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ARDÊNCIAS

Manoel Constantino

ARDÊNCIAS

Manoel Constantino

INTERPOÉTICA - um espaço alternativo para a poesia


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Manoel Constantino

ARDÊNCIAS

"Ardências", de Manoel Constantino, já


conhecido no Recife por sua atividade teatral,
é a voz de uma geração mais nova que
atravessa a cidade, e faz de sua práxis
poética uma forma de superar a rotinização
de vidas sem palavras, sem endereços e que
procuram fazer do verso uma tentativa de
ressonância do seu próprio deserto:" a gente
inventa sonhos / pra não morrer. (...) para
morrer diferentes: / cada um no seu
deserto". Escrever, sendo uma forma de
morrer para a rotina e de festejar abismos,
de "atrapalhar a morte/ que em cada
esquina/ anuncia".

Uma geração que se faz entre espigões sem


vida, pois "os edifícios fazem sombras / a
platéia muda e transeunte / inventa um outro
dia". É precisamente nesse inventar que
encontramos a resistência daqueles que,
mesmo perdidos, não esquecem a aposta, a
procura da arte sendo uma forma lúdica de
apostar em qualquer utopia que os venha
colocar além de seus pungentes horizontes.

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Manoel Constantino

Por isso, nos diz ainda Manoel Constantino, as


mãos atravessadas das cores de sua cidade de
Recife: "com as cores nas mãos / apostei ...
(...) uma flecha em ânimo para o alvo". É
justamente essa flecha em busca de um alvo
que constitui essa procura alucinada de quem,
além de ruídos e máquinas, faz da palavra
uma arma de libertação; daí chamá-Ia: "a
palavra, / língua da minha língua".

Daí, também, ver sempre, diante de seus


olhos, um mar arregaçado: "meus olhos são
os olhos do Recife/ estranhos vigilantes de
um cais ferido".
E como a palavra sempre existirá, toda poesia
é uma promessa.

Ângelo Monteiro.

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Brinquedo

O homem possui o gosto


de saber partido,
o coração dar saltos.
A rã pula.
O susto salta.
Meu coração virou brinquedo.
Salta.
Pula
e chora.

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Nunca mais

À meia-noite bebo a última dose


ponho de lado a oração
que Mariinha me ensinou
e fico sentido o sexo
corado mas ainda tímido.
Andar pelas ruas
e ir catando sonhos
na medida do que é transitório.
Nunca mais vou querer ser triste.
Nunca mais terno e gravata
apertando a vontade.

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Clowns

Quem possui a sensatez


dos caminhos?
A água turva,
o sangue coagulado,
não me desanimam
de envergar a paixão
deixá-a correr por ruas:
"streap-tease", "clowns", máscaras
e porque abissais,
latentes, me fascinam.
Que toquem a música derradeira.
Beba-me um pouco e nada mais.
Eu tenho a fome
urgente dos animais.

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Portas

Ao abrir a porta
estarei frente a poesia
com olhos e coração
de um grande bandido.
A palavra,
língua da minha língua,
dói hoje diferente:
mais bruxa
mais abismo.

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Plurais

Tragam-me então outra pele


que esta em mim é mascarada.
Que importa o sono?
Quero grandeza e plurais.
Rasgo a carta de alforria.
Deram-me de presente
uma máscara
que sequer cabe no meu rosto.
A avenida é larga
e a minha nudez
é o revólver posto
em m minha nuca.
E tudo poderia ser simples
como as águas.

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Desempate
Para Celina de Holanda

Estou desempatado com a vida.


O coração sangra
duas avenidas
solidão
orgIa.
Atravesso pontes e pontes
depois
o botão ferido
minha camisa rasgada
minha alma boiando no rio.

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Canção para Lia

Pensar em demasia dói.


Minhas roupas
penduradas
nos cabides, engomadas,
possuem a leveza de Lia.
A leveza de saber
que o engomar de roupas
tem o mesmo peso
do carinho
profundo.

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Paralelas

Minha mãe corta


delicada as cebolas
para deixar um gosto
ardente
nos seus pratos preferidos.
Minha mãe inventa vida
até mesmo com o sal.
Em mim, a vida corta
os silêncios.
Por vingança
devolvo as cicatrizes
com a fome
que tenho pelo pecado.

