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CENTRO UNIVERSITÁRIO CAMPOS DE ANDRADE

ALESSANDRA PIRES BERTAZZO

A QUESTÃO FILOSÓFICO-EXISTENCIALISTA NAS VEREDAS DO GRANDE


SERTÃO DE RIOBALDO E DA APARIÇÃO DE ALBERTO SOARES

CURITIBA
2007
1

ALESSANDRA PIRES BERTAZZO

A QUESTÃO FILOSÓFICO-EXISTENCIALISTA NAS VEREDAS DO GRANDE


SERTÃO DE RIOBALDO E DA APARIÇÃO DE ALBERTO SOARES

Monografia apresentada como requisito à obtenção


do grau de Especialista. Curso de Especialização em
Teoria Literária. UNIANDRADE

Orientador (a): Silvana Oliveira

CURITIBA
2007
2

ALESSANDRA PIRES BERTAZZO

A QUESTÃO FILOSÓFICO-EXISTENCIALISTA NAS VEREDAS DO GRANDE


SERTÃO DE RIOBALDO E DA APARIÇÃO DE ALBERTO SOARES

Esta monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Especialista em


Teoria Literária e aprovada em sua forma final pelo Curso de Pós-Graduação
Circuitos de Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade –
UNIANDRADE.

Área de Concentração: Poéticas do contemporâneo

Curitiba, 03 de agosto de 2007.

---------------------------------------------------------------------------------------------
Marco Antonio Maschio Cardozo Chaga
Coordenador do Curso Circuitos de Teoria Literária
Centro Universitário Campos de Andrade

Orientador (a): Professora Dra. Silvana Oliveira


3

Dedico este trabalho à minha família e à


amiga Shirlei, grande admiradora da obra
vergiliana, que sempre me estimularam e
confiaram na minha capacidade.
4

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, que é a origem de tudo.

Aos meus pais, que me deram a oportunidade de ser alguém.

Aos amigos, em especial, Marcos, José Geraldo e Carlos, pela ajuda nos momentos
de precisão e Aline, pelas palavras de incentivo e confiança.

Aos colegas com quem tive a honra de conviver durante o período de duração do
curso, em especial à Elisa e Eliane pela troca de conhecimentos.

Aos professores pela dedicação e seriedade em dividir seus conhecimentos e


estimular o gosto pela pesquisa e a Literatura.

Obrigada a todos que participaram dessa etapa de minha existência.


5

Mas ainda que fosse possível imaginar


um mundo sem arte, sem obras que a
exprimissem, jamais seria imaginável um
mundo entendido fora do sentimento
estético, fora da qualidade emotiva que
no-lo explica à nossa relação humana
com ele. Porque é dentro da emotividade
que o mundo tem sentido, e a verdade
humana, e a orientação fundamental de
tudo que nos orienta.

(Vergílio Ferreira – Carta ao Futuro)


6

RESUMO

Este trabalho objetiva estabelecer uma leitura dialógico-existencialista entre os


romances, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa e Aparição, de Vergílio
Ferreira, escritor português ligado à corrente filosófica do Existencialismo. Num
primeiro momento, ambas as narrativas são estudadas sob a perspectiva do
dialogismo, do teórico russo Mikhail Bakhtin a fim de demonstrar a
interdiscursividade existente entre elas, uma vez que possuem em comum o fato de
apresentar estrutura e temática semelhantes. Na seqüência são discutidas as teorias
existencialistas do filósofo francês Jean-Paul Sartre buscando traçar um paralelo
entre a temática predominante nos discursos de Riobaldo e Alberto Soares,
narradores-protagonistas de Grande sertão: veredas e Aparição, respectivamente.
Esta discussão é feita a partir de dois episódios fundamentais dentro de cada uma
das narrativas: o suposto pacto com o demônio feito por Riobaldo nas Veredas
Mortas (Altas) e a inesperada aparição de Alberto Soares de si para si próprio diante
do espelho. Verifica-se que ambos os episódios possuem uma forte carga simbólica,
na qual se encontra a relação estabelecida entre a temática das duas narrativas. Por
discutirem a condição humana em seus discursos tomando como base suas
experiências recuperadas através da memória, Riobaldo e Alberto Soares possuem
um objetivo comum: colocar em palavras aquilo que “estremece na memória”, pois
segundo Georges Gustorf (citado por CHAVES in COUTINHO, 1991, p. 454) é
utilizando-as que “o homem se ex-pressa, age, produzindo sua própria substância” e
revela-se para si mesmo e para o mundo.

Palavras-chave: dialogismo – discurso – existencialismo – filosofia


7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................8

2 CONCEITOS PRELIMINARES DE DIALOGISMO.................................................10

2.1 DIALOGISMO BAKHTINIANO NAS VEREDAS DA APARIÇÃO.........................15

3 A EXISTÊNCIA E O OLHAR DO OUTRO NO CONCEITO SARTREANO........... 24

3.1 ALBERTO SOARES DIANTE DO ESPELHO – O ALARME DA EVIDÊNCIA.....27

3.2 O PACTO DE RIOBALDO NAS VEREDAS MORTAS – EM BUSCA DO SER...36

3.3 RIOBALDO E ALBERTO SOARES – AS RELAÇÕES ENTRE O EU E O OUTRO

....................................................................................................................................45

4 O TEMPO NA NARRATIVA EM GRANDE SERTÃO E APARIÇÃO.....................53

5 CONCLUSÃO.........................................................................................................60

REFERÊNCIAS.......................................................................................................62
8

1 INTRODUÇÃO

Grande sertão: veredas e Aparição, de Guimarães Rosa e Vergílio Ferreira


respectivamente, são duas narrativas que possuem muitos elementos em comum,
entre eles: um narrador em primeira pessoa (Riobaldo em Grande sertão e Alberto
Soares em Aparição), um tempo que se alterna seguidamente entre passado e
presente, a linguagem poética e a metalinguagem, enfocando o poder da palavra.
Pode-se dizer, portanto, que há uma intertextualidade entre as narrativas aqui
citadas.
Entretanto o principal elo entre as duas narrativas está na temática filosófica
que elas apresentam, sendo que em cada uma delas o narrador-protagonista
rememora o passado a partir das suas experiências vividas. Em Grande sertão:
veredas, Riobaldo relata seu passado em linguagem oral a um suposto interlocutor
(a quem nunca é dada a chance de expressar suas opiniões ou mesmo levantar
dúvidas) e em Aparição, Alberto relata também seu passado, mas em linguagem
escrita, que se torna o próprio romance.
Ambas as narrativas são motivadas por fatos diferentes. A longa narrativa de
Riobaldo sobre seu passado de jagunço no sertão mineiro se deve à frustração do
amor não realizado pela figura supostamente andrógina de Reinaldo-Diadorim,
conforme expresso no excerto abaixo:

O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem


de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios
da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio
abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um
destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos
já se passaram [...] Ele gostava, destinado, de mim. E eu – como é que
posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga.
Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim
tomou conta de mim. (ROSA, 1986, p. 165-167)

Já no caso de Aparição, a narrativa é motivada por uma conferência não


realizada pelo professor de Literatura, Alberto Soares, acerca de suas teses
filosóficas, como denota o fragmento a seguir:

Mas, quando me deitei e apaguei a luz, o convite de Chico para fazer a


conferência incendiou-me de alvoroço. Tinha ali uma oportunidade de pôr
ordem no que me excitava. Um dia poderia desenvolver as minhas idéias
num estudo mais longo; agora precisava de as fixar nos pontos capitais. E
foi isso que desencadeou toda a história que narro. (FERREIRA, 1983, p.
38)
9

Trata-se, portanto, de duas narrativas de caráter memorialístico, nas quais a


constante inquietação de seus respectivos narradores-protagonistas irá desencadear
inúmeras indagações e especulações de ordem filosófica em torno não só de suas
relações complexas com o mundo e seus próprios destinos, como também do
destino do homem em geral, universalizando suas experiências, conforme é possível
observar nos excertos abaixo:

Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria
sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. Às
vezes essa idéia me põe susto. [...] Eu, quem é que eu era? [...] Como é que
posso com este mundo? (ROSA, 1986, p. 107-129-192)

Quem sou eu? [...] Mas eu, eu o que é que sou? [...] Que fazemos nós na
vida? Que incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do
milagre de estar vivo? [...] que maldição pesa sobre a assunção do nosso
destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?, sobre a evidência
da nossa condição? Será que é sagrado e intocável o nosso signo animal?”
(FERREIRA, 1983, p. 23-57-217)

Neste sentido é possível confrontar as idéias dos dois narradores, tornando por
assim dizer, Alberto Soares ouvinte do relato de Riobaldo e o jagunço, leitor das
idéias de Alberto, já que suas narrativas se caracterizam por apresentar um caráter
monológico. Partindo desta premissa, o presente trabalho tem por objetivo explorar a
temática filosófico-existencialista e traçar um paralelo entre os discursos ou
enunciados de Riobaldo e Alberto Soares sob a perspectiva do dialogismo
bakthiniano e a corrente filosófica do Existencialismo de Sartre encontrada nas duas
narrativas.
Primeiramente serão analisados alguns fragmentos do discurso dos dois
personagens em suas respectivas narrativas e, em seguida, confrontados entre si a
fim de estabelecer a relação dialógica proposta por Bakhtin. Na seqüência serão
examinados dois episódios que concentram ou revelam metaforicamente, pode-se
dizer assim, o grande problema fundamental a ser resolvido por ambas as
personagens: o pacto de Riobaldo com o demônio nas Veredas Mortas (Altas) e o
ver-se a si mesmo de Alberto frente ao espelho, sendo igualmente confrontados
entre si sob a perspectiva existencialista sartreana.
10

2 CONCEITOS PRELIMINARES DE DIALOGISMO

Falamos porque somos


mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.

(Octavio Paz)

BAKHTIN (1997, p. 183) destaca que:

A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É


precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo
da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo
de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.),
está impregnada de relações dialógicas.

Ainda segundo Bakhtin, o dialogismo está intrinsecamente ligado ao caráter de


interdiscursividade da linguagem, sendo, portanto, o elemento que condiciona o
sentido do discurso. Depreende-se daí que “o princípio dialógico permeia a
concepção de Bakhtin de linguagem”. (BARROS, 2003, p. 2).
Para ele, as relações dialógicas surgem quando se personificam na linguagem,
tornando-se enunciados e convertendo-se em posições de diferentes sujeitos.
Entretanto é na literatura, mais precisamente na de Dostoievski, que o teórico russo
vai encontrar farto material para desenvolver seus conceitos, considerando-a um tipo
de linguagem, que favorece o surgimento de elementos que não se encontram em
outros tipos de discurso, elegendo o romance, entre todas as formas literárias, como
um gênero dialógico por excelência.
Desse modo, Bakhtin postula que o romance é um gênero que permite o uso da
linguagem nos seus mais variados níveis de existência e concretização, colocando
seu conceito de vozes como o princípio que norteia a arquitetura da prosa
romanesca, o qual funciona no dizer de BRAIT (in BARROS, 2003, p. 22) “como um
órgão de percepção”.
Para o teórico russo,

As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações


integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer
parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta
11

não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo
da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de
um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isso, as relações
dialógicas podem penetrar o âmago do enunciado, inclusive no íntimo de
uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas vozes.
(BAKHTIN, 1997, p. 184)

É daí que surge o discurso bivocal, isto é, a dupla orientação ou duplo sentido
da palavra, visto que “o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora em
vista do outro”, segundo FIORIN (in BARROS, 2003, p. 29). Bakhtin afirma que por
se encontrarem em nosso discurso as palavras de outro, elas tornam-se bivocais
devido ao fato de estarem vestidas de algo novo, da nossa compreensão e da nossa
avaliação. Assim, “a transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta já
leva a um atrito entre duas interpretações numa só palavra, tendo em vista que não
apenas perguntamos como problematizamos a afirmação do outro”. (BAKHTIN,
1997, p. 195)
Podemos afirmar, portanto, que para Bakhtin “a tentativa de religar o sentido e
a vida passa necessariamente pela fala que, dialogicamente, incorpora e representa
os discursos de outros”. (BRAIT in BARROS, 2003, p. 23).
Isto quer dizer que no espaço do texto literário, “o dialogismo decorre da
interação verbal que se estabelece entre o enunciador e o enunciatário, no espaço
do texto” ou “entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro”. (BARROS, 2003, p. 2-3)
Bakhtin diz ainda que esse fenômeno se observa tanto em narrativas em
terceira pessoa como em primeira também, nas quais o personagem dialoga consigo
próprio e a réplica está subentendida, recurso este denominado monólogo.
Entretanto, de acordo com as teorias bakhtinianas, neste falar consigo mesmo
encontram-se características bem mais abrangentes e peculiares, pois ele considera
que ao dirigir-se a si próprio, um narrador ou um personagem está desdobrando o
seu “eu” em duas vozes, pressupondo-se uma relação entre o “eu” e o “tu” ou o “eu”
e o “outro”, o que, por conseguinte estabelecerá uma relação de alteridade e
polifonia.
Neste diálogo consigo próprio do narrador ou da personagem, Bakhtin
considera que há um discurso polêmico oculto bivocalizado, pois há uma relação
recíproca entre duas vozes, ou seja:

A idéia do outro não entra ‘pessoalmente’ no discurso, apenas se reflete


neste, determinando-lhe o tom e a significação. O discurso sente
12

tensamente ao seu lado o discurso do outro falando do mesmo objeto e a


sensação da presença deste discurso lhe determina a estrutura. (BAKHTIN,
1997, p. 196)

Este tipo de discurso chamado monológico para o teórico russo é de grande


importância não só para o linguajar cotidiano do homem, como também no discurso
literário, devido ao seu caráter de polêmica velada e de contribuição para a
construção do estilo.
Além da polêmica velada existe também o dialogismo velado, que segundo
Bakhtin consiste na supressão das réplicas do segundo interlocutor em um diálogo,
de forma a que não interfira no sentido geral. Neste caso, o segundo interlocutor
tornar-se-á invisível e seus enunciados estarão ausentes do diálogo, mas isso não
impedirá que se reconheçam vestígios determinantes das palavras presentes do
primeiro interlocutor.
Assim sendo, apesar de apenas um dos interlocutores se manifestar neste
diálogo, ele será um diálogo “sumamente tenso, pois cada uma das palavras
presentes responde e reage com todas as suas fibras ao interlocutor invisível,
sugerindo fora de si, além dos seus limites, a palavra não-pronunciada do outro”.
(BAKHTIN, 1997, p. 197-198)
Bakhtin (2004, p. 147) diz ainda que:

Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o


que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso
interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,
privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores.
Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é
mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção
com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. É no quadro
do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem,
sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante.

Para melhor situar a compreensão de suas teorias sobre o discurso


duplamente orientado ou bivocalizado, o lingüista russo propõe uma classificação,
daquilo que ele chama de categorias dialógicas, dividida em: estilização, paródia e
diálogo. Segundo ele, esse dialogismo pode ocorrer através do discurso direto e
indireto, podendo-se combinar de maneiras diferentes dentro de um texto literário.
Podemos encontrar diversos exemplos das categorias dialógicas propostas por
Bakhtin tanto em Grande sertão: veredas como em Aparição, considerando as duas
narrativas separadamente, como: “Compadre meu Quelemém sempre diz que eu
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posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-
espíritos me protegem”. (ROSA, 1986, p. 8)

— ... E de súbito vê-se que não é possível morrer. Que não é possível! [...] A
voz inicial... Ouço-a, sei-a... Mas isto é muito maior que nós, muito maior,
muito maior... [...] E é preciso não estar distraído. Então a gente assusta-se,
a gente sabe que tudo isso existe... (FERREIRA, 1983, p. 209)

Nestes excertos encontram-se exemplos de plurilingüismo, que consiste na


apropriação da fala do outro dentro do contexto do texto literário. No primeiro caso,
Riobaldo se “apropria” da fala de outro personagem de sua narrativa para expressar
um pensamento que lhe dê algum conforto sobre suas inquietações. No segundo é
Ana (uma das personagens secundárias do relato de Alberto Soares), quem se
apropria da fala do narrador para tentar compreender a “aparição” que tivera.
Já nos fragmentos abaixo, são observados exemplos de sentenças e
aforismos, que como se sabe, são elementos presentes no discurso, nos quais
perpassam a voz do outro:

Viver é um descuido prosseguido.


