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A CIDADE SUSTENTÁVEL

E O DESENVOLVIMENTO HUMANO
NA AMÉRICA LATINA:
TEMAS E PESQUISAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

Reitor
JOÃO CARLOS BRAHM COUSIN
Vice-Reitor
ERNESTO CASARES PINTO
Pró-Reitora de Graduação
CLEUZA MARIA SOBRAL DIAS
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
LUIS EDUARDO MAIA NERY
Pró-Reitora de Extensão e Cultura
DARLENE TORRADA PEREIRA
Pró-Reitor de Assuntos Estudantis
LUIZ BESSOUAT LAURINO
Pró-Reitor de Planejamento e Administração
MOZART TAVARES MARTINS FILHO
Pró-Reitor de Infraestrutura
ERNESTO LUIZ GOMES ALQUATI
Pró-Reitor de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas
CLAUDIO PAZ DE LIMA
Antônio Carlos Porciúncula Soler
Carlos R S Machado
Daiane Teixeira Gautério
Eder Dion de Paulo Costa
Eugênia Antunes Dias
Paulo Ricardo Opuszka
(Organizadores)

A CIDADE SUSTENTÁVEL E O DESENVOLVIMENTO


HUMANO NA AMÉRICA LATINA: TEMAS E PESQUISAS

Rio Grande
2009
 de Antônio Carlos Porciúncula Soler; Carlos R S Machado;
Daiane Gautério; Eugênia Antunes Dias; Paulo Ricardo Opuszka

2009

Ilustração da capa: gravura do artista cubano Amílkar Chacón,


cedida pelo Professor Pablo René Estévez.
Formatação e diagramação:
Antonio Soler, João Balansin, Daiane Teixeira Gautério;
Eugênia Antunes Dias e Marcelo Fagundes Mirailh
Revisão: Anna Jardim (annajardim@terra.com.br)

C565c A cidade sustentável e o desenvolvimento


humano na América Latina: temas e
pesquisas / organizado por Antônio
Carlos Porciúncula Soler ... [et al.] –
Rio Grande: FURG, 2009.
222p.; 21cm

ISBN 978-85-7566-140-6

1. Sociologia 2. Sociologia urbana


3.Comunidades urbanas I. Soler, Antônio
Carlos Porciúncula

CDU 316.334.56
Bibliotecária responsável: Jandira Maria Cardoso Reguffe – CRB 10/1354
DEDICATÓRIA E AGRADECIMENTO

Dedicamos esta obra a todos e todas que de alguma forma


colaboram para a construção e concretização da utopia em torno da
Cidade Sustentável.
Não podemos deixar de registrar que, para a elaboração
desta obra, muitos esforços foram imprescindíveis.
Assim, agradecemos a colaboração do coletivo da Pró-
Reitoria de Extensão e Cultura (PROEXC) da Universidade
Federal do Rio Grande – FURG, do Núcleo de Desenvolvimento
Social e Econômico (NUDESE), do Grupo de Pesquisa Política,
Natureza e Cidade, do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa
Jurídica para a Sustentabilidade, do Grupo Transcultural de Estado
e Pesquisa em Educação Estética e Ambiental, do Centro de
Estudos Ambientais, do Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental e da Prefeitura Municipal de Santa Vitória do Palmar.
Em especial, nosso forte agradecimento a Pró-Reitora de
Extensão e Cultura da FURG, Msc Darlene Torrada Pereira, pela
permanente motivação e apoio sem os quais a materialização desta
publicação e de outros tantos sonhos e projetos não seria possível.
APRESENTAÇÃO

A presente coletânea teve origem há três anos quando alguns


dos autores e organizadores desenvolveram atividade de extensão na
Universidade Federal do Rio Grande – FURG, motivados pela idéia
de outra cidade, diferente daquela em que vivemos – estudamos e
lutamos – na perspectiva de que seu futuro seja melhor e mais justo,
sem exploração humana e destruição dos ecossistemas.
Desde então, claro que muita coisa aconteceu. Nossas
pesquisas foram aperfeiçoadas, agregaram-se colaborações
diversas e nossa análise em torno do tema cidade qualificou-se e,
mais ainda, no processo de elaboração (aos poucos), a partir do
andar dos mais lentos, como dizem os Zapatistas, não perdemos o
foco na utopia da discussão e construção de uma cidade
sustentável socialista ou de uma cidade socialista sustentável, onde
princípios ecológicos não sejam rechaçados.
Insistimos na referida discussão, todavia, para além do
discurso hegemônico em torno do Desenvolvimento Sustentável,
atentando para a (in)sustentabilidade da cidade capitalista e da
crise de paradigma, a partir de debates inconclusos ou parcos, do
que seria (ou como seria) a concretização da antiga utopia – o
horizonte socialista.
Diante disso, a estrutura do livro parte do geral, relacionado à
América Latina, desde reflexões e proposições de superação da
condição de exploração e dependência das elites e modelos de
desenvolvimento que não beneficiam o conjunto da humanidade e
exploram negativamente o ambiente natural e o construído – a cidade.
O tema do desenvolvimento humano sustentável é
salientado neste livro, fundamentalmente a partir da contribuição
da experiência cubana. Tal desenvolvimento, ao contrário daquele
consagrado pelo capitalismo, o qual impõe o mercado e o lucro
como ordem primeira em benefício de poucos, apresenta uma
perspectiva onde todos os seres humanos encontram-se no centro
das considerações, sem deixar de propor uma forma de uso da
natureza garantidora desse direito também para as gerações
futuras. A experiência cubana evidencia inúmeros aspectos neste
sentido, partindo da fundamentação de um projeto macro
desenvolvido com mais três países (Venezuela, México e Bolívia).
Em seguida, se vislumbra uma introdução ao tema
relacionado ao conceito de cidade. Avançando na produção teórica e
política da cidade sustentável, destacadamente encontramos algumas
diretrizes primárias indissociáveis da cidade utópica e que certamente
os autores e autoras lançam como pontos de partida para a
continuidade de nossa caminhada. Neste caso, a produção, ou melhor,
uma outra produção/atividade econômica, que estamos denominando
de solidária, mas também cooperada, além do marco jurídico para
cidade, mirando atividades concretas como a pesca artesanal, a eco-
estética nos espaços escolares e/ou educativos, a agroecologia, podem
ser exemplos de ações que avançam na produção da cidade
sustentável, ou como queiram, da sustentabilidade.
Nem todos os colaboradores e colaboradoras deste livro
comungam da mesma base formadora da idéia de cidade utópica.
No entanto, compartilham da reflexão/ação sobre a produção da
cidade sustentável, como se perceberá na leitura da contribuição de
cada um, as quais apontam para sugestões, insights, nuances,
enfim, fragmentos dessa busca, cuja discussão sempre pode (e
deve) ser aprofundada.
Nossa perseguição permanente da utopia começa no
conhecimento e na forma como enxergamos o espaço da
Universidade Pública. Assim podemos passar para a prática,
incondicionalmente emancipatória dos seres humanos e uma
relação desses com a natureza, onde todas as formas de vida
tenham direito a tal.

Organizadores
SUMÁRIO

Apresentação………………………………………………… 7

Desarrollo Sustentable e Integración para América Latina y


el Caribe
Jaime García Ruiz…………………………………………… 11

A Cidade com Desenvolvimento Humano Sustentável


Carlos R S Machado e Jaime García Ruiz............................... 35

Aspectos Emergentes para/da Cidade Sustentável: a


Natureza, a Educação, a Justiça e a Economia Popular e
Solidária
Carlos R S Machado, Eder Dion de Paula Costa, Francisco
Quintanilha Véras Neto e Antônio Carlos Porciúncula Soler .. 59

Conscientização Ambiental e Legitimidade da Política


Ambiental
Francisco Quintanilha Véras Neto e Benilson Borinelli......... 71

Flexibilização da Tutela Jurídica das Áreas de Preservação


Permanente e Direito à Moradia nas Cidades Sustentáveis:
convergência ou incompatibilidade?
Eugênia Antunes Dias e Antônio Carlos Porciúncula Soler... 93

Direito Coletivo do Trabalho e Cooperativismo Popular. A


contribuição da autonomia coletiva do Direito Coletivo do
Trabalho para organização dos trabalhadores em Cooperativas
121
Paulo Ricardo Opuszka .........................................................
A (In)Sustentabilidade Local no Processo de Globalização da
Laguna dos Patos: o caso da Pesca Artesanal
Maicon Dourado Bravo......................................................... 153

Natureza da/na Crise dos Paradigmas no Século XXI


173
Denise Gamio Dias, Claudia Battestin e Carlos R S Machado ..

Lo Estético en la Naturaleza Humana


193
Pablo René Estévez……………………..……………………

As Três Naturezas e a Natureza das Três


205
Carlos R S Machado, Fabiana Dendena, Daiane Gautério....
DESARROLLO SUSTENTABLE E INTEGRACIÓN
PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE

Jaime García Ruiz *

RESUMO
O trabalho propõe-se a apresentar para discussão os princípios e
fundamentos de um novo paradigma de desenvolvimento, tendo o
desenvolvimento humano sustentável como perspectiva
orientadora de suas reflexões. No entanto, ao inserir tal debate em
diferentes perspectivas disciplinares referente às áreas do
conhecimento econômico, político, cultural e socioambiental,
dentre outras, bem como no contexto da América Latina e Caribe,
o autor insere suas reflexões na utopia de uma América integrada.
Neste caso, tendo a ALBA (Alternativa Bolivariana para as
Américas) como texto de base – como proposição – pelo autor, e
coletivos de investigadores cubanos da Universidade Central
Marta Abreu de Las Villas (Cuba) e, mais recentemente, um
coletivo de investigadores da FURG (Universidade Federal do
Rio Grande) na inserção da sustentabilidade, numa perspectiva,
também alternativa, mas em produção/construção por cada
grupo/coletivo e subprojeto ao articularem investigação, ensino e
extensão por parte dos envolvidos.

*
Departamento de Filosofía, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade
Central “Marta Abreu” de Las Villas, Cuba. Este trabalho apresenta as bases
fundamentais do projeto “Fundamentacion del Desarrollo Humano Sustentabel
desde una vision transdisciplinar para América Latina e Caribe”, o qual gerou
projeto de investigadores da FURG/PPGEA, sob a coordenação do professor
Dr. Franscico Quintanilha Véras Neto, pelo Brasil (FURG), e Dr. Jaime G. Ruíz
pela parte cubana (Universidade de Las Villas), em março de 2009 (CAPES-
MES, 2009).

11
Introducción

En la copiosa bibliografía publicada en los últimos años


sobre el desarrollo encontramos un conjunto de acepciones para
designar o calificar el fenómeno. Entre estas acepciones tenemos:
“desarrollo humano”, “desarrollo sostenible”, “autodesarrollo”,
“desarrollo social”, “desarrollo integral”, “desarrollo endógeno”,
“desarrollo local”, “desarrollo comunitario”, etc. Para nosotros
estas denominaciones no son más que lados de un mismo proceso
que ponen el énfasis en una u otra dimensión o en uno u otro
principio del desarrollo y pueden subestimar otras.
Durante los años 50 y parte de los 60 en el pensamiento y
la acción desarrollista Latinoamericanas prevaleció la concepción
de la CEPAL. La teoría cepaliana y su máximo representante –
Raúl Prebisch – “en respuesta a una visión neoliberal creada por
economistas norteamericanos y europeos” 1 orientaba su crítica a la
teoría clásica del comercio internacional como palanca del
desarrollo y sostenía que “la única solución para lograr el progreso
económico era la industrialización; lo cual permitiría un desarrollo
hacia adentro” 2. Con el fracaso del modelo de desarrollo
sustentado en la industrialización por sustitución de
importaciones 3 aparece la alternativa de la integración.

1
Colectivo de autores. Economía Internacional. Editorial “Félix Varela”, La
Habana, 1998, T. II; p. 34.
2
Ver: Economía Internacional. Op. Cit. P. 36.
3
Cuando se ha tratado el desarrollo económico, el crecimiento cuantitativo y la
maximización del Producto Interno Bruto (PIB) han servido de guía
fundamental: el desarrollo se ha entendido como crecimiento económico. En
otros casos el desarrollo se ha vinculado a la industrialización bajo los efectos
positivos del progreso técnico. En tales circunstancias el desarrollo se ha
interpretado como industrialización. Para América Latina, los modelos de
desarrollo industrial por sustitución de importaciones y más recientemente el
neoliberal, han sido impuestos desde afuera en respuesta a los intereses de los
países centrales. Con ello los esquemas de desarrollo y también de integración
de la región han quedado atrapados en la lógica y subordinados a los intereses
del gran capital transnacional.