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Caminho

Para Messias Meio

Quando dois irmãos


caminham entrelaçados
de dores, espantos
e estúpidas certezas,
o mar se quebra,
o fogo fala
e a surpresa fica desatenta.
Trago, evaporando,
essas caminhadas.
O único ponto do círculo
é a paixão descabida,
o desnortear de horas,
o encanto
sacana e pueril
dos mesmos desejos:
uma profissão,
uma família
e a dor safada
de poder vingar-se
dos sonhos.

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Segundo fragmento

Tudo vibra intenso


Mas a dor ainda me fragmenta
- a solidão do homem é a solidão eterna -
No meio da cidade
sou pinceladas de um quadro inacabado,
sem moldura,
escorrendo pelas bordas
- taças quebradas -
velho vinho de um mundo estragado.

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Retalhos

A vida rosna ao pé do ouvido


e ainda invento versos.
Mas não há de ser nada
em mim pousa a leveza
e as danações de Deus.
Outro dia uma balconista
me reclamou da vida.
Fiquei com a cara do mundo
Por isso quero pregos
martelos
tintas
para pendurar um varal
de lençóis brancos
e roupas coloridas.
Só assim posso lavar as dores
e a solidão da cidade.
Só assim possuirei olhos
de gato, engatilhados
mesmo sem saber a cor exata
de todos os telhados.
E ainda acredito
que felicidade é a palavra
mais doida que conheço.
"Santo Anjo do Senhor

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meu zeloso guardador


se a ti me confiou
a piedade divina..."
eu quero a felicidade
desse jeito mesmo
e uma radiola de ficha
que toque um bolero
mais ligeiro.

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Comportas

Quando fiz trinta,


abri comportas
de represa antiga.
Só alguns escutaram
o estrondo das águas
invadindo terras
derrubando sonhos.
As brincadeiras,
os castelos,
palavras e sopetões
desaguaram:
eu, perplexo,
vi e ouvi um homem
nascendo pequeno
outonal
por que cada gesto
palavra
paixão
haveria de ter
fogo e asas.

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Arrecifes
Tem horas que fico faiscando.
Arrecifes
nunca devem ser lapidados
por isso sonho coisas
cheias de mar e sargaços:
Recife não me quer manso.
A radiola de ficha
quase à beira do cais
nunca mais adeus
nem flor de papel crepom.
Recife, pedra minha,
um dia te encontro desprevenida
e então contarei uma lenda
com cheiros de frutos e flores
só para te encabular.

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Detalhes

Cinco de agosto. Roberto Carlos canta


na radiola de ficha. Minha amada, minha...
Se você pretende saber quem eu sou...
Onze horas e cinco minutos. Mais um bar
mais um dia arrancado
do calendário da cozinha.
São tantos olhos de fogo!
E mãos:
detalhes de um território livre.
A segunda cerveja e a companhia
oportuna e eventual...
Aqui ninguém tem projetos.
Se somos reis,
os súditos não passeiam
pelo jardim.
Os súditos são paixões,
corpos cósmicos
sempre à beira do cais.
Recife me engole manso.
Fico boiando
nas águas do Capibaribe.
Como atravessarei as pontes?

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Vontades

Outro dia, a cidade


estava assim:
parada, numa pose
de musa ofendida.
Era verão
e chovia.
O trânsito, o semáforo
e os homens
- até mesmo os que possuem mil e uma faces -
permaneciam engarrafados.
Em mim, uma vontade danada
de ser pássaro
pousado em pontes, extasiado,
reinventando rios
ou ser uma flor
fincada à beira-mar,
contemplativa e só, bebendo as lágrimas
caídas do céu
até curvar-me em peso
para beijar a terra
e reinventar o círculo.

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Escalas

Ficar olhando para o mundo


com os olhos de alegria
dói como um longo exílio.
Tudo é deserto.
O sangue vai coagulando
devagar,
fechando artérias
e os caminhos do coração.
Quando acendem os luminosos
enfeitando a cidade
tenho a impressão
que ainda há sonhos
espalhados
daí esse meu jeito
de sair notívago
perambulando pelas nuvens.
Depois adormeço
o corpo quente
febril
alimentado de ilusões.
A vida deixa de ser pesada e grave.

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Varanda
Nunca pensei
no peso das palavras.
Hoje elas caíram da estante
e eu só tinha duas mãos
o susto do sol
pulando para os olhos
o canto do galo
espiando
o dia.
Reunião. Gato Dentro D'água.
Confissões de Um Pecador.
Tópicos de Matemática.
Noticiário. A Mão Extrema
e A Paixão Medida.
São tantos sentimentos
escapulindo dos homens
que olhei para a cidade
e a amei lívido.
O coração é uma passagem
aberta na margem do rio.

