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Monkey Business
Pinturas de macaco alcançam R$ 61 mil. Três quadros feitos pelo chimpanzé
Congo foram arrematados em leilão pelo norte- americano Howard Hong.
Mundo, 22.06.2005
Ao saber da compra feita por Hong (Hong! Só Hong! Nem era o King Kong!),
ele teve um ataque de fúria. Há anos pintava, há anos dedicava-se
integralmente à arte -e não conseguia vender quadro algum, ainda que seus
quadros fossem (como os de Congo, aliás) fortemente abstratos. É o fim da
arte, disse à mulher:
- Até um chimpanzé vende quadros. Os verdadeiros artistas não contam, não
têm vez. Para os macacos, dinheiro. Para os pintores como eu, uma banana.
Banana podre, ainda por cima.
Mas aquilo acabou dando-lhe uma idéia. Porque também tinha um macaco em
casa. Não um chimpanzé, para o qual não haveria espaço; seu macaco era um
mico chamado Cafuá, um macaquinho pequeno e muito esperto, que chamava
a atenção dos raros visitantes do ateliê. Na verdade, era muito mais
conhecido como o dono do Cafuá do que como artista. Por que não tirar
proveito disso? Por que não repetir o caso Congo?
Procurou um jornalista conhecido e contou uma história. Disse que, no dia
anterior, ao chegar em casa, encontrara o mico macaqueando o dono: pincel
e paleta nas mãos, pintava um quadro. Um quadro abstrato, naturalmente,
mas que nada ficava a dever às obras do Congo. O jornalista, sem assunto,
resolveu fazer uma matéria a respeito, com fotos de Cafuá e do quadro.
No dia seguinte choveram telefonemas no ateliê. Muitas pessoas, que sabiam
da história do chimpanzé Congo, e acreditando num bom investimento,
queriam comprar o quadro. Que foi vendido por uma boa quantia.
A partir daí ele não teve mãos a medir. Qualquer quadro que Cafuá
supostamente pintasse tinha comprador. Mais que isso, uma galeria
especializada organizou, em parceria com uma cadeia de pet shops, uma
grande exposição chamada "Arte Macaca", que até foi levada a Miami, onde
recebeu o título, mais conveniente, segundo o empresário americano que se
encarregou da operação, de "Monkey Business", negócio de macaco.
O artista poderia ter mantido esta situação durante muito tempo, não fosse
uma infeliz idéia que, numa tarde, lhe ocorreu. Resolveu dar pincel e tinta a
Cafuá para ver se o macaco sabia mesmo pintar. Sem vacilar, o mico correu
para uma tela e ali, em questão de horas, retratou seu dono ao estilo
renascentista, com uma perícia e uma sensibilidade que deixariam Leonardo
da Vinci boquiaberto.
O artista agora vive um grande dilema. Se mostrar o quadro, ninguém
acreditará que a obra é de Cafuá. E se não o mostrar privará o mundo de um
grande talento.
Poderia, claro, assumir ele próprio a autoria das obras; mas isso não seria
justo para com o talentoso mico. E, de qualquer jeito, ninguém lhe daria
importância -como importância alguma lhe haviam dado no passado. Só lhe
resta alimentar Cafuá com as melhores bananas que encontra no super. E
pedir-lhe desculpas diariamente.
Folha de São Paulo (São Paulo) 27/06/2005
A mão no metrô
Metrô: Pesquisa aponta que 66% dos passageiros acham muito ruim ou ruim a
prevenção contra as investidas nos vagões. As queixas femininas mais comuns
envolvem as "encoxadas" e a "mão-boba". Folha Cotidiano, 05.09.2005
Assim que o metrô chegou ela preparou-se para incomodação. Porque o vagão
estava cheio, completamente lotado, e ela já sabia o que a esperava tão logo
embarcasse: sem demora, algum homem, ou vários homens, encostariam
nela, tentando tirar proveito da situação. Mulher ainda jovem, bonita, estava
sujeita a essas situações, que a deixavam indignada. Mas, como outras
usuárias na mesma situação, resignava-se. Era, achava, o preço que tinha de
pagar por ser pobre, por não ter carro, como outras colegas de escritório.
Pensou em não entrar, em esperar outro metrô mais vazio. Mas já era tarde, e
ela precisava ir para casa. Num impulso, entrou, e imediatamente viu-se na
clássica posição de sardinha em lata, imprensada entre corpos, vários deles
masculinos. Só faltava a mão.
Que não tardou a se fazer presente. Aos poucos, suavemente, ela sentiu a
pressão de dedos sobre seu corpo.
Mas, surpreendentemente, aquilo não a enojou, não a alarmou. Porque era
diferente, o contato daquela mão. Não se tratava de uma "mão-boba"; não
havia malícia naqueles dedos, não havia safadeza. Para começar, eles
estavam em lugar neutro, não nas nádegas, não nas coxas, mas nas costas, as
costas que ela tinha doloridas depois de um dia de árduo trabalho. E a mão
não estava em busca de prazer, de sacanagem; estava simplesmente pousada,
quieta. Como se dissesse estou em busca de contato humano, é só isso que eu
quero.
Ela poderia olhar ao redor, tentar descobrir quem, daqueles homens e
mulheres à sua volta, estava a tocá-la. Mas não queria fazer isso. A verdade é
que a gentil mão não a incomodava. Pelo contrário, fazia com que lembrasse
uma passagem na infância, o dia em que o pai a levara à escola pela primeira
vez. Tinham também ido de metrô; ela estava assustada, chorosa. O pai então
colocara-lhe a mão nas costas, como a ampará-la, dizendo qualquer coisa do
tipo "não chore, a escola é boa, você vai gostar". E ela se acalmara, não tanto
por causa das palavras, mas pelo contato da mão paterna. E era a mesma
sensação que tinha agora: a sensação de amparo, de conforto.
Estava chegando, precisava descer. Como se houvesse percebido, a mão,
discretamente, retirou-se de seu dorso. A porta se abriu e ela saiu do vagão.
Ainda teve a tentação de olhar para trás, mas resistiu. Não queria associar
nenhum dos rostos que ali estavam com a mão que a tocara. Queria, isto sim,
guardar a lembrança dessa mão como uma entidade misteriosa que, de algum
modo, a fizera viver uma estranha e perturbadora aventura.