Viver é muito perigoso...
Quem desconfia, fica sábio.
Vivendo se aprende; mas o que se aprende mais é só a fazer outras
maiores perguntas.
O demônio na rua no meio do redemunho.
(ROSA, 1986, p. 57-70-136)

A verdade aparece e desaparece.


[...] quem nasce é ainda nada.
A vida é um milagre fantástico.
A vida é um valor sem preço.
a vida do homem é cada instante.
(FERREIRA, 1983, p. 41-58-250)

O uso de aforismos nos textos literários, segundo a análise lingüística revela


estratégias lexicais, sintáticas ou semânticas. Devido ao seu tamanho reduzido, o
aforismo tem como principal característica apresentar uma ampla condensação de
capacidades significativas. Essa carga de significados carrega em si um código que
propicia a interpretação da realidade, revelando um ideal de sabedoria e tornando-
os, por assim dizer, um instrumento representativo do poder do discurso.
Outro exemplo das categorias dialógicas propostas por Bakhtin que é possível
encontrar nas duas narrativas são os chamados gêneros intercalados, que
aparecem notadamente nas auto-enunciações do tipo confessionais, servindo de
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certa maneira para organizar o plurilingüismo no texto. Segundo Bakhtin (1997, p.


206):

[...] as auto-enunciações confessionais mais importantes dos heróis estão


dominadas pela mais tensa atitude face à palavra antecipável do outro
sobre esses heróis, à reação do outro diante do discurso confessional
destes. Não só o tom e o estilo mas também a estrutura semântica interna
dessas enunciações são determinados pela antecipação da palavra do
outro.

Verifica-se a ocorrência de auto-enunciações confessionais nos seguintes


excertos de Grande sertão: veredas e Aparição, respectivamente:

Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso, chega. Mas tem
um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa
parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei
que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender
sua própria alma... invencionice falsa! E alma, o que é? Alma tem de ser
coisa supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah,
alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de
momento, não tem a obediência legal. [...] Se tem alma, e tem, ela é de
Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível.
O senhor não acha? Me declare, franco, peço. [...] Lhe agradeço, por tanto.
[...] Viver é muito perigoso... (ROSA, 1096, p. 17)

Dos restos do que passou, dos pedaços em que me quebrei, de tudo o que
bateu à minha porta, à pessoa que me habita, a memória sobe, purifica-se,
aquieta-se à minha volta, penetra-me o sangue, estabelece-se em
harmonia, como se fosse de amanhã, como se fosse já de agora que a
revivo à luz da noite. [...] Que esperas tu da vida? [...] <<Sei o que quero,
sei o que sonho>>. <<Que fazes para o atingir?>> [...] <<Não sei, não sei.
Reconheço-me na evidência última da minha condição – saber é já
conquistar. [...] A vida é curta – tanto tempo só para isto, para me desnudar.
[...] Um dia virão os arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros nus do
homem a verdade da alegria. [...] <<Que ilusão! A busca indefinida é do
destino do homem.>> <<Sim. Mas outra busca, depois desta. (FERREIRA,
1983, p. 217-219)

Há também a expressão do ponto de vista do autor através do narrador, como


ocorre nos seguintes excertos das narrativas estudadas: “para pensar longe, sou cão
mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por
fundo de todos os matos, amém!” (ROSA, 1986, p. 8)

É o convite ao sonho, talvez à aparição. [...] Histórias de pintores, a


aventura da arte moderna, a crise do mundo, a contingência absoluta do
vosso nascimento, até as aporias dos Eleatas, essa fina absurdez do
movimento da seta, o mistério do tempo, que mais?, e a que propósito
contei tudo? Já não sei... (FERREIRA, 1983, p. 227)
15

Segundo Bakhtin “para o artista-prosador, o mundo está repleto das palavras


do outro; ele se orienta entre elas e deve ter um ouvido sensível para lhes perceber
as particularidades específicas”. (1997, p. 202)
Portanto, nesse sentido, “ignorar a natureza dos discursos é o mesmo, para o
autor, que apagar a ligação que existe entre a linguagem e a vida” (BAKHTIN citado
por BARROS, 2003, p. 2). Nota-se que sua visão coincide com o pressuposto de
Guimarães Rosa em entrevista a Gunter W. Lorenz, de que “a linguagem e a vida
são uma coisa só, [...] a língua é o espelho da existência” (in COUTINHO, 1991, p.
83-88) e também com o de Vergílio Ferreira de que “uma língua é o lugar donde se
vê o mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir”.

2.1 DIALOGISMO BAKHTINIANO NAS VEREDAS DA APARIÇÃO

“Sabes então já a fragilidade das


palavras, acaso o milagre de um
encontro através delas connosco e com
os outros?” (Vergílio Ferreira – Aparição)

“A opinião das outras pessoas vai se


escorrendo delas, sorrateira, e se mescla
aos tantos, mesmo sem a gente saber,
com a maneira da idéia da gente!”
(Guimarães Rosa – Grande sertão:
veredas)

RIOBALDO: ― Falar [...] é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.
Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é
que o muito se fala? (ROSA, 1986, p. 29)

ALBERTO: ― Não, amigo. [...] É preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga.
Ajustar a vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas achá-la depois de sabermos bem o
que é uma e outra, depois de nos encadearmos na sua iluminação. (FERREIRA, 1983, p. 60)

RIOBALDO: ― Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as pessoas
– como por que foi que tanto emendado se começou? [...] Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de
traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo:
ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo,
se economiza! (ROSA, 1986, p. 7-15)

ALBERTO: ― Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuidade deste milagre de sermos. [...]
Deus morreu, Deus não é a minha meta, é o meu ponto de partida. Assumo a minha fraqueza como
assumo as minhas tripas. Na miséria ou na glória, sou eu! [...] Quero achar a evidência que procuro,
estabelecer nela a minha meta em plenitude. (FERREIRA, 1983, p. 76-93)

RIOBALDO: ― E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de
dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! (ROSA, 1986, p. 17)

ALBERTO: ― Este <<eu>> solitário que achamos nos instantes de solidão final. [...] A unidade que
16

nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos. O sonho, o alarme, o mistério, a presença de nós a
nós próprios, a interrogação, o mundo submerso da nossa intimidade. (FERREIRA, 1983, p. 76-99)

RIOBALDO: ― Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda
não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. [...] Ao que, digo
ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? [...] Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o
senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá. (ROSA, 1986, p. 84-132)

ALBERTO: ― A minha vida assinala-se em breves pontos de referência. [...] Assim me acontece
às vezes que toda a minha vida de outrora se me revela ilegível. [...] À unidade que nos pré-existe a
cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de
confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes
não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um
caminho é ‘o’ caminho em cada instante que passa. (FERREIRA, 1983, p. 70-83)

RIOBALDO: ― Viver é muito perigoso... [...] Eu queria decifrar as coisas que são importantes. [...]
Muita coisa importante falta nome. [...] Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma –
mas que a gente não sabe em que rumo está – em bem ou mal, o todo-o-tempo reformando? (ROSA,
1986, p. 17-82-92-479)

ALBERTO: ― E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de
cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face. A vida do
homem é cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece –,
centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã. A vida é um milagre fantástico.

Tomando como base as teorias de Bakhtin, podemos considerar que tanto


Grande sertão: veredas como Aparição, constituem exemplos de monólogos
dialogados, visto que em ambas as narrativas está implícita a existência de um
interlocutor, teoricamente mais acentuada no relato oral de Riobaldo, mesmo que em
nenhum momento ele faça uso da palavra, ou seja, não interaja “realmente” com o
narrador-protagonista dentro dos limites do texto.
Assim sendo, é possível afirmar ainda que em ambas as narrativas, tanto
Riobaldo como Alberto Soares desdobram os seus “eus” em um “tu”, havendo,
portanto, um diálogo interno entre duas vozes dentro de suas narrativas e um
diálogo externo entre as duas narrativas consideradas em seu todo, uma vez que os
dois personagens expressam suas dúvidas existenciais de forma bastante
semelhante.
Em seus respectivos monólogos, Riobaldo e Alberto Soares estão narrando um
passado reconstruído através da memória, sendo que seus “eus” atuais
considerados no momento da narração (no tempo da enunciação) são entidades
diferentes daqueles que viveram os acontecimentos narrados. Entretanto, para
“reviver” esse passado e entendê-lo é necessário um voltar-se para dentro de si
mesmo, isto é, deixar de ser apenas um para se tornar dois, ou melhor, dizendo,
tornar-se nós, um “eu” e um “tu” que vão dialogar internamente.
17

Na visão de Bakhtin esse dialogar consigo mesmo pode ser considerado como
um processo de autoconhecimento, pois se existe um “eu” na fala, existe também
um “tu”, que embora oposto a esse “eu”, possibilitará um entendimento, uma
‘aparição’ de si para si próprio, ou seja, implicará numa descoberta de uma
percepção nova da realidade ou de algum fato que antes estava obscuro, encoberto,
mas que com esse diálogo veio à tona.
Deste modo podemos transformar, por assim dizer, Riobaldo no interlocutor
monólogo de Alberto Soares e vice-versa, como demonstrado no diálogo que abre
este capítulo.
Bakhtin diz que:

O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com


algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de
quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando
aquelas como autorizadas por nós; por último, revestimos terceiras das
nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a ela. (1997, p. 195)

Num plano mais “real”, poderíamos colocá-los em uma interação verbal face a
face e transformá-los em locutor e interlocutor, respectivamente, visto que “a palavra
é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 2004, p. 113), sendo por
sua vez produto dessa interação.
A palavra não é propriedade exclusiva nem de um nem de outro, cabendo a
cada um deles a sua metade no contexto do diálogo. A cada momento dessa
interação invertem-se os papéis, num jogo de alternância locutor-interlocutor. Assim,
ambos, Riobaldo e Alberto Soares invertem os papéis o tempo todo durante o
decorrer do diálogo.
Para BAKHTIN (1997, p. 203):

A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente mutável de


comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua
vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um
grupo social para outro, de uma geração para outra. Nesse processo ela
não perde o seu caminho nem pode libertar-se até o fim do poder daqueles
contextos concretos que integrou.

Vê-se que os pensamentos de um complementam de certa forma os


pensamentos do outro, pois ambos discutem em suas narrativas uma mesma
problemática, fundamentada na condição humana. Isso acontece em vários
momentos dos relatos de ambos os personagens, como se observa nos excertos a
18

seguir:

A evidência da vida não é a imediata realidade mas o que a transcende e


estremece na memória. A minha memória está cheia. [...] Por vezes, tento
reconquistar-me desde o mais remoto passado. E, embora reconheça que
nada explica nada, há pontos de referência que se me erguem como
marcos geodésicos e me fixam o mapa da vida. Sabe-me bem relembrar. A
vida amplia-se-me até a limites mais distantes do que ela, e eu apareço aí
não como quem a vive mas apenas se descobre submerso nela, ou sua
pura testemunha. (FERREIRA, 1983, p. 117-121)

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com


seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa
importância. [...] Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente
do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. [...] Tem um ponto
de marca, que dele não se pode mais voltar para trás. [...] Será que tem um
ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? [...] As
grandes coisas, antes de acontecerem. (ROSA, 1986, p. 82-185-252)

Diante disso, podemos dizer que a voz de Alberto Soares ecoa no discurso de
Riobaldo e vice-versa, comprovando a teoria de Bakhtin (1997, p. 203) que:

Um membro de um grupo falante nunca encontra previamente a palavra


como uma palavra neutra da língua, isenta das aspirações e avaliações de
outros ou despovoada das vozes dos outros. [...] A palavra ele a recebe da
voz de outro e repleta de voz de outro. No contexto dele, a palavra deriva de
outro contexto, é impregnada de elucidações de outros. O próprio
pensamento dele já encontra a palavra povoada. Por isso, a orientação da
palavra entre palavras, as diferentes sensações da palavra do outro e os
diversos meios de reagir diante dela são provavelmente os problemas mais
candentes do estudo metalingüístico de toda palavra, inclusive da palavra
artisticamente empregada. A cada corrente em cada época são inerentes a
sensação da palavra e uma faixa de possibilidades verbais.

Para o teórico russo, a prosa é uma modalidade de texto literário que possui
uma particularidade muito especial: a possibilidade de utilização de diferentes tipos
de discurso, o que lhe dá a característica de gênero polifônico por excelência, visto
que há um confronto de vozes dentro do texto. Assim, ainda segundo ele “a
orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem (em todos os graus e
de diversas maneiras) criou novas e substanciais possibilidades literárias para o
discurso, deu-lhe a sua peculiar artisticidade em prosa”. (BAKHTIN, 1998, p. 85).
Desse modo, o discurso em todas as direções orientado para o seu objeto ao
adentrar este meio dialogicamente perturbado de julgamentos e entonações se
encontra com o discurso de outrem, participando ao lado dele de uma interação viva
e tensa. Segundo Bakhtin “o discurso vivo e corrente está diretamente determinado
19

pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e


baseia-se nela” (1998, p. 89), de maneira que constituindo-se na esfera do “já dito”,
o discurso se orienta simultaneamente para o discurso-resposta ainda não proferido,
mas que é induzido a aparecer e já é esperado. Devido à sua estrutura
composicional as formas monológicas estão orientadas para o ouvinte e sua
resposta.

O significado lingüístico de uma enunciação dada é conhecido sobre o


fundo de uma língua e o seu sentido atual, sobre o fundo de outras
enunciações concretas do mesmo tema, sobre o fundo de opiniões
contraditórias, de pontos de vista e de apreciações. (BAKHTIN, 1998, p. 90)

Há, portanto, neste sentido uma correlação entre os temas mais presentes nos
discursos de Riobaldo e de Alberto Soares, que são: a vida, o homem, a morte, o
tempo, entre outros, os quais servem de matéria para as reflexões filosóficas dos
narradores-personagens sobre suas próprias vidas e a condição humana de modo
geral, como é possível observar nestes excertos:

Fixar uma vida em torno de uma idéia, de um sentimento, como é difícil! À


unidade que nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos, a vida
imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa
vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede
muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos
na sua presença imediata. Um caminho é ‘o’ caminho em cada instante que
passa. (FERREIRA, 1983, p.83)

Qual é o caminho certo da gente? [...] Esta vida está cheia de ocultos
caminhos. [...] Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a
gente está num cômpito. [...] Todo o caminho da gente é resvaloso. (ROSA,
1986, p. 78-132-273)

Assim, segundo o teórico russo (1998, p. 99):

Estudar o discurso em si mesmo, ignorar a sua orientação externa, é algo


tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que
está dirigido e pela qual ele é determinado. [...] O fato é que entre as
“linguagens”, quaisquer que elas sejam, são possíveis relações dialógicas
(particulares), ou seja, elas podem ser percebidas como pontos de vista
sobre o mundo.