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Silêncio
Mergulho no Recife
sem argumentos.
Mão
e contra-mão
adiante
o silêncio branco
que se incrusta em mim
- entre a vida e cidade erguida -
branco.
Para reter o sonho
como o alvo se entrega à flecha
será preciso amor,
a paz ferida
e avenidas latejantes.

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A casa

Para lnaldo Cavalcanti


Onde há incêndio
o fogo traz mistérios
e serpenteio adiante
no ressoar dos sinos
beirando margens,
o profano mar,
da face que me cabe.

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Curta-metragem
Para Sílvia Melo

A vida é curta
eu sei.
Apodrece como qualquer fruta.
Nasci assim
uma mistura
de pedra
e água,
subindo
e descendo
as ladeiras da Ribeira do Panema
- terra que borbulha no meu sangue -
água e pedra.
Mas não me desespero
com o final do século.
Procuro a matéria-prima
para talhar um sorriso.
Fura-bolo,
cata-piolho.
Moleque, insisto no cotidiano:
doce
e
dilacerante

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O menino
Não haverá o segundo ato.
Só a canção, a dança final,
os aplausos,
a poltrona vazia:
o menino fugiu
misturando caos e calma
para não sentir
o mistério
dos caminhos cruzados
nem a sensação antecipada
das cortinas fechadas.

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Cansaço

Estou no caminho
da
montanha
e
ainda
não
sei perdoar.

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Tatuagem

Despeço-me urgente e cigano.


Remo a dor
para além do cais.
Adeus.
Adiante habitarei o silêncio.
Não precisarei ser tantos.
As borboletas
são mais coloridas
na primavera.
Ninguém então saberá
de um gota de sangue
tatuada no chão
da cidade.

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Os pássaros
Os pássaros quase sem fôlego
descortinam o mundo.
Apesar de tanta dor,
da falta de rumos
o coração é o mesmo:
ritmo alucinado
de querer mais
beijar mais tudo e todos.
O sonho do poeta
galopa por ruas
assombradas do Recife.
A multidão não responde
nem olha.
Que estranha forma é essa
de percorrer caminhos tão secos?
O que me resta:
a lua me desgoverna
e os grilos cantam.

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Dose dupla

Criar.
Recriar.
Repetir em doses duplas
a vida.
Que importam os abismos?
Que importam tantos sinais
truncando sonhos e desejos?
À invasão de poemas
no cotidiano das minhas ruas!
Respiro o mundo com a urgência
dos mortais
mas detenho-me nos fins-de-tarde
a contemplar certos sorrisos soltos, à toa.
nas mesas dos bares.
Restam asas
e
a possibilidade do vôo.

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Mar arregaçado
Em cores de arara
meu corpo espera.
Meus olhos são os olhos do Recife
estranhos vigilantes de um cais ferido.
Rasgada a garganta de espanto
meus gritos são farpas elétricas adormecidas.
O coração,
mar arregaçado,
espera dias e noites.
Ualri revelou os segredos
e há trezentos e sessenta luas
que não canto.

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Memória

Barco à deriva
nos mares de amores perdidos.
Vejo, através de espelhos
quebrados em mim,
largos ancoradouros vazios:
não quero mais
olhar através dessas retinas
nem procurar nos dicionários
o significado das cartas
marcadas no revólver da vida.

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Olhos ancestrais

Bebi das pedras do rio Ipanema,


água parca, cacimba de esperanças.
Das pedras, em sua dureza,
herdei o tino de rolar
como seixo
mundo acima
mundo abaixo
com os olhos
de todos os olhos ancestrais.
Com o fogo do sol
marcado no corpo,
nos meus caminhos
trago cactos,
o coração, os espinhos.
Bebi das pedras da cidade
grande e inflamável
o coração sem farpas
enrodilhado no brilho falso dos néons:
nas esquinas me disfarço.
O palhaço, o moleque, o nó engasgado
e nos olhos
- com todos os olhos herdados -
ressoa a cantiga dos encantados.

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O agudo
Acabei de respirar o oco de mim.
O corpo dança,
o coração suspira
sou o agudo do agudo
e por isso precipito:
o mais -que- perfeito
não previu
o verbo que desejo.

