
A mulher vivia em um interior da Inglaterra. mentavam. Algumas discus-
cortiço no bairro pobre de sões começavam do nada e
Whitechapel, área de prosti- As jarras pesadas de cerve- sempre acabavam em briga.
tutas e bandidos. ja preta eram um tormento. Piadas sujas eram repetidas
Enchia as canecas, servia os inúmeras vezes. Mãos atrevi-
Se a senhoria desconfias- fregueses, recolhia os vasilha- das tentavam tocar as aju-
se de qualquer deslize seria mes sujos e passava ligeira- dantes de salão.
expulsa e jamais conseguiria mente em uma tina de água
outra vaga. Planejava traba- encardida. As mãos doloridas Sarah recebia as melhores

60 SAMIZDAT outubro de 2009


gorjetas. Ela não se impor- Como se atreve a tentar me
tava de sentar no colo dos enganar? Ainda serás casti-
bêbados ou exibir os peitos gada! Um detetive...
caídos, Alice recusava. Algu-
mas vezes, Sarah ia para o Foram as únicas palavras. Uma loira gostosa...
beco dos fundos e por alguns Os passos afastando-se na
xelins recebia vários homens. madrugada, deram-lhe forças Um assassinato...
O patrão fingia não perceber para se arrastar até a parede
em troca de favores gratuitos úmida.
no final da noite.
Mal embrulhada no velho
E o pau comendo entre
Três horas da madrugada xale, conseguiu chegar ao
quartinho acanhado e juntar as máfias italiana e
e Alice ainda varria o chão
e limpava as mesas. Dois os poucos pertences. chinesa.
­
relutantes bêbados urinavam
O dia amanhecia quando
na calçada e riam descontro-
Alice chegou à estação de
lados. Um vizinho irritado,
trem. Precisava embarcar e
atirou uma garrafa de um
tentar esquecer todo o horror
prédio próximo. Silêncio.

Chovia e a temperatura
sofrido. Ir para bem longe da
cidade que abrigava o mons- O Covil
havia caído muito. Os pés de tro.
Alice estavam dormentes e dos
http://www.flickr.com/photos/ben-sci/2199566165/sizes/l/

O cheiro almiscarado
o corpo doía. Mal acreditou
jamais seria esquecido. O

Inocentes
quando atravessou a porta da
toque das luvas macias, a
rua e respirou aliviada por
dicção perfeita, marca in-
haver cumprido mais um
confundível da nobreza.Tudo
longo dia.
naquele homem indicava
www.covildosinocentes.blogspot.com
O bairro escuro e mal fre- poder.
qüentado estava vazio. Não
Alice sentia que se procu-
tinha medo, preferia voltar
rasse a polícia em busca de
sozinha à companhia das co-
proteção, seria uma mulher
legas de trabalho. Uma viela
morta. Ele a encontraria
fedorenta, mais dois quartei-
onde quer que fosse, atribuía
rões e estaria em casa.
ao desconhecido poderes
Mãos surgiram das som- sobrenaturais.
bras. Pesadas, em torno do
Quando sentiu o trem
pescoço e da boca. Aperta-
deslizando nos trilhos, res-
vam com força obrigando a
pirou aliviada, afastando-se
entrega. O som das roupas
cada vez mais rápido, para
sendo cortadas pela lâmina
bem longe do mal.
afiada,o sobretudo de lã ro-
çando a pele exposta, o chei- Londres iniciou um ciclo
ro da colônia cara, os senti- violento de crimes bárbaros
dos captando cada detalhe. naquela noite. Um conhecido
maníaco de nome Jack as-
O homem parou quan-
sombraria por algum tempo
do as últimas faixas foram
cada beco mal iluminado,
arrancadas. Surpreso, tocou
transformando o pesadelo do
a barriga da mulher com a
mais temido em realidade w
ponta dos dedos. O corpo
macabra. gr nl
frágil foi atirado ao chão:-
át
oa
Falsa! Pecadora imunda! is d