12
A partir de la segunda mitad de la década de los años 60 “se
comienza a desarrollar un pensamiento crítico tanto de la Teoría
del desarrollo o modernización como de la Teoría desarrollista
cepaliana. Este nuevo enfoque se conoce con el nombre de Teoría
de la dependencia – cuyo padre fundador es Fernando Enrique
Cardoso. Otros exponentes importantes lo han constituido:
Theotonio Dos Santos, André Gonder Frank, Samir Amin, Octavio
Ianni, Darcy Ribeiro, Ruy Mauro Marini, Marcos Kaplan, Celso
Furtado y Vania Bambirra” 4 .
En el presente trabajo pretendemos ilustrar el
condicionamiento objetivo y la interdependencia existente entre
los proceso de integración y de desarrollo en América Latina y el
Caribe, partiendo de que en las condiciones actuales de la región
es necesario construir un nuevo paradigma de desarrollo y su
realización sería posible tomando como base un modelo de
integración que esté al servicio y haga realidad nuevos principios
en todas las dimensiones del nuevo paradigma de desarrollo.
Dicho de otra manera; la integración no es un objetivo en si
misma, sino un medio al servicio del desarrollo que necesitan
nuestros pueblos.
De la hipótesis anterior surgen dos interrogantes:
1. ¿Qué tipo de desarrollo necesitan nuestros pueblos?
2. ¿Qué integración o cuál es el tipo de integración que
puede garantizar el desarrollo que necesitamos?

Partimos de que el desarrollo que necesitan nuestros


pueblos es de contenido multidimensional, que abarca lo
económico, lo social, lo medioambiental, lo cultural, lo
tecnológico y lo político jurídico, sustentado en los principios y
valores de la eficiencia, la equidad, la sustentabilidad, la
cooperación, la participación, la potenciación y la seguridad y, que
el proceso de integración que se ha comenzado a implementar – el
ALBA – se sustenta y cataliza dichos principios y valores, al

4
Idem., p. 37.

13
transformar y fomentar nuevas relaciones sociales de producción.
Dichas relaciones de producción se basan en un nuevo tipo de
empresas Grannacional, diametralmente opuestas a las Empresas
Transnacionales (ETN) por su contenido y objetivos; las Empresas
de Producción Social Integradas (EPSI-ALBA) del ALBA.

1 El contenido y el carácter del desarrollo como proceso

Las teorías y conceptos que nos han llegado en los últimos


tiempos sobre el desarrollo – y también sobre la integración –,
como norma obvian el contenido y el carácter del sistema de
relaciones sociales de producción particular existente en el país y
época concretos, cuando éstas, en última instancia han
determinado los procesos de desarrollo e integración.
El desarrollo es un proceso universal de carácter objetivo
históricamente determinado y de contenido multidimensional, que
íntervincula las dimensiones económica, la social, la cultural, la
ambiental, la tecnológica y la político-jurídica; cada una de las
cuales incluye a su vez, múltiples categorías, variables e
indicadores que se sustentan en un conjunto de principios básicos
tales como: la eficiencia, la equidad, la sustentabilidad, la
cooperación, la seguridad, la potenciación y la participación 5. El
desarrollo como proceso universal de cambio y transformación
acusa su carácter conforme al tipo de relaciones sociales de
producción prevalecientes, los valores, la ideología e intereses
clasistas de la sociedad de que se trate6. Todo ello determina los

5
El Informe de Cuba sobre el Desarrollo Humano del año 1996 consideró y
explicó como dimensiones del desarrollo lo que aquí nosotros entendemos como
principios básicos de cualquier proceso de desarrollo que se considere
verdadero. Investigación sobre el Desarrollo Humano en Cuba 1996,
Editorial Caguayo, La Habana 1997, pág. 3.
6
Federico Engels en el Anti- Duhring refiriéndose al objeto de estudio de la
Economía Política apuntaba que de lo que se trataba era del estudio de el
conjunto de las relaciones de producción social de la existencia de los hombres;
“las leyes especiales de cada etapa de desarrollo de la producción y del cambio y

14
objetivos, el tipo de mecanismo de realización, las políticas y
estrategias de desarrollo, su implementación y los instrumentos
jurídicos e institucionales que se empleen.
Para nosotros el desarrollo se realiza (materializa) en
espacio-tiempo concretos: la sociedades Latino caribeñas
actuales; algunas en transición al socialismo del siglo XXI 7,
sustentadas en un sistema de relaciones sociales de producción
heterogéneas y por lo tanto contradictorias, donde predominan las
relaciones capitalistas de producción en transición hacia una nueva
cualidad. Entonces, el desarrollo solo puede ser entendido,
explicado y superado, explicando las tendencias regulares y
superando las contradicciones de dicho sistema, convirtiéndose
este último – el nuevo sistema de relaciones de producción que se
construye – en el verdadero objeto de investigación y de
transformación y no “la conciencia de si mismo”. 8La integración
no puede ser un fin en si misma, sino un proceso que se ponga al
servicio del desarrollo que necesitan nuestros pueblos.

1.1 La Dimensión Socioeconómica

Así, el proyecto social que se encamine y el proceso de


integración que lo sustente y facilite, debe poner en el centro de
atención a los seres humanos y su entorno, como gestores directos

solo al llegar al final de esta investigación podrá formular las pocas leyes
generales aplicables a la producción y al cambio.” Federico Engels. Anti-
Duhring, Editorial Pueblo y Educación, La Habana, 1979, p. 180.
7
El tema del Socialismo del siglo XXI requeriría un trabajo adicional para su
análisis, lo cual no es posible en los marcos de la presente ponencia.
8
Carlos Marx en el Prólogo a la Primera Edición de El Capital escribió: “solo
nos referimos a las personas en cuanto personificación de categorías
económicas, como representantes de determinados intereses y relaciones de
clase. Quién como yo concibe el desarrollo de la formación económica de la
sociedad como un proceso histórico-natural, no puede hacer al individuo
responsable de la existencia de las relaciones de que él es socialmente criatura,
aunque subjetivamente se considere muy por encima de ellas.” C. Marx, El
Capital. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1973, Prólogo. P. XI.

15
de su destino y, por otro lado, como beneficiarios directos de los
resultados del mismo.
De lo anterior se desprende que un momento esencial de
partida en la concepción del desarrollo está en determinar la
estructura, características y tendencias (leyes) del sistema
socioeconómico dado y con ello sus agentes. Debe identificarse
las dimensiones y al interior de ellas los ejes socioeconómicos
fundamentales y los sujetos en su estructuración en clases y grupos
sociales.
La estructura económica, Marx la defines como “el
conjunto de las relaciones de producción que en ella priman, las
cuales corresponden a un determinado grado de desarrollo de las
fuerzas productivas materiales y constituyen la base real sobre la
cual se eleva la superestructura jurídica y política y a la que
corresponden determinadas formas de la conciencia social. El
modo de producción de la vida material condiciona el proceso de
la vida social, política e intelectual en general.” 9 Y más adelante
apuntaba: “Así como no se juzga a un individuo por la idea que él
tenga de si mismo, tampoco se puede juzgar tal época de
revolución por la conciencia (cursiva del autor) de si misma; es
preciso, por el contrario, explicar esta conciencia por las
condiciones de la vida material, por el conflicto que existe entre
las fuerzas productivas y las relaciones sociales de producción.” 10
En el nuevo proyecto social de desarrollo la “superestructura
jurídica y política” adquieren un papel activo en el proceso de
transformación y creación de las nuevas bases; si importante es el
acceso al poder político de las nuevas fuerzas revolucionarias,
tanto o más lo es refrendar jurídicamente (nuevas constituyentes,
referéndum, etc.) el nuevo rumbo para consolidarlo.
El sistema socioeconómico de una sociedad concreta está
compuesto por la unidad de dos estructuras que se presuponen y

9
Marx, C.: Contribución a la crítica de la Economía Política. Editorial Pueblo
y Educación, La Habana, 1970. Prólogo, p. 12.
10
Marx, C.: op. cit., p. 13.

16
excluyen mutuamente: la estructura de las relaciones sociales de
producción y la estructura de las fuerzas productivas. La ley
marxista del cambio social (del desarrollo) se refiere precisamente
a la correspondencia obligada entre las relaciones sociales de
producción y el nivel de desarrollo de las fuerzas productivas.
“Así, Marx nos plantea sistemáticamente, el contenido de la
famosísima ley de la correspondencia entre el nivel de desarrollo
de las fuerzas productivas y las relaciones de producción como
fundamento de la teoría general del desarrollo histórico. Estas
relaciones determinadas, necesarias, independientes de su
voluntad tienen lugar siempre a partir de y en el marco de
determinadas relaciones de propiedad.” 11 Esta ley actúa lo mismo
en el transito de una formación social a otra, que al interior de una
formación. 12 Por lo tanto, es valida en los marcos de la transición
11
Figueroa Albelo, V. La economía política de la construcción del socialismo.
Editorial Eumed.Net, 2006, p. 43. Figueroa Albelo aclara a pie de página que:
“esta ley no puede ser interpretada mecánicamente – desgraciadamente así
sucedió en no pocos casos – tampoco puede negarse la autonomía relativa de
las relaciones de producción y su capacidad de movilizar o retrancar el
desarrollo de las fuerzas productivas en la historia de la humanidad”. Ibidem.
12
“Una sociedad no desaparece nunca antes de que sean desarrolladas todas las
fuerzas productivas que pueda contener, y las relaciones de producción nuevas y
superiores no se sustituyen jamás en ella entes de que las condiciones materiales
de existencia de esas relaciones hayan sido incubadas en el seno mismo de la vieja
sociedad. Por eso la humanidad no se propone nunca más que los problemas que
puede resolver, pues, mirando de más cerca, se verá siempre que del problema
mismo no se presenta más que cuando las condiciones materiales para resolverlo
existen o se encuentran en estado de existir.” C. Marx, op. cit., p. 13.
La definición de sistema socioeconómico coincide con la de “sistema de
relaciones de producción” que da Lenin según la cual: “cada sistema de
relaciones de producción es, según la teoría de Marx, un organismo social
particular, con sus leyes propias de aparición, de funcionamiento y de paso a una
forma superior de conversión en otro organismo social.” Ver: Lenin, V. I.,
Contenido Económico del populismo y su crítica en el libro del Sr. Struve. O.
C., T. I., p. 429.
Los distintos modos de producción que lo componen y sus respectivas formas
organizativas y de propiedad son: 1) el modo de producción socialista
sustentado en; a) la propiedad Estatal (Empresa Estatal), b) la propiedad estatal-

17
al socialismo y acompañará su evolución.
Las relaciones de producción tienen una forma exterior de
manifestación y una íntima realidad, que no siempre coincide con
la apariencia. El concepto marxista se refiere a esa realidad oculta
que es necesario descubrir y apropiarse mediante categorías y
leyes y transformarla.
El concepto se refiere al modelo del cambio social
marxista, al concepto marxista de desarrollo, al explicar la
sustitución de una estructura por otra o a los cambios que se dan al
interior de una formación social: a) lenta transformación
progresista de las fuerzas productivas, b) desajuste contradictorio
con las relaciones sociales de producción y, c) conclusión;
estructura socioeconómica de cualidad nueva. Los factores
endógenos constituyen la base del análisis, son la base del cambio
y del desarrollo y los factores exógenos actúan de modo indirecto
acelerando o frenando el desarrollo de las fuerzas productivas.

1.2 La Dimensión Tecnológica del Desarrollo

Las Ciencias Sociales sitúan la Ciencia y la Tecnología


como elemento esencial de las fuerzas productivas y la conceptúa
como los medios de producción que intervienen entre el trabajo y
los objetos de la naturaleza. 13 Se debe inferir entonces, que la
Ciencia y la Tecnología es mucho más que objetos materiales
(“volumen y eficacia de los medios de producción”). Ella acumula
“destreza del obrero”, costumbres y cultura, “progreso de la

cooperativa (Unidades Básicas de Producción Cooperativa) y c) la propiedad


cooperativa (sector CPA), 2) el modo de producción mixto; sustentado en la
propiedad mixta estatal-capital extranjero; 3) el modo de producción pequeño
mercantil – formal e informal del campo y la ciudad – basado en la propiedad
privada individual.
13
Es preciso recordar que Carlos Marx define la producción de la forma
siguiente: “Toda producción es apropiación de la naturaleza por los individuos,
en el interior y por medio de una determinada forma de sociedad.” Carlos Marx.
Contribución a la crítica de la Economía Política. Op. Cit., p. 241.