Outros exemplos, encontram-se nos seguintes excertos de Aparição e de


Grande sertão: veredas:
20

Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites, depois de a


morte o não poder surpreender. [...] Porque só se é homem assumindo tudo
o que fale em nós. [...] Mas, se através dos tempos o homem pensasse
apenas na utilidade prática, hoje não seria um homem, seria um parafuso.
[...] Que ilusão! A busca indefinida é do destino do homem. [...] Um homem
não se limita a dois braços fortes erguidos. Um homem limita-se em toda a
sua condição. (FERREIRA, 1983, p. 58-176-219-238)

Homem? É coisa que treme. [...] Tem diversas invenções de medo, eu sei, o
senhor sabe. [...] Medo do que pode haver sempre e ainda não há. [...] Só é
possível o que em homem se vê, o que por homem passa. [...] Homem foi
feito para o sozinho? Foi. [...] Mas a lei do homem não é seus instrumentos.
[...] Um homem é escuro, no meio do luar da lua – lasca de breu. Dentro de
mim eu tenho um sono, e mas fora de mim eu vejo um sonho – um sonho
eu tive. O fim das fomes. Ei, boto machado em toda árvore. Eu caminhei
para diante. Em, ô gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era
possível. (ROSA, 1986, p.130-156-160-263-383)

Aqui, Alberto Soares e Riobaldo refletem sobre a condição do homem frente ao


mundo, ou seja, ambos debruçam-se sobre um mesmo objeto de reflexão, o
elemento humano, advindo daí a correspondência dialógica entre seus discursos ou
orientação externa. Neste caso, Bakhtin (1998, p. 142-146) afirma que:

O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda


mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do
homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta
não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos, etc., —
ela procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação
ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra
autoritária e como a palavra interiormente persuasiva. [...] A palavra
interiormente persuasiva é uma palavra contemporânea, nascida numa zona
de contato com o presente inacabado, ou tornado contemporâneo; ela se
orienta para um homem contemporâneo e para um descendente, como se
fosse um contemporâneo. [...] A concepção particular do ouvinte-leitor
compreensivo é constitutiva para ela. Cada palavra implica uma concepção
singular do ouvinte, seu fundo aperceptivo, um certo grau de
responsabilidade e uma certa distância. Tudo isto é muito importante para
se entender a vida histórica da palavra. Ignorar estes aspectos e nuanças
conduz à reificação da palavra, à extinção de seu dialogismo natural.

Nos fragmentos abaixo, Alberto Soares e Riobaldo discutem e refletem em


seus relatos sobre a morte:

Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me


sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o
mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida
necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa
ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus
olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o
absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la nas
horas do esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido,
raivoso de surpresa e de ridículo... [...] Então bruscamente ataca-me todo o
21

corpo, as vísceras, a garganta, o absurdo negro, o absurdo córneo, a


estúpida inverossimilhança da morte. Como é possível? [...] Mais real do
que o nascer era o morrer. Porque quem nasce é ainda nada. (FERREIRA,
1983, p.10-40-58)

E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte,
mas de ver nascimento. Medo mistério. [...] Caminhar de noite, no breu, se
jura sabença: o que preza o chão – o pé que adivinha. A gente imagina uns
buracões disformes. A gente espera vozes. [...] Digo ao senhor: a noite é da
morte? Nada pega significado em certas horas. [...] a morte é para os que
morrem. Será? [...] Ah, o senhor pensa que morte é choro e sofisma – terra
funda e ossos quietos... (ROSA, 1986, p. 48-176- 207-525)

Observa-se, de acordo com o dizer de Bakhtin, que os narradores-personagens


em suas enunciações, exprimem opiniões análogas sobre o tema da morte em seus
relatos, isto é, teorizam sobre o mundo através da assimilação da palavra ou
discurso de outrem. Para ele, “a política interna do estilo (combinação de elementos)
determina sua política exterior (em relação ao discurso de outrem”. (BAKHTIN, 1998,
p. 92). Assim o discurso passa a viver na fronteira entre seu próprio contexto e do
contexto do discurso de outrem. Sob este aspecto:

Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um


partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma
idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos,
nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas
são povoadas de intenções. Nela são inevitáveis as harmônicas contextuais
(de gêneros, de orientações, de indivíduos). [...] A palavra da língua é uma
palavra semi-alheia. Ela só se torna própria quando o falante a povoa com
sua intenção, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-
a familiar com a sua orientação semântica e expressiva. Até o momento em
que foi apropriado, o discurso não se encontra em uma língua neutra e
impessoal (pois não é no dicionário que ele é tomado pelo falante!), ele está
nos lábios de outrem, nos contextos de outrem e a serviço das intenções de
outrem: é lá que é preciso que ele seja isolado e feito próprio. (BAKHTIN,
1998, p. 100)

Reportando-se à idéia de tempo, já que ambas as narrativas se caracterizam


por serem relatos de fatos passados narrados em um tempo presente, Alberto
Soares e Riobaldo também tecem suas opiniões e/ou conclusões a respeito dele,
após a rememoração e atualização de suas trajetórias existenciais, já no fecho de
suas histórias:

Mas o tempo não existe senão no instante em que estou. Que me é todo o
passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro
ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o agora que me projecto? O
meu futuro é este instante desértico e apaziguado. [...] A vida do homem é
cada instante – eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem
22

envelhece –, centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã. O


tempo não passa por mim: é de mim que ele parte, sou eu sendo, vibrando.
Como imaginar o futuro? (FERREIRA, 1983, p. 250-251)

São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado. [...] Os fatos passados obedecem a gente; os em vir, também.
Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o
que é. Isto, já aprendi. [...] O passado – é ossos em redor de ninho de
coruja... [...] Como é que vou saber se é com alegria ou lágrimas que eu lá
estou encaixado morando, no futuro? [...] Tempo? Se as pessoas
esbarrassem, para pensar – tem uma coisa! –: eu vejo é o puro tempo vindo
de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da
morte: imperfeição. (ROSA, 1986, p. 159-301-461-494-520)

Como se pode ver, Alberto Soares e Riobaldo após o fechamento de suas


narrativas fazem uma reflexão sobre o tempo e suas variações: passado, presente e
futuro, expondo suas inquietações a respeito dele. Todos os temas aqui citados
presentes nos relatos dos narradores-personagens são exemplos da relação
dialógica que se estabelece através de enunciações, nas quais é possível perceber
pontos de vista, reflexões e opiniões semelhantes e/ou contraditórias acerca do
mesmo assunto.
Portanto, é impossível negar que os discursos possuem uma orientação
externa, sendo possível a partir deles estabelecer relações dialógicas, nas quais se
expressam pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pois segundo Bakhtin
(1998, p. 147):

As variações sobre o tema da palavra de outrem são muito difundidas em


todos os domínios da criação ideológica, até mesmo no domínio
especificamente científico. Assim é toda exposição talentosa e criativa das
opiniões qualificativas de outrem: ela sempre permite variações estilísticas
livres da palavra do outro, expõe o pensamento do outro no seu próprio
estilo, aplicando-o num novo material, numa outra formulação da questão,
ela experimenta e recebe uma resposta na linguagem do outro.

Pode-se, a partir das teorias de Bakhtin, dizer que o discurso literário sente em
maior ou menor grau o seu ouvinte, leitor ou crítico, servindo como um reflexo de
suas apreciações, objeções antecipadas e pontos de vista. Ainda de acordo com o
teórico russo:

O romance contém muitas perspectivas, e o herói geralmente age em sua


perspectiva particular. [...] No romance, também pode se destacar o herói
pensante, agente (e naturalmente falante), segundo o desígnio do autor,
como cada um deve agir irrepreensivelmente – porém no romance a
característica de irrepreensibilidade fica distante do caráter ingenuamente
discutível da epopéia. [...] A ação do herói no romance é sempre sublinhada
pela sua ideologia: ele vive e age em seu próprio mundo ideológico (não
23

apenas num mundo épico), ele tem sua própria concepção do mundo,
personificada em sua ação e em sua palavra. (BAKHTIN, 1998, p. 136-137)

E, finalmente, como que corroborando com as teorias de Bakhtin acerca do


dialogismo, os próprios narradores-personagens tecem suas reflexões sobre a
palavra:

As palavras são pedras [...] o que nelas vive é o espírito que por elas passa.
[...] Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se
queremos pelo menos que os outros sintam connosco. (FERREIRA, 1983,
p. 39-112)

[...] dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir


até no rabo da palavra. [...] O que eu vi, sempre, é que toda ação principia
mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada,
que vai rompendo rumo. [...] Falo por palavras tortas. (ROSA, 1986, p. 150-
152-153-432)
24

3 A EXISTÊNCIA E O OLHAR DO OUTRO NO CONCEITO SARTREANO

Para Sartre o outro é uma “substância pensante” cujas estruturas essenciais


são encontradas também no eu, isto é, a essência do outro é feita da mesma
essência do eu. Assim sendo, as substâncias pensantes se comunicam utilizando o
mundo como intermediário.
Sartre diz ainda que “a hipótese que melhor explica o comportamento do outro
é a de uma consciência análoga” à do eu, “cujas diferentes emoções nele se
refletem” (1997, p. 292). Nesse sentido, o que se encara no outro seria nada mais do
que aquilo que o eu encontra em si mesmo.
A forma como o eu apreende a aparição do outro na sua experiência se dá pela
presença de elementos organizados, os quais compreendem a mímica (os gestos), a
expressão, os atos e as condutas.

O outro, como unidade sintética de suas experiências e como vontade, tanto


com paixão, vem organizar minha experiência. Não se trata da pura e
simples ação de um númeno incognoscível sobre minha sensibilidade, mas
da constituição, por um ser que não sou eu, de grupos conexos de
fenômenos no campo de minha experiência. E esses fenômenos, à
diferença de todos os outros, não remetem a experiências possíveis, mas a
experiências que, por princípio, estão fora de minha experiência e
pertencem a um sistema que me é inacessível. Mas, por outro lado, a
condição de possibilidade de toda experiência é a de que o sujeito organize
suas impressões em sistema conexo. [...] O outro, portanto, só pode
aparecer organizando nossa experiência de modo contraditório. (SARTRE,
1997, p. 294-295)

Desse modo, os sentimentos, idéias, vontades e o caráter do outro são


considerados através das experiências do eu, pois segundo Sartre o outro não é
apenas aquele que é visto pelo eu, mas aquele que vê esse eu. O filósofo francês
diz ainda que o outro é aquele que não é o que o eu é, mas que é o que o eu não é.
“Esse não-ser indica um nada como elemento de separação dado entre o outro e o
eu”. (1997, p. 300). Esse nada seria a base da relação entre o outro e o eu.
Assim, pelo fato do outro não poder agir no ser do eu através de seu próprio
ser, o modo como ele se revela ao eu é como um objeto à sua consciência. Nesse
sentido, o eu estabelece o outro como uma unificação de suas diversas impressões,
isto é, o eu deve adequar o outro ao campo de sua experiência. É, portanto, de
acordo com Sartre, “na realidade cotidiana que o outro nos aparece”. (1997, p. 328).
Desse modo, a aparição de um elemento desintegrador do universo do eu,
25

denomina-se a aparição de um homem no universo do eu.


Pode-se dizer que a aparição do outro no mundo corresponde, segundo o
filósofo, a um resvalamento do universo e a uma descentralização do mundo, os
quais solapam a centralização efetuada pelo eu. Considerando o outro como objeto
do mundo, ele se deixa definir pelo mundo. Definindo-se em conexão com o mundo
e como objeto que vê aquilo que o eu também vê, a ligação fundamental do eu com
o outro-sujeito deve reconduzir à possibilidade permanente do eu ser visto pelo
outro. É, portanto, na e pela revelação do ser-objeto do eu para o outro que o eu
capta a presença do seu ser-sujeito.
Ainda, segundo Sartre a apreensão do outro no mundo pelo eu, como sendo
um provável homem se dá pela possibilidade permanente de ser-visto-por-ele, isto é,
a possibilidade de que o sujeito que vê esse eu como objeto o substitua por ele
próprio (por esse eu). Essa relação para Sartre, é uma relação concreta e cotidiana
experimentada pelo eu a cada instante que o outro o olha. Assim, por princípio, o
outro seria aquele que olha esse eu.
O olhar do outro para o eu o faz ser para-além de seu ser no mundo, no meio
de um mundo que é este mundo e para-além deste mundo, ao mesmo tempo, nas
palavras do filósofo. Para que o eu seja o que é, faz-se necessário com que o outro
o olhe. E assim, o olhar do outro é captado no âmago do ato do eu, como agente
solidificador e alienante das possibilidades desse eu. São essas possibilidades que
formam a condição de transcendência do eu, sendo sentidas através do medo,
espera ansiosa ou prudente como se dadas a um outro, em outra parte para que
sejam transcendidas pelas possibilidades dele.
Nessa perspectiva o outro considerado como olhar torna-se a transcendência
transcendida do eu, pois o eu ao captar-se como sendo visto capta-se também como
sendo visto no mundo e a partir do mundo, conforme o pensamento de Sartre.
Depreende-se daí que o eu enquanto seus possíveis, passa a ser alguém no meio
do mundo. E desse modo, ao entrar em contato direto com o outro através da
linguagem e inteirar-se do que ele pensa o eu pode exprimir um sentimento de
fascínio ou horror.
Ao ser visto pelo outro a situação escapa ao controle do eu e por meio dela
inversões inesperadas a fazem ser diferente do modo como aparece ao eu, fazendo
com que surja um aspecto não desejado ou não esperado por esse eu, uma vez que
é para o outro. É, portanto, o avesso imprevisível, porém real, aquilo que segundo
26

Sartre, Gide nomeou como a “parte do diabo”.