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A busca

Na miúda transparência de fim-de-tarde


o poeta visita todos os cômodos da casa.
Está dionisíaco.
Certamente, busca nas sombras
e nos restos de luz
a paixão.

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Feriado
Por enquanto perdi
os parâmetros
do trânsito
e tudo fica esquisito.
Miar nos telhados
- o céu é uma multidão -
e o chão da cidade
é o outro lado.
Aqui não há entrelinhas:
O mundo é uma grande besteira
por isso me enfeito
ponho o paletó preto
saio engomado
pronto para conquistas tolas
em dia de feriado.
Há alguma coisa
que mortifica:
sair por aí
na pressa de ser encontrado.

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Transitoriedade
Ah! Meu amor
estou em trânsito.
Nunca cavalguei
tantos mistérios,
nunca desvendei
tantos segredos,
estranhos locatários,
guardados em mim,
enovelados.
Ah! Meu amor
só agora ouvi o ranger
dos portões.
Só agora percebi
que vivo te atravessando
e te amando há séculos.
Estou em trânsito,
bebendo, precipitado
de invernos.
Amanhã, nem sei se nos veremos
e entre notícias de jornais
rasgo gritos, vaidades,
taças quebradas:
jogos nos quais nos perdemos.

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Coração terrorista

Qualquer dia farei jogo duro.


Cartas marcadas e o naipe preferido
brotarão nas mesas
e em tuas roupas deixarei
estratégicas giletes,
loucas por teu coração terrorista.
Qualquer dia atropelarei
os semáforos fechados,
farei greve nas esquinas,
insensato como o rio Capibaribe
fincado no meio da cidade.

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Nas entrelinhas
Outra vez sento-me
em tua mesa.
Os copos transbordando
guerras antigas
e silenciosas.
A paixão contida
revelada somente
nas entrelinhas
das bocas
dos olhos.
Pactuamos diante do tremor
súbito de nossas mãos.
Canso-me e recolho
todas as armas.
Não sei até quando
estarei enfermo de amor
e, por isso, estremeço.

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Golpes

No meio da noite
planejo golpes certeiros
preparo como um perito
mais de uma navalha.
A vida?
A vida é bem amolada.
Qualquer esquina
pode ser o local do crime
e à beira dos semáforos
espero, em guarda,
atrás de qualquer poste.
Num salto irrecusável de felino
darei a minha boca
a fotografia preferida
e o corpo amadurecido.

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Paixão avessa
Quando te vejo assim tão vulgar
meu corpo, meu coração
em réstias de luz tropeçam
mas tens a beleza que ainda não compreendo
e o ar, os ventos, as árvores,
as coisas mais sensatas
perdem os seus significados.
Vagueio pelas noites
com gosto de vida de vidro na boca.
E corta.
Quando te vejo chegar pela janela do quarto
invadindo lençóis,
brincando com o meu pênis ereto,
deixo-me entregue à cidade.
Quando te vejo chegar e partir
a vida fica ausente
e eu, perplexo e vulgar.

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Visitas

São vinte e duas horas


e exatos trinta minutos.
Vibro macio
espalhando pela casa
uma quentura de fornalha.
Nossos corpos
recebem uma forma
mais definitiva.
Eu me dilato irreversível
de paixão
e gozo.
A porta range
doce
saciada.
Um pássaro atravessou o tempo.

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Trilhas
As horas passeiam
avisando-me do tempo.
O que somos está grudado nas paredes
dos meus olhos,
no gosto que trago na boca.
Lanço-me para além do mundo
em pele de animal uivando.
O que importam os semáforos, verde, vermelho,
amarelo
quando nem sequer chegamos ao abismo
de nossa palavra?
A paixão tem medida?
Não te olho através das sombras.
Vejo-te em "outdoor", em revistas semanais.
nos filmes de fins-de-semana,
em certas coisas: a xícara de café,
a toalha ainda molhada, os cheiros da manhã,
a cama desarrumada.
As horas passeiam.
Não te olho através das sombras.
Vejo-te e me espelho
sem a dor de me saber partido ao meio.
O caminho é longo
e há curvas que me ferem.
E te convido.
Sempre.
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Ardências
Somos vagalumes na noite
envergados por todos as cores
num jogo louco
de mar e rio
desaguando amor e amor
estuários e arrepios.
Somos o fogo.
Ponho-me de joelhos.
Agradeço a Deus
tanto desejo e gozo.
Tudo é elétrico.
O mundo é apenas o mundo.
Nós somos abundantes
como as trovoadas.