18
ciencia y su aplicación”, conocimientos, experiencias y tradiciones
que se van transfiriendo de generación en generación. La Ciencia y
la Tecnología, producto directo del ingenio humano, debe ser
puesta definitivamente al servicio de los seres humanos y su
entorno, de tal manera que se minimicen sus costos económicos,
sociales, culturales y ambientales. La atención debe centrarse en
“que el progreso científico y tecnológico no puede constituir un fin
en si mismo, sino un medio para promover el desarrollo humano
equitativo de la sociedad”. 14 La historia ha demostrado que para
acceder al progreso científico y tecnológico tan añorados y
necesarios desde épocas pasadas en la región, es necesario
apropiarse de los medios de producción fundamentales y de la
riqueza en los sectores claves, sin absolutizar formas sociales
apropiación y esquemas caducos de socialización. En tal sentido
los proyectos de desarrollo e integración se encaminan en tal
dirección, con criterios autóctonos basados en el principio de
independencia nacional, soberanía, equidad y justicia social.

1.3 La Dimensión Medioambiental

Los seres humanos y el medio conforman un sistema único


integrado en el cual los hombres entran en determinadas relaciones
sociales al apropiarse de la naturaleza y éste actúa sobre la
sociedad. Por tanto, los seres humanos y las relaciones que se
originan no son un elemento aislado en relación con el medio y
este último no puede tratarse en un sentido estrictamente
naturalista y aislado. De lo que se trata entonces es de establecer
un enfoque y soluciones humanistas a los problemas que surgen de
la relaciones entre los hombres en sus vínculos con la naturaleza.

14
Investigación sobre ciencia, tecnología y desarrollo humano en Cuba, 2003.
p. XIX.

19
1.4 La Dimensión Cultural

La cultura en el sentido amplio del término, incluye no solo


la educación y la cultura artística y literaria – la literatura, la danza,
el teatro, el cine, la plástica, la música y la poesía –, sino que
sintetiza las tradiciones y costumbres acumuladas, enriquecidas
constantemente y transferidas de generación a generación. Es un
producto histórico y un factor del desarrollo de la sociedad que la
identifica como nación. La cultura en general y la artística y
literaria en particular y su producto, el producto cultural o artístico,
están determinados por las relaciones sociales imperantes, a pesar
de que en ocasiones se le quiera atribuir una “subjetividad”,
“intangibilidad” e “individualidad” particular que lo independizan.
Recordemos con Marx que “el desarrollo de la formación
económica de la sociedad como un proceso histórico-natural, no
puede hacer al individuo – al productor cultural, al creador (nota
del autor) – responsable de la existencia de las relaciones de que él
es socialmente criatura, aunque subjetivamente se considere muy
por encima de ellas.” 15 Por lo tanto, las distintas culturas – la
cultura productiva, la cultura económica, la cultura
medioambiental, tecnológica y política – son expresión de las
relaciones necesarias históricamente dadas.
Solo el método de la abstracción nos permite el análisis de
la cultura en si misma, aislándola del resto de las dimensiones del
desarrollo y tratarla como un fenómeno relativamente
independiente y en su mayor pureza. De igual forma, nos permite
abordar la cultura en su sentido estrecho; como cultura artística y
literaria.
Así, la producción, la distribución, el intercambio y el
consumo del producto artístico y literario, aunque adquiera
particularidades e independencia relativa, no dejan de estar
subordinados al sistema de relaciones imperantes en el país y

15
C. Marx, El Capital. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1973,
Prólogo. P. XI.

20
épocas concretas y su entorno y expresan sus tendencias y
contradicciones. Por lo tanto, las contradicciones que hoy se
perciben en la superficie de la sociedad en cuanto a la producción,
distribución, al intercambio o circulación – el mercado,
comercialización y sus mecanismos e instrumentos – y el consumo
del producto artístico, tiene sus orígenes en el proceso de
producción artístico y literario, su contenido y estructura
socioeconómica. Descubrir el contenido y la estructura de dicho
proceso de producción artístico y literario, no solo a nivel de la
sociedad, sino también a escala regional y local, es trascendente
para el afianzamiento de nuestra identidad cultural latinoamericana
y el reconocimiento de la diversidad cultural existente.
Es conocida las transformaciones e impactos del
Neoliberalismo en nuestras sociedades desde finales de los años
80ta. Esto creó necesidades y planteó nuevas contradicciones
nunca entes experimentados por nuestras culturas nacionales. Así
entonces, se produce un cambio en el contenido y la estructura de
nuestros productores o creadores artísticos y literarios, en la
circulación y el consumo del producto cultural.
¿Cuál es entonces la tipología de nuestros productores o
creadores artísticos y literarios a nivel de sociedad y cuáles son sus
peculiaridades a nivel regional y local?
Sabemos que quizás sea en el campo de la cultura artística
y literaria donde la división social del trabajo sea más marcada. 16
Sin embargo, aún cuando la división social del trabajo en esta
esfera imprima con más énfasis el sello individual al producto del
trabajo del creador, al producto artístico, este último no deja de
tener o contener y expresar la sustancia misma de las relaciones
sociales específicas, sin perder el sello de lo individual – los
16
Al respecto de la división social del trabajo Federico Engels apuntaba: “Las
diferentes fases del desarrollo de la división del trabajo son otras tantas formas
distintas de la propiedad; o, dicho en otros términos, cada etapa de la división
del trabajo determina también las relaciones de los individuos entre sí, en lo
tocante al material, el instrumento y el producto del trabajo.” Federico Engels.
La Ideología Alemana. Editora Política, La Habana, 1979. p. 20.

21
sentimientos, espiritualidad del creador – y lo diverso. De este
modo se ha venido dando una contradicción entre los intereses, los
sentimientos y necesidades del creador de una parte y de otra
parte, la demanda del mercado y las necesidades del consumidor
del producto artístico en muchos casos artificialmente creadas o
importadas hacia la región. Aquí sería muy útil diferenciar entre el
destinatario nacional y extranjero, dado el contexto en que se han
desenvuelto las sociedades de la región desde los años 80ta, bajo el
dominio del neoliberalismo.
Una contradicción primaria que se ha exacerbado es la que
se da entre la producción artística y literaria y la distribución. La
distribución es la vía por la cual el creador recibe de la sociedad el
equivalente al trabajo (producto artístico) por él aportado. Aparece
un primer problema: ¿Cómo valorar el trabajo y el producto
artístico, “subjetivo” “intangible” surgido de los sentimientos más
íntimos de un creador autentico y autóctono? ¿Cómo medir la
calidad, pongamos como ejemplo, de una canción, de una obra
teatral, de una pintura o de una novela? Aquí los criterios son muy
relativos, lo mismo que podría decirse de la valoración de un
descubrimiento hecho por un científico en un laboratorio en el área
de la salud.
Es cierto también, que todas las creaciones en este campo,
por más que se originen y contengan la subjetividad más profunda,
se objetivizan y hacen tangibles indefectiblemente; la música en un
CD o en un concierto, una obra de teatro en la puesta en escena,
etc. Al final, los criterios que deben primar son los valores
morales, artísticos y estéticos del proyecto social que encaminan
nuestros pueblos; legitimado por el público y no por criterios del
mercado. Los proyectos de desarrollo y de integración ALBA
ponen en el centro de atención la cultura artística y literaria
autóctonas de la región.
¿A qué necesidades debe responder el producto artístico?,
¿Debe estar orientado al mercado y a la demanda solvente o a las
necesidades sociales?
Por su parte el vínculo entre la producción y el consumo

22
está mediado por la distribución y el intercambio (mercado). Hay
que distinguir entonces, las vías, formas de producción y creación
y para qué público y a través de qué mecanismos les llega. Si nos
atenemos a la dialéctica producción-consumo; una cosa es lo que
considere el creador de su producto y otra lo que considera la
sociedad como destinatario y final legitimador de dicho producto.
Como decíamos anteriormente, el creador (productor) aún cuando
actúe a titulo individual, es un producto social y al final como
“criatura” social responderá a los patrones tendenciales de su
época.
Aquí aparece entonces una contradicción entre la
producción artística y literaria, expresión de las identidades
nacionales y valores propios del proyecto en construcción y el
creador; que es único – Venezolano, Boliviano, Cubano,
Latinoamericano – y el destinatario; el público, su pueblo o
extranjero, cuyas necesidades y demandas pueden ser diferentes.
El objetivo fundamental en la que se ha de sustentar la política la
política cultural de la región es la de elevar constantemente la
cultura y favorecer los valores morales, artísticos y estéticos de los
procesos de revoluciones sociales en marcha y no elevar las
ganancias del productor. No es un producto para satisfacer
necesidades consumistas o el consumo de elite, sino para el
disfrute y satisfacción de necesidades auténticas de masas. En este
empeño, habría que diferenciar entre las necesidades culturales
objetivas y la demanda; entendida ésta última como demanda
solvente: la capacidad adquisitiva de los ingresos de los
consumidores. Debe evitarse por todos los medios y con todos los
medios que el consumo artístico sea inducido por el mercado en
términos absoluto. De lo anterior se deriva otra contradicción:
entre la calidad del producto artístico y lo inevitable del consumo.
17
Esto hace más necesario que sea validado constantemente por

17
Rudy Mora en la Revista TEMAS refiriéndose a la televisión refería que:
“Sabemos que nuestro producto se va a consumir inevitablemente porque no es
posible – por las condiciones económicas en el país y la producción – tener dos

23
las masas 18.
¿Cómo se manifiestan estas tendencias y las
contradicciones y se resuelven a escala regional y local? Son
problemas que están por indagar en investigaciones más concretas.

2 Los principios del desarrollo

Los principios del desarrollo enunciados anteriormente – la


eficiencia, la equidad, la sostenibilidad, la cooperación, la
seguridad, la potenciación y la participación – expresan en su
interdependencia reciproca; y con las dimensiones, los valores que
en última instancia contiene el proyecto de desarrollo (de
transición al socialismo del siglo XXI) y de integración que se ha
comenzado a desplegar en la región, los cuales lo caracterizan
desde su origen y lo diferencian del resto de los paradigmas de
desarrollo, implementados y existentes, especialmente del
Imperialista-Neoliberal.
Como se apuntó con anterioridad, las teorías y modelos han
enfocado generalmente el desarrollo como un fenómeno macro,

proyectos simultáneos para un mismo horario. Esto crea, y no en todos, la poca


necesidad de buscar la calidad a ultranza porque nunca se pone en crisis la
permanencia en el espacio como creador, y entonces la búsqueda y la necesidad de
la competitividad sana para este destinatario, y como artista desaparece. Creo que
la no presencia de un mercado en términos de exigencias como en la música, la
plástica u otras zonas de la creación artística hace que, de manera general, en los
seriados cubanos viva el inmovilismo. No se siente la necesidad de la medida, no
hay un sistema directo y sincrónico, algo que te esté exigiendo determinadas
reglas, porque además nuestro sistema televisivo transmite productos terminados.
Revista Temas, No. 33/34, abril/septiembre de 2003. p. 155.
18
El propio Rudy más adelante añade: “Hay productos artísticos que pueden
convertirse en algo masivo, sobre todo en Cuba, por las características que
mencioné, pero tienen que comunicarse de verdad con el público. De lo
contrario, puede estar y la gente no reparar, simplemente verla, o verla para
criticarla. Eso es muy de Cuba con respecto a otros mercados, otros países u
otros canales de televisión, porque casi nunca, por muy baja calidad que tenga,
se levanta del aire.” Ídem, p. 157.