Folha de São Paulo (São Paulo) 12/09/2005
Continente e conteúdo
Uma frase pronunciada pelo presidente Lula durante um jantar na embaixada
do Brasil em Tóquio quase provocou outra tensão diplomática entre Brasil e
Argentina. O principal jornal do país vizinho, o "Clarín", reproduziu
informações da coluna do jornalista Fernando Rodrigues, na Folha, de que o
presidente brasileiro disse a interlocutores que "temos de ter saco para aturar
a Argentina". A frase, entretanto, foi traduzida pelo diário como "hay que
tener bolas para bancar a los argentinos", o que pode ser interpretado não no
sentido que tem a expressão em português, de ter paciência, mas sim algo
parecido com "temos de ser machos para agüentar os argentinos". Folha
Brasil, 31.05.2005
Como atesta qualquer tratado de embriologia, os testículos nascem em um
recôndito lugar do abdome, mais precisamente junto aos rins. Ali poderiam
ficar, desempenhando tranqüilamente sua função de gerar os
espermatozóides que darão continuidade à espécie. Mas, por alguma razão, os
testículos (e nisso, como no resto, embora sendo dois estão sempre de
acordo) não se resignam com tal posição anatômica, por eles considerada
incompatível com a dignidade de órgãos que, afinal, representam a
masculinidade. Junto aos rins, junto às tripas? Jamais. De modo que trataram
de migrar. Num movimento tipo invasões bárbaras, começaram a descer
abdome abaixo. Queriam mais luz. Queriam visibilidade, queriam exposição.
Queriam criar uma imagem própria, porque, como se sabe, imagem é tudo.
Para desagradável surpresa de ambos, contudo, não ficaram à mostra como
acontece com os seios. Foram dar, literalmente, num "cul-de-sac", num fundo
de saco, e, pior ainda, num engelhado saco de pele conhecido como escroto,
palavra de óbvia conotação pejorativa.
A fúria de ambos foi enorme, e eles a despejaram no alvo mais próximo e
mais inerme, exatamente o tal saco escrotal. Você é um saco, diziam sem
cessar, você não passa de um medíocre desmancha-prazeres. O pobre escroto
nada respondia. Estava acostumado a um papel subsidiário na anatomia;
apenas obtinha algum consolo quando o seu dono -mas só quando não tinha o
que fazer -coçava-o distraidamente (e nisso, ao contrário do que diziam os
testículos, parecia obter certa satisfação).
De dentro do seu modesto invólucro, os testículos continuam se gabando:
somos muito machos, repetem a todo instante, não temos paciência com os
perdedores. E prometem que um dia virão à luz, proclamando ao mundo seu
poder hegemônico sobre o continente.
Haja saco para aturar esses caras, pensa o escroto. Pensa, apenas. Saco,
como se sabe, não fala.
Folha de São Paulo (São Paulo) 06/06/2005
Prato raro
Uma trufa branca foi vendida por 95 mil euros (R$ 240 mil) em um leilão na
Itália. A trufa branca é um tipo de cogumelo raro que cresce abaixo da
superfície e é muito valorizada por gourmets do mundo inteiro. Foi adquirida
pelo telefone por um comprador em Hong Kong. Folha Online, 14 de novembro
de 2005
Depois de insistentes pedidos, o comprador da trufa finalmente concordou em
saborear a iguaria em público. O salão de um refinado restaurante foi locado
especialmente para isso; no dia, diante de convidados especiais e de
jornalistas, o homem tomou assento, sozinho, à mesa onde faria a tão
esperada refeição.
Antes que esta fosse servida, colocou-se à disposição da mídia para perguntas.
Estas vieram em rápida sucessão, e a todas o anfitrião respondia gentilmente;
finalmente, um repórter mais contestador perguntou-lhe como se sentia
depois de ter gasto na trufa uma quantia que poderia sustentar várias famílias
por um longo período, na África ou na América do Sul.
Outro talvez se irritasse com a questão, mas o homem, um conhecido
milionário, apenas sorriu. Disse que um prato famoso equivale a uma obra de
arte. Se outros podem pagar fortunas por quadros ou esculturas, argumentou,
eu também posso gastar o dinheiro, que afinal é meu, numa lendária trufa
branca. O repórter quis prosseguir no debate, mas o mestre-de-cerimônias
anunciou que a bandeja estava sendo trazida e que a histórica refeição teria
início. Outras perguntas ficariam para o final.
Um garçom de luvas brancas trouxe uma travessa de prata. Ali estava a
famosa trufa, uma espécie de massa branca, informe. Antes de começar a
refeição, o milionário fez um pequeno discurso. Contou que era filho de gente
muito pobre e que, com muito trabalho e persistência, tinha conseguido subir
na vida. A trufa que estava diante dele era o símbolo de seu triunfo. Nunca
tinha comido aquilo, mas sempre ouvira dizer que as trufas estavam para a
culinária como os diamantes para as pedras preciosas. Aquele prato era,
portanto, o ápice de seu triunfo, que agora seria presenciado por todos.
Educadamente, perguntou se alguém estava servido. Todos agradeceram e
ele, diante das lentes dos fotógrafos e dos cinegrafistas, empunhou o garfo e
a faca, ambos de prata. Cortou um pequeno pedaço da trufa, levou-o à boca e
por uns segundos mastigou-o concentradamente, todos ao redor observando-o
com ansiedade.
E aí o inesperado: o homem fez uma careta e cuspiu no prato os restos de
trufa.
- Que coisa ruim! -gemeu. - Nunca provei comida pior em toda minha vida!
Voltou-se para o garçom:
- Faz favor, traz um cachorro-quente e um refrigerante diet.
E antes que o homem se afastasse para atender ao pedido, completou:
- O cachorro com bastante mostarda.
Fim de jornada
1. No elevador
Já tem mais de 16 mil membros uma comunidade do Orkut chamada "Eu tenho
medo do mesmo". A plaquinha que ilustra a página explica do que se trata:
"Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste
andar." Folha Ilustrada (Monica Bergamo), 17.mai.2005
Não sei como vocês imaginam a morte, mas uma possibilidade é esta:
Um homem vai tomar o elevador. É um homem de meia idade, obeso,
fumante, sedentário, hipertenso, e portanto sujeito a riscos; de fato está
saindo de um consultório médico, onde foi por causa de dores no peito e onde
recebeu sérias advertências. Mas o homem não tem medo do coração; ele tem
medo é do elevador, pois foi assim que seu pai morreu, caindo no poço de um
elevador que não se encontrava parado no andar. Isto, claro, não acontece
com o elevador que ele toma; o mesmo certamente encontra-se parado
naquele andar.