Mas o olhar do outro não é captado apenas como espacializador: também é


temporalizador. A aparição do olhar do outro se manifesta a mim por uma
“erlebnis” que, por princípio, me seria impossível adquirir na solidão: a da
simultaneidade. [...] simultaneidade presume conexão temporal de dois
existentes não vinculados por qualquer outra relação. [...] A simultaneidade
[...] pressupõe a co-presença ao mundo de dois presentes considerados
como presenças-a. [...] O olhar do outro, na medida que o apreendo, vem
atribuir a meu tempo uma dimensão nova. Enquanto presente captado pelo
outro como meu presente, minha presença possui um lado de fora; esta
presença que se presentifica para mim, para mim se aliena em um presente
ao qual o outro se faz presente; sou lançado no presente universal
enquanto outro se faz presença a mim. Mas o presente universal onde
venho ocupar meu lugar é pura alienação de meu presente universal; o
tempo físico flui rumo a uma pura e livre temporalização que não sou; o que
se delineia no horizonte desta simultaneidade que vivencio é uma
temporalização absoluta da qual estou separado por um nada. (SARTRE,
1997, p. 343)

Segundo Sartre, é pelo olhar do outro que o eu se fixa no meio do mundo sem
ter conhecimento ainda de seu ser, de seu lugar no mundo e nem a face do mundo
que se volta para o outro. Como conseqüência disso, o sentido do surgimento do
outro é dado para o eu no e por seu olhar. Assim, é através do mundo que o olhar
do outro atinge o eu, visto como metamorfose total do mundo.
O filósofo diz ainda que o eu alcança o outro em seu próprio ser, quando
emprega qualidades como: malvado, ciumento, simpático, entre outras, para
qualificá-lo. Entretanto, quando o contrário se realiza, isto é, quando essas
características são atribuídas ao eu pela palavra do outro, este eu a princípio não se
reconhece, mas aceita e assume esse estranho que lhe é apresentado, pois se trata
de um eu metamorfoseado, ou seja, um ser com novas modalidades e dimensões de
ser.
Desse modo, cada olhar faz com que o eu experimente de modo concreto e
pela certeza do cogito a sua existência para todos os homens vivos. Portanto, o
olhar coloca o eu no encalço de seu ser-Para-outro, revelando a existência do outro
para quem o eu é. Assim, “se há um Outro em geral, é preciso, antes de tudo, que” o
“eu seja aquele que não é o Outro, e é nesta negação mesmo, operada” pelo eu
sobre o eu, que este eu se faz ser “e o Outro surge como Outro”. (1997, p. 362)
Além disso, a partir do momento em que o eu toma consciência de si mesmo
como uma de suas livres possibilidades e se projeta a si próprio para realizar sua
ipseidade, esse eu passa a ser responsável pela existência do Outro. Nesse sentido,
27

pela afirmação de sua livre espontaneidade o eu faz com que haja um Outro, e não
apenas a remissão infinita da consciência a si próprio.
O Outro para Sartre, perde-se no meio do mundo do eu devido ao fato de que o
outro é para esse eu aquele que ele não tem de ser, pois o eu o mantém fora de si
como realidade contemplada e transcendida rumo aos próprios fins desse eu. O
Outro é no meio do mundo então através do eu, que o capta com caracteres reais e
como um ser-em-situação, organizando-o no meio do mundo e apreendendo-o como
unidade objetiva de utensílios e obstáculos, ao passo que ele organiza o mundo
rumo a si próprio.
Como o eu se faz por meio de suas possibilidades, a organização dos
utensílios no mundo é a imagem projetada no Em-si de suas possibilidades, isto é,
daquilo que esse eu é. Entretanto essa imagem mundana não pode ser decifrada
por ele, cabendo apenas adaptar-se a ela através da ação.

3.1 ALBERTO SOARES DIANTE DO ESPELHO – O ALARME DA EVIDÊNCIA

O que é um homem, enfim?


O que é que eu sou?
(Walt Whitman)

Aparição, como já se disse anteriormente, é uma narrativa em que o narrador-


personagem Alberto Soares rememora acontecimentos de um passado remoto e um
passado recente, alternando-os repetidamente. Incluem-se nestas recordações,
fatos de sua infância na aldeia da Beira e de sua vida adulta como professor de
Literatura do liceu em Évora, nos quais estão presentes as relações com a família
Moura.
Podemos dizer que a narrativa de Alberto Soares se divide em três
subnarrativas, duas em que o narrador aparece como personagem da diegese e
uma em que o narrador aparece distanciado dos acontecimentos que narra. Como
personagem da diegese, Alberto Soares narra a morte do pai, a morte do cão
Mondego, as estórias da tia Dulce e a “curiosa” experiência com o espelho,
acontecimentos estes que remetem à sua infância.
Por outro lado, Alberto Soares narra também acontecimentos que envolvem
suas relações com a família Moura, como: seu romance com Sofia, a morte de
Cristina, a amizade com Ana, a relação tortuosa com seu aluno Carolino e o
assassinato de Sofia, fatos estes que estão inseridos em seu passado mais recente,
28

ou seja, já na fase adulta.


Como narrador distanciado da diegese, Alberto Soares expõe suas opiniões e
conceitos filosóficos sobre a vida, a existência humana, a realidade e o mundo que o
cerca, ou seja, expõe suas angústias e inquietações existenciais frente à condição
humana, debatendo e expressando sua visão a partir das duas narrativas em que
participa como personagem.
Segundo o crítico e estudioso da obra de Vergílio Ferreira, João Décio,
Aparição é um romance que se caracteriza pela “caminhada em face da
comunicação” (p. 17), visto que Alberto Soares almeja estabelecer uma comunhão
em termos de dimensão cósmica com as demais personagens de seu relato em
vários planos: familiar, do amor erótico e da amizade.
Assim, podemos caracterizar Alberto Soares como alguém que possui um
problema metafísico para resolver, um ser que procura “descobrir a face última das
coisas e ler aí a” sua “verdade perfeita” (FERREIRA, 1983, p. 9). Percebe-se,
portanto, já nas primeiras páginas de sua narrativa a problemática de ordem
existencialista explicitada por Alberto Soares, conforme demonstra o excerto a
seguir:

Havia enfim, desde a infância, essa velha pergunta sobre a descoberta de


nós próprios e que eu também fizera um dia a meu pai:
― Quem sou eu?
Era uma tarde de Verão, meu pai lia o jornal ao pé do tanque, eu olhava a
água, absorto.
― Bom – disse meu pai, um pouco perturbado ―: tu és meu filho, um
homem, um ser vivo que pensa, que vive e que há-de morrer com todo o ser
vivo.
― Mas eu, eu o que é que sou?
Meu pai optou por contar-me a história da evolução da vida. Mas eu, que a
acredito hoje como exacta, sentia, como sinto, que alguma coisa ficara por
explicar e que era eu próprio, essa entidade viva que me habita, essa
presença obscura e virulenta que me aparecera [...] quando a vi fitar-me do
espelho. (FERREIRA, 1983, p. 23)

Nesse sentido é possível afirmar que Alberto Soares já manifestava desde a


infância sua angústia em torno da condição humana, o que “não é só algo
necessário, como fundamental para a evolução da criatura que, através do processo
de auto-análise, busca a sua unidade” (DÉCIO, 1977, p. 40). A problemática de
Alberto Soares, ainda de acordo com João Décio, “se propõe no reencontro da
criatura consigo mesma e na possibilidade dela como revelação para as outras” (p.
40), o que se evidenciará mais tarde no contato de Alberto Soares com as demais
29

personagens que fazem parte de seu relato.


Essa problemática apresentada pelo narrador-personagem, sob a perspectiva
das teorias sartreanas é caracterizada como essencialista e existencialista, visto
que:

[...] há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser


que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o
homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui,
dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira
instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só
posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe,
só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só
posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo.
(SARTRE, 1970, p. 3)

Segundo a teoria de Sartre, a existência precede a essência do ser, isto é, o


homem primeiro existe para depois desenvolver a sua essência, sendo o único
responsável pelas suas escolhas e atos no decorrer de sua vida. Isso implica em
afirmar que a existência humana é algo em constante transformação e que por isso,
não pode ser enquadrada em um conceito fechado, recusando, portanto, a idéia de
determinismo ou fatalismo, ou seja, a idéia de que existe no ser uma natureza pré-
moldada, pode-se dizer assim.
Mais tarde, já em sua fase adulta e como professor de Literatura e escritor,
Alberto Soares continuará manifestando o desejo de encontrar-se a si próprio, isto é,
de explicar-se a si mesmo, através de um “processo de luta interior” (DÉCIO, 1977,
p. 41) para buscar a consciência de si mesmo. Assim, além de levar suas teorias
acerca da existência humana para seus alunos, Alberto Soares levá-las-á para seus
amigos e familiares, incitando-os a reverem suas vidas, seus projetos e aspirações,
para que obtenham suas revelações ou “aparições” como sugere o título da
narrativa.
Essas revelações que Alberto Soares procura incitar nas pessoas com quem
entra em contato, servem também para que ele tenha as suas e encontre a sua
verdade, pois:

[...] a existência humana não se mede pelo fato de se alcançar algo


colimado, mas antes pelo processo de luta interior, de afirmação, através do
qual o homem se autentifica, por revelar-se a si mesmo, e por provocar a
revelação nas criaturas com as quais entra em contato. (DÉCIO, 1977, p.
41)

Para Alberto Soares essas “aparições” são necessárias, por que segundo ele:
30

A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de


dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, [...]
são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida:
a minha morte é o nada de tudo. Como é possível? Conheço-me o deus que
recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos,
idéias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas,
que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverossímil. E este
mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um
dia, um dia – eu o sei até à vertigem – será o nada absoluto, dos astros
mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase estúpido só de
estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um milagre
instantâneo. (FERREIRA, 1983, p. 10-11)

Decorre daí que para se ter essas “aparições” é necessário transportar-se até a
origem, até a ordem inicial, à verdade primitiva, saindo da realidade imediata para
alcançar o transcendente, que surge através dos instantes-limite, espécies de
alarmes, que revelam a evidência, o milagre da vida, uma vez que, segundo Alberto
Soares, “nada mais há na vida do que beber até ao fim o vinho da iluminação e
renascer outra vez”. (FERREIRA, 1983, p. 43)
Assim é que Alberto Soares no decorrer de seu relato, narra experiências que
segundo ele fazem parte desse processo de encontrar-se a si mesmo, de sentir “nas
vísceras a aparição fantástica das coisas, das idéias” (FERREIRA, 1983, p. 9) e dele
próprio. É nessa perspectiva que o narrador relata a experiência de falar sozinho em
voz alta no silêncio noturno:

[...] Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca
fizeste essa experiência? [...] Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-
nos não existir. O que existe é como que o absoluto do mundo, a presença
aguda das coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro homem. E
subitamente gritamos: <<Eu estou vivo, EU SOU>>. E falamos connosco,
fazemo-nos perguntas. Sobe-nos então à garganta uma surpresa de terror:
<<Quem sou eu? Quem está aqui comigo?>> Dá vertigens. É como se nos
aparecesse um fantasma e estivesse dentro de nós e fosse alguém a mais e
visse pelos nossos olhos e falasse pela nossa boca. Só os doidos falam
sozinhos, porque não têm medo. O mundo para eles não existe: só existe a
sua loucura. Por isso nós, se falamos, nos sentimos doidos, separados
subitamente do mundo. O que existe então não é o quarto onde estamos,
os livros, a noite; o que existe é este vulcão brutal que sai de nós, o jacto do
deus que nos habita, esta monstruosidade que nos adormecia dentro.
(FERREIRA, 1983, p. 44)

Aqui Alberto Soares explica os riscos, pode-se dizer assim, deste falar sozinho,
pois de acordo com ele, além de não ser uma prática considerada sadia pelo senso
comum, trata-se de uma experiência tão profunda que o homem pode descobrir
coisas ou facetas ocultas de sua personalidade que desconhecia completamente e
por isso, causa medo, angústia, apreensão, receio de se deparar com algo
31

“monstruoso”. Outra experiência nessa linha é relatada por Alberto Soares ainda no
mesmo capítulo, ou seja, no capítulo VI de sua narrativa a Carolino, aluno que se
interessara por suas teorias:

[...] Há uma outra experiência [...] – Uma vez, quando era miúdo... Contei.
Nós estávamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente.
Tomávamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrás da serra a lua ia em
breve aparecer e nós esperávamo-la quase em silêncio. Só meu pai me
repetia a história dos astros, que eu guardava na memória: Antares, Altair,
Deneb, gigantes vermelhas, órbitas no grande vazio dos espaços. A lua veio
enfim. Eu sentara-me no chão, mas apetecera-me deitar-me ao comprido
para ver melhor as estrelas. E minha mãe mandou-me ao quarto procurar a
manta e a almofada dos nossos sonos no campo. A porta estava aberta, a
lua entrava por uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa
cadeira, no canto onde minha mãe as arrumava. Subitamente, porém,
quando ia a erguer-me, eu vi que estava alguém mais no quarto. Dei um
berro, larguei tudo, estatelei-me no corredor. Aos meus gritos acudiu minha
mãe, meu pai, meus irmãos, as criadas, a tia Dulce. E ali, à face de todos,
declarei:
― Está ali um ladrão no meu quarto.
A minha mãe arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrás dela.
Mas, iluminado o quarto, examinados os recantos, o ladrão não apareceu.
― Oh, a imaginação desta criança! – exclamou minha mãe.
[...] Subitamente, meu pai teve uma idéia:
― Onde é que viste o ladrão?
― Ali.
― Põe-te lá onde estavas. Olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande
espelho do guarda-fato. Meu pai pôs-me a mão na cabeça com a sua
protecção. Minha mãe voltou a lamentar a minha fantasia. [...] Regressámos
à varanda, tia Dulce regressou à grande sala batida do luar e a cujas
janelas rezava as suas contas. A lua vogava agora em pleno céu. No
grande silêncio, os ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No ar
pairavam ainda as crepitações do calor, com uma memória de cigarras
estalando à luz do sol... Eu, porém, relembrava o meu susto à súbita
presença de alguém que agora sabia ser eu. À hora de deitar meu pai
ordenou-me:
― Tu vais-te deitar sozinho. Tu és um homem.
[...] Cumpri o dever de ser homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de
não olhar para o guarda-fato. Mas no outro dia, assim que me levantei,
coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim
estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que
vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me fascinado, olhei de perto. E vi,
vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais
imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era
eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de
apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia
e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no
desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa
entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.
(FERREIRA, 1983, p. 61-64)

Percebe-se no relato do episódio que para Alberto Soares o fato de ter-se visto
de relance e momentaneamente apenas, ao espelho, ilustra a sua idéia acerca das
“aparições”, que se configuram como situações nas quais o ser humano entra em
32

contato com a sua essência, alcançando o transcendente, o que resulta numa


sensação de medo, terror, apreensão diante do que vê e descobre.
Entretanto, embora num primeiro momento essa “aparição” cause receio,
Alberto Soares a repete exaustivamente mais tarde diante do espelho a fim de
buscar um contato mais aprofundado com seu “eu” interior, com a “entidade
misteriosa” que se anunciava diante de si, isto é, com a descoberta de uma nova
faceta desconhecida para si próprio.
Considerando o conceito dos “instantes-limite” de Karl Jaspers, podemos
caracterizar a situação narrada por Alberto Soares como um típico exemplo do
mesmo, visto que de acordo com o pensamento existencialista deste filósofo, o
instante-limite é o momento em que o indivíduo se encontra consigo mesmo, ou
seja, se considera a si mesmo em si próprio, tomando a responsabilidade do que é:

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, [...]
agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado
por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que
sou eu, agora nada entendo da minha contingência. [...] Como entender que
esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha
presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar
sendo, como entender que pudesse <<não existir>>? Como pensar que é
nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a
sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do
mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu
mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes
me angustia de terror... [...] Conheço uma certa emoção das horas, sei da
aparição dos instantes-limites, das vozes submersas. (FERREIRA, 1983, p.
44 - 71)

Diante disso podemos afirmar ainda que, “Alberto, busca o ‘eu’ essencial
(=sein) – aquele que se oculta sob a forma do existente (=dasein) e cuja verdade
autêntica só é alcançada [...] numa súbita e fugaz ‘aparição’”. (COELHO, 1973, p.
215) Nessa perspectiva, é possível perceber que:

No conflito íntimo de Alberto [...] configura-se a problemática existencialista:


a conscientização do ‘eu’ absurdamente voltado para a morte e a obscura
certeza de que é no Homem que estão as respostas definitivas. (COELHO,
1973, p. 215)