24
asistido de forma exógena por los Estados-Nación, de “arriba –
abajo” y desde afuera como parte del lugar asignado a las naciones
en la División Internacional Capitalista del Trabajo (DICT). Para
los teóricos, decisores e implementadores de estrategias de
desarrollo lo local-comunitario ha sido el Estado Nación y el
desarrollo ha estado dirigido a la Nación en su conjunto pero,
como totalidad fragmentada. 19
Al concepto y la práctica de lo local debe dársele un
contenido diferente y una importancia trascendental a los fines de
elevar los niveles de desarrollo, manteniendo los niveles de
seguridad y potenciar su integración con los restantes niveles
superiores. El concepto de localidad nos permite hacer
interpretaciones y ejecutar acciones desde lo local hasta lo global y
reconocer el derecho a las teorías, las construcciones y
transformaciones propias desde la realidad concreta. Lo local
representa el punto de encuentro, el ámbito donde los agentes

19
En un mirada crítica a las teorías burguesas sobre lo local-comunitario habría
que señalar con Néstor Kohan que: “la literatura filosófica de la Academia post
68 abandona de un plumazo las categorías críticas de estirpe marxista que
cuestionan el fetichismo de la sociedad mercantil capitalista y su fragmentación
social… La mirada crítica de la dominación y explotación capitalista se
desplazó a partir de esos años desde la la gran teoría – centrada, por ejemplo, en
el concepto explicativo del ‘modo de producción’ entendido como totalidad
articulada de relaciones sociales históricas – al relato micro, desde el
cuestionamiento del carácter clasista del aparato de Estado a la descripción del
enfrentamiento capilar y a la ‘autonomía’ de la política, desde el intento por
trascender políticamente la conciencia inmediata de los sujetos sociales a la
apología populista de los discursos específicos propio de cada parcela de la
sociedad” (página 10). “Las instancias y segmentos que forman parte del
entorno social se volvieron a partir de entonces absolutamente ‘autónomas’. El
fragmento local cobró vida propia. Lo micro comenzó a independizarse y a darle
la espalda a toda lógica de un sentido de lucha” (página 12). “La sociedad
capitalista queda sancionada, administrativamente y con el sello prestigioso de
las metafísicas académicas ‘post’, como algo eterno. Solo nos resta seguir
pataleando y protestando en el ámbito local.” Néstor Kohan. Fetichismo y
hegemonía en tiempos de Rebelión. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana,
2005.

25
(Recursos Humanos) territoriales adquieren capacidades, fijan el
rumbo y construyen el futuro. El desarrollo local es, por tanto, un
proceso territorializado de concreción y maduración de las
relaciones sociales de producción. Es un proceso generado y
adquirido por los sujetos locales. Los sujetos socioeconómicos
pasan de espectadores y simples receptores, a protagonistas de su
propio destino mediante su participación directa en el sistema de
relaciones sociales de producción que se materializa o se hace
tangible en el ámbito local, superándose la visón sectorial,
verticalizada y fragmentada de la economía y la sociedad para
entenderla como sistema económico social, como totalidad
concreta. Nada de esto es absoluto y por tanto, nada tiene que ver
con la autarquía. El desarrollo local lo concebimos como
desarrollo endógeno que utiliza y aprovecha las oportunidades
externas y comparte las ventajas de cada nación o región.
En tal sentido debe apuntarse que el desarrollo local no es
únicamente desarrollo municipal o comunitario. El territorio,
como un sistema económico social compuesto por un entramado
complejo y contradictorio de relaciones sociales de producción
incluye el conjunto de vínculos, relaciones, tendencias internas,
estables y objetivas que se dan entre los sujetos en un contexto
histórico social determinado. Incluye además, el conjunto de
eslabonamientos productivos, institucionales y políticos.
En tercer lugar, el desarrollo local tiene que ver con un
enfoque territorial y de “abajo-arriba”, pero debe buscar también
las intervenciones de los restantes niveles de relaciones y
decisiones del Estado (provincia, región y nivel central) que
faciliten el logro de los objetivos de la estrategia de desarrollo
local y solucione las contradicciones. Se precisa, pues, de una
eficiente coordinación de los diferentes niveles territoriales de las
administraciones públicas y de un contexto integrador de los
niveles nacional, provincial, y local y en sentido inverso.
Las decisiones de “arriba-abajo” son también importantes
para el enfoque del desarrollo local. Además, es concebido como
un conjunto organizado de sujetos, recursos e instituciones

26
(públicas, sociales, científicas, no gubernamentales, etc.) que
interactúan dialécticamente en el entorno.
La dimensión político-axiológica del desarrollo debe
construir y/o potenciar un pensamiento inclusivo de matriz
transdisciplinar que reconstruya los conceptos e indicadores de
desarrollo necesarios a nuestras realidades sobre la base de
repensarla desde la unidad en la diferencia, el antiinjerencismo, la
independencia política y económica y la solidaridad y crear una
conciencia crítica hacia los modelos euro céntricos y
norteamericanos y por ende consumistas de desarrollo, a partir de
una metodología de evaluación coherente de políticas públicas
para el desarrollo.
La cooperación y participación son principios rectores del
desarrollo y la integración ALBA que se implementan en la región.
Su potenciación convierte a los actores en los protagonistas
principales del desarrollo a través de su participación directa.
En tal sentido Ernesto Che Guevara señalaba que: “la última y más
importante ambición revolucionaria (que) es ver al hombre
liberado de su enajenación”, y que para ello “todavía es preciso
acentuar su participación consciente, individual y colectiva, en
todos los mecanismos de dirección y producción y ligarla a la idea
de la necesidad de la educación técnica e ideológica, de manera
que sienta como estos procesos son estrechamente
interdependientes y sus avances son paralelos. Así logrará la total
conciencia de su ser social, lo que equivale a su realización plena
como criatura humana, rotas las cadenas de la enajenación.” 20 Es
necesario esclarecer el concepto de participación como principio y
método que se convierte en el hilo conductor de nuestro modelo de
desarrollo. El proceso de participación puede considerarse como la
unidad de dos subprocesos: 1) se trata de aprovechar y potenciar
las capacidades de pensar de los Recursos Humanos implicados,
lo que conduce a la planificación del desarrollo y potencia el valor

20
Ernesto Che Guevara: El Socialismo y el hombre en Cuba. Editora Política,
La Habana, 1988, p. 15.

27
de la participación y, 2) se trata de aprovechar y potenciar la
capacidad de actuar de los Recursos Humanos en grupo (en
colectivo) y por consenso, lo que debe garantizar el proceso de
ejecución y potenciar el valor de la implicación.
No se trata solo de la cooperación y la participación de los
que hasta ahora se han considerado simples receptores, sino
también de implicar a los Universidades, integrada en sus distintas
disciplinas en los procesos de desarrollo e integración. La
academia y sus profesores-investigadores hasta hace poco, como
norma se ha encargado de investigar, criticar, utilizar en la
docencia y divulgar con sus medios el fenómeno del desarrollo,
pero no siempre han salido de sus predios para acompañar de
forma participativa a los actores y beneficiarios directos de dichos
procesos. De lo que se trata entonces es de transferir
conocimientos y tecnologías, de generar nuevos conocimientos y
tecnologías mediante la participación directa y coordinada de
investigadores, actores y beneficiarios directos.
Como se apuntara anteriormente, las distintas ciencias
como regla han abordado el desarrollo en los marcos de su objeto
de estudio específico. Los gobiernos en la decisión de políticas, su
implementación y realización no han tenido siempre en cuenta el
contenido multidimensional del proceso y el carácter
transdisciplinar en que debe ser tratado. De aquí la necesidad de
que en los procesos reales, el desarrollo sea atendido cada vez más
por los actores como un proceso de contenido multidimensional y
se atienda su carácter transdisciplinar, es decir, que se ponga el
énfasis hacia el área donde convergen las distintas ciencias para
impulsar el desarrollo y se construya tal transdisciplinariedad.
Las dimensiones del desarrollo están relacionadas con una
o más ciencias y disciplinas, cada una de las cuales se encuentran
mutuamente relacionadas en los procesos reales de desarrollo en
que se desenvuelven de forma compleja y contradictoria, por lo
que lo transdisciplinar se convertiría en un resultado que debe ser
construido a partir del proceso de formación de los Recursos
Humano, de investigación, de transferencia de conocimientos y

28
tecnologías y de la generación de nuevos conocimientos y
tecnologías por los actores e investigadores, de transformación y
extensión.
La Investigación + Desarrollo debe concebirse entonces, en
primer lugar, con un enfoque Transdisciplinar, que parta de lo
global hasta llegar a lo local, vinculándose con las realidades más
concretas en todas las dimensiones del desarrollo formuladas, para
luego construir las generalizaciones teóricas y tecnológicas que
emanen de los procesos reales de desarrollo y sirvan para
explicarlos y transformarlos.
El debate constante debe enriquecer la teoría acerca del
desarrollo a partir de la sistematización de toda la experiencia
acumulada y el quehacer práctico tomando en cuenta los
problemas globales, las experiencias y particularidades nacionales,
reconstruir la teoría del desarrollo con un enfoque
transdisciplinar que explique la realidad y sus contradicciones y
contribuya a solucionarlas. Cuba 21 acumula una experiencia y ha
hecho aportes importantes en el plano teórico-metodológico, a la
conformación y aplicación de índices para el diagnóstico y la
medición del desarrollo humano. Ello se verifica en la
Investigación sobre desarrollo humano en Cuba 1996 – donde se
introduce un índice para evaluar el desarrollo humano de las
provincias de Cuba (CIEM; Índice Provincial de Desarrollo
Humano). Estos resultados fueron referenciados en el Informe
sobre desarrollo humano 1999 (PNUD, 1999). Los debates
posteriores permitieron introducir en la Investigación sobre
Desarrollo Humano y Equidad en Cuba 1999, el Índice Territorial
de Desarrollo Humano y Equidad (CIEM, 2000). La última
aplicación de dicho índice fue en el año 2003. La utilización y
perfeccionamiento de dicho índice servirá para el diagnóstico de
las regiones seleccionadas y la evaluación de los logros esperados.

21
Ver: Investigación sobre ciencia, tecnología y desarrollo humano en Cuba
2003. CIEM. P. 161.

29
3 La integración Latino caribeña y los agentes socioeconómicos
de nuevo tipo: Las Empresas de Producción Social Integradas
(EPSI) del ALBA

¿Qué integración o cuál es el tipo de integración que puede garantizar


el desarrollo que necesitamos?

Los esquemas de integración desarrollados hasta hoy en


nuestra región no han garantizado ni garantizarán el desarrollo que
necesitan nuestros pueblos. Dichos esquemas han estado centrados
en lo económico y particularmente en el comercio, soslayando el
resto de las dimensiones del desarrollo y el objetivo supremo de
todo proceso de desarrollo que se considere verdadero: los seres
humanos y la potenciación de su bienestar pleno. Por el contrario,
la integración ha estado regida por las relaciones capitalistas
transnacionalizadas que han dominado en los últimos tiempos la
región.
Hasta hoy la industria dinámica integrada nacionalmente e
independiente del capital transnacional en América Latina y el
Caribe está por crear. Este debe ser el mayor empeño de cualquier
proceso de desarrollo e integración en la región. El ALBA por
primera vez se ha planteado dicho objetivo y ha comenzado a
constituir las Empresas de Producción Social Integradas (EPSI)
de nuevo tipo del ALBA. Estas por su esencia son diferentes a las
Empresas Transnacionales del sistema capitalista mundial y a la
Translatinas, creadas al calor de los procesos integracionistas
planteados para dar respuesta al fracaso del modelo de desarrollo
hacia adentro, de los años 50ta.
La propuesta ALBA ya en marcha es más que un modelo
acabado; es una guía estratégica que debe construirse desde
adentro por, para y con los propios pueblos. El ALBA está creando
los mecanismos de Cooperación y coordinación entre las naciones
latinoamericanas para fortalecer la capacidad de negociación frente
al ALCA, ha elaborado y ha puesto en marcha nuevos proyectos de
desarrollo endógenos, apuesta al desarrollo del capital humano y

30
las tecnologías internas y arranca con la solución de los graves
problemas sociales existentes (educación, salud) y de exclusión. Se
sustenta en la participación directa real de los pueblos. El objetivo
del ALBA es el desarrollo socioeconómico de los países
miembros. Así, “la integración para los países de América Latina y
el Caribe se convierte en condición indispensable para aspirar al
desarrollo” 22. En los documentos programáticos del ALBA se
señala que las bases de la misma están en la cooperación y la
complementación de las economía, la solidaridad, la preservación
de la independencia y la identidad nacionales y la eliminación de
las desigualdades sociales para hacer las naciones más justas, más
cultas, más participativas y fomentar la calidad de vida. De esta
manera pudiera concluirse que el ALBA se sustenta en los mismos
principios del proceso de desarrollo que necesitan nuestras
naciones y que se formularan con anterioridad.
El ALBA se distingue por la transformación de la bases
socioeconómicas preexistentes en los países miembros y la
creación de un nuevo sistema empresarial productivo mediante la
ejecución de proyectos que fomentan las Empresas de Producción
Social Integradas (EPSI) del ALBA.
Por su esencia socioeconómica dichas empresas – y con
ello el sistema empresarial ALBA – se sustentan en la propiedad
pública (estatal, cooperativa o mixta existentes o que se creen a
los fines de la integración y se centran en la creación de valores
de uso social, la satisfacción de las necesidades sociales y y no en
el mercado y la maximización de las ganancias. Es un sistema que
persigue la máxima eficiencia privilegiando la complementación
productiva, social, científica- tecnológica y financiera.
El triunfo definitivo del ALBA y el desarrollo que impulsa
vendrá, al demostrar en cuanto a eficacia y nuevos principios, su
superioridad frente a las Empresas Transnacionales y las

22
Ver Acuerdos ALBA en Portal ALBA
<http://www.alternativabolivariana.org/modules.php?name=News&file=article
&sid=4402>

31
Oligarquías Financieras nacionales. El estudio del nuevo sistema
socioeconómico y las nuevas leyes económicas que han de
sustentarlo está por hacer, sabiendo que la investigación debe
concebirse en primer lugar, con un enfoque Transdisciplinar, que
parta de lo global hasta llegar a lo local, vinculándose con las
realidades más concretas en todas las dimensiones del desarrollo,
para luego construir las generalizaciones teóricas que emanen de
los procesos reales de desarrollo y sirvan para explicarlos y
transformarlos.