Tão logo entra, porém, uma sensação de estranheza apossa-se dele. Não
reconhece a cabine onde está; não é a mesma na qual subiu. Mais: como se
tivesse vontade própria, o elevador começa a subir. Ele quer detê-lo, procura
o painel dos botões, mas não há botões, não há painel. Nem porta existe
mais. É uma espécie de caixa, agora nota, forrada de veludo vermelho. Como
se fosse um caixão? É. Como se fosse um caixão.
A dor volta, intensa, avassaladora. O elevador sobe, sobe. Ele deveria estar
muito angustiado, mas não está; sente-se resignado.
O que tinha de fazer, fez: certificou-se de que o mesmo estava parado no
andar. Agora é ver o que acontece. Há certo consolo nisto: pelo menos vai
encontrar o Grande Ascensorista. O único que decide quando o mesmo já não
é mais o mesmo.
2. Na marcha
Sem-terra: fim da marcha separa casais de namorados. Folha Brasil,
19.mai.2005
Eles se conheceram durante a marcha. Ele, de Minas Gerais, ela de
Pernambuco, foi um caso de amor à primeira vista. Daí em diante não se
separaram mais: durante o dia, marchavam juntos, de mãos dadas. As noites,
na precária barraca, eram de intensa paixão. Os outros sem-terra os miravam
com admiração, com afeto, e até com alguma inveja: quem diria que amor
assim ainda existe, comentavam.
Mas tudo chega ao seu fim, inclusive as marchas. Cada vez estavam mais
próximos de Brasília, onde faria a demonstração final mas de onde cada um
teria de voltar para sua terra.
Para ela esta separação era apenas transitória. Filha de um lendário líder
camponês, herdara do pai uma confiança inabalável num mundo melhor, um
mundo baseado no ideal e também nos sentimentos mais puros, como aquele
que os unia. De modo que era otimista: haveriam de se encontrar na próxima
marcha, e na seguinte, e na seguinte. Um dia o sonho da reforma agrária se
realizaria; receberiam um pedaço de terra, onde construiriam uma casinha e
onde, casados, seriam felizes para sempre.
Já ele não tinha tanta certeza disso. Achava que casamento não era nenhuma
garantia; os seus próprios pais tinham se separado depois de muita briga. De
modo que uma dúvida agora o assaltava: valia a pena trocar a paixão surgida
durante a marcha pela rotina de um casamento insípido?
Decidiu que isso era mau negócio. Portanto, na próxima marcha não estaria
presente. Veria os sem-terra na tevê do bar que freqüentava. Talvez avistasse
sua amada. Talvez derramasse até uma furtiva lágrima
Em defesa da barba
Alemanha realiza encontro internacional de barbudos. Barbudos com visual
exótico se reuniram em Berlim, na Alemanha, para participar do Campeonato
Mundial de Barbas e Bigodes. Os pêlos faciais são bastante apreciados por
alemães, tanto que o país tem a Federação Nacional dos Clubes de Barba, que
reúne diversos grupos deste tipo. Em 1996, por exemplo, foi criado o Clube da
Barba de Berlim, que tem como lema a frase "deixe a barba crescer". Este
grupo tem 22 membros que se encontram uma vez por mês para discutir as
melhores formas de cuidar de suas barbas e de organizar eventos. Folha
Online, 1º de outubro de 2005.
Eles eram considerados por todos o casal ideal. Nunca brigavam, viviam na
maior harmonia, estavam sempre rindo um para o outro e trocando carícias.
Mas aí tudo mudou.De repente, ele resolveu deixar crescer a barba. Por que
tomou essa decisão não estava bem claro. Parece que tinha encontrado o
retrato de um bisavô, muito parecido com ele, e que usava uma bela barba
negra. O exemplo o encorajou, e lá pelas tantas ele estava virando barbudo
também. Não se tratava de um discreto cavanhaque, ou de uma bem
cultivada barba. Não, era uma barba de patriarca, de eremita, uma barba
longuíssima, que lhe chegava ao peito.
Muita gente estranhou. Os amigos, naturalmente, e também o diretor da loja
de departamentos onde era chefe de seção: aquilo espantava os fregueses.
Mas ninguém reclamou mais do que a esposa. Para começar, ela não gostava
de homens barbudos; depois, queixava-se, era uma coisa desagradável, que
lhe irritava a pele do rosto. Chegou a ameaçá-lo com uma greve de sexo se o
marido não fosse ao barbeiro raspar a face.
Escusado dizer que nem as críticas nem as ameaças o convenceram. Estava
simplesmente encantado com a barba, cuidava dela, penteava-a
cuidadosamente; porque, segundo dizia, agora sim, tinha descoberto a sua
verdadeira personalidade. E foi então que leu no jornal sobre o Campeonato
Mundial de Barbas e Bigodes, a se realizar na Alemanha. De imediato, decidiu
participar. Não tinha dúvidas de que sua barba seria a vencedora e que ele
traria para o Brasil um grande título. Já sabia até que tipo de penteado faria,
dando aos pêlos o formato de lanças guerreiras. Coisa para entusiasmar o júri.
Quando a esposa soube desse plano, ficou por conta. Já não bastava o vexame
que ele dava na cidade, precisava ir para o exterior? Discutiram longamente,
mas ele não quis nem saber: iria e pronto; já estava até com a passagem
comprada.
Vendo que não conseguiria convencê-lo, ela partiu para a ação. Na noite antes
da partida colocou um comprimido para dormir na comida dele, e enquanto o
marido estava ferrado no sono, cortou-lhe a barba.
Mas ele foi assim mesmo. Com uma barba postiça, que era uma cópia exata de
sua barba verdadeira. Não ganhou prêmio algum, mas voltou contente: pelo
menos tinha reafirmado, perante o mundo e a mulher, o direito à barba.