www.revistasamizdat.com 61
Contos

Diário do Federal
Capítulo 1 - O 1° Plantão
Dênis Moura

Meu primeiro plantão e alertei meus colegas para Cristovão no Trevo que liga
nesta Delegacia de Polícia ter cuidado com os guache- Paranatinga à Canarana.
Federal foi do dia 24 ao dia bas de um tal de Paulinho
25 de janeiro de 2009. Polícia, contratados para Às 21:40 o colega Eráclito
dar cobertura armada aos pede reforços, água mineral,
Recebi, registrei e encami- crimes. Ficou um vai e vem esparadrapo e algodão. Acio-
nhei uma denuncia de roubo de viaturas me aporrinhando no a Força Nacional e entre-
e extração ilegal de madeira até de madrugada. Os caras go a submetralhadora HK do
em terras de terceiro. Comu- dos caminhões abandonaram Plantão ao colega Rosemberg
niquei ao Delegado Moreira os mesmos e entraram no para reforçar a equipe. Às
e acionei uma equipe de seis mato. Um dos caminhões 1:50 toda a equipe retorna e
agentes para interceptar os sem as chaves e outro sem me entrega alguns documen-
caminhões ao anoitecer na freios. Os colegas arrancaram tos e materiais apreendidos,
saida para a estrada que vai cabos e secaram os pneus bem como a HK.
para a cidade de Canara- do sem chave e conduziram
na. Sondei os investigados Às 2:00, depois que todos
o sem freios até o Posto São vazam, deixo os dois vigilan-

62 SAMIZDAT outubro de 2009


tes em alerta e vou dormir estralando no chão. Eu corro na delegacia com todo o res-
na salinha que fica ao lado pelo corredor em direção to da equipe. Ouço estilha-
da recepção do plantão. à sala 321, é minha única ços de vidro da janela sobre
Acordo com um tiro sobre chance. Na sala do Núcleo minha cabeça e uma grana-
algo metálico. Pelo arras- de Operações eu teria todas da militar rolando no chão...
tar do portão de ferro da as munições e granadas que Seus biscoitos verdes e metá-
frente da delegacia, concluo precisasse. Porta trancada licos quicando na cerâmica...
que arrombaram o cadeado. por fora. E agora?... Tão distante para fustigá-la,
Me levanto já com a Glo- mas tão próxima pra...
ck empunhada na posição Escuto ser estilhaçada por
três. Deslizo rapidamente uma rajada de tiros a porta .
o indicador da mão fraca de vidro entre o corredor e o
saguão da Delegacia. .
sobre o chanfro do check
alimentação e confirmo que Com a Glock, disparo .
a belezinha está municia- nervosamente um monte de
da na agulha. Ouço outros .
tiros no trinco da porta e
disparos e o barulho da enfio-lhe o pé até escancará- .
porta de vidro da entrada se la. Após me abrigar na sala,
despedaçando. Os vigilantes meto cegamente a HK no .
ainda respondem com uns
http://www.flickr.com/photos/bossanostra/3231468920/sizes/o/

corredor e dou três rajadas. .


4 disparos, mas escuto seus Ato contínuo, abro o armário
passos em fuga correndo de granadas e retiro uma de .
para os fundos da delegacia. gás lacrimogênio e outra de
Enquanto me abaixo e seguro luz e som. Com uma olhada .
na bandoleira da HK e no rápida no corredor, vejo que
carregador reserva, outro tiro .
pelo menos um cara gemia
acerta a porta do quartinho sangrando no chão. Outros Depois um clarão cegan-
onde estou, atravessa-a e se dois corriam tresloucados te e eu, sobressaltado, me
aloja na tampa do quadro em minha direção. Lanço levanto ofegante da pequena
telefõnico logo acima da uma após outra pelo corre- cama. O suor corre pelo meu
minha cabeça que só pensa dor e dou mais umas rajadas rosto. Ligo a luz do quarti-
numa coisa: -Fudeu! com a HK até descarregá-la. nho, meto minha Glock na
Havia trancado a porta do Corro para o cabide dos co- cintura, confiro a HK devi-
quartinho com duas voltas letes, pego todos eles, der- damente municiada e com o
na chave. Eles teriam traba- rubo o birô e com eles faço carregador reserva do lado.
lho para entrar, mas os tiros uma barricada. Municio uma Abro a porta e fatio lenta-
não. Ouço muitos passos. Spas 15. Um dos caras mete mente com a vista o balcão
Devem ser uns três ou qua- uma pistola pra dentro da do Plantão. Sons de televisão
tro. Abaixado, abro a porta sala e atira a esmo. Os cole- e do ar-condicionado. Os
secreta que liga o quartinho tes protegem muito, mas um vigilantes assistiam um filme
do plantão à sala dos com- dos tiros pega minha perna de ação na TV da recepção.
putadores, entro na sala e direita de raspão antes que Ufa! Volto pra cama e conti-
tranco na trava. Corro em um tiro de minha calibre nuo a dormir tranqüilo até
direção à porta do Núcleo 12 arranque o braço do cara amanhecer o dia.
de Tecnologia para escapar fora. Bendita Spas 15...
pelo corredor mais além. Retiro o celular do bolso
Mais tiros, um estrondo de e ligo para o Agente Beretas.
pesada na porta do quarti- Conto-lhe a situação e ele
nho e outro da sua madeira diz que em minutos estará