Conclusiones

En el presente trabajo arribamos a las siguientes conclusiones


generales:

1. Dado el condicionamiento objetivo y la interdependencia existente


entre los proceso de integración y de desarrollo en América Latina y el
Caribe, en las condiciones actuales de la región, es necesario construir
un nuevo paradigma de desarrollo y su realización sería posible
tomando como base un modelo de integración que esté al servicio y
haga realidad nuevos principios en todas las dimensiones del nuevo
paradigma de desarrollo.
2. El desarrollo es un proceso universal de carácter objetivo
históricamente determinado y de contenido multidimensional, que
íntervincula las dimensiones económica, la social, la cultural, la
ambiental, la tecnológica y la político-jurídica; cada una de las cuales
incluye a su vez, múltiples categorías, variables e indicadores que se
sustentan en un conjunto de principios básicos tales como: la
eficiencia, la equidad, la sustentabilidad, la cooperación y
complementación, la seguridad, la potenciación y la participación. El
desarrollo como proceso universal de cambio y transformación acusa
su carácter conforme al tipo de relaciones sociales de producción
prevalecientes, los valores, la ideología e intereses clasistas de la
sociedad de que se trate. Es un proceso que se realiza (materializa) en
espacio-tiempo concretos: la sociedades Latino caribeñas actuales;
algunas en transición al socialismo del siglo XXI, sustentadas en un
sistema de relaciones sociales de producción heterogéneas y por lo
tanto contradictorias, donde predominan las relaciones capitalistas de
producción en transición hacia una nueva cualidad. Entonces, el

32
desarrollo solo puede ser entendido, explicado y superado, explicando
las tendencias regulares y superando las contradicciones de dicho
sistema.
3. Los proyectos social revolucionarios que se encaminan y el proceso
de integración que lo sustenta y facilita, ponen en el centro de atención
a los seres humanos y su entorno, como gestores directos de su destino
y como beneficiarios directos de los resultados del mismo. En dichos
procesos la “superestructura jurídica y política” adquiere un papel
activo en el proceso de transformación y creación de las nuevas bases;
si importante es el acceso al poder político de las nuevas fuerzas
revolucionarias, tanto o más lo es refrendar jurídicamente (nuevas
constituyentes, referéndum, etc.) el nuevo rumbo para consolidarlo.
4. La historia ha demostrado que para acceder al progreso científico y
tecnológico tan añorados y necesarios desde épocas pasadas en la
región, es necesario apropiarse de los medios de producción
fundamentales y de la riqueza en los sectores claves, sin absolutizar
formas sociales apropiación y esquemas caducos de socialización. Los
proyectos de desarrollo e integración se encaminan en tal dirección,
con criterios autóctonos basados en el principio de independencia
nacional, soberanía, equidad y justicia social.
5. Los proyectos de desarrollo y de integración ALBA ponen en el
centro de atención la cultura artística y literaria autóctonas de la región.
Los criterios que deben primar son los valores morales, artísticos y
estéticos del proyecto social que encaminan nuestros pueblos;
legitimado por el público y no por criterios del mercado.
6. Pudiera concluirse que el ALBA se sustenta en los mismos
principios del proceso de desarrollo que necesitan nuestras naciones. El
ALBA se distingue por la transformación de la bases socioeconómicas
preexistentes en los países miembros y la creación de un nuevo sistema
productivo, de distribución (complementación) e intercambio mediante
la ejecución de proyectos que fomentan las Empresas de Producción
Social Integradas (EPSI) del ALBA ( Empresas Gran nacional). Tal
Sistema debe ir cambiando y transformando las relaciones sociales de
producción capitalistas transnacionalizadas basada en el capital y la
maximización de la ganancia.
7. Por su esencia socioeconómica dichas empresas –y con ello el
sistema empresarial ALBA- se sustentan en la propiedad pública
(estatal), cooperativa o mixta existentes o que se creen a los fines de la
integración y se centran en la creación de valores de uso social, la
satisfacción de las necesidades sociales y y no en el mercado y la
maximización de las ganancias. Es un sistema que persigue la máxima
eficiencia privilegiando la complementación productiva, social,

33
científica- tecnológica y financiera.
8. El triunfo definitivo del ALBA y el desarrollo que impulsa vendrá,
al demostrar en cuanto a eficacia y nuevos principios, su superioridad
frente a las Empresas Transnacionales y las Oligarquías Financieras
nacionales. El estudio del nuevo sistema socioeconómico y las nuevas
leyes económicas que han de sustentarlo está por hacer, sabiendo que la
investigación debe concebirse en primer lugar, con un enfoque
Transdisciplinar, que parta de lo global hasta llegar a lo local,
vinculándose con las realidades más concretas en todas las
dimensiones del desarrollo, para luego construir las generalizaciones
teóricas que emanen de los procesos reales de desarrollo y sirvan para
explicarlos y transformarlos.

BIBLIOGRAFÍA

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News&file=article&sid=4402

34
A CIDADE COM DESENVOLVIMENTO
HUMANO SUSTENTÁVEL *

Carlos RS Machado **
Jaime García Ruiz ***

Introdução

No ano de 2008, começamos a produzir um intercâmbio


acadêmico e de investigação que avançou para uma profícua
relação entre dois grupos de pesquisa e de investigadores de duas
Universidades, uma brasileira (Universidade Federal do Rio
Grande) e uma cubana (Universidade Central Marta Abreu de Las
Villas). O núcleo da articulação foi a sinergia construída entre os
pesquisadores em torno de dois projetos: O “Desenvolvimento

*
Este trabalho apresenta as referências teóricas e conceituais de um subprojeto
coordenado pelo primeiro autor, inserido no bojo do projeto coordenado pelo
segundo autor. Além disso, o mesmo faz parte de um projeto macro, construído
por um coletivo de pesquisadores brasileiros com um coletivo de professores
cubanos em torno do projeto coordenado pelo prof. Dr. Jaime Ruiz (Cuba) e o
Prof. Dr. Francisco Quintanilha Veras-Neto (Brasil).
**
Professor da Universidade Federal do Rio Grande/FURG e do programa de
Pós-Graduação em Educação Ambiental/PPGEA/FURG; coordenador do grupo
de Pesquisa Política, Natureza e Cidade/CNPq-Brasil, trabalhando com
pesquisa, docência e extensão (Instituto de Educação/FURG), nos seguintes
temas: Políticas Ambientais e Educacionais, Gestão Democrática e Qualidade da
educação/ensino; Cidade Sustentável, participação e democracia sem fim, Henri
Lefebvre, obra, concepções e vivido.
***
Economista, Professor Doutor da Faculdade de Ciência Sociais da
Universidade Central Marta Abreu de Las Villas/UCLV (Cuba) e coordenador
do Projeto Fundamentación para o desarrollo humano sustentable desde la
perspectiva transdisciplinar em América Latina e Caribe-Cuba.

35
Humano Sustentável A Partir De Uma Perspectiva
Transdisciplinar” (Universidade de Las Villas), e o projeto
“Educação e Natureza da Cidade” (Universidade Federal do Rio
Grande), sendo cada projeto coordenado pelos autores acima. O
resultado, em processo de desenvolvimento, foi a inserção do
segundo no primeiro, de pensar o desenvolvimento humano na
cidade e/ou de pensar a cidade com desenvolvimento humano
sustentable. Neste trabalho, apresentamos os aspectos teóricos e
conceituais relacionados aos temas das duas pesquisas, bem como
nossas perspectivas teóricas e utópicas. Ou seja, apresentamos
algumas definições teóricas e conceituais que fundamentam o
projeto de pesquisa que tem o título acima, coordenado pelo
pesquisador brasileiro; e que é parte do projeto maior, coordenado
pelo pesquisador cubano. Na primeira parte, demonstramos
algumas reflexões sobre o contexto macro no qual a cidade e os
investigadores e seus projetos inserem-se; depois, discorremos
sobre a (in) sustentabilidade do modelo de desenvolvimento
hegemônico; da natureza, da teorização sobre a cidade e sobre a
natureza no desenvolvimento humano, e da sustentabilidade da/na
cidade. Por fim, nas considerações relacionamos os
encaminhamentos de nossas pesquisas, articulações e pontos que
deveremos equacionar coletivamente, ao longo dos próximos anos,
rumo à utopia de cada um dos projetos, de ambos e de seus
investigadores.

1 O contexto macro do desenvolvimento humano sustentável

A destruição e exploração dos recursos energéticos,


florestais e hídricos ou os efeitos do “desenvolvimento” industrial
e tecnológico assumiram uma dimensão planetária de risco global
para todos os seres vivos deste planeta (BROSWIMMER, 2005).
O “aumento do controle e do domínio humano sobre a natureza”
(PORTO-GONÇALVES, 2007), através dos processos
desencadeados pelo desenvolvimento capitalista desregulado,
acelerou extraordinariamente o domínio do homem sobre a

36
natureza, alterando as relações sociais de produção e de consumo
e, consequentemente, as formas e conteúdos dos paradigmas.
Estes, constituídos nos últimos 200 anos, com o capitalismo e a
modernidade, instituíram a verdade científica, a objetividade, a
racionalidade e a técnica usadas contra e na exploração da natureza
e dos humanos (SANTOS, 1996, 2001; QUIJANO, 2001;
ALIMONDA, 2002; MARTINEZ-ALIEZ, 2007; MACHADO,
at.all, 2009).
Nas últimas décadas, a globalização neoliberal, que se
confunde com a americanização do mundo (PORTO-
GONÇALVES, 2006, 2007), a partir da hegemonia “desbragada”
das grandes corporações empresariais e das elites capitalistas
mundiais incidiu de forma aterradora sobre a(s) natureza(s). A
natureza física é explorada de forma nunca antes observada;
grandes contingentes humanos (consubstanciada nos pobres, nos
trabalhadores, nos excluídos e nos indígenas) ampliaram-se de
forma significativa. O desemprego, a violência, a falta de moradia,
enfim, – a utopia “globalitária” (SANTOS, 2004) – não gerou a
riqueza e a justiça alardeada por seus “pregadores”.
Ao mesmo tempo, percebemos o crescimento das cidades
na última década, que se urbanizam e mundializam, sem que, no
entanto, muitos dos estudos elaborados propiciem indicadores
capazes de sustentar uma teoria sobre a cidade (FREITAG, 2006;
FARIAS, 2002).

No Brasil, por exemplo, entre 1970 e 1980, dos 119 milhões de pessoas
que constituíam sua população total, 80 milhões compunha a população
urbana, o que significava um percentual de 67,7% (SANTOS, 1985).
Dados do IBGE indicam que, em 2000, a população total do Brasil
atingiu a marca de 169.590.693 habitantes. Deste número, a população
urbana perfazia o total de 137.755.550 habitantes, isto é, 81,23% da
população brasileira reside em cidades (CARVALHO, 2008).

Menos ainda de uma cidade sustentável com


desenvolvimento humano articulado às suas diversidades e
particularidades inseridas no global, hegemônico e/ou alternativo

37
do “outro mundo possível” apregoado pelos Fóruns Sociais
Mundiais.
Se no nível mais distante temos a globalização, o sistema-
mundo, as instituições e o Estado, esses “condicionam” o local, o
cotidiano e as relações humanas. Todavia, a influência do global
sobre o local\a cidade não é absoluta, havendo contradições,
conflitos, rebeldias e resíduos nesse espaço de mediação entre a
ordem distante e a ordem próxima (LEFEBVRE, 1991). Mas, as
cidades também evidenciam diversas experiências, espaços e
temáticas em disputa, o que torna cristalina uma não
homogeneidade no nível local (ACSRLRAD et all 2006;
CARLOS, 1996).