Desistindo de Natal
Segundo pesquisa do instituto Ipsos, encomendada pela Associação Comercial
de São Paulo, 32% dos consumidores não pretendem fazer compras neste
Natal. Folha Dinheiro, 9 de dezembro de 2005
"Prezado Papai Noel: há uma semana eu lhe mandei uma carta com a lista dos
meus pedidos para o Natal. Agora estou mandando esta outra carta para dizer
que mudei de idéia. Não vou querer nada. Ontem o papai nos avisou que não
tem dinheiro para as compras do fim de ano. Papai está desempregado há
mais de um ano. A gente mora numa cidade pequena do interior, muito
pobre. No Natal passado, o prefeito anunciou que tinha um presente para a
população: uma grande fábrica viria se instalar aqui, dando emprego para
muitas pessoas. Meu pai ficou animado. Ele é um homem trabalhador, sabe
fazer muitas coisas e achou que com isso o nosso problema estaria resolvido.
Agora, porém, o prefeito teve de dizer que a fábrica não vem mais. Não
entendo dessas coisas, mas parece que a situação está difícil.
Portanto, Papai Noel, peço-lhe desculpas se o senhor já encomendou as
coisas, mas infelizmente vou ter de desistir. Para começar, não quero aquela
bonita árvore de Natal de que lhe falei -até mandei um desenho, lembra?
Nada de pinheirinho, nada de luzinhas, nada de bolinhas coloridas. A verdade,
Papai Noel, é que essas coisas só gastam espaço e, como disse a mamãe,
gastam muita luz.
E nada de ceia de Natal, Papai Noel. Nada de peru. Como eu lhe disse, nunca
comi peru na minha vida, mas acho que não vai me fazer falta. Se tivesse
peru, eu comeria tanto que decerto passaria mal. Portanto, nada de peru.
Aliás, se a gente tiver comida na mesa, já será uma grande coisa.
Nada de presentes, Papai Noel. Não quero mais aquela bicicleta com a qual
sonho há tanto tempo. Bicicletas custam caro. E além disso é uma coisa
perigosa. O cara pode cair, pode ser atropelado por um carro... Nada de
bicicleta.
Nada de DVD, Papai Noel. Afinal, a gente já tem uma TV (verdade que de
momento ela está estragada e não temos dinheiro para mandar consertar),
mas DVD não é coisa tão urgente assim.
Também quero desistir da roupa nova que lhe pedi e dos sapatos. A minha
roupa velha ainda está muito boa, e a mamãe vai fazer os remendos nos
rasgões. E sapato sempre pode dar problema: às vezes ficam apertados, às
vezes caem do pé... Prefiro continuar com meus tênis e o meu chinelo de
dedo.
Ou seja: nada de Natal, Papai Noel. Para mim, nada de Natal. Agora, se o
senhor for mesmo bonzinho e quiser nos dar algum presente, arranje um
emprego para o meu pai. Ele ficará muito grato e nós também. Desejo ao
senhor um Feliz Natal e um próspero Ano Novo."
Folha de São Paulo (São Paulo) 19/12/2005
Os dilemas da Fortuna
Uma americana de 55 anos ganhou duas vezes na loteria no espaço de cinco
meses no Estado da Pensilvânia -uma coincidência cuja chance de acontecer é
de 1 em 419 milhões. Donna Goeppert ganhou US$ 1 milhão (R$ 2,43 milhões)
em cada vez que foi premiada pela loteria da Pensilvânia. Folha Online,
16.06.2005
Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas a chance de
acertar duas vezes na loteria não deve ser muito maior. Quando isso
aconteceu, ela ficou simplesmente estarrecida, mesmo porque não era uma
pessoa particularmente afortunada: ao contrário, ela e o marido levavam uma
vida modesta, no interior, lutando com dificuldades. Agora, porém, tudo
mudava: 1 milhão de dólares, e mais 1 milhão de dólares -duas vezes
milionária ela podia pensar em se aposentar, em deixar de trabalhar, em
passar o resto de seus dias gozando a vida.Não era o que pensava o marido.
Logo depois da notícia do prêmio ele ficara muito contente. Em seguida,
porém, começou a se mostrar inquieto. Homem dado a certas especulações
esotéricas, acreditava que aquilo não era acaso, mas sim um desígnio do
Destino. Há um recado aí, repetia constantemente à mulher. Um claro
recado, para ele: a mulher deveria apostar de novo. Quem tinha ganhado duas
vezes seguramente ganharia uma terceira vez. Mais: ele passou a acreditar
que a mulher, para quem aliás nunca dera muito bola, era uma criatura
especial. Aquele tom meio esverdeado de sua pele, aqueles olhos
esbugalhados, os cabelos que - por causa do curioso penteado - pareciam duas
antenas, aquilo não apontaria para uma certa origem misteriosa? Não seria ela
uma alienígena, uma Supermulher, deixada ainda bebê na maternidade do
lugarejo, em lugar de outra menina qualquer? Ela deveria jogar na loteria,
sim. Jogaria e ganharia. Mesmo porque, como ele deixava claro, não se
tratava só de dinheiro. Ganhando três vezes na loteria ela deixaria de ser
apenas uma pessoa de sorte, passaria a ser uma mulher abençoada,
prodigiosa. E aí mil possibilidades surgiriam: ela poderia, por exemplo, dar
início a uma nova seita (para a qual ele já tinha até um nome: a Falange dos
Afortunados). Poderia fornecer franchising para videntes e adivinhos. Poderia
começar uma carreira política, chegando, sem dúvida, à Presidência da
República: quem deixaria de votar numa mulher capaz de prever o resultado
de qualquer guerra?
Os argumentos do marido deixavam-na apreensiva. Por ela, nunca mais
chegaria sequer perto de uma lotérica. Mas sabe que ele ainda dá as cartas.
Não escapará, portanto: um dia terá de apostar de novo. Se isso for realmente
inevitável, sabe o que fazer: usará seus 2 milhões de dólares para comprar
bilhetes de loteria. Um deles forçosamente terá de ser premiado. O Destino
não pode ser tão ruim assim.
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/06/2005
O juiz no divã
A maioria dos juízes precisa de tratamento psicológico. A Federação Paulista
de Futebol encomendou ao Incor estudo inédito e de resultado revelador: 58%
dos árbitros de São Paulo apresentam algum problema, sobretudo por
estresse. Folha Esporte, 5 de março de 2006.Tudo começou quando ele notou
que, ao entrar em campo, ele ficava trêmulo, suava abundantemente, tinha a
impressão de que ia desmaiar. Isto é dos nervos, disse a mulher, que entendia
dessas coisas. E era verdade. Juiz de futebol há mais de 20 anos, ele
enfrentara numerosos conflitos e até agressões. Sempre se saíra bem.