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Aprendiz
Beba um pouco de mim
enquanto atravesso a cidade.
Em cada rua à meia luz
um beijo de aprendiz
abraços mais fortes
de pernas e mãos selvagens.
Beba um pouco de mim
já que sou insaciável.
Quero vida
e vida
e vida
seiva bruta
esbraseada.
Beba um pouco de mim
para que eu possa
atrapalhar a morte
que em cada esquina
se anuncia e me provoca.

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Ultimo trago
O tempo é estranho
quando estamos vagos.
As paredes do apartamento
guardam as sombras
os gestos
da última paixão.
Num canto do quarto
reencontro de corpos:
uma peça íntima resoluta
sob um velho par de sapatos.
Vou
até a janela,
não a escancaro
mas mergulho na paisagem
bebendo a presença retida,
recomposta na memória
como o último
e definitivo trago.

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Entrega
Certas manhãs
possuem a tua audácia
denunciada na cama
entre silêncios
e longos arrepios.
Te dou meu verso
como te dou meu corpo
até mesmo em certas manhãs
quando revelamos ausências
e a cidade denuncia sombras
em cortes e cacos
de vidros.

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O filme
A lâmina, a poeira, a cinza dos cigarros
o uísque bebido às pressas,
roupa azul na cadeira,
sapatos desencontrados no chão...
feridas propositalmente esquecidas,
confessei a paixão,
a mais imediata de mim.
Somos protagonistas de um filme antigo
com desejos em "close",
depois detalhes,
um corte brusco
denunciando o grande final,
sem despedidas.
No cenário vazio
apenas as luzes dos holofotes
continuarão acesas.
Quase camuflado
fiquei só,
sem espelhos, sem medidas.
Lá fora
os edifícios fazem sombras
a platéia muda e transeunte
inventa um outro dia.

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Fragmento V

É estranho beijar
breve e ríspido
como uma ordem-do-dia
para depois seguir
a rota
nos mares da cidade.

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Abismo
Ao amigo Eduardo Diógenes

Tudo é tão ridículo


tão pouco!
O desejo sem rosto
entre aspas
então, tão sem medidas
que todos escapam
ilesos, sem feridas.
À noite
"vídeo-game", bares,
beta, alfa, "clown",
eu me dilacero
mas bato a porta
com a raiva dos malditos.
Não importa
o riso mais atrevido.
É quase nada.
Frente à janela
sem musa
perco a rima
e, por isso, bebo do abismo.

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Lição

A melhor lição da vida


é de quando aprendi a amar as mulheres.
O quarto de sombras, a cama forrada
de retalhos - azul, vermelho e roxo -
e flores remendadas.
O coração
em galope, medo e susto chicotado
e a voragem de aprendiz.
sempre preferi o prazer mais atrevido,
beijar a boca mais encarnada,
uma xícara de café bebido a dois.
Decidir amar os homens
foi um salto:
meu pai, meus irmãos,
meus amigos.
Cada um era dono de uma cor.
Enchiam-me os olhos
e as estações.
De tanta paixão
trago meu corpo uivando.
À beira dos trinta anos
não me dou por satisfeito.
Quero também o amor da morte
e o amor de Deus.

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Fim de jogo
Eles caminham pausadamente
um ao lado do outro,
tudo flui fácil e veloz,
uma arara grita no parque
do meu coração.

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Vídeo game

É estranho pensar:
amanhã escreverei uma longa carta.
É tudo tão rascunhos!
A cidade me escapa
em videoteipe remendado.
A paixão se quebra
no meio da emoção.
Depois, só ruídos e máquinas.
Gostaria de apagar as luzes
embrenhar guloso
na escuridão da estrada.

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Lição de casa

Lúcia deitada na cama


contemplando o mundo,
romances e sons
tem uma cor.
Lúcia decorando
o apartamento
e os miados de uma gata
tem uma outra cor.
Lúcia assistindo à televisão,
insistentemente,
tem mil cores.
E aí ela foge.

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Alegria rubra
Sonhei conhecer uma mulher
saída do mar
rasgando terras.
Uma mulher vermelho-amarelada
que me ensinava os segredos
das réstias que ferem as janelas.
Sonhei conhecer
e pertencer
a uma mulher publicamente
e então uma rubra alegria
me fez despetalar
o tempo.