www.revistasamizdat.com 63
Autor Convidado

Margarida (ou seria Helena ou Graça )


Maria de Fátima Santos

http://www.flickr.com/photos/nyki_m/3005979611/sizes/o/
Dez horas to, onde vive sozinha, são todo
Fim de tarde duzentos metros por um Margarida (ou seria He-
passeio de paralelepípedos lena ou Graça) olha mais
Chuvisco de começo de cinzentos
Outubro uma vez a rua no sentido
Depois é a subida no ele- que é suposto que surja o
Um ventinho quase frio e vador pachorrento: quatro transporte, e encalha com
ela sem nem um casaco que pisos os olhos de um rapaz, assim
lhe cubra o decote em bico mais ou menos para sua
que deixa ver os seios bron- Margarida (ou seria He-
lena ou Graça) mora no idade, que cora e se apressa
zeados, presos num sutiã de a poisar os olhos na pasta
algodão com flores quinto andar de um prédio
de renda económica nos de couro preta que tem a
Espera pelo autocarro – o arrabaldes da cidade tiracolo - um computador
doze que a deixará, como portátil, parece-lhe, e ela
costume, em frente da pas- O prédio é pintado de pensa: deve ser estudante de
telaria Pingo de Mel verde alface e tem bandas belas artes - e isso porque
rosa choque em cada um há uma escola, ali, depois
Daí até ao apartamen- dos andares – catorze, ao do cruzamento; e, enquanto

64 SAMIZDAT outubro de 2009


cogita sobre a mala, admira Três horas da madrugada É voz de homem - terá
o ar frágil e doce do cor- Ouve-se o barulho da pensado ela ou nem teria
po do moço que veste um chuva a bater no vidro da tido duvida
casaco de malha, o que ela janela Quem o sabe
inveja pois sente o ar fres-
quinho arrepiar-lhe os pelos Margarida (ou seria Hele- Margarida (ou seria He-
dos braços e das pernas que na ou Graça) acorda deita- lena ou Graça) percebe
traz destapados num vesti- da numa cama que, quem quer que seja, se
do leve Não é o quarto dela - veste, aos pés da cama
constata pelo cheiro e pela Faz um esforço para se
posição em que ouve o mexer, para dizer alguma
Chega o autocarro ruido da água: que grande coisa - nem uma fímbria do
Sobem, uma a uma, as dez carga de água, pensa ela, seu corpo obedece
pessoas que estão na fila, tentando ver, mas está de- Adapta os olhos ao escu-
em que ela é segunda, e o masiado escuro ro, e percebe a pasta entre-
rapaz vai no fim, a seguir Sente a seu lado um aberta
a uma mulher que leva ao corpo que lhe toca o braço
colo um gato e não sobe Diz de si para consigo:
esquerdo com uma pele afinal não é um computa-
porque, deve ser o que lhe morna e lisa
diz o motorista debruçado dor o que tem dentro
para a porta, é proibido Margarida (ou seria He-
transportar animais sem lena ou Graça), totalmente
nua, tenta recordar-se Mas não se irá aperceber,
que seja em gaiola; e a mu- que o moço sai correndo
lher aconchega o animal e Mas ela só se lembra de pela escada com a pasta a
desvia-se para deixar passar ter entrado no doze e ter tiracolo
o ultimo da fila – o rapaz fechado os olhos - terá
da mala de couro adormecido, como era seu Não saberá que ele leva
costume: e depois? que foi na pasta um frasco transpa-
Dentro do autocarro, Mar- rente
garida (ou seria Helena ou que aconteceu hoje?!
Graça) vai sentada junto a Ah! Nem haverá quem lhe
uma janela ao lado de uma conte que, aconchegado
Lembra-se do moço que como o gato que não se-
senhora idosa a quem disse: entrou por último no auto-
desculpe, antes de se sentar guiu no doze, embebido em
carro - o mesmo que co- conservantes, vai descer os
O rapaz, com a pasta a rara na paragem e trazia a cinco andares, apartar-se
encalhar em uns e outros, tiracolo uma pasta de couro para longe, o coração, ainda
fica de pé junto ao banco Não tem mais nada em pulsante, de Margarida ou
onde está sentada Margari- memória seria Helena ou Graça
da (ou seria Helena ou Gra-
ça), que entretanto já fechou O corpo mexe-se - a cama (ou Josefina ou Engrácia,
os olhos - ela nunca o quer, balança com o que será Fielpina, Beatriz, Dolores ou
mas como de costume, vai uma pessoa sentando-se na Maria das Dores)
adormecer beirinha
São muitas paragens, cer- Uma voz roufenha brama
ca de três quartos de hora entre dentes
de viagem -Porra! Adormeci