Agora, porém, a situação mudara e comprometia até o seu trabalho. Tinha,
portanto, de tomar alguma providência. Recomendaram-lhe psicanálise.
Lembrou-se de um vizinho que, depois de exercer o magistério, tornara-se
analista, meio que por conta própria. Foi procurá-lo e começou o tratamento.
Melhorou, mas mesmo assim, cada vez que entrava em campo era aquele
pavor. Acabou por decidir: só apitaria uma partida acompanhado por seu
terapeuta. Que, embora relutante, concordou em aceitar a proposta.
Convencer a federação foi igualmente difícil, mas, considerando que se
tratava de um juiz veterano e dedicado, resolveram abrir uma exceção. Mais
confortado, ele se sentiu preparado para enfrentar o desafio. Que ocorreria
no domingo seguinte e não seria pequeno: tratava-se de uma partida entre
dois times importantes, clássicos rivais.
Tudo correu bem, até que, aos 40 minutos do segundo tempo, ele apitou um
pênalti. Duvidoso, na verdade, até para ele: achava que tinha visto o zagueiro
fazer falta no centroavante adversário, mas o time inteiro protestava em altos
brados contra o que consideravam uma injustiça. Sentindo o estresse crescer
de maneira perigosa, interrompeu o jogo e mandou chamar o analista. Um
divã foi colocado na pequena área e de imediato teve início a sessão: ele
queixando-se do zagueiro, um homem brutal. Sim, disse o analista, mas há um
detalhe que você não está levando em consideração. Qual, perguntou o juiz
intrigado.
Ele tem o mesmo nome de seu pai.
Era verdade, como o juiz constatou, surpreso. O analista prosseguiu: eu acho
que no fundo você está agredindo o homem com quem você sempre teve um
conflito.
O juiz quis saber a causa de tal conflito. O analista respondeu que isso
demandaria uma longa investigação, de anos, talvez.
Anos? Dificilmente a partida poderia ser suspensa por tanto tempo. O juiz
manteve o pênalti. Ouviu as ofensas habituais, mas resignou-se. Um dia ele
entenderia e aceitaria, aquelas coisas. E aí poderia trilar o apito final, dando
por encerrado o tratamento.
Folha de São Paulo (São Paulo) 13/03/2006
TORPEDOS.
Guerrilha capilar
A Polícia Federal (PF) apreendeu 250 kg de cabelos que entraram no Brasil
ilegalmente em um hotel em Curitiba, na manhã deste domingo. O material
havia sido trazido da Índia. Três pessoas foram presas. O contrabando foi
descoberto por acaso: agentes da Polícia Federal estavam hospedados no
mesmo hotel e suspeitaram quando a carga era descarregada de uma
caminhonete. De acordo com a PF, todas as mechas de cabelo eram pretas e
tinham entre 40 e 70 centímetros de comprimento. A carga seria revendida
para salões de beleza.
Folha Online, 13 de março de 2006.
A Polícia Federal recolheu os 250 kg de cabelo a um depósito com o que o
caso poderia ser encerrado. A não ser, como disse o vigia do lugar, que
piolhos tentassem roubar a exótica mercadoria. O comentário se revelou
profético: naquela mesma noite o lugar foi assaltado, e não por piolhos, mas
por um bando de homens armados. Imobilizaram o vigia, transportaram os
cabelos para uma van e se foram, não sem deixar um bilhete: "Esta é mais
uma ação da Frente de Libertação dos Calvos. Lutamos contra a má
distribuição de cabelos no mundo. Lutamos contra a propaganda enganosa dos
xampus. Lutamos contra a excessiva valorização das bastas cabeleiras. Basta!
De agora em diante o mundo sentirá a força de nossa justa ira".
A intenção da misteriosa Frente de Libertação dos Calvos (FLC) era usar os
cabelos confiscados para confeccionar perucas, que seriam distribuídas,
gratuitamente, a milhares de carecas. Mas, tão logo se reuniram, sob a
presidência de um líder mascarado que se identificava apenas como Sansão,
os problemas começaram a emergir. Constatou-se que, em primeiro lugar, os
cabelos não eram nacionais - procediam da Índia. Além disto, eram todos
escuros.
Isto provocou revolta na área mais radical do movimento. Os extremistas
protestavam contra o fato de os cabelos serem procedentes da Índia e serem
todos de cor preta, o que significaria a marginalização dos loiros, dos ruivos e
dos grisalhos - um duro golpe na diversidade cultural que é a base mesmo da
emancipação dos oprimidos. De sua parte, o setor mais moderado ponderava
que, afinal, a Índia era, como o Brasil, um país emergente e que, portanto, os
cabelos não traduziriam nenhum tipo de dominação imperialista. E o uso de
perucas pretas por todos os membros da Frente poderia ser um símbolo de
coerência ideológica e de disciplina revolucionária.
A discussão evoluiu rapidamente para a briga, e lá pelas tantas os adversários
estavam atirando mechas de cabelos uns nos outros. Quando terminou a
pancadaria, não dava para aproveitar mais nada da preciosa carga de cabelos.
O cartaz com a divisa criada por Sansão, "Calvos unidos jamais serão
vencidos", jazia rasgado no chão. Antes que as forças da lei e da ordem
aparecessem, foram todos embora. Desiludidos, mas com uma esperança: a
de que, no futuro, a Polícia Federal apreenda uma carga de tônicos capilares,
desses que fazem crescer cabelo quase que por milagre.
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/03/2006
As provas da conspiração
Rato Jerry é pró-judeu, conclui especialista do Ministério da Educação do Irã.
Para Hassan Bolkhari, especialista em comunicação de massa, o desenho
animado Tom e Jerry é uma conspiração para favorecer a imagem dos ratos -
apelido pejorativo associado aos judeus. Folha Mundo, 25 de fevereiro de
2006.