Na concepção sartreana de existencialismo, a essência do ser é aquilo que é


responsável pelas “aparições”, isto é, ela mesma se configura em uma “aparição”,
pois como já explicitado anteriormente, a existência do homem é anterior à sua
33

essência. Assim, o homem primeiro existe e ao longo dessa existência é que vai se
construindo através das escolhas que se vê obrigado a fazer o tempo todo, levando-
o a formar e descobrir sua essência. Pode-se dizer, portanto, que a essência do
homem é construída do exterior para o interior, recusando-se a idéia da pré-
determinação por meio da divindade.
Desse modo, sentimentos como a angústia e o desespero são considerados
para o existencialismo sartreano, modos para o homem atingir a sua essência, a
nível particular e universal, sendo então responsável não só pela sua
individualidade, mas também por todos os seus semelhantes. É, pois lícito afirmar
que Alberto Soares busca, como relata em sua história, em si mesmo e na condição
humana em geral as respostas de que precisa para sanar suas dúvidas e
inquietações existenciais, ou seja, para encontrar a sua “aparição”, a sua
“evidência”.
Aparição esta que será buscada incessantemente durante todo o decorrer de
sua narrativa, sendo manifestada em um primeiro momento no episódio em que
olhando extasiado para a água do tanque como se estivesse a mirar-se no espelho,
indagou o pai sobre o sentido de sua existência. E em seguida, ao narrar o episódio
em que numa noite de lua viu-se de relance no espelho de seu quarto escuro,
acreditando ter visto um estranho e não a si mesmo, causando-lhe uma sensação de
terror ante a presença do inesperado.
A referida cena já exposta anteriormente possui para os questionamentos de
Alberto Soares um sentido simbólico muito acentuado, uma vez que a lua e o
espelho são dotados de uma significação bastante profunda. A presença desses
elementos está ligada diretamente ao sentido filosófico da busca pela essência, pela
“aparição” de Alberto Soares de si para si mesmo, pois o vocábulo “espelho”,
derivado do latim “speculum”, significa especular, observar atenta e detidamente;
meditar, refletir.
Originalmente o ato de especular era relacionado à observação do movimento
dos astros no céu com a utilização de espelhos. Todavia com o passar do tempo foi
vinculado às atividades altamente intelectuais, adquirindo então uma simbologia
bastante rica referente ao conhecimento. Partindo dessa idéia, podemos afirmar que
Alberto Soares ao deitar-se no chão “para ver melhor as estrelas”, está em certo
sentido através dessa observação dos astros, procurando entender os mistérios do
universo e a sua presença no mundo, pois que ao ver seu reflexo no espelho
34

(considerado também um símbolo lunar) sob a luz da lua, está de certo modo
refletindo uma imagem e um conhecimento de si mesmo, embora momentâneo, que
ainda não possuía.
Devido ao terror que lhe inspira esse conhecimento súbito e inesperado,
Alberto Soares pensa em princípio tratar-se da figura de outra pessoa, impressão
que logo lhe é desfeita pelo pai, mas que lhe causará um impacto profundo, pois no
dia seguinte se colocará novamente em frente ao espelho para especular-se,
observar-se mais detidamente, descobrindo “qualquer coisa mais”, a qual segundo
ele o excedia e metia medo. Assim, o terror inicial de Alberto Soares pode ser
explicado pelo caráter numismático conferido ao espelho bem como à alma, ou seja,
a noção de duas faces, o bem e o mal, levando o indivíduo a assustar-se frente ao
conhecimento de si.
Mais tarde, esta e outras experiências levarão Alberto Soares a chegar à
seguinte conclusão:

Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no


mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso
da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de
uma coisa entre coisas. (...) Eis-me procurando a verdade primitiva de mim,
verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto
de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai
não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem
conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um
certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de
biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo
perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas – e esse homem sou eu
“... (FERREIRA, 1983, p. 43-44).

Além disso, há também a idéia de simbolismo de formas, já que o espelho


pode ser considerado como símbolo da “duração limitada e sempre mutável dos
seres” (CHEVALIER, 2005, p. 394). Sob esse aspecto, a experiência noturna em
presença da lua representa para Alberto Soares uma espécie de retorno às origens,
pois:

A lua é um símbolo dos ritmos biológicos: astro que cresce, decresce e


desaparece, cuja vida depende da lei universal do vir-a-ser, do nascimento
e da morte... a lua conhece uma história patética, semelhante à do homem,
mas sua morte nunca é definitiva... Este eterno retorno às suas formas
iniciais, esta periodicidade sem fim fazem com que a lua seja por excelência
o astro dos ritmos da vida. (CHEVALIER, 2005, p. 561)

Entretanto, diferentemente da lua, no pensamento de Alberto Soares a morte


35

do homem é o nada absoluto, é irrecuperável, não havendo a idéia do eterno


retorno, visto que para ele “quem nasce é ainda nada” (p. 58), e, portanto, será
preciso construir-se ao longo da existência para voltar ao nada, pois segundo ele o
“<<eu>> é para morrer”, sintetizando o princípio existencialista sartreano de que “o
homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo” (SARTRE, 1997, p. 67), através da
interrogação, do questionar-se a si mesmo, ao mundo e das escolhas que é
obrigado a fazer para realizar-se em vida e construir sua própria essência, pois esta
retornará ao nada, no sentido de que surge, se constrói e finda, descartando a
possibilidade de um renascimento eterno, contínuo como o da lua, isto é, não
havendo nada além do homem. Daí a afirmação de que o “existencialismo é um
humanismo”.
Eis, portanto, as relações dos preceitos existencialistas sartreanos com as
inquietações e angústias de Alberto Soares acerca de sua condição humana frente a
si mesmo, ao mundo e aos seus semelhantes. É importante frisar, que Vergílio
Ferreira, autor da obra em estudo era bastante ligado e partidário das teorias
existencialistas de Jean-Paul Sartre, resultando daí grande parte de seu universo
ficcional.

3.2 O PACTO DE RIOBALDO NAS VEREDAS MORTAS – EM BUSCA DO SER

“O que foi, torna a ser. O que é, perde


existência. O palpável é nada. O nada
assume essência”. (Goethe – Fausto)

Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, narrador-personagem é, como se disse


anteriormente, alguém que reconstrói seu passado de jagunço no sertão mineiro
através da memória, ou seja, rememora acontecimentos e fatos de sua vida,
alternando repetidamente um passado recente e um passado remoto.
Estão incluídas em suas recordações fatos referentes à sua infância-
adolescência e à vida adulta, já como chefe de bando de jagunços. Dentro do
passado mais remoto destacam-se os seguintes fatos: o encontro com Reinaldo-
Diadorim (principal elemento motivador de seu relato), a morte da mãe, a ida para a
casa do pai e posteriormente a ida para o Curralinho, uma espécie de arraial, para
estudar.
Já dentro do passado mais recente, Riobaldo relata acontecimentos como: a
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entrada no bando de Zé Bebelo, espécie de cavaleiro justiceiro do sertão, o ingresso


no bando de Joca Ramiro (pai de Diadorim), a morte de Joca Ramiro, a “curiosa”
experiência do pacto nas Veredas Mortas (Altas), a conquista da chefia do bando e a
morte de Diadorim, entre outras peripécias.
Sob certo aspecto a narrativa de Riobaldo se divide em duas subnarrativas,
uma em que figura como personagem da diegese e uma em que aparece
distanciado dos acontecimentos que narra, isto é, no momento em que relata suas
“aventuras” a um suposto interlocutor.
Da mesma forma que Alberto Soares, como narrador distanciado da diegese,
Riobaldo coloca em seu relato opiniões e conceitos filosóficos sobre a vida, a
existência humana, a realidade e o mundo que o cerca, ou seja, expõe suas
angústias e inquietações existenciais frente à condição humana, debatendo e
expressando sua visão a partir das duas narrativas em que participa como
personagem.
Riobaldo utiliza como mote de suas indagações e dúvidas existenciais a
experiência do pacto, pois esta se apresenta para ele como a representação da
eterna problemática acerca do bem e do mal, confrontando ao longo do relato teses
sobre a existência-inexistência de Deus e a existência-inexistência do Diabo, figuras-
símbolo dessa problemática.
Nesse sentido, podemos dizer que na condição de narrador, Riobaldo procura
recuperar o Riobaldo jagunço, pois:

[...] a experiência do jagunço, que na consciência busca a sua culpa, se


totaliza como travessia a culminar na busca do ‘eu’, emergindo inteiro (e
ainda indefinível) ao final do percurso. [...] O relato recuperado na memória
só é pensável como experiência que se vai fazendo, se constrói pouco a
pouco, conforme o homem vá descobrindo e pensando o mundo. [...] Veja-
se, então, em Gerd Bornheim, a caracterização desse estado de espírito a
envolver o horizonte da personagem na surpresa de ser: “Estamos diante de
comportamentos nos quais se verifica o surto original de uma atitude
humana espiritual. Integrado o homem inicialmente no seio que o gerou,
suas potencialidades espirituais desabrocham, em toda a sua virgindade,
pela primeira vez, de um modo ainda trêmulo e indeciso na atitude
admirativa. Por isto, a consciência natural ou espontânea, em sua primeira
manifestação, longe de implicar um único juízo afirmativo ou uma auto-
afirmação clara e definida, processa-se em um território intermediário,
nascendo em um claro-escuro, mergulhado, por um lado, nas trevas do
inconsciente e, por outro, na luz que começa a debater-se em busca de seu
triunfo”. Trata-se, de fato, de um território intermediário onde tudo se
processa na expectativa da luz, isto é, na alegria da descoberta. (CHAVES,
in COUTINHO, 1991, p. 447-448)
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Desse modo, é possível afirmar que a partir da reconstrução da travessia


físico-geográfica (externa) do sertão em seu relato, Riobaldo faz também a travessia
dentro de si (interna), fruto do processo de autoconhecimento, isto é, em busca do
‘eu’, objetivando “a descoberta de ser no mundo”. (CHAVES, in COUTINHO, 1991,
p. 449)
Podemos afirmar ainda que, assim como Alberto Soares, Riobaldo pode ser
também definido como um ser que possui um problema metafísico para resolver, um
ser que procura “decifrar as coisas que são importantes, [...] entender do medo e da
coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, [...] achar [...] uma só
coisa – a inteira”. (ROSA, 1986, p. 83-427)
Assim, sob o ponto de vista existencialista, Riobaldo, procura através de seu
relato, encontrar-se a si mesmo, buscar a sua essência, a sua “aparição” no
momento em que manifesta suas inquietações e angústias, conforme demonstra o
excerto a seguir:

E eu! [...] O que sou? [...] Eu, quem é que eu era? [...] Eu, Riobaldo. [...]
quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? [...] Quem me entende? [...]
Então era só eu? [...] mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda.
[...] De mim, então, entendia? [...] Nasci para ser. (ROSA, 1986, p. 8-9-129-
272-301-343-505-523)

A partir dessas especulações, Riobaldo da mesma forma que Alberto Soares,


se põe a reexaminar sua trajetória existencial, nascendo daí a sua narrativa, o seu
monólogo interminável, pois “não há de um lado o mundo, e de outro, o homem que
o atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia,
em cujo processo o homem se faz” (NUNES citado por CHAVES, in COUTINHO,
1991, p. 447), servindo como um meio para o homem encontrar a sua unidade.
Diante disso, reportando-se às teorias existencialistas sartreanas, é válido
afirmar que Riobaldo é um homem que por meio de suas experiências, guerras e
lutas no sertão, considerado sob o ponto de vista externo e interno está se
construindo a si mesmo a partir do momento em que é obrigado a fazer as escolhas
que julga mais adequadas para esse processo de formação de sua essência. Assim
sendo, Riobaldo através de suas ações no momento em que vivencia os fatos está
projetando, por assim dizer, aquilo que será no futuro.
É, portanto, através dessas experiências que Riobaldo terá assim como Alberto
Soares, seus momentos de alarme, isto é, os instantes-limite de que fala Karl
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Jaspers, os quais servirão de ponte para o encontro da sua essência, da sua


“aparição”. Entre tantas experiências que Riobaldo relata em sua narrativa, o
suposto “pacto”, que trava com a figura do demônio ganha maior destaque, visto que
ali Riobaldo dá, pode-se dizer assim, um passo importante para encontrar seu futuro,
ou seja, aquilo que ainda não sabe, que está oculto, porvir, levando-o a constatação
de que “as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas
que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida
me ensinou”. (ROSA, 1986, p. 15)
Além disso, Riobaldo em determinado momento de seu relato, antes da
decisão de travar o suposto pacto, dirá em tom de desafio ao chefe do bando na
circunstância narrada, as seguintes palavras:

— E eu não sou nada, não sou nada, não sou nada... Não sou mesmo nada,
nadinha de nada, de nada... Sou a coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou
o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O
senhor sabe? De nada. De nada... De nada... (ROSA, 1986, p. 307)

É, pois, sob essa perspectiva que Riobaldo relata minuciosamente sua curiosa
experiência nas Veredas Mortas (Altas) e o suposto encontro com o demônio:

E aquele lugar, o Valado, eu aceitei – o senhor preste atenção! –; para ficar,


uns meus tempos, ali, ainda me valia. [...] Ali eu não devia nunca de me ter
vindo; lá eu não devia de ter ficado. [...] A vereda dele demorava uma
agüinha chorada, demais. Até os buritis, mesmo, estavam presos. O que é
que buriti diz? É: ― Eu sei e não sei... Que é que o boi diz: ― Me ensina o
que eu sabia... Bobice de todos. Só esta coisa o senhor guarde: meia-légua
dali, um outro corgo-vereda, parado, sua água sem-cor por sobre de barro
preto. Essas veredas eram duas, uma perto da outra; e logo depois,
alargadas, formavam um tristonho brejão, tão fechado de moitas de plantas,
tão apodrecido que em escuro: marimbus que não davam salvação. Elas
tinham um nome conjunto – que eram as Veredas-Mortas. O senhor guarde
bem. No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a gente dividir de lá
ir, por uma ou por outra, se via uma encruzilhada. Agouro? [...] Uma
encruzilhada, e pois! – o senhor vá guardando... Aí mire e veja: as Veredas
Mortas... Ali eu tive limite certo. [...] A qualquer narração dessas depõe em
falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da memória. E o senhor
não esteve lá. O senhor não escutou, em cada anoitecer, a lugugem do
canto da mãe-da-lua. O senhor não pode estabelecer em sua idéia a minha
tristeza quinhoã. Até os pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito
diferentes. Ou são os tempos, travessia da gente? (ROSA, 1986, p. 351)

Aqui, o narrador começa explicando ao seu suposto interlocutor toda a situação


que gerou a sua decisão de firmar pacto com a figura demoníaca. Nota-se que até
mesmo a descrição e a conotação de mistério dada ao lugar favorecem a execução
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dos planos de Riobaldo, ou seja, de colocar em ação aquilo que está no plano da
reflexão. O momento em que Riobaldo está escolhendo a si mesmo, por assim dizer.
Continuando sua narração, Riobaldo expõe as dúvidas e inquietações por que
passara ao tomar a decisão do pacto, isto é, a decisão de segundo ele, ser o que
ainda não era:

[...] Nessas horas da noite, em que eu restava acordado, minha cabeça


estava cheia de idéias. Eu pensava, como pensava, como o quem-quem
remexe no esterco das vacas. Tudo o que me vinha, era só entreter um
planejado. Feito um traslo copiado de sonho, eu preparava os distritos
daquilo, que, no começo achei que era fantasia; mas que, com o seguido
dos dias, se encorpava, e ia tomando conta do meu juízo: aquele projeto
queria ser e ação! E, o que era, eu ainda não digo, mais retardo de relatar.
Coisa cravada. Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das
beiras do rio finge que volta para trás, como a baba do boi cai em tantos
sete fios. Ah, mas aquilo, por terrível que fosse, eu tinha de levantar, mas
tinha! Em tal já sabia do modo completo, o que eu tinha de proceder,
sistema que tinha aprendido, as astúcias muito sérias.
[...] Os três dias passados, eu reproduzi tudo com uma qualidade de
remorsos, aquelas decisões. Sonhei coisas muito duras. O porque era pior,
agora, que eu tomei sombra vergonhosa, por ter começado e não ter tido
firmeza para levar a acabado. E a herança de minhas queixas antigas.
Conforme eu pensava: tanta coisa já passada; e, que é que eu era? Um
raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão. O mais que eu podia ter
sido capaz de pelejar certo, de ser e de fazer; e no real eu não conseguia.
Só a continuação de airagem, trastejo, trançar o vazio. Mas, por quê? – eu
pensava. Ah, então, sempre achei: por causa de minha costumação, e por
causa dos outros. [...] Ah, era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e
tinha cisma de todo o mundo. [...] Aí, para mim – que não tenho rebuço em
declarar isto ao senhor – parecia que era só eu quem tinha
responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava, em
ninguém. [...] Ah, eu só queria ter nascido em cidades, feito o senhor, para
poder ser instruído e inteligente! [...] O senhor não é como eu? Sem crer, cri.
[...] O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do
viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia: um dia é todo para a
esperança, o seguinte para a desconsolação. Mas eu achei, aí, a
possibilidade capaz, a razão. A razão maior, era uma. O senhor não quer, o
senhor não está querendo saber? Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz
de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que
fosse. ― “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora”... – era como eu me
aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar
constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que,
alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre
aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com isto, que já falei, já está ciente o
senhor? Aquilo, o resto... Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada,
esperar o Maligno – fechar o trato, fazer o pacto! (ROSA, 1986, p. 354-361)

Percebe-se que Riobaldo faz um volteio, por assim dizer, em sua narração,
procurando causar um efeito de expectativa e apreensão em seu suposto
interlocutor, pois considera esta a experiência mais importante para explicar os fatos
que ocorreram mais tarde em sua trajetória.
40

Observa-se ainda sua angústia frente à decisão que resolvera tomar para
encontrar, segundo ele, aquilo que ainda não era, decisão esta que implicará na
construção de sua essência e posterior descoberta através dos instantes de alarme,
descritos por Alberto Soares em seu relato, os quais são, por assim dizer, pontes
que levam ao encontro da “aparição” e desvelamento dessa essência.
Como é possível apreender no excerto abaixo, Riobaldo toma essa decisão
perfeitamente consciente de suas implicações futuras, levando-nos aos princípios
existencialistas de Sartre, que afirmam a responsabilidade do homem sobre suas
escolhas, negando, portanto, a existência de um inconsciente, que tenderia a servir
como válvula de escape para que o homem justifique seus atos, de acordo com as
teorias freudianas:

[...] Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência. O


aquilo. Ah, que – agora eu ia! Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o
Tendeiro, o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por
quê? Tem alguma ocasião diversa das outras? Declaro ao senhor: hora
chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo – se não é que fosse naquela
noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. Senti esse intimado. E
tanto mesmo nas idéias pequenas que já me aborrecendo, e por causa de
tantos fatos que estavam para suceder, dia contra dia. [...] Eu caminhei para
as Veredas Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira.
Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali
esvoaçavam as estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar
meu tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí,
friazinha. E escolher onde ficar. O que tinha de ser melhor debaixo dum
pau-cardoso – que na campina é verde e preto fortemente, e de ramos
muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra árvore
nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa – porque no chão bem debaixo
dela é que o Careca dança, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em
que não cresce nem um fio de capim; e que por isso de capa-rosa-do-judeu
nome toma. Não havia. A encruzilhada era pobre de qualidade dessas.
Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua escondida. Medo? Bananeira
treme de todo lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas
palavras. Eu fosse um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus
dentes. Desengasguei outras perguntas. Minha opinião não era de ferro? Eu
podia cortar um cipó e me enforcar pelo pescoço, pendurado morrendo
daqueles galhos: quem-é-que quem que me impedia?! Eu não ia temer. O
que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim! Quem é que
era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes de
comida da terra, não possuía sangue derramável. Viesse, viesse, vinha para
me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que
dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como
podia? Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para
afrontar relance tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de
nada. (ROSA, 1986, p. 367-369)

Aqui, Riobaldo mantendo sempre sua postura de causar uma sensação de


expectativa e apreensão em seu suposto interlocutor, relata o momento em que
41

seguro de sua decisão se encaminha para as Veredas Mortas (Altas), local que julga
ser o mais apropriado para a execução de seu plano, isto é, para agir.
Mais uma vez esse excerto nos remete aos preceitos formulados por Sartre,
sobre os quais o homem só é capaz de construir-se a si mesmo através da ação, do
ato de pôr em prática aquilo que planeja para si, visto que Riobaldo após fazer sua
escolha (fazer ou não fazer o pacto), se dirige ao local descrito para executá-la.
No excerto abaixo, Riobaldo apesar de seguro de sua decisão, manifesta suas
especulações em torno do desconhecido, entretanto com a certeza de que “queria
era – somente ficar sendo”:

Esperar era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu não percebia


nada. [...] E não conheci arriação, nem cansaço. Ele tinha de vir, se
existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jajão. Mas, em
que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na
poeira rolarem. De repente, com um catrapuz de sinal, ou momenteiro com
o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O
Morcegão? O Xu? E de um lugar – tão longe e perto de mim, das reformas
do Inferno – ele já devia de estar me vigiando, o cão que me fareja. Como é
possível se estar, desarmado de si, entregue ao que outro queira fazer, no
se desmedir de tapados buracos e tomar pessoa? Tudo era sobrosso, para
mais medo; ah, aí é que bate o ponto. E que por isso eu não tinha licença
de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não
fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem que queria me
lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu
já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era,
que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não
queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa,
esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo! (ROSA, 1986, p. 369-370)

Riobaldo diante do desconhecido, especula as possíveis formas sob as quais o


Diabo aparecerá para firmar o pacto, pois nesse momento, ele passa a considerar a
idéia de que ele realmente existe em nosso plano real e poderá tomar uma forma
material para apresentar-se diante ele, nomeando-o até como o “cão que me fareja”.
Assim, o homem nomeia as coisas e “na impossibilidade de conhecê-las, o homem
delas se apossa, e o ato de posse é o dar nome às coisas, conferindo-lhes
significação a partir do nada”. (CHAVES in COUTINHO, 1991, p. 453)
Abaixo, Riobaldo finalmente se põe a relatar ao seu suposto interlocutor os
procedimentos, por assim dizer, utilizados na experiência propriamente dita, isto é, o
método empregado para que a experiência aconteça. Desse modo, a apreensão e a
expectativa do interlocutor frente ao relato de uma experiência “curiosa” e inusitada
começam a ser desfeitas:
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E foi assim que as horas reviraram. ― A meia-noite vai correndo... ― eu


quis falar. [...] Ser forte é parar quieto; permanecer. Decidi o tempo –
espiando para cima, para esse céu: nem o setestrelo, nem as três-marias,
― já tinham afundado; mas o cruzeiro ainda rebrilhava a dois palmos, até
que descendo. A vulto, quase encostada em mim, uma árvore mal vestida; o
surro dos ramos. E qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa
de se ver. [...] O que eu agora queria! [...] Eu queria ser mais do que eu. Ah,
eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar.
Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar,
feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez, caso que
aquilo agora para mim não fosse constituído. [...] “Deus ou o Demo – para o
jagunço Riobaldo!” A pé firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e
do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me
revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de maior-coragem.
[...] Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a
hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse!
Chegasse, para o desenlace desse passo. [...] Remordi o ar:
― “Lúcifer! Lúcifer!”... ― aí eu bramei, desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito
grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num
queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum
totalzinho sono.
― “Lúcifer! Satanás!”...
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo,
demais.
― “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi.
Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado.
Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da
noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas
palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um
adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades – de pancada. Lembrei
dum rio que viesse adentro da casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo
do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar:
que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem
abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!
Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas como que já
estivesse rendido de avesso, de meus íntimos esvaziado. [...] Porque a noite
tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de
parir, ou, quando o que fala, a gente não entende? Despresenciei. [...] E, a
bem dizer por um caminho sem expedição, saí, fui vindo m’embora. Eu tinha
tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de retorno,
para a beira dos buritis, aonde o pano d’água. [...] Curvei, bebi, bebi. [...]
Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim.
[...] Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas
coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em
muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha
própria vontade. (ROSA, 1986, p. 370 – 373)

Nota-se que Riobaldo, mesmo não tendo visualizado o Diabo sob a forma que
esperava, supõe que o pacto tenha sido feito, pois após o ritual de invocação, sente
a princípio “um gozo de agarro, [...] umas tranqüilidades”, permanecendo ainda por
um tempo no lugar para em seguida sentir sensações como: frio, sede e solidão.
43

Além disso, Riobaldo passa após a experiência a enxergar as coisas com mais
nitidez, pois segundo ele, “tudo [...] reluzia com clareza”.
Embora a cena descrita nas palavras de Riobaldo em seu relato adquira uma
conotação sobrenatural, diabólica, em verdade não passa de um momento de
epifania do personagem, no qual, ele tem por assim dizer, uma revelação, uma
“aparição”, assim como a cena de Alberto Soares diante do espelho.
De forma mais aprofundada, o que importa na cena não é a sua conotação
sobrenatural e folclórica, utilizada apenas para encobrir a verdadeira experiência de
Riobaldo, que é o fato de encontrar-se a si mesmo em um local até bastante
apropriado para isso: uma encruzilhada, visto que:

Cada ser humano é, em si mesmo, uma encruzilhada onde se cruzam e se


debatem os aspectos diversos de sua pessoa. [...] A encruzilhada
representa a chegada diante do desconhecido; e como a mais fundamental
das reações humanas diante do desconhecido é o medo, o primeiro aspecto
desse símbolo é a inquietação. [...] Na verdadeira aventura humana, a
aventura interior, não encontramos senão a nós mesmos na encruzilhada:
nossa esperança era a de uma resposta definitiva, mas diante de nós há
somente novos caminhos, novos obstáculos, novas vias que se abrem. A
encruzilhada não é um terminal, mas apenas um ponto de repouso ou de
parada, um convite para que se vá mais além. [...] Cada nova encruzilhada
oferece uma nova possibilidade de escolher o caminho certo. Com uma
única ressalva: as escolhas são irreversíveis. (CHEVALIER, 2005, p. 369-
370)

Assim sendo, a experiência de Riobaldo vai muito mais além do que a simples
discussão de ter ou não feito um “pacto” com o demônio, uma vez que vista sob a
ótica folclórica e/ou meramente religiosa-cristã a experiência adquire um caráter de
negatividade, voltado apenas para as tendências más do ser humano, isto é, não
passa de uma experiência direcionada à noção de pecado, de ferimento das leis
divinas. Nesse sentido Riobaldo estaria então indo de encontro aos ensinamentos
cristãos.
Entretanto, sua experiência é muito mais do que isso. Seria, portanto,
comparável à experiência de Alberto Soares, uma vez que de certa forma ambos se
encontram diante de um espelho, reconhecendo facetas de si mesmos que antes
não viam. Diante desse quadro, o que na verdade Riobaldo encontra nas Veredas
Mortas (que mais tarde ele descobrirá chamarem-se na realidade Veredas Altas) não
é a figura do Diabo, mas sim uma nova faceta de seu “eu”, assim como Alberto
Soares a descobre quando se vê refletido de relance no espelho.
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Há de atentar-se também para o fato de que ambas as experiências se deram


à noite, em presença da lua, mais um indicativo da simbologia da lua em relação aos
espelhos e a idéia de aparência e essência, que eles denotam. Portanto, o
verdadeiro pacto de Riobaldo nada mais foi do que o conhecimento de algo em si
mesmo que se lhe afigurava obscuro, embora o local escolhido, segundo as
tradições folclóricas tenha a conotação e a descrição indicadas para esse encontro
“demoníaco”.
O pacto é nesse sentido uma metáfora para a angústia diante de um instante-
limite no qual o homem é obrigado a transcender para ter o alarme e encontrar a sua
essência, a sua “aparição” de si para si mesmo. Desse modo, “tendo a solidão e o
nada como pontos de partida do agir, a personagem se constrói ou reconstrói pelas
próprias forças e ergue os próprios valores”. (CHAVES in COUTINHO, 1991, p. 453)
Evidenciam-se assim as relações entre os princípios existencialistas de Jean-
Paul Sartre e as angústias e inquietações de Riobaldo frente à condição humana.

3.3 RIOBALDO E ALBERTO SOARES: AS RELAÇÕES ENTRE O EU E O OUTRO

Ó espelho!
Água fria pelo tédio em teu quadro
gelada
Quantas vezes e durante horas,
desolada
Dos sonhos, e buscando minhas
lembranças que são
Como folhas sob teu vidro de poço
profundo
Apareci-me em ti como uma sombra
longínqua
Mas, horror! certas noites, em tua severa
fonte
Conheci a nudez do meu sonhar
disperso!
(Mallarmé)

Riobaldo e Alberto Soares são duas personagens que possuem conflitos e


idéias semelhantes. Ao colocarmos ambos frente a frente, confrontando seus
discursos e inquietações filosóficas a respeito da condição humana sob a ótica do
existencialismo sartreano, notamos que há uma grande afinidade em suas
especulações, visto que ambos possuem um objetivo comum: encontrar a essência
do ser humano considerado primeiramente em sua individualidade e em seguida em
termos de universalidade a partir de suas experiências vividas.
Experiências estas que ao longo da existência vão definindo a essência de
45

cada ser humano, considerando-se o fato de que segundo as teorias de Sartre,


somos responsáveis pela construção daquilo que seremos para nós mesmos e para
os outros por meio das escolhas que somos obrigados a fazer o tempo todo em
nossas vidas, uma vez que somos seres inseridos, pode-se dizer assim, em um
processo de contínuo vir-a-ser.
Assim, pois, suas experiências com o Diabo e o espelho, respectivamente
denotam o ápice de suas inquietações existenciais e vão revelar para eles uma nova
possibilidade de ser a partir de um momento de transcendência, no qual ambos os
personagens são levados a ver uma outra faceta de si mesmos, a ver algo que ainda
não conheciam, algo que pode se chamar de “outro”.
Nesse sentido a experiência de Riobaldo pode ser também associada a uma
experiência de cunho especular da mesma forma que a de Alberto Soares, uma vez
que ele toma conhecimento na encruzilhada de uma nova possibilidade de ser a
partir do suposto contato com a figura diabólica. Como Riobaldo não chega a ver
essa criatura materializada em sua frente supõe-se que essa possibilidade de ser
advém de dentro de si mesmo, ou seja, algo semelhante a um espelho interno.
Segundo ECO (1989, p. 12-13):

O espelho é um fenômeno-limiar, que demarca as fronteiras entre o


imaginário e o simbólico. [...] No estado de júbilo especular manifesta-se
uma matriz simbólica na qual o eu se precipita de forma primordial e a
linguagem é o que deve restituir-lhe a função particular de sujeito no
universal .