Maria de Fátima Santos nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde viveu a adolescência,
como a sua mãe-terra. Licen-ciada em Física tem sido professora de Física e Quí-mica. Com poemas
em vários livros, em co-autoria, é às pequenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus
contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escri-
ta dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

www.revistasamizdat.com 65
Poesia

Laboratório Poético:

mistério
Volmar Camargo Junior

Funeral marítimo

grito

um gosto salgado
nauseante
chega-me aos cantos da boca
alguém a bordo morreu

por um vento inconcebível


vago à deriva
jogado pelas correntes
possivelmente louco,
temeroso, mas ciente do meu destino
renego os nomes que carrego
e na ciência da vontade que me habita
agarro-me ao silêncio
o pouco dele que ainda me resta

o meu silêncio não é só


à hora de dizer, nada
a boca salgada e a voz calam
o coração das coisas não ditas
pulsa ainda, vivo, feliz
porque o realizado

66 SAMIZDAT outubro de 2009


tem o infortúnio de existir
somente se está morto

ao meu silêncio fazem companhia


as ditosas frases esperançosas
e mesmo as esperanças
felizes, livres de vir ao mundo

http://www.flickr.com/photos/joiseyshowaa/2374526016/sizes/o/
pois não há quem as julgue
ou rejeite

mais delas estariam vivas


se ninguém as proferisse
ou quisesse pôr fim às dores alheias
mas alguém a bordo morreu

não lhes acendo velas


nem lhes guardo a cabeceira
do leito derradeiro
não as limpo
nem as visto com uma mortalha digna
- mereciam, mas não o faço -
pobres defuntas
desperdiçadas

consola-me apenas
lançá-las ao mar
deixar que essa imensidão decida
que rumo tomarão
submergirão, esquecidas
ou consumidas pelas coisas inomináveis
que fazem com que tudo aquilo que cai no mar
torne-se, vivo ou morto,
também o mar

consola-me o mar
meu silêncio não está só
sei, pois carrega as pobres mortas
e o vento, outra vez, leva-me adiante

www.revistasamizdat.com 67
Poesia

A sombra
Ju Blasina

Há tempos persegue-me uma sombra


Deformada, mal forjada, vestindo-se de minha
Há tempos percebo esta sombra, fingindo andar sozinha

Um vulto, uma sombra, etérea e cinza, fria e opaca, que


Com o dia se aplaca e junto à lua me espreita
Do que seria ela feita: luz ou escuridão?

Seria ela real ou ilusão? De ótica


De excesso de medo, de álcool, de solidão
Preciso olhar mais de perto — Melhor — Não

Abençoada seja a ignorância!


Quando tudo o que lhe acompanha
É uma dúvida, não é sábio afugentá-la

Há tempos corri ao longe, tentando


Confundi-la, julgando despistá-la. Errônea http://www.flickr.com/photos/gaspi/27305092/sizes/o/