Confrontado com a esmagadora evidência de sua culpa, Jerry, o rato, não
teve outro remédio senão admitir a verdade: sim, disse ele, eu não passo de
um agente secreto a serviço de uma conspiração criada para melhorar a
imagem judaica no mundo. Soluçando, disse que relutara muito antes de
aceitar a proposta, mas que esta se tornara irrecusável quando lhe foi feita
uma inesperada oferta: pelo resto de sua vida teria queijo na quantidade que
quisesse.Ah, sim, e poderia escolher a variedade: brie, camembert, cream
cheese, feta, gorgonzola, gruyère, mussarela, pecorino, provolone, roquefort,
qualquer uma destas variedades estaria à sua disposição (acompanhada ou não
de bolachinhas e torradas), bastando apenas que ele telefonasse e dissesse
sua senha. Encontraria o queijo em certa secreta despensa, que aliás serviria
de base de operações para outros ratos famosos envolvidos na conspiração. E
que eram muitos: por exemplo, o camundongo Mickey e sua namorada,
Minnie: como Jerry, figuras simpáticas, amáveis. Mas devidamente cooptadas.
Mas as revelações não ficaram por aí. Descobriu-se que Tom, o próprio Tom, o
gato valoroso que perseguira Jerry em tantos desenhos animados, também
estava sob o controle dos mentores da conspiração, coisa que demandara
várias providências. Capturado, Tom fora submetido a uma lavagem cerebral,
da qual saíra com característicos de autômato. Nos desenhos animados, ele
poderia continuar correndo atrás de Jerry, mas sem jamais alcançá-lo. Com
isso, estaria confirmando a superioridade dos ratos (e do grupo que eles
metaforicamente representam). Tom seria vigiado de perto pelo enorme cão
que existia na casa e que também era parte da conspiração.
Enfim, a revelação chocou muita gente. Mas ela deve servir de alerta. Será
que outras figuras dos desenhos animados não estão envolvidas na
conspiração? Será que o Pato Donald não está nessa? Ou a Branca de Neve? Ou
o Bob Esponja? O inimigo é insidioso e está por toda a parte. É melhor,
portanto, não ir ao cinema, não assistir à TV, não ler livros, revistas ou
jornais. Ah, sim, e não esqueçam de olhar debaixo da cama: será que o Jerry
não está ali, escondido, à espera do momento propício para atacar?
Folha de São Paulo (São Paulo) 06/03/2006
Anjos fumantes
Mulher tenta abrir porta de avião durante vôo para fumar. Uma francesa
admitiu em um tribunal da Austrália ter tentado abrir a porta de um avião em
pleno vôo para fumar um cigarro do lado de fora. A mulher de 34 anos, que
tem medo de voar de avião, havia bebido álcool e tomado remédio para
dormir antes do vôo entre Hong Kong e Brisbane, na Austrália. Foi vista
andando em direção à porta do avião da Cathay Pacific com um cigarro e um
isqueiro na mão. Começou a tentar abrir a saída de emergência quando foi
impedida por uma aeromoça. Folha Online, 21 de novembro de 2005
Ao juiz ela contou que era fumante há muito tempo, desde criança. E
fumante contumaz, dessas que não podem ficar sem cigarro mais de uma hora
ou duas, sob pena de se sentirem mal. Principalmente num vôo -se havia coisa
da qual tinha medo, era viajar de avião. Mas fumar em aeronaves não é
permitido. Como resolver o problema?
Optou por dormir, com a esperança de que, ao acordar, já tivesse chegado ao
destino -e aí a primeira coisa que faria era acender o seu cigarro. De fato,
chegou a conciliar o sono, mas duas horas depois acordou, trêmula, com uma
vontade irresistível de fumar. Olhou ao redor: todo mundo dormindo. E se
acendesse disfarçadamente um cigarro? Movida por um impulso incontrolável,
sacou o maço do bolso. Nesse momento, e sem querer, espiou pela janela. E
aí viu aquela cena incrível.
A noite estava belíssima. Céu claro, com poucas e redondas nuvens. Numa
delas, iluminada pela lua esplêndida, estavam sentados quatro anjos. Ela
arregalou os olhos. Anjos? Sim, eram anjos. Não anjinhos rechonchudos,
querubins; não, anjos adultos, dois deles com barba. Vestiam alvas túnicas,
calçavam sandálias. E os quatro estavam fumando.
Ah, que inveja ela sentiu. Os quatro fumando, sem nenhum problema. Mais:
os quatro abanando-lhe amistosamente. Num impulso, ela mostrou-lhes o
maço de cigarros e o isqueiro, como que a dizer: eu aqui também posso
fumar. Mas então um dos anjos ergueu um cartaz que dizia: "De acordo com a
disposição das autoridades, o fumo é proibido em aeronaves". Com o que ela
se deu conta: eles só podiam fumar porque estavam ao ar livre, porque não
estavam transformando pessoa alguma em fumante passivo. Que inveja dos
quatro anjos. Que inveja. Foi tamanha a inveja que ela, num impulso,
levantou-se e dirigiu-se à saída de emergência situada ali perto. Era uma coisa
complicada de abrir, aquela porta, mas ela já estava quase conseguindo
quando foi impedida pela aeromoça. Que, nervosa, lhe perguntou o que
estava fazendo.
Vou dar uma saidinha para fumar com os anjos, ela ia dizer, mas, nesse
momento, espiando pela janela, viu que não havia anjo algum sobre a nuvem.
Deu-se conta de que ninguém acreditaria em sua história. Anjos aparecendo
para uma passageira? Na classe econômica? Ninguém acreditaria.
Folha de São Paulo (São Paulo) 05/12/2005
Personal
Terceirizar a vida privada. A lógica do mercado atinge a vida íntima: há um
"personal" para praticamente qualquer atividade cotidiana. Folha Equilíbrio,
18.08. 2005
Ela já ouvira falar de "personal trainer", o professor de ginástica que atende
individualmente. Também já ouvira falar de "personal dancer", "personal
dieter", "personal shopper" (este, alguém que se encarrega de fazer compras).
Mas ficou absolutamente fascinada quando uma amiga lhe falou do "personal
husband", o marido personalizado. Era uma coisa da qual, a propósito, estava
precisando: o marido, alto executivo de uma grande corporação, viajava
muito; e, mesmo quando estava em casa, as relações entre ambos -depois de
tantos anos de matrimônio- eram no máximo formais. Ela se entediava,
passava longos períodos de tempo sozinha: os filhos, já adultos, moravam em
outra cidade.