Riobaldo vê, portanto, através do pacto não realizado uma possibilidade de ser
algo que segundo ele ainda não era, uma vez que ao viver essa experiência purgará
o medo que o impedia de tomar parte dentro do mundo, passando por um momento
de epifania. Assim sendo, o pacto torna-se um encontro com conotações ambíguas,
pois Riobaldo espera encontrar o Diabo, mas na verdade encontra-se consigo
mesmo, visto que:

[...] a cena que prepara a epifania em Grande sertão: veredas é estática:


Riobaldo espera, parado, no escuro. Mas espera intensamente,
concentrado todo no esperar. [...] Agora, na intensidade e concentração
extremas de sua espera, de sua imobilidade, Riobaldo desliga-se
completamente de si mesmo e do mundo, eleva-se sobre si mesmo, surge.
[...] A única coisa que resta, neste supremo concentrar-se, é ele mesmo,
Riobaldo – sua pura consciência de si –, em suprema solidão. [...] Nesta
solidão, Riobaldo ouve e reconhece sua própria voz [...] no silêncio do
mundo. Reconhece sua pessoa. [...] Define-se em sua relação com o existir:
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o demo não existe, ele, Riobaldo, sim. [...] Riobaldo esperava a visão
clássica do demo, do sobrenatural: o vendaval, o tremer da natureza. [...]
Mas o que vem não tem forma, não tem movimento, não tem som. [...] Tudo
movimenta-se internamente, no espírito de Riobaldo. (ARAUJO, 1996, p.
230-234)

Experiência semelhante ocorre com Alberto Soares diante do espelho ao se ver


refletido inesperadamente no escuro, pensando a princípio tratar-se de outra
pessoa, e que mais tarde chamará de aparição de si para si próprio. Seu susto
momentâneo com o que vê explica-se pelo fato de que “assim como os óculos e os
binóculos, os espelhos são próteses. [...] Como próteses os espelhos são canais.
Como canal-prótese, o espelho pode provocar enganos perceptivos, como todas as
próteses”, nas palavras de ECO (1989, p. 18-19). Experiência esta que ele repetirá
inúmeras vezes a fim de descobrir a sua essência, o seu eu.
Reportando-se ao conto O espelho, também de Guimarães Rosa, no qual o
narrador descreve suas experiências com o espelho, procurando da mesma forma
que Alberto Soares descobrir o que há por trás da aparência:

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me


induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me
tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me.
Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando
conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que
sabe e estuda, suponho que nem tenha idéia do que seja na verdade – um
espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as
leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um
mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada
acontece, há um milagre que não estamos vendo. (ROSA, 1988, p. 65)

Nota-se o caráter metafísico dos espelhos, já que o narrador refere-se a eles


como algo além de um objeto que reflete apenas a aparência externa dos seres
vivos e objetos, sugerindo uma leitura transcendente da imagem especular. Nesse
caso pode-se considerar o espelho como “reflexo da alma”, pois:

A magia dos espelhos consiste no fato de que sua extensividade-


intrusividade não somente nos permite olhar melhor o mundo mas também
ver-nos como nos vêem os outros: trata-se de uma experiência única, e a
espécie humana não conhece outras semelhantes. (ECO, 1989, p. 17)

Dada a intensa mística em torno dos espelhos, que advém desde a Grécia
Antiga através do mito de Narciso, condenado à morte por admirar sua própria
imagem refletida nas serenas águas de um lago, pode-se afirmar que “sim, são para
47

se ter medo, os espelhos”, de acordo com o narrador-personagem de Rosa. (1988,


p. 66)
Neste ponto ele se identifica de certo modo com Alberto Soares, quando narra
suas curiosas opiniões e relações com os espelhos:

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-


se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor
também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às
horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em
lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou,
porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com
fantásticas não-explicações? – jamais. Que amedrontadora visão seria
então aquela? Quem o Monstro? (ROSA, 1988, p. 66)

Partindo dessas opiniões, o narrador-personagem de Rosa vai, assim como,


Alberto Soares realizar suas experiências com espelhos, as quais que se iniciam
assim:

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo
contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos – um de
parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E
o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável
ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele
homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo
descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer
essa revelação? (ROSA, 1988, p. 66)

Da mesma forma que a primeira experiência de Alberto Soares, a experiência


especular do narrador-personagem de Rosa se dá de modo casual, fortuito. Sua
impressão é também a mesma de Alberto Soares, isto é, causa a princípio uma
sensação de susto, medo, surpresa e terror diante do inesperado. Diante de uma
súbita revelação de si para si próprio em um momento de distração, no qual vê-se
frente a frente com o “outro”.
Considerando o espelho como reflexo da alma, parte-se da idéia de que ele
sempre “diga” ou “reflita” a verdade sobre nós mesmos, como uma espécie de
confidente particular. Nas palavras de Eco (1989, p. 17), o espelho “a diz a tal ponto
que nem mesmo se preocupa em reverter a imagem (como faz a fotografia revelada
que quer dar-nos uma ilusão de realidade)”. E assim:

O espelho não se permite sequer esse pequeno artifício destinado a ajudar


nossa percepção ou nosso juízo. Ele não “traduz”. Registra aquilo que o
atinge da forma como o atinge. Ele diz a verdade de modo desumano, como
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bem sabe quem – diante do espelho – perde toda e qualquer ilusão sobre a
própria juventude. [...] Mas é exatamente essa declarada natureza olímpica,
animal, desumana dos espelhos que nos permite confiar neles. Confiamos
nos espelhos assim como confiamos, em condições normais, nos próprios
órgãos perceptivos. (ECO, 1989, p. 17)

Mais minucioso e detalhista que Alberto Soares, o narrador-personagem de


Rosa experimenta e relata vários tipos de experiências com os espelhos a fim de
procurar e obter aquilo que ele chama de “o eu por detrás de mim”, tornando-se
então “o caçador de” seu “próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando
não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico”. (ROSA, 1988, p.
66). É, pois, nesse sentido, que sua experiência se diferencia um pouco da de
Alberto Soares. Enquanto este o faz mais pela sua condição filosófica e pessoal,
aquele a encara como um tipo de experiência científica.
Assim, ele narra os métodos utilizados em seu projeto de descobrir esse eu
escondido atrás do mim:

Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de


esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de
pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados
incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me,
também, em marcados momentos – de ira, medo, orgulho abatido ou
dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por
exemplo, em estado de ódio reflui e recrudesce, em tremendas
multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo.
Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles
paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não
zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava
permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é
apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido,
avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais
necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no
comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre
que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o
senhor me compreende.
Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem
daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa – a minha
vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras
inspirações. (ROSA, 1988, p. 66-67)

Dando seqüência às suas excêntricas experiências, o narrador-personagem de


Rosa relata mais algumas técnicas empregadas para buscar o resultado que almeja:

Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá


praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os
‘exercícios espirituais’ dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus
que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de
par com a imaginação criadora... Enfim, não lhe oculto haver recorrido a
49

meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas,


pomadas fosforescentes na obscuridade. [...] Saiba que eu perseguia uma
realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa
operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do
espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase
apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém,
decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes,
contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário – as parecenças com
os pais e avós – que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo
residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o
que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que
ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o
que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os
efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem
fundura. [...] À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair
e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a
modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente
cavernoso, como uma esponja. (ROSA, 1988, p. 67)

Observam-se em suas experiências especulares, métodos que utilizam tanto


objetos concretos como objetos abstratos. O narrador-personagem de Rosa vale-se
de jogos de luzes a fim de clarear ou escurecer o ambiente no momento de reflexão
da imagem no espelho, o que teoricamente lhe dá possibilidades de obter melhores
ângulos de visão de sua própria imagem.
Vale-se também de “exercícios espirituais”, como a meditação, a concentração
e a ioga, por exemplo, para alcançar um nível de transcendência que lhe permita ver
com maior clareza e nitidez, podemos dizer assim, a essência por detrás da
aparência. Entretanto, à medida que realiza suas experiências o narrador-
personagem de Rosa, percebe que seu “esquema perspectivo” vai clivando-se aos
poucos “em mosaicos” e “francamente, cavernoso, como uma esponja”, revelando
assim o caráter fragmentário da experiência especular, pois não consegue
apreender um todo unitário, apenas imagens que não se fixam na superfície do
espelho. São, portanto, apreensões transitórias e efêmeras, de si próprio.
Mas passado algum tempo o narrador-personagem de Rosa tem uma surpresa:

Um dia... [...] Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi.
Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água
limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas,
rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física.
Eu era – o transparente contemplador?... Tirei-me. [...] Com que, então,
durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em
mim se exercitara! Para sempre? [...] Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o
que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e
polido nada, não se me espelhavam nem eles! [...] E a terrível conclusão:
não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu
um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era
mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos
50

instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e


tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios
luminosos e a face vazia do espelho – com rigorosa infidelidade. E, seria
assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças – o espírito do
viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre
miragens: a esperança e a memória. (ROSA, 1988, p. 68)

Olha-se no espelho, mas não se vê refletido, como se o objeto tivesse-lhe


roubado a imagem externa. Logo, não poderia apreender a imagem interna de si
para si próprio, uma vez que teoricamente uma alma precisa de um corpo físico para
que possa refletir-se no espelho. Assim sendo, ele põe em xeque a existência e a
essência do eu, pois não consegue enxergar nem seus próprios olhos, os quais são
os responsáveis pela apreensão da nossa realidade. Podemos dizer que o narrador-
personagem de Rosa é iludido momentaneamente pelo sentido da visão.
Desse modo, ele acredita-se desalmado, isto é, atribui a essência do eu à algo
não pré-determinado, mas sim como algo em que estaria embutido instintos
inerentes ao ser humano e também algo que se constrói durante a existência, pois
segundo esse narrador-personagem o eu estaria sujeito à influências recebidas do
meio. Com isso, o processo de construção do eu está ligado ao meio, isto é, o
homem se constrói na impermanência em que se indefine, visto que estaria
constantemente lapidando e definindo esse eu através de suas escolhas, teoria que
vem ao encontro do pensamento de Sartre.
Isso pode ser comprovado pelo excerto abaixo, no qual o narrador-personagem
de Rosa descreve uma visão tida anos mais tarde, e ainda mais profunda da
existência da essência e do seu caráter vago, indefinido:

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos
grandes, de novo me defrontei – não rosto a rosto. [...] E... Sim, vi, a mim
mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado,
apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E
era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será
que o senhor nunca compreenderá? (ROSA, 1988, p. 68-69)

Percebe-se aí uma correspondência com a primeira experiência de Alberto


Soares ao ver-se refletido nas águas do poço quando criança, superfície esta que
também serve de espelho. O “ainda-nem-rosto”, que o narrador-personagem de
Rosa vê é uma metáfora para a essência do eu ainda não construída, isto é, a
essência ainda virgem.
51

Com isso, ele tece suas últimas considerações a respeito de suas experiências
e experimentos com espelhos na busca pela essência do seu eu e suas implicações
na condição humana:

Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Trebusco.


Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecção de planos –
onde se completam de fazer as almas? Se sim, a ‘vida’ consiste em
experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo menos parte – exigindo o
consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da
alma, o que a atulha e soterra? Depois, o ‘salto mortale’ ... – digo-o, do jeito,
não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de
toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-
problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: - ‘Você chegou a
existir?’ [...] Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor,
sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo
do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus
transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim? (ROSA, 1988, p.
69)

E assim, ao propor a pergunta-problema: ─ “Você chegou a existir?”, o


narrador-personagem de Rosa nos leva novamente ao encontro das experiências de
Riobaldo e Alberto Soares, na encruzilhada e frente ao espelho, ambas de caráter
filosófico e de autoconhecimento, em busca da essência do eu.
São, portanto, como se vê, experiências que possuem um objetivo comum:
encontrar através do ver-se refletido no espelho – da alma e objeto refletor da
imagem – a essência daquilo que os habita, ou seja, encontrar a essência do eu,
aquilo que transcende a aparência física e que explica a condição humana e as
relações com esse eu-desconhecido de cada homem que surge em momentos de
epifania.
Segundo ECO (1989, p. 20):

O fato de a imagem especular ser, entre os casos de duplicatas, o mais


singular, e exibir características de unicidade, sem dúvida explica por que os
espelhos têm inspirado tanta literatura: esta virtual duplicação dos estímulos
(que às vezes funciona como se existisse uma duplicação, e do meu corpo
objeto, e do meu corpo sujeito, que se desdobra e se coloca diante de si
mesmo), este roubo da imagem, esta tentação contínua de considerar-me
um outro, tudo faz da experiência especular uma experiência absolutamente
singular, no limiar entre percepção e significação. (ECO, 1989, p. 20)

Vê-se assim a relação com as teorias bakhtinianas e sartreanas acerca do eu e


do outro, que pode ser um desdobramento do próprio eu, como também o outro
considerado como um indivíduo autônomo e diferente desse eu.
52

4 O TEMPO NA NARRATIVA EM GRANDE SERTÃO E APARIÇÃO

“Pode-se narrar o tempo, o próprio


tempo, o tempo como tal e em si?”
(Thomas Mann – A montanha mágica)

Do latim tempu, em seu sentido mais abrangente o vocábulo “tempo” é definido


nos dicionários como: “duração das coisas; período; época; os séculos; idade e
sucessão dos dias, horas, momentos”. (FERNANDES & outros, 1996, p. 597).
No âmbito da análise literária o tempo é considerado um dos elementos que
compõem uma narrativa, seja ela, conto, crônica, novela ou romance. Assim,
segundo o narrador de A montanha mágica, “a narrativa se parece com a música no
sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo... [...] elemento da narrativa,
assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos
corpos no espaço”. (MANN citado por NUNES, 2003, p. 5-6).
Pode-se dizer, portanto, que o tempo em uma obra de ficção narrativa em
hipótese alguma se separa do mundo imaginário criado pelo autor, onde interagem
seres e objetos nas mais diversas situações. Desse modo:

É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro. De


“uma infinita docilidade”, o tempo da ficção liga entre si momentos que o
tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou
perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los
indefinidamente ou de contraí-los num momento único, caso em que se
transforma no oposto do tempo, figurando o intemporal e o eterno. (NUNES,
2003, p. 25)

De acordo com o teórico francês, Yves Reuter (2004, p. 87), “toda narrativa
tece relações entre no mínimo duas séries temporais: o tempo fictício da história e o
tempo de sua narração”, uma vez que se encontram três planos em uma narrativa:
história, discurso e narração. O primeiro refere-se ao conteúdo, o segundo a forma
de expressão e o terceiro ao ato de narrar.
Para que a narrativa se desenvolva de forma coerente é preciso que estes três
planos estejam sempre interligados, visto que um depende do outro. Desse modo, o
tempo da história (imaginário) depende do tempo real (plano da história), que por
sua vez se relaciona com o tempo do discurso apresentado através da linguagem.
53

O tempo da narrativa, explicitado pela teoria da literatura, é, ao lado do


ponto de vista o foco, do modo de apresentação e da voz, uma das
categorias do discurso. Mas as suas variações não podem ser apreendidas
se apenas visamos o discurso independentemente da história, ou apenas a
história, independentemente do discurso. O tempo da narrativa só é
mensurável sobre esses dois planos, em função dos quais varia. Ele deriva,
portanto, da relação entre o tempo de narrar (Erzählzeit) e o tempo narrado
(erzählte zeit), segundo a distinção inaugurada por Günther Muller.
(NUNES, 2003, p. 30)

Uma técnica bastante utilizada pelos romancistas e ficcionistas em geral


consiste na inversão da ordem dos tempos dentro da narrativa, já aludida nas
palavras de Benedito Nunes. Essa técnica chama-se anacronia e pode se
apresentar de duas maneiras: analepse e prolepse, conforme a nomenclatura do
teórico também francês Gérard Genette. A primeira (também conhecida por
flashback) consiste na narração ou evocação de um fato ou acontecimento anterior
ao dos fatos que estão sendo relatados pelo narrador. Pode ser caracterizada como
fatos que aparecem dentro de outros fatos, de acordo com o modo como o narrador
recorda suas experiências. Encontram-se exemplos de analepse ou flashback nos
seguintes fragmentos de Grande sertão: veredas e Aparição, respectivamente:

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. [...] Se deu há tanto, imagine: eu
devia de estar com uns quatorze anos, se. [...] Pois tinha sido que eu
acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu
cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um
tanto – metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se
pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São
Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo
Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode. Ora, lugar de
tirar esmola era no porto. [...] Aí pois, de repente, vi um menino, encostado
numa árvore, pitando cigarro. [...] Ali estava, com um chapéu-de-couro, de
sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que me vim
para perto dele. [...] Disse que ia passear em canoa. [...] Me perguntou se
eu vinha. [...] Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha
frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava
mal, balançando no estado do rio. [...] O vacilo da canoa me dava um
aumentante receio. [...] Eu não sabia nadar. [...] Tive medo. [...] Medo e
vergonha. [...] Apertei os dedos no pau da canoa. [...] Não pensei em nada.
Eu tive o medo imediato. [...] Quieto, composto, confronte, o menino me via.
— “Carece de ter coragem”... – ele me disse. [...] — “Carece de ter coragem.
Carece de ter muita coragem”... – ele me moderou, tão gentil. [...] E eu não
tinha medo mais. [...] O sério é isto da estória toda [...] eu não sentia nada.
Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome. [...]
Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de
encontrar aquele Menino? (ROSA, 1986, p. 85-92)

Esta analepse, assim como várias outras, se encontra dentro do relato de


Riobaldo sobre a vida já adulta do jagunço no sertão. Assim, ela tem como função
54

dentro da narrativa ajudá-lo, por assim dizer, a entender a experiência do pacto feito
anos mais tarde, já que para tal, ele precisaria de muita coragem.