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Fragmento
Com as cores nas mãos
apostei:
atravessaríamos as pontes
antes que o sol se pusesse
em sagitário.
Você mergulhou no Capibaribe
- uma flecha em ânimo para o alvo -
pensando ser, os reflexos, Paris.
Abobalhado
comecei a procurar os girassóis
para me encadear às margens,
pássaro do infinito
abandonado.
Mas considerando a lógica
tomei-me um alucinado
de jugular saliente
e andar encharcado.

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Manoel Constantino

Nos caminhos das pedras

À Celina de Holanda
Ao Emanuel Cavalcanti

Sant' Anna da Ribeira do Panema,


protegei-me!
Dá-me tuas pedras,
dá-me tuas ladeiras,
dá-me o teu sol
e tuas estrelas.
Sant' Anna da Ribeira do Panema,
dá-me tua água parca,
dá-me teus cascalhos,
dá-me o teu rio,
atravessando minhas veias.
Dá-me teu cruzeiro,
dá-me tuas alegrias
e arrebata de mim tuas tristezas.
Sant' Anna da Ribeira do Panema,
dá-me tua língua,
dá-me tuas cobras,
dá-me os teus rosários,

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Manoel Constantino

dá-me todas as horas


perambulando nos meus olhos.
Dá-me, por fim,
o pôr-da-sol,
aquele buraco enorme no céu,
onde continuarei a caminhada,
por ti, por mim,
em papel assinado,
lacrado em saliva, em suor,
ancorando nos portos do mundo novo,
apeiando das selas dos cavalos loucos,
só para descansar.
Protegei-me, minha senhora,
aqui, agora, até a minha última hora.

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Manoel Constantino

Solidão

A gente inventa
sonhos
para morrer
todos os dias.
Outras vezes,
esquecemos palavras,
endereços,
para morrer diferentes:
cada um no seu deserto.

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Manoel Constantino

Algemas
Por que essa demora
em quebrar as algemas
enferrujadas
e frias?
Há ratos roendo a espera
- estação de desejos -
e uma cigarra
rompe a vida
diante do espelho.

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Manoel Constantino

Dia de festa

Que toquem as trombetas


guitarras
e zabumba.
Hoje a alegria
pousa colorida em minha casa.
Que venham os amigos
inimigos
e poetas
(os mais loucos, se possível)
que hoje o canto é bem-vindo
como as manhãs
embriagadas de brilho.
Façamos de conta
que ainda estamos vivos
e que as crianças
adormeceram de bucho cheio.
Em pleno final
do século vinte
minha vontade
é deixar esta minha alegria
pendurada no ar.

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Manoel Constantino

A palavra

Percorro os caminhos
da pedra e do riso.
Certas palavras
não deviam ser escritas,
já dói a dor
de senti-Ias.
O resto de nós é compreensível.

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Manoel Constantino

Silêncios

Tenho poucas palavras:


sabonete, cartas, máscaras, cadeira
e música.
Tenho poucos instantes:
oito horas, meio-dia, madrugadas.
Então,
não me queira com bondade,
não me queira com o ar dos profetas
nem me faça enrodilhar
em velhas promessas.
O tempo tem dimensões
absolutamente absurdas:
não jure.
O próximo juramento
pode ser a sua próxima mentira.
O silêncio
também sabe contar histórias
fantásticas.

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Manoel Constantino

Decreto
Ontem foi um dia comum,
meio morto,
vago e indelicado.
O mundo solta muitos
suspiros,
o homem sonolento
atravessa por atravessar
suas próprias ruas
e o olhar não é mais o olhar:
decreto então o riso
como sentença
e o espelho, como o outro lado
- o que está invisível dentro de mim -
porque os mesmos gestos
me cansaram.
Eu quero o poema
tomando-me a noite,
revirando o dia
ultrapassando o tempo
reiventando-me
de intensa alegria e gozo.

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O músico

Para Israel Semente

Será que toda dor


é prematura,
vem do antes
de ser?
O músico não suportou
a travessia do silêncio:
em cortes rápidos
dilacerou a vida,
numa partitura de sangue,
num grito que ressoará
eternamente
nas paredes da cidade.
O músico
partiu com os seus instrumentos
e em outras esferas,
extremamente lúcido,
deixa ressoar uma nova música
eletronicamente mais viva.

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