2 (In)sustentabilidade do desenvolvimento econômico

O ambiente físico é inseparável dos demais seres vivos,


inclusive os humanos, fazendo parte de um todo em processo
permanente de mudanças, conflitos; e que, com o ambiente social,
produzido pelos humanos na relação com aquele, foram colocados
pela humanidade no momento atual numa “encruzilhada”, para
abrasileirarmos a “bifurcação” identificada por Prigogine (in.
WALLERSTEIN, 1993). Isto porque, o sistema capitalista, além
de (in) sustentável, deixado a seu “livre” funcionamento, como as
crises atuais evidenciam; também, sua história ambiental pregressa
na América Latina, mostra que desde a chegada dos europeus a
exploração humana e da natureza caracterizaram-se como
“economias de rapina” (HERRERA, 1994, 2004),1 atualizadas

1
Recentemente o Prof. Dr. Pedro Cunill Grau (Venezuela), na conferência de
encerramento do 12º Encuentro de Geógrafos de América Latina, ao falar sobre
a degradação ambiental na Venezuela quando da colonização española, mostra
que a exploração dos humanos incluía a dos “recursos” minerais, árvores,
plantas, animais, ouro, enfim, a natureza em seus múltiplos aspectos sofreu a
degradação, e muitas sendo extintas no processo de domínio colonial das
potências europeias daquele tempo. (Ver: www.egal2009.com; 07/04/2009,
Hotel Radisson, Montevidéu, Uruguai).

38
com a emergência dos Estados Unidos do Norte, como substituto
dos europeus nesta tarefa. Mas, não imaginemos que os povos que
aqui viviam desenvolviam uma relação “harmoniosa” com a
natureza como nos mostraram Diegues (2004) e Javier Taks e
Guillermo Foladori (2001), ou Broswimmer (2005), ao evidenciar
o “ecocídio” atual, que tem suas raízes anteriores ao sistema
capitalista atual. No entanto, na atualidade com a globalização
neoliberal que “prometia o paraíso” para todos, diríamos que, a
questão central seria o próprio sistema capitalista, ou como diz
Wallerstein (2002), “é o sistema produtor de mercadorias”,
consubstanciado em paradigmas hegemônicos (SANTOS, 1993,
2001; MACHADO, et. alli, 2009).
Mas, as experiências alternativas ao capitalismo, como o
socialismo constituído na experiência da URSS (1917), além de ter
apresentado problemas como burocratização, controle do Estado e
do partido sobre a sociedade, definhamento dos “soviets”, não
avançaram para a “auto-gestão dos produtores associados”. Além
disso, a teoria política da transformação que as explicavam e
justificavam se instituíram, e não deram conta de aspectos da
complexidade humana em suas relações sociais e com a natureza.
Isto levou à institucionalização da teoria, entendido por aqueles,
apenas como “reflexo” das bases econômicas (LEFEBVRE, 1957,
1959, 1968, 1973, 1991). Em decorrência disso, a própria
concepção de desenvolvimento focou apenas no aspecto
econômico, ou no “determinismo” da produção, em seu sentido
restrito, de produção de bens e mercadorias predominou até
recentemente, para citar apenas o caso da agricultura em Cuba
(KOURI, 2003).

La ecologia política [...] se ha constituído a partir del intento de


‘discernir mejor los mecanismos económicos y políticos generadores de
desequilíbrios ecológicos’ para, sobre la base de um análisis crítico del
funcionamento de las sociedades industriales avanzadas, reflexionar
‘sobre los médios que hay que poner em acción para llegar a um modo
distinto de desarrollo (KOURI, 2003, p. 10).

39
No debate da esquerda e do marxismo, a questão ambiental,
nas últimas décadas, vem sendo problematizada de forma mais
consistente através da ecologia política (ALIMONDA, 2003) ou de
proposições de um ecossocialismo (LOWY, 2005). Questão que
Perry Anderson (1992), já nos anos 1970, levantava como
emergindo, e gerando parte da “crise do marxismo” e, depois da
“crise desta crise” nos inícios dos anos 1980. No entanto, a crise
da década perdida na América Latina (BELLUZO, 1999), o fim do
socialismo da URSS e no Leste europeu, e a emergência do
“capitalismo de cassino” (SANTOS, 2001) e de “rapina”
(HERRERA, 1994, 2004) levaram-nos ao extremo do
desenvolvimento e crescimento da riqueza para poucos. Portanto,
incluir tais temas (ambiente, o desenvolvimento humano
sustentável, uma cidade com direitos para todos e todas) nas
utopias visando um “outro mundo possível” como propõem os
Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre, é urgente e parte das
tarefas acadêmico-políticas dos cidadãos envolvidos neste projeto.

3 A cidade: sua natureza no contexto macroconcebido

O foco deste estudo será a cidade, ao entendermos que a


mesma é um espaço de mediação, entre o que se
desenvolve/produz no nível global (sistema-mundo e
concepções/paradigmas) com o cotidiano/vivido, o dia a dia no
espaço mais próximo de cada um de nós e de todos através das
relações sociais. Sendo esse espaço, o lugar em que vivemos e
desenvolvemos nossas atividades educativas, de investigação e de
extensão, aí poderemos potencializar ações na produção da utopia
do desenvolvimento humano sustentável como produção/obra dos
sujeitos envolvidos na referida utopia. 2

2
De um lado, a investigação enquanto processo de trabalho/produção individual
articula-se coletivamente às pesquisas e especificidades de cada projeto e
pesquisador, mas também, é formação na medida em que visamos ao definir os
conceitos, realizar eventos e debates, reuniões e discussões entre os

40
Mais precisamente, identificar o lugar da cidade em sua
relação com seu entorno, é pensar suas relações com o exterior,
seja o regional, o nacional e o mundial; mas, também, pensar seu
interior, enquanto configuração de uma paisagem resultante das
relações políticas, econômicas, ambientais, sociais, etc. através da
história de sua coevolução com a natureza. É na cidade, no local e
nas relações sociais cotidianas que se está produzindo e re-
produzindo o sistema. Mas tal determinação (ou indução) não é
absoluta, e processos coletivos e participativos de decisão que
tenham os humanos como centrais, como desenvolvimento
humano sustentável na cidade, poderão orientar à produção de
alternativas, e assim contribuir para pensarmos um
desenvolvimento humano sustentável para todos e para todas em
todo o mundo. A cidade é o foco deste projeto. E Lefebvre a
concebe como:

obra e ato perpétuos dá lugar a instituições específicas: municipais. As


instituições mais gerais, as que dependem do Estado, da realidade e da
ideologia dominante, têm sua sede na cidade política, militar, religiosa.
Elas aí coexistem com as instituições propriamente urbanas,
administrativas, culturais. Donde certas continuidades notáveis através
das mudanças da sociedade (LEFEBVRE, 1969, p.53).

Já Bárbara Freitag diz que

as cidades são formações históricas próprias, cada uma com sua


individualidade. Elas apresentam a cultura específica do seu tempo [...]
[e] hoje as cidades, como centros culturais, econômicos e políticos,
podem até mesmo substituir a realidade e o conceito de nação/Estado
(FREITAG, 2006: 23).

Mas, todos concordariam que vivemos num sistema-mundo


(WALLERSTEIN, 2001) planetário, no qual uns vivem numa

pesquisadores; além de extensão, pois serão realizadas atividades mais amplas


de exposição, divulgação e debates de nossas conclusões – de cada projeto e dos
projetos articulados.

41
cidade capitalista, outros, numa cidade socialista, mas ambas em
processos de constituição que decorreram de uma urbanização nas
últimas décadas 3. Diz Ana Fani Carlos (CARLOS, 2004, p.7) que
"a sociedade urbana constitui-se a partir da generalização do
processo de urbanização no mundo" (Idem, 2004, p.11).
No entanto, para avançarmos nesse debate sobre a cidade,
diz Freitag ser necessário pensarmos em teorias da cidade:

não podemos falar de uma ‘teoria da cidade’, ou seja, uma teoria que
valha para todas as cidades que encontramos através da história e nas
mais diversas regiões. Devemos, sim, falar de ‘teorias da cidade’, ou
seja, das várias tentativas de conceituação da cidade como um
fenômeno universal da vida em sociedade (FREITAG, 2006, p. 12).

A autora apresenta seus argumentos, percorrendo a


produção sobre a cidade nos aspectos sociológicos,
antropológicos, econômicos e políticos, arquitetônico e urbanístico
(FREITAG, 2006: 12), em autores da Alemanha, França, Inglaterra
e EUA e da América Latina e seu impacto no Brasil. Sobre
Lefebvre, um dos autores centrais deste projeto, diz que
“reaproximou-se do Partido Comunista em 1978, por continuar a
ser um marxista convicto e, por isso mesmo, menos prestigiado no
mundo acadêmico europeu”, e que “sua obra só foi divulgada e
traduzida para outras línguas (mesmo assim parcialmente) após
sua morte, em 1991 (Lefebvre 1996)” (FREITAG, 2006: 72). E diz
(p.70, nota 8), ao referir-se às mobilizações estudantis na França,
em 2006, que suas “análises (e os conceitos) continuam válidos”
segundo a socióloga. E destaca que, apenas Lefebvre preocupou-se
com a história da cidade, ao contrário de outros autores franceses

3
No caso, a cidade de Rio Grande; a cidade de Santa Clara/Cuba, são
totalidades e parte de um país, o qual, por sua vez, insere-se nas relações
internacionais e diplomáticas com muitos países da América Latina e de outros
continentes. E, nesse sentido, ambas são influenciadas, mas, também,
apresentam aspectos singulares, específicos de suas organizações
socioeconômicas e políticas, bem como em seus marcos jurídicos.

42
que “privilegiaram o estudo do espaço, sua ocupação, sua
produção social, sem demonstrar interesse especial pela evolução
histórica da cidade” (idem, p.72). É uma pena que, a edição
brasileira utilizou-se da expressão a construção do espaço, e não,
produção como é o sentido da obra principal do autor sobre esse
tema. 4 Outro autor destacado por Freitag é Milton Santos,
brasileiro, que na mesma linha de Lefebvre (p.130), refere-se ao
direito à cidade mas pensado a partir do “espaço histórico com
bases na experiência colonial, na vivência secular de opressão e na
rebeldia latente dos povos subjugados” (p.138). Focalizando o
território, produziu elementos para “uma teoria do Brasil a partir
do Território” (p.138), mas território entendido como “o nome
político para o espaço de um país”, e desse na sua relação com
espaço internacional (p.139).
Enfim, partindo destes pressupostos, deveríamos pensar
cada cidade em sua particularidade, e, portanto, de sua
organização, história e processo de decisão e participação, bem
como sua relação com a natureza. Mas, pensar implica indicar uma
utopia, e os meios de sua realização. Nesse sentido, diríamos com
Henrique Rattner que “a cidade [...] deve servir ao cidadão como
um modelo de civilização sustentável [...] ancorada nos princípios
de justiça social e autonomia individual” (2001, p.10), e que o
desafio seria “implementar um novo conceito de poder político
comunitário local” (idem, p.10), o qual se relacionaria a um novo
paradigma de gestão urbana focada na participação, na democracia
participativa, e como elementos da democracia sem fim
(SANTOS, 1998).
Henri Acselrad (2001), no entanto, lembra que a própria
cidade e seu futuro estão sendo disputados pelos organismos
internacionais, através de financiamento em infraestrutura pela

4
Refiro-me ao livro A produção do espaço (1974), pois Lefebvre discute nesse,
e em textos anteriores, o conceito de produção com dois sentidos: um mais
restrito, produção de coisas, mercadorias, bens, enfim; e outro mais amplo, que
englobaria a produção de obras, do pensamento, das cidades, de tudo.

43
“melhoria da qualidade ambiental na vida urbana” (p. 22). Tais
políticas orientar-se-iam por um “pensamento único urbano”, por
uma cidade do “ambiente único – o ambiente dos negócios” (p.
22) 5 .Por outro lado, desde a “ótica dos movimentos sociais [...] há
diferentes ambientes e diversos riscos para os atores sociais da
cidade”; é necessário pensarmos “um novo modelo de
desenvolvimento urbano, baseado nos princípios da
democratização dos territórios, do combate à segregação
socioespacial, na defesa do acesso aos serviços urbanos e na
superação da desigualdade manifesta também nas condições de
exposição aos riscos urbanos” (p. 23). Até porque, a crise social
nas cidades, que se apresenta, tem suas raízes fora de suas
fronteiras (ACSELRAD, 2001, p. 23). Diante disso, propõe:

Em contraposição às estratégias de modernização ecológica das


cidades, a noção de “justiça ambiental urbana” é aquela que permite
que se oponha resistência às estratégias de desterritorialização das
capitais, [...] a busca da produção, da distribuição e reprodução de
múltiplos atributos qualitativos de um ambiente urbano para todos
(ACSERLRAD, 2001, p. 24).