Cautelosamente, falou do assunto ao esposo; disse que gostaria de ter
companhia, mas a companhia de uma pessoa que fizesse isso em caráter
estritamente profissional. O homem, naquele momento absorto na leitura do
jornal, não deu muita importância à solicitação. Vá em frente, disse. Ela foi
em frente. Entrou em contato com a empresa que fornecia os profissionais e
assim recebeu seu marido personalizado.
Era um homem de meia-idade, alto, elegante, bonito. E muito culto; no
passado, tinha sido professor universitário, trabalho que deixara por causa dos
baixos salários. Agora dedicava-se por completo a exercer a condição marital.
A primeira coisa que fez, logo depois de se apresentar, foi entregar o contrato
de prestação de serviços, minuciosamente descritos. Serviços que, entre
parênteses, ele fazia questão de prestar com a maior competência e boa
vontade, como ela constatou nas semanas que se seguiram. O "personal
husband" vinha todos os dias; saíam para passear, para almoçar, iam ao
teatro. Conversavam muito. Era um grande papo, ele, um homem versado
numa imensa variedade de assuntos.
E ah, sim, sexo. Isso não estava previsto no contrato; como dissera a amiga,
"personal husband" não era a mesma coisa que amante, mesmo porque
amantes fazem exigências emocionais, amantes têm ciúmes -coisas
absolutamente incompatíveis com uma relação essencialmente profissional.
Se ela quisesse, claro, ele poderia prover isso também, mediante um
acréscimo no pagamento. Mas ela não queria; pretendia apenas a companhia
que o marido verdadeiro não lhe dava, e isso o homem provia muito bem.
A verdade, porém, é que ela se sentia curiosa: quem seria, afinal, aquele
estranho personagem? Teria família, mulher, filhos? Ele nunca falava sobre si
próprio (não estava no contrato), de modo que, para descobrir alguma coisa a
respeito, ela resolveu segui-lo. Uma noite, quando ele saiu da casa em seu
modesto carro, ela tomou um táxi e foi atrás. Andaram muito tempo,
chegaram até um bairro distante. Diante de uma casa pequena, modesta, ele
estacionou e entrou.
Do táxi, ela podia vê-lo, no living, ao lado da esposa, os dois diante da tevê.
Não falavam. A mulher, um tipo comum, parecia resignada com sua condição -
como ela própria estivera durante muito tempo.
Lá pelas tantas ele se levantou, saiu da sala; estava na hora de dormir,
decerto, o dia seguinte seria de trabalho. A esposa ficou sentada, diante da
tevê agora desligada, o olhar perdido.
Sem dúvida estava pensando num "personal husband".
Folha de São Paulo (São Paulo) 22/08/2005
Desempenho
"Reality show" testa performances sexuais. Dezenove pessoas têm suas
performances sexuais testadas em busca de um prêmio de cerca de R$ 610
mil. Dos participantes, três homens são casados. Folha Online, 05.06.2005
Quando ela chegou em casa, às 10h da noite, o marido não estava. O que nela
não despertou nenhuma suspeita; sabia que estava trabalhando. O emprego,
modesto, exigia longas horas, uma obrigação que ele cumpria sem reclamar e
que ela também tinha de aceitar. Mas nessa noite a ausência do cônjuge era
até providencial. Ela queria assistir a um novo programa de TV e queria fazê-
lo sozinha. Porque o novo programa, um "reality show", tinha como mote o
desempenho sexual. Os anúncios garantiam que os pares fariam proezas
incríveis na cama, animados pela perspectiva de um polpudo prêmio.
Era justamente isso que faltava ao casamento deles. Em matéria de sexo, o
esposo era absolutamente rotineiro: papai-mamãe, e estamos conversados.
Inovações, aventuras? Nem pensar. Para isso ela só podia contar com a
imaginação e, agora, com o "reality show".
Que não a decepcionou. De fato, em matéria de desempenho, os casais
enfiariam o Kama Sutra no bolso do colete, se estivessem de colete, claro. As
mais incríveis posições, as mais audazes manobras. Ela chegava a gemer de
desejo.
Havia um homem que era especialmente bom e que a direção do programa
identificava apenas como o Senhor X -ele fizera questão do anonimato.
Apresentava-se de máscara e com uma espécie de capa, mas isso em nada
atrapalhava o seu desempenho, ao contrário: o cara era soberbo. E
compreensivelmente não se identificava: seria perseguido por mulheres até na
rua.
De repente ela deu um salto na cadeira. A câmera mostrava agora o Senhor X
de costas, e em seu dorso ela via algo que conhecia muito bem: uma cicatriz
de curioso formato. A cicatriz que resultara da drenagem de um abscesso na
infância. Ela reconhecia a cicatriz, reconhecia as costas, reconhecia o
homem: era seu marido.
Esperou-o chegar e nem se deu ao trabalho de fazer perguntas: começou logo
a puteá-lo de cima a baixo. O argumento final reservara para o fim:
- Se pelo menos você guardasse um décimo dessas habilidades para mim! Mas
não, nem isso mereço!
Ele ouvia em silêncio, impassível. Finalmente ela se calou, ofegante, e ele
então começou a falar. Disse que sim, que aceitara participar do "reality
show", como aliás participava em muitas coisas desse gênero: dali tiraria o
dinheiro para ajudar nas despesas da casa. Uma pausa e aí veio a revelação
surpreendente:
- Mas a grande aventura eu vivo em casa. Com você.
Ela não podia acreditar no que estava ouvindo: grande aventura, com ela? De
que jeito? E ele então explicou: para ele, posições arrojadas, manobras
inusitadas, tudo isso era rotina, coisa que lhe cansava e lhe dava dor na
coluna. O que realmente lhe era gratificante, que o comovia até as lágrimas,
era o papai-mamãe com a mulher. Uma grande, emocionante aventura.
Ela não sabe se este argumento é sincero ou não, verdadeiro ou não. Mas tem
de reconhecer: foi, no mínimo, uma hábil manobra, um audaz
posicionamento. Desempenho para esposa alguma botar defeito.
Casa de boneca
"Casa de boneca" abriga morador de rua. Os abrigos, de cerca de um metro e
meio de altura, foram construídos por entidade assistencial de São Paulo.
FOLHA Cotidiano, 02.08.2005
O luxuoso automóvel passou pelo local em regular velocidade, mas isso não
impediu que a menina, sentada no banco traseiro, avistasse as duas pequenas
casas azuis, com pouco mais de um metro e meio de altura. Curiosa, ordenou
ao motorista que parasse, mas este não obedeceu:
- Seu pai mandou que eu levasse a senhorita para casa -disse, respeitoso, mas
firme e é isso que vou fazer.