Escolha que fez tão triste e vazia a minha rua

Desde então, sigo sempre e só, no caminho


Mais claro, dentre a noite mais escura
Rente à parede mais turva

Há tempos persigo esta sombra


E não raro tropeço em amarguras
Há tempos persigo uma sombra, sonhando ser tua

68 SAMIZDAT outubro de 2009


Revista Mariana Valle

Não acredita?
Vai, pode revistar.
Toca. Apalpa.
Não me importo com teu bafo no meu cangote.
Aperta.
Tá sentindo?
Palpitando?
Ofegante?
Vasculha meus bolsos.
Pode meter a mão.
Sente o volume...
E o côncavo.
Cheira.
Assim.
Mais pro meio.
Sente a textura.
Olha bem, olha.
Eu deixo. Fico quietinha.
Ainda não se convenceu? Vasculha mais!
Quer uma dica?
Sobe um pouco.
Isso. Aqui, ó, sente...
bem do lado esquerdo do peito.
foto de Alexandre Grand

www.revistasamizdat.com 69
Poesia

Algumas elucubrações
Caio Rudá

Janelas em círculos, em vão


vão de lado a outro
O outro está sentado
Todos os dias
indignado
da janela de minha casa
“como pode?”
janelas escuras
Pode chorar
apagadas
é válido
é o que faz alguém
Já é tarde
no canto da sala
é noite, é madrugada
Agora só resta
e hoje janelas claras
aquele que reza
acesas
e pede conforto
do outro lado da rua
ou uma luz, que sai
pelas janelas
Lá dentro
daquela casa.
algo aconteceu
Pessoas preocupadas
deixam suas janelas
iluminadas
Alguns andam

70 SAMIZDAT outubro de 2009


Insônia

Um desassossego à noite me veio qual peça de arte.


Não me concentrava senão no balançar

http://www.flickr.com/photos/kimonomania/3180273288/sizes/o/
da cortina ao vento, uma rubra pintura expressionista
em penumbra, cena fatídica de filme noir.
Desconfiei de contratempos em sol na bexiga,
minha mera gaita de foles desafinada.

Romance meu sem início nem fim,


somente acompanhado meio repentino,
a concepção sorrateira desse poema.

www.revistasamizdat.com 71
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão

Maria de Fátima Brisola Romani


Nasceu em SP em 1957 mas mudou-se para Salvador em 1984 onde reside
até hoje. É arquiteta e artista plástica, além de tradutora (inglês e italiano) e
revisora de textos. Escreve poesias esporadicamente desde adolescente e há cer-
ca de um ano começou a escrever contos. Pretende concorrer ao mestrado em
Artes Cênicas na Escola de Teatro da Ufba.
Participação especial para esta edição

Assessoria de imprensa

Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
72 SAMIZDAT outubro de 2009
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com
Colaboração
Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

Volmar Camargo Junior


Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Dênis Moura
Paulistano de pia, cearence de mar e poeta de
amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-
paço, mais com bits de imaginação que com telescó-
pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e
a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na
outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social,
com a democracia participativa eletrônica, onde o
povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias
sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-
ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É
feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize,
o clique, o blogue e o leia!

www.revistasamizdat.com 73
Carlos Davissara
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com

Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

Wellington Souza
Paulistano, mas morou também em Ribeirão Preto,
onde cursou economia na Universidade de São Pau-
lo. Hoje, reside novamente no bairro em que nasceu.
Participou das antologias do concurso Nacional de
Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetas de Ga-
veta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas e ensaios
literários em um blog (Hiper-link), na revista digital
SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária. “Escrever
é um modo de ser outro ser”.

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74 SAMIZDAT outubro de 2009
Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

Simone Santana
Ouro Preto – MG, 1981). Professora de Língua
Portuguesa e Literatura em escolas estaduais. Escreve
já há algum tempo, é inédita em livro e edita o blo-
gue A Parede Lá de Casa. Possui textos publicados na
revista Germina, participa do site Escritoras Suicidas,
e colaborou com o conto Rosário de Lágrimas na
edição de aniversário de sessenta anos do Suplemento
literário Correio das Artes. Escrever é uma necessida-
de.

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu
a ler. Escreve principalmente contos nos gêneros mis-
tério, suspense e terror, além de crônicas. Mantém
ainda o blog Palavra Escrita, sobre livros e literatura
(www.pioneiro.com/palavraescrita).

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Também nesta edição, textos de

Caio Rudá Jú Blasina

Carlos Alberto Barros Léo Borges

Dênis Moura Mariana Valle


http://www.flickr.com/photos/danielygo/3058212263/sizes/l/

Giselle Natsu Sato Simone Santana

Henry Alfred Bugalho Volmar Camargo Junior

Joaquim Bispo Wellington Souza

José Guilherme Vereza

76 SAMIZDAT outubro de 2009

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