Por sua vez, o tema da “sustentabilidade urbana” está


presente nos debates ambientais desde o Relatório de Brundtland,
em 1987 (Idem, 2001, p. 25), e ao fazer uma descrição das
diferentes concepções (eficiência, ética, de escala, da
autossuficiência) diz que “o futuro das cidades dependerá em
grande parte dos conceitos constituintes do projeto de futuro dos
agentes relevantes na produção do espaço urbano” (p. 30). Para
finalizar esta parte, reafirmaríamos a necessidade da produção

de uma cidade sustentável, na sua relação com a natureza e na


produção dos meios necessários à vida, resultantes de um processo de
efetivação de uma democracia sem fim e de alta intensidade (SANTOS,

5
A cidade do Rio Grande está assinando com o Banco Mundial, com anuência
do BNDS e do governo federal brasileiro, um empréstimo no qual a questão da
infraestrutura, da paisagem, etc. são focais do projeto que o sustenta.

44
1998, 2001, 2007) perpassando todas as relações sociais, educativas e
com a natureza poderia ser uma utopia articuladora das ações destes
pesquisadores-cidadãos e educadores ativos e rebeldes. Além de
inconformados com as condições de miséria, exclusão e de exploração
de nosso povo desde há 500 anos (MACHADO, SOLER, DE PAULA,
NETO, 2008).

4 A natureza na cidade com desenvolvimento humano


sustentável

O "direito à natureza (ao campo e à ‘natureza pura’) entrou


para a prática social há alguns anos em favor dos lazeres", através
de banalizações "contra o barulho, a fadiga, o universo
concentracionista das cidades” (à medida que a cidade apodrece ou
explode) (LEFEBVRE, 1969, p. 67), disse Lefebvre no final dos
anos 1960 (1969, p. 67). E propõe em alternativa à cidade
existente na França, então, uma cidade nova ou cidade do futuro:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos:


direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao
habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à
apropriação (bem distinto à propriedade) estão implicados no direito à
cidade (LEFEBVRE, 1969, p. 124).

Na década de 1970, propõe uma revolução urbana (1999


[1970]) diante da emergência da urbanização, sugerindo que a
industrialização perdia a sua força na determinação da sociedade
(LEFEBVRE, 1999). Ele analisou e criticou o urbanismo (como
ideologia), pois o mesmo reduziu a complexidade ao instituir e
incorporar-se ao sistema. Sérgio Martins (1999: 11-12) afirma que
“passados quase 30 anos, tal projeto de transformação da
sociedade, pela reinvenção desse mundo invertido [...] ganhará
sentido quando começarmos a tirar daí as consequências”.
Segundo Lefebvre:

A cidade, antinatureza ou não-natureza - e, portanto, segunda natureza


ou natureza segunda - anuncia o mundo futuro, o mundo urbano

45
generalizado. Enquanto some de particularidades exteriores, umas em
relação às outras, dispersas pelo espaço, a natureza morre. Ela dá lugar
ao espaço produzido: o urbano definido como ajuntamento e encontros,
como simultaneidade (centralidade) de tudo o que existe socialmente;
esta naturalidade segunda e apropriada pode fracassar; é um aspecto da
hipótese estratégica (LEFEBVRE, 1973: 15).

Em A cidade do Capital (1973) diz

As forças produtivas, no seu crescimento, apesar dos ‘entraves’ das


relações de produção capitalistas, estimuladas por duas guerras
mundiais, atingiram tal potência que produzem o espaço. Em escala
mundial, o espaço não é somente descoberto e ocupado, ele é
transformado, a tal ponto que sua ‘matéria-prima’, a ‘natureza’, é
ameaçada por esta dominação que não é uma apropriação. A
urbanização geral é um aspecto desta colossal extensão (LEFEBVRE,
1999 [1973], p. 173).

Mas, Lefebvre considera que, onde “há produção do


espaço”, [há] “contradições do espaço”, “conflitos imanentes a
essa produção”, e “novas contradições” (Idem, p. 176). Por fim, na
4ª edição francesa de A Produção do Espaço (1985), afirma uma
tese fundamental:

Le mode de production organise – produit – em même temps que


certains rapports sociaux - son espace (et son temps)”. [...] "ne
désignant pás um ‘produit’ qualconque, chose ou objet, mais um
ensemble de relations, le concept exigeait un approfondissement des
notions de production, de produit, de leurs rappouts (LEFEBVRE,
1985, p. 20-25).

Para tanto, é necessário compreender, de forma mais


qualificada, os processos de "produção e re-produção" das relações
sociais no local, no cotidiano e na cidade, e desta com o sistema-
mundo (WALLERSTEIN, 1975). E ao relacionarmos tal processo
de produção com o de participação, diríamos do estudo que
realizamos sobre a gestão da esquerda em Porto Alegre, que:

46
[...] a criação de espaços e instituições participativas que ampliaram a
gestão democrática nas escolas municipais. [...] não avançaram de
modo a ocupar todas as potencialidades abertas pelas próprias políticas
que desenvolveram. [...] como obra política educativa dos agentes
[envolvidos] (MACHADO, 2005, p. 28).

Na cidade do Rio Grande, desenvolvemos estudos e


pesquisas sobre as políticas educacionais e ambientais
(MACHADO, 2006, 2007; GAUTÉRIO, 2008; VALÉRIO, 2006).
As políticas da Secretaria Municipal de Educação buscam incidir
apenas nas escolas de sua rede de ensino, o mesmo ocorrendo com
a Secretaria Estadual e o Sistema Federal. Nas políticas
ambientais, a partir da participação na Agenda 21 da cidade
(2008), e das análises de documentos como o Plano Ambiental da
Cidade do Rio Grande (2007) e Plano Estratégico da Cidade
(2004-2010), verificamos que o ambiente está subsumido ao
mercado (Agora, 2008). De um lado, percebemos a exploração
econômica do meio ambiente e, de outro, a sua preservação ou
conservação por meio de ações conscientizadoras dos cidadãos
levadas a cabo de forma pontual.
Advem como instigante à pesquisa a experiência
desenvolvida num país socialista como Cuba, se focalizarmos os
temas desde a cidade/do local para o nacional: de Santa Clara/Villa
Clara para o regional e o nacional. Além disso, o país, ao
completar 50 anos de revolução (em 2009), passa por mudanças
num processo que deverá culminar no próximo Congresso do
Partido Comunista (DIAZ, 1999; DILLA, et. al. 1993;
RAMONET, 2006; AYERBE, 2004), como síntese do período,
além de projetar utopias para o futuro do país.
No entanto, para além dessa particularidade deveras
importante, os investigadores de la Universidad Central de Las
Villas desenvolvem projetos em diferentes cidades de la província,
como Placetas, Manicaragua e, mesmo, Santa Clara, nos quais
praticam investigação, formação e extensão tendo o
desenvolvimento humano sustentável como processo de produção

47
(poderíamos dizer empoderamento) dos agentes envolvidos nessas
atividades (MACHADO, 2009).

5 A natureza da sustentabilidade na cidade

Ao longo dos últimos anos, a partir dos estudos no PPGEA-


FURG, produzimos reflexões e discussões sobre a natureza, a
partir da obra de Marx e de Lefebvre. Como resultado desta
produção (MACHADO, et. alli, 2008) apresentado em eventos
internacionais, fomos avançando nas reflexões e às mesmas vêm
contribuindo como “pano de fundo” teórico ao estudo das políticas
públicas da/na cidade e outros temas. As dissertações de Fernanda
Mendonça Ciandrini, A Natureza da/na Formação do MST; e de
Eduardo Morrone, A Natureza das/nas Políticas da Pesca
Artesanal, são exemplos disso, no PPGEA-FURG. Portanto,
diríamos que:

A natureza humana em sua relação com a natureza física e social foi


discutida por Karl Marx desde suas primeiras obras. A natureza humana
emerge da natureza física e transforma-a pelo trabalho produzindo
obras, cidades, novas relações sociais e a própria história dos humanos.
No entanto, ao desenvolver-se tal processo, os humanos estão se
produzindo e re-produzindo em sua interioridade, subjetividade e
aspectos mais profundos de seu ser. Portanto, poderíamos identificar
três naturezas nesse processo: a natureza física, a Terra da e na qual as
demais emergiram; a natureza humana que emerge da primeira, e ao
agir enquanto individualidade e coletividade transformam-na; e, por
fim, as obras e produtos da ação humana sobre àquela. No entanto, essa
natureza teria uma dupla especificidade. De um lado, enquanto
produtos ou obras exteriores aos humanos e, de outro, aspectos internos
a seu ser, enquanto subjetividade, “psique”, emoções, valores mais
arraigados e profundos (MACHADO, et alli, 2008).

As ciências sociais situam a ciência e a tecnologia como


elementos essenciais das forças produtivas e conceituam-nas como
os meios de produção que intervêm entre o trabalho e os objetos da

48
natureza. 6 Devemos inferir, então, que a ciência e a tecnologia são
muito mais do que objetos materiais (volume e eficácia dos meios
de produção). Ambas acumulam a destreza do trabalhador,
costumes e cultura, “progresso da ciência e sua aplicação”,
conhecimentos, experiências e tradições que vão se transferindo de
geração em geração (Fundamentación...CAPES-MES, 2009).
Nesse sentido, as três naturezas e suas relações (a natureza física, a
natureza humana e a natureza produzida no decorrer das relações
entre as duas primeiras) devem ser incluídas nessas valorizações e
como perspectivas teóricas deste debate e projeto (MACHADO,
2008, 2009).
Isto porque, a ciência e a tecnologia, produto direto da
engenhosidade humana, em sua relação de criação com os
elementos da natureza primeira, devem ser postas definitivamente
a serviço dos seres humanos, de tal maneira que se minimizem
seus custos econômicos, sociais, culturais e outros de sua vida em
sociedade. Ainda mais, destacamos que a natureza/meio ambiente
deve ser destacada em sua relação com os processos produtivos
tanto culturais como educacionais neste projeto. A atenção deve
atentar que “el progreso científico y tecnológico no puede
constituir un fin en si mismo, sino un medio para promover el
desarrollo humano equitativo de la sociedad” 7 e uma relação de
utilidade, mas de preservação para as gerações futuras do meio
ambiente (Fundamentación...CAPES-MES, 2009). O estudo da
história mostra-nos que para acessar ao progresso científico e
tecnológico tão sonhados e necessários desde épocas passadas na
região, é preciso se apropriar dos meios de produção fundamentais
e da riqueza em setores chaves/estratégicos, mas sem absolutizar
formas sociais de esquemas de socialização. Mas, como tem

6
É preciso recordar que Karl Marx define a produção da seguinte forma: “Toda
producción es apropiación de la naturaleza por los individuos, en el interior y
por medio de una determinada forma de sociedad.” Carlos Marx. Contribución a
la crítica de la Economía Política. Op. Cit., p. 241.
7
Investigación sobre ciencia, tecnología y desarrollo humano en Cuba, 2003. p. 19.

49
mostrado a história ambiental da região ou dos estudos da
paisagem cultural, o ambiente/a natureza não tem sido destacada
em suas relações com tais processos produtivos (CASTRO
HERRERA, 1994, 2004, ILE, 2004, PADUA, 2008).
Os seres humanos e o meio conformam um sistema único
integrado, no qual os humanos entram em determinadas relações
sociais ao apropriarem-se da natureza, e na qual atuam sobre a
sociedade. Portanto, os seres humanos e as relações que originam,
não são um elemento isolado na sua relação com a natureza e esta
não pode ser tratada num sentido estritamente naturalista e
separada. Do que se trata então é de estabelecer um enfoque e
soluções humanistas aos problemas que surgem das relações entre
os homens em seus vínculos com a natureza
(Fundamentación...CAPES-MES, 2009).
Antonio Manuel Nunes Castelou (2004), ao estudar a
relação da cidade e Natureza, relacionou alguns aspectos
interessantes para nosso estudo, ao ter

como fundamento uma abordagem geral das modificações ocorridas no


conceito filosófico de natureza, a partir de diferentes posturas do
homem em relação ao ambiente natural, procura dialogar com a
problemática da sustentabilidade urbana, apresentando sumariamente
as origens greco-romanas, a ruptura representada pelo pensamento de
um conceito unificador entre homem e natureza existente na ideia de
desenvolvimento sustentável.

Diz ainda que, foi a partir da década de 1970, as discussões


sobre o meio ambiente e seus vínculos com o ser humano
passaram a ocupar uma posição relevante no mundo globalizado.