Ela entrou furiosa na luxuosa mansão e imediatamente foi dizendo aos pais:
quero aquela casinha de boneca que vi lá perto do shopping.
O pai tentou dizer a ela que aquilo não era casinha de boneca, que casinha de
boneca a gente compra em lojas de brinquedos e que, ademais, ela já tinha
duas casinhas de boneca; mas foi inútil. A menina, mimada como sempre,
insistia: queria aquela de boneca e nenhuma outra. O pai, suspirando, tomou
o carro e foi até lá. No caminho, comprou uma pequena casa pré-fabricada,
desmontável; com uma boa argumentação, conseguiu convencer o morador da
casinha, um homem de seus cinqüenta anos, a fazer a troca, que aliás seria
vantajosa.
Voltou para casa, trazendo a casinha azul. Mas aquilo não deixou a menina
satisfeita. Ela queria o boneco.
- Que boneco? -perguntou o pai, surpreso.
- O boneco grande que estava dentro da casinha -replicou ela. - Pensa que não
vi? Tinha, sim, um boneco aí dentro. Quero a casinha com o boneco.
O pai disse que não era um boneco, que era um homem de verdade. O que
não serviu de argumento:
- Então quero o homem. Quero que ele fique morando aqui.
O pai ia dizer que aquilo era um absurdo, mas a filha simplesmente não
admitia ser contrariada. Atirou-se no chão, chorando e gritando. Chorou e
gritou tanto que ele não teve outra alternativa: tomou o carro e voltou para o
local. Felizmente o homem ainda estava ali, terminando de montar a pequena
casa pré-fabricada. Não foi muito difícil convencê-lo a fazer a mudança:
ganharia um salário para não fazer nada, só ficar à vista da menina quando
esta o quisesse.
A casinha azul foi instalada junto à piscina. O homem passa ali os dias,
sentado à porta. De vez em quando varre o jardim e recolhe as folhas que
caem na piscina. Não é obrigação dele. Mas precisa fazer alguma coisa, para
se convencer que não virou um simples habitante de casa de boneca.
Folha de São Paulo (São Paulo) 08/08/2005
Os noivos
Nelson Rodrigues
Ele obedeceu:
— Pronto, papai.
— Quero saber, de ti, o seguinte: esse teu namoro é coisa séria? Pra
casar?
Vermelho, respondeu:
E o pai:
— Compreendi.
A SOMBRA PATERNA
— Concordas?
Foi positiva:
— Concordo.
O BEIJO
A garota, espantada,protestou
— Ora, mamãe!
E a velha:
— Ora o quê? É isso mesmo! Sem beijo não há nada, está ,.tudo
muito bem. OK. E com beijo pode acontecer o diabo. Você é muito
menina e talvez não perceba certas coisas. Mas pode ficar certa: tudo
que acontece de ruim, entre um homem e uma mulher, começa num
beijo!
O IDÍLIO
Edila pergunta:
— E nem me beija?
Encarou-o, serena:
— OK.
— De quê?
— Não. Estou cem por cento com teu pai. Acho que teu pai está com
a razão.
Salviano não sabe o que dizer. Edila continua, com o seu jeito
tranqüilo:
— Sabe que essas coisas não me interessam muito? Eu acho que não
sou como as outras. Sou diferente. Vejo minhas amigas dizerem que
beijo é isso, aquilo e aquilo outro. Fico boba! E te digo mais: eu
tenho, até, uma certa repugnância. Olha como eu estou arrepiada,
olha, só de falar nesse assunto!
O VELHO
— Quieto!
Ele recuava:
— Tens razão!
CATÁSTROFE
— Mãe?!...
MISERICÓRDIA
Foi uma conversa que se alongou por toda uma noite. No seu
desespero inicial, ele berrava: "Cínica! Cínica!". E soluçava: "Nunca
teve um beijo meu, que sou seu noivo, e vai ter o filho do outro!". O
pai, porém, conseguiu, após poucos, aplacá-lo. Sustentou a tese de
que todos nós, afinal de contas, somos falíveis e, particularmente, as
mulheres: "Elas são de vidro", afirmava. Alta madrugada, o pobre-
diabo pergunta: "E eu? Devo fazer o quê?". Justiça se lhe faça - o
velho foi magnífico: "Perdoar. Perdoa, meu filho, perdoa!". Quis
protestar: "Ela merece um tiro!". Mais que depressa, seu Notário
atalha:
— Ela, não, nunca! Ele, sim! Ele merece!
— Quem?
Baixa a voz: "O pai da criança! Esse filho não caiu do céu, de pára-
quedas! Há um culpado". Pausa. Os dois se entreolham. Seu Notário
segura o filho pelos dois braços:
— Antes de ti, Edila teve um namorado. Deve ter sido ele. Se fosse
comigo, eu matava o cara que...
Pôde, assim; desviar da noiva o seu ódio De manhã, passou pela casa
de Edila. Com apavorante serenidade, em voz baixa, pediu o nome do
culpado. Diante dele, a garota torcia e destorcia as mãos: "Não digo!
Tudo, menos isso!". Ele sugeria, desesperado: "Foi o Pimenta?". O
Pimenta era o antigo namorado de Edila. Ela dizia: "Não sei, não
sei!". Salviano saiu dali certo. Procurou o outro, que conhecia de
nome e de vista. Antes que o Pimenta pudesse esboçar um gesto,
matou-o, com três tiros, à queima-roupa. E fez mais. Vendo um
homem, um semelhante, agonizar aos seus pés, com um olhar de
espanto intolerável, ele virou a arma contra si mesmo e estourou os
miolos. Mais tarde, desembaraçado o corpo, foi instalada a câmara-
ardente na casa paterna. Alta madrugada, havia, na sala, três ou
quatro pessoas, além da noiva e de seu Notário. Em dado momento,
o velho bate no ombro de Edila e a chama para o corredor. E, lá, ele,
sem uma palavra, aperta entre as mãos o rosto da pequena e a beija
na boca, com loucura, gana. Quando se desprendem, seu Notário,
respirando forte, baixa a voz:
O AMOR IMORTAL
DECISÃO
ESPANTO