Fecho a janela, fico a olhar por trás dos vidros. E parece-me subitamente
que o dia não renascerá jamais, que a verdade da vida só ali se cumpre
para sempre, na secreta imobilidade das coisas, na pureza lunar de uma
neve nocturna. [...] A lua desce da serra, entra pela vidraça, derramando-se
pelo soalho em coágulos de gelatina. Por uma noite assim há cerca de vinte
anos... Por vezes, tento reconquistar-me desde o mais remoto passado. [...]
Não falei ainda do meu cão Mondego? Era uma tarde de Junho,
regressávamos os três irmãos da escola. [...] E eis que a certa altura, reparo
que atrás de nós vinha um cão lazarento. [...] Farejava, pois, um dono na
sua inquietação de cão livre. [...] Dei-lhe um nome, o cão olhou-me de
longe, imóvel, com o seu olhar triste e ressentido de velhice. [...]
Estabeleceu-se assim uma comunicação entre nós por uma certa qualidade
de presença, de realidade íntima, de pessoas. Todos os bichos que eu
observara até então eram puros objectos mecânicos, como os grilos, os
ralos, as louva-a-deus; ou matéria, lama com movimento, como os vermes,
as rãs, os sapos; e os que já eram vida, como os pássaros, os bois, mal
tinham estabelecido comigo uma convivência que lhes revelasse, se a
tivessem, a individualidade. Sempre a vida me fascinou, sim. Mas nas
vibráteis lagartixas, cujas caudas cortadas remexem ainda frenéticas, nas
vívidas doninhas, nos ratos estrepitosos, nos pássaros, eu não sentia senão
confusamente uma forma total de vida, a mesma força universal repartida
pelos bichos, esse modo de ser em que o começo e o fim não são um limite
mas elos de uma continuidade. Ora no cão eu pude sentir obscuramente
uma <<pessoa>>. [...] Tinha uma personalidade definida, com simpatias e
antipatias, o conhecimento do que se passava à sua volta, as intenções dos
que se abeiravam dele. Ora um dia, precisamente, descobri meu pai e o
criado conversando ao pé do cão e visivelmente sobre ele. Mondego
adoecera, o pêlo rareava em clareiras leprosas, os olhos bordavam-se-lhe
de escorrências, vomitava freqüentemente. Deram-lhe drogas, mas o pobre
não melhorou. [...] Quando eu me aproximei, meu pai e o criado
interromperam-se. Mas o cão deu-me a notícia, ladrando, rouco, na direcção
dos dois, olhando-me depois com amargura e humildade. [...] Não havia ali,
porém uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma evidência serena.
Mas justamente para mim o que era evidente não era a morte, era a vida.
Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa? (FERREIRA,
1983, p. 121-124)

Já a analepse de Alberto Soares em seu relato, na qual ele volta vinte anos
antes em seu passado tem por função explicar a sua visão a respeito da vida e do
ser humano, pois compara, pode-se dizer assim, a existência do homem com a
existência dos animais. Ao se reportar a esse fato Alberto Soares deixa claro em sua
narrativa seu interesse pela vida, pelo mistério que há por trás da existência, isto é,
pela essência ainda desconhecida daquilo que habita um ser vivo, o seu “eu”.
Alberto Soares já esboça aqui suas primeiras reflexões acerca da condição
humana. Reflexões estas que servem de base para suas teorias e que mais tarde
serão aprofundadas ao longo de seu relato, tendo por objetivo entender sua própria
55

trajetória de vida no momento presente da narrativa. É, portanto, podemos dizer


assim, uma atualização do passado no momento presente da narrativa.
A prolepse é uma técnica narrativa que consiste na narração ou evocação
antecipada de um fato ou acontecimento posterior dentro da narrativa, isto é,
consiste em adiantar um fato ou acontecimento importante que foi resultado de uma
seqüência de fatos anteriores.
Há nos relatos de Riobaldo e Alberto Soares um fato em comum que faz com
que ambas as narrativas girem em um certo sentido também ao redor dele. Trata-se
das mortes do jagunço andrógino Reinaldo-Diadorim, no caso de Grande sertão:
veredas e de Sofia, em Aparição, duas personagens que desempenham um papel
de destaque dentro dos acontecimentos mais marcantes de suas respectivas
narrativas, servindo também de objeto para suas reflexões filosóficas.
Estes fatos são resultado de uma série de acontecimentos anteriores dentro de
seus relatos. São, podemos dizer assim, o ápice de suas narrativas, mas que
todavia, são revelados já no início dos relatos. São, portanto, acontecimentos
posteriores evocados já no princípio da narrativa para satisfazer de antemão a
curiosidade do leitor e deixá-lo a par do acontecimento mais importante, cabendo
aos narradores-personagens relatarem em minúcias os fatos secundários que
desencadearam esse final. É o que acontece nestes excertos:

Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. [...] Diadorim me pôs o
rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como
sei. [...] Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. [...] E, aquilo
forte que ele sentia, ia se pegando em mim – mas não como ódio, mais em
mim virando tristeza. [...] Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me
lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que
não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de
ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo
de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum
terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o
senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?!
Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA, 1986, p. 20-21-165)

Sofia. À luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu
olhar ácido de pecado... Domingos de Primavera pelos campos, noites
quentes de Verão no Alto de São Bento, a planície banhada de uma lua
enorme. [...] Ouço nas vísceras o teu canto ardente. Os céus estremeciam à
anunciação da tua divindade. Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face tão
jovem tinham o mistério da vitória e do desastre, da violência do sangue. [...]
Sofia! Como eras estranha! Como o foste até ao fim! Mas agora que
morreste de uma morte inesperada que te evitou o gesto puro de te
matares, agora que relembro toda a tua vida certa, evidente, na mais
atitude, reconheço a verdade antiga, axiomática, de todo o teu raiar a um
56

mundo de limites, de máximos, de pura iluminação. (FERREIRA, 1983,


p.29-52)

Como se vê ambos os narradores relatam de maneira sucinta já no começo de


suas memórias as mortes de Diadorim e Sofia, as quais serão referidas novamente
no transcorrer dos relatos e narradas com maiores detalhes no final. Riobaldo revela
previamente para o leitor o momento em que descobre a verdadeira identidade do
jagunço que pensava ser homem e objeto de seus afetos, uma vez que
apresentava-se como Reinaldo no bando, além de ser responsável pelos
acontecimentos mais importantes de sua vida.
Da mesma forma Alberto Soares revela antecipadamente ao leitor a morte de
Sofia, personagem responsável por alguns acontecimentos que vão interferir
diretamente na vida do professor de Literatura, deixando as circunstâncias e os
pormenores do fato para o desfecho de sua narrativa.
Com isso,

[...] a narrativa pode desenvolver-se na ordem inversa à cronológica,


deixando em aberto seqüências posteriormente completadas num
movimento para trás. [...] O recurso mais comum é intercalar seqüências
retrospectivas ou prospectivas às seqüências correspondentes ao momento
narrado, sem quebra da continuidade do discurso, que evoca ou antecipa
acontecimentos, de modo a deslocar a mesma ação ora para o passado ora
para o futuro. (NUNES, 2003, p. 32)

É o que acontece, por exemplo, neste excerto, no qual Riobaldo explica ao seu
interlocutor os motivos sobre os volteios entre passado recente e remoto em seu
relato:

Talhei de avanço, em minha história. O senhor tolere minhas más devassas


no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não
sei contar direito. Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – me
escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a
contar corrigido. E para o dito volto. (ROSA, 1986, p. 171)

Por serem relatos memorialísticos que atualizam o passado vivido dos


narradores-personagens Riobaldo e Alberto Soares no presente, estes recursos são
de vital importância dentro de suas narrativas, uma vez que como indicadores de
tempo estão diretamente relacionados aos seus discursos e ao processo de
recordação dos fatos narrados, seguindo uma orientação não-linear.
57

Este tempo psicológico ou psíquico, no qual o indivíduo atualiza o presente em


função do passado e de projetos futuros simultaneamente “é a mais imediata e mais
óbvia expressão temporal humana”, nas palavras de Benedito Nunes (2003, p. 19).
Segundo ele figuram como características do tempo psicológico essa mistura entre
passado e presente guiados por sentimentos e lembranças, pontuado por intervalos
breves e longos.
Estando o tempo vinculado ao discurso do narrador-protagonista, no caso de
Grande sertão: veredas e Aparição, em primeira pessoa, é através da recomposição
dos fatos passados e do balanço do que viveu, que o narrador explica o presente,
procurando entender sua vida. Desse modo, ele “percebe que só poderá entender o
que aconteceu quando fizer o personagem, que é ele mesmo, representar os atos
que ele, narrador quando os viveu, não pôde avaliar quanto a sua dimensão”.
(FERNANDES, 1996, p. 129). A história que narra é então usada pelo narrador como
objeto de questionamento existencial.
Assim, ele organiza o mundo em conformidade com aquilo que vê e que pensa,
já que tudo parte dele e a ele retorna. Este narrador funciona como uma espécie de
“película sensível onde o mundo visível vai marcando suas impressões”.
(FERNANDES, 1996, p. 134). Por ser um tipo de narrador reservado, sua retórica é
direcionada a um ouvinte.
Neste sentido, podemos dizer que:

Contando histórias, os homens articulam sua experiência no tempo,


orientam-se no caos das modalidades de desenvolvimento, demarcando
com intrigas e desenlaces o curso muito complicado das ações reais dos
homens. Desse modo, o homem narrador torna inteligível para si mesmo a
inconstância das coisas humanas, que tantos sábios, pertencendo a
diversas culturas, opuseram à ordem imutável dos astros. (RICOEUR citado
por NUNES, 2003, p. 78)
58

5 CONCLUSÃO

A análise das teorias bakhtinianas e sartreanas aplicadas às narrativas de


Guimarães Rosa e Vergílio Ferreira mostrou-nos que as duas obras possuem um
emaranhado de correspondências entre si. Ao se aplicar a teoria do dialogismo de
Bakhtin nos discursos de Riobaldo e Alberto Soares, narradores-protagonistas de
Grande sertão: veredas e Aparição, respectivamente, observamos a similaridade
entre os temas-objeto de suas indagações filosófico-existenciais.
Com isso comprovou-se que as palavras não são signos neutros e particulares,
marcas exclusivas de um indivíduo, mas que estão presentes em várias
modalidades de discurso, isto é, as palavras fazem parte do sistema lingüístico e,
portanto, são amplamente utilizadas no cotidiano, variando apenas em suas
entoações. Assim sendo, são constantemente incorporadas pelos falantes,
misturando-se o discurso de um indivíduo no discurso de outrem.
Neste sentido, dentro de um mesmo tema é possível surgir diversas opiniões,
nas quais os discursos se misturam em algum momento, encontrando-se analogias
e diferenças entre elas, não só entre os signos, mas também na expressão da
mensagem. Desse modo, verificou-se que as palavras pertencem a um sistema
conhecido por todos os falantes do idioma, sendo então compartilhadas entre eles,
através de diversos pontos de vista, os quais podem ou não coincidir em sentido de
ideologia, isto é, no sentido de expressarem-se opiniões análogas acerca de um
assunto.
A teoria do dialogismo de Bakhtin é formulada não apenas sob a perspectiva
literária, mas antes disso, com base no estudo da língua e dos falantes que dela se
servem, uma vez que os autores e escritores estão inseridos neste meio, utilizando
assim a linguagem como principal matéria de seus textos. E é através do uso da
linguagem corrente e cotidiana que a relação dialógica se estabelece dentro da
narrativa, visto que o autor utilizando-se desse sistema está em certo sentido
interligando idéias, pensamentos, pontos de vista e opiniões correntes por meio de
seu narrador e de seus personagens.
A relação dialógica identificada por Bakhtin não se dá apenas no nível interno
da narrativa, isto é, entre as diferentes vozes que a povoam, vozes de personagens,
do narrador e até mesmo do autor. Ela vai mais além disso, estabelecendo conexões
com textos alheios, ou seja, com idéias, pensamentos, pontos de vista e reflexões
59

sobre diversos temas, de narradores e personagens de outros romances e/ou


narrativas. A essa relação dá-se o nome de dialogismo externo, pois embora os
temas tratados possam ser os mesmos, os contextos são diferenciados.
Ao se aplicar a teoria do Existencialismo de Sartre nas experiências do pacto
com o demônio, de Riobaldo e o encontro com o espelho, de Alberto Soares,
observou-se que ambos os narradores-protagonistas passaram por um momento de
epifania, uma vez que procuravam encontrar algo além das aparências, ou seja,
encontrar a essência do homem, aquilo que o define.
Pôde-se comprovar a partir disso que tanto Alberto Soares como Riobaldo
possuem um problema metafísico para resolver. Neste sentido suas experiências
expressam a angústia de ambos em torno da condição humana, uma vez que
segundo João Décio é algo “fundamental para a evolução da criatura”.
São experiências que propõem o encontro da criatura consigo mesma, visto
que de acordo com Sartre o homem primeiro existe para depois desenvolver a sua
essência, a qual será construída através de seus atos e escolhas no decorrer de sua
existência.
Decorre daí que a existência humana passa por constantes transformações
durante o processo de busca do Ser, da consciência de si mesmo. E durante esse
processo surgem aquilo a que Alberto Soares denomina de “aparições”. Estas
“aparições” são situações nas quais o ser humano entra em contato consigo mesmo,
transcendendo-se, o que resulta em sensações de medo, terror, apreensão diante
do que descobre.
Comprovou-se assim, as relações existentes entre a temática e o discurso dos
relatos e, principalmente, das experiências, nas quais Alberto Soares e Riobaldo
figuram como narradores e personagens centrais.
60

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1970. Trad. Rita Correia Guedes. (meio eletrônico)

VERGÍLIO Ferreira. Centro Virtual Camões. Portugal, 2001. Disponível em:


<http://www.instituto-camoes.pt/cvc/oceanoculturas/22.html> Acesso em:
06/04/2007.

APARIÇÃO – Personagens. Farol das Letras. Portugal. Disponível em:


<http://www.faroldasletras.no.sapo.pt/aparicao_personagens.htm> Acesso em:
11/04/2007.

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