A natureza, suporte da vida e dos meios de produção, transformou-se


historicamente e seus elementos passaram a ser mercadorias
denominadas recursos naturais. [...] O reconhecimento da natureza
como algo distinto em relação aos seres humanos pôde ocorrer apenas a
partir do momento em que houve uma separação entre o mundo natural
e o mundo social. Primitivamente, o homem não se reconhecia de
maneira diversa dos fatos naturais. Na pré-história, desejos, carências,

50
paixões e demais atitudes humanas eram também comportamentos
comuns aos elementos da natureza, percebidos em todos os fenômenos
naturais.

No século XIX, a ruptura definitiva entre o conhecimento


filosófico e o científico acabou por definir a primazia da
positividade às ciências naturais. O pensamento hegemônico sobre
a natureza assentou-se no raciocínio dedutivo da ciência, devido ao
predomínio dos princípios empiristas (MACHADO, et alli, 2009).
E a relação entre homem e a natureza e, mais especificamente,
entre cidade e meio ambiente passou, cada vez mais, a tomar um
lugar de relevância na discussão de projetos arquitetônicos ou
planos urbanísticos, diz Castelou.
Luciana Sereneski de Lima (2009), em recente dissertação
no mestrado do PPGEA-FURG, estudando a Participação no
Conselho Ambiental da Ilha dos Marinheiros (Rio Grande- RS):
diálogo entre educação ambiental transformadora e o gerenciamento
costeiro integrado, faz uma síntese bastante útil ao debate sobre a
sustentabilidade no contexto da cidade de Rio Grande.
No caso do Gerenciamento Costeiro Integrado (GCI),
definido por Cicin-Sain e Knecht (1998) como um processo
contínuo e dinâmico por meio do qual decisões são tomadas,
visando o uso sustentável das áreas costeiras e marinhas e seus
recursos, diz a pesquisadora. O tema da sustentabilidade aparece
nas funções do GCI como: (...) resguardar recursos, com vistas a
proteger a base ecológica das áreas costeiras e marinhas, preservar
a biodiversidade e assegurar a sustentabilidade dos usos, por
exemplo. Como a FURG é, portanto, um espaço da cidade está
incluído neste gerenciamento, e o destacamos para em seguida
avançarmos nas concepções de sustentabilidade.
Para Acserlad (2005), há disputas na interpretação desse
conceito, sendo que a razão utilitária é “hegemônica e tem como
características a concepção do ambiente como composto
estritamente de recursos materiais, sem conteúdos socioculturais; o
questionamento dos meios e não dos fins para os quais a sociedade

51
apropria-se dos recursos; e a apresentação da poluição como
“democrática”, não propensa a fazer distinções de classe” (LIMA,
2009, p. 20). Nessa concepção busca-se a “internalização dos
problemas ambientais, com “ênfase à adaptação tecnológica, à
celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e
no consenso” (BLOWERS, 1997 citado por ACSSELRAD, 2005,
in LIMA, p. 21). Em contraposição, a razão cultural parte da
“interrogação sobre os fins pelos quais a sociedade apropria-se dos
recursos”, e das distribuições desses na sociedade, que é desigual,
para ancorar-se numa “justiça ambiental” (LIMA, 2009, p.21).
Portanto, para além dos consensos propostos pelos
Organismos Internacionais e o pensamento hegemônico, há
diferentes concepções de desenvolvimento sustentável. Porto -
Gonçalves (2002) afirma que devemos pensar no “sustentável
como prática que se feita por um, pode ser feita por todos, [noção]
que pressupõe a crítica ao modelo societário atual de
desigualdade” (in. LIMA, 2009, p. 26).
O significado atribuído ao termo “desenvolvimento
sustentável” é resultado de um acordo, que do mesmo modo que
pressupõe uma ideologia e deriva de um espaço histórico-cultural,
prevê determinadas práticas para atingir este estado de organização
social em que a crise ambiental estaria solucionada – uma destas
práticas é o gerenciamento racional dos recursos e outra é a
harmonização das atividades setoriais. Desse modo, pode se
reconhecer o desenvolvimento sustentável em sua formulação
oficial, como meta, implica em acordar com os pressupostos sobre
os quais ele se construiu (LIMA, 2009, p. 22). Por fim, partimos da
ideia de que

O desenvolvimento como processo universal de mudança e


transformação evidencia seu caráter conforme o tipo de relações
sociais pré-existentes, os valores, a ideologia e interesses classistas da
sociedade de que se trata. Isso tudo determina/condiciona os objetivos,
o tipo de mecanismo de realização, as políticas e estratégias de
desenvolvimento, sua implementação e os instrumentos político-
jurídicos e institucionais que se empregam. Para nós, o verdadeiro

52
desenvolvimento, de um lado, é aquele que coloca no centro de sua
atenção os seres humanos e seu entorno, como gestores diretos de seu
destino e, por outro, como beneficiários diretos dos seus resultados
(Fundamentación...CAPES-MÊS, 2009, p. 10).

A partir do exposto anteriormente, é que deveremos


desenvolver o referido projeto e, em seu processo, ir ampliando as
reflexões teóricas e conceituais a partir do confronto dessas
sínteses com a realidade e a ação transformadora dos diferentes
agentes envolvidos, sejam eles investigadores, produtores,
acadêmicos, etc.

Considerações finais

Nossas conclusões (in) conclusas, pois ainda em


desenvolvimento, decorrentes dos aspectos apresentados no
decorrer deste texto, articular-se-ão com as proposições e
desdobramentos em realização dos referidos projetos. Assim, numa
primeira fase, o projeto Macro (CAPES-MES) entre as duas
Universidades, articulará atividades e planos de investigação de
quatro grupos de pesquisa e/ou extensão da FURG, quais sejam:
Grupo de Pesquisa Política-Natureza-Cidade, Núcleo de
Desenvolvimento Social e Econômico (NUDESE), Grupo
Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade
(GTJUS) e o Grupo de Pesquisa Eco-Estética, com investigadores
e Centros a eles ligados na Universidade “Marta Abreu”. Cada um
destes grupos desenvolve investigação que será incluída, e ajustada
em sua articulação com o macroprojeto. Assim, o intercâmbio
entre a Universidade Central de Las Villas e a FURG, partindo dos
seguintes eixos de investigação-ação, desdobrar-se-ão em
subprojetos, a partir das seguintes linhas temáticas:
1 A Natureza do Desenvolvimento Humano Sustentável
nas dimensões econômica, ambiental, cultural, político-jurídica
e eco-estética na cidade e no território. Essa parte se
desenvolverá através da concretização deste macro, articulando os

53
dois eixos restantes, e tem como objetivo intercambiar estudos e
reflexões sobre os fundamentos do Projeto Macro Cubano, com
relação as atividades e as ações desenvolvidas no Brasil e em
regiões da província de Villa Clara. Estará sob responsabilidade do
coordenador no Brasil, Dr. Francisco Quintanilha Véras Neto, e de
Cuba, Dr. Jaime García Ruiz, com o apoio de subcoordenadores de
cada subprojeto (Carlos R S Machado, Iván Santos, Eder Dion de
Paula Costa, Pablo René Estevéz) e também contará com a
participação e protagonismo dos membros das respectivas equipes.
2 A Cidade Sustentável: história, paisagem, poder
popular e estruturas de gestão das políticas públicas da e na
cidade (Rio Grande e Santa Clara). Estão previstos dois
subprojetos articulando os temas selecionados e as investigações e
estudos em desenvolvimento, tendo dois coordenadores, um em
cada país: no Brasil, Dr. Carlos R S Machado e em Cuba, Dr. Iván
Santos. Para tanto, em janeiro de 2009 elaborou-se um plano de
trabalho, e plano de atividades, pelos Prof. Dr. Carlos RS Machado
junto com o Prof. Dr. Iván Santos e os Profs. Msc. Gerardo
Iglesias e José Cebey. Além disto, estão inseridas as dissertações
de mestrado de Daiane Gautério, Antonio C P Soler e a monografia
de Diego Cipriano, bem como os estudos realizados por Carlos R
S Machado em Porto Alegre e Rio Grande, como bases de
sustentação deste subprojeto. O segundo subprojeto será um curso
de formação na modalidade Especialização em Ecologia Política,
semi-presencial (Ensino a Distância - EAD-on line), via
Universidade Aberta do Brasil (UAB-FURG), coordenado pelo
Prof. Carlos RS Machado e Msc. Eugênia Dias, para o Brasil, num
primeiro momento.
3 O desenvolvimento humano sustentável nos espaços
do vivido e da produção: relações socioeconômicas, economia
solidária e cooperativismo.

Para este momento estão previstos dois subprojetos. O


primero pretende articular os projetos de extensão “Agricultura
Urbana e Peri-Urbana” (AEUP/NUDESE), coordenado pelo

54
Dr. Eder Dion de Paula Costa e Antonio C P Soler; e de
“Incubação da Rede de Comercialização da Pesca Artesanal no Sul
do Rio Grande do Sul” (Projeto Rede/NUDESE), coordenado por
Msc. Paulo Opuska, bem com sua tese de doutorado (FURG-
UFPr). Pretende ampliar e aprofundar estudos conceituais/teóricos
sobre os temas destes projetos de extensão, em sua relação e
intercâmbio com os que se desenvolvem em Villa Clara. Nesta
província e na cidade de Santa Clara, terão o apoio dos projetos do
Grupo de Estudios sobre Desarrollo Rural y Cooperativismo
(GEDERCO), coordenado pela Dra. Grizel Donéstevez Sánchez.
O segundo subprojeto visará a “Sustentabilidade Eco-Estética na
Educação Escolar da Cidade”, coordenado pelo Prof. Dr. Pablo
René Estévez, por hora desenvolvido com o apoio de vereadores
da cidade de Rio Grande e de outras entidades municipais. Em
2010, se desenvolverá em Cuba (Santa Clara), em escolas
municipais e outros espaços através do apoio da Fundación Samuel
Feijó (Santa Clara), responsável no Ministério da Cultura por
assessorar as instituições escolares e professores nesta temática.

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57
58
ASPECTOS EMERGENTES PARA/DA CIDADE
SUSTENTÁVEL: A NATUREZA, A EDUCAÇÃO, A
JUSTIÇA E A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA

Carlos RS Machado *
Eder Dion de Paula Costa **
Francisco Quintanilha Véras Neto***
Antônio Carlos Porciúncula Soler ****

Introdução

Este trabalho apresenta as bases teóricas de uma atividade


de extensão que culminou na articulação de professores à produção
de uma pesquisa sobre a cidade sustentável. A partir da realização
de evento com cinquenta pesquisadores e acadêmicos, e de

*
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da
Universidade Federal de Rio Grande (FURG), coordenador e membro do grupo
de pesquisa GPNC (Grupo de Pesquisa Política, Natureza e Cidade –
karlmac@ig.com.br.
**
Professor de Direito da FURG, membro fundador do GTJUS (Grupo
Transdisciplinar de Pesquisa Para a Sustentabilidade Jurídica), Coordenador do
Projeto Agricultura Ecológica Urbana e Peri-Urbana e da INTECOOP
(Incubadora de Cooperativas), ambos ligados ao Núcleo de Desenvolvimento
Social e Econômico (NUDESE), da Pró-Reitoria de Extensão da FURG –
ederdion@yahoo.com.br.
***
Professor de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da FURG, líder do GTJUS – quintaveras@yahoo.com.br.
****
Professor de Direito Ambiental, Coordenador Institucional do Centro de
Estudos Ambientais (CEA), membro fundador do GTJUS, Coordenador do
Projeto Agricultura Ecológica Urbana e Peri-Urbana (NUDESE), discente no
Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da FURG –
acpsoler@gmail.com.

59
reuniões entre os pesquisadores, geramos um projeto de pesquisa a
ser desenvolvido de 2007-2009, que deverá culminar na criação de
um observatório na/da cidade em Rio Grande/FURG. Isto porque,
partimos da conclusão de que a cidade é estratégica no sistema-
mundo capitalista, como espaço de transformação e superação do
sistema produtor de mercadorias e de suas relações sociais e com a
natureza. E diante disso urge a articulação da pesquisa, da ação
política e cidadã, em todos os espaços sociais de superação de tal
realidade em nossas cidades e relações.
Neste sentido, a produção de uma cidade sustentável, na
sua relação com a natureza e na produção dos meios necessários à
vida, resultantes de um processo de efetivação de uma democracia
sem fim e de alta intensidade (SANTOS, 1998, 2001, 2007),
perpassando todas as relações sociais, educativas e com a natureza
poderia ser uma utopia articuladora das ações desses
pesquisadores-cidadãos e educadores ativos e rebeldes. Além de
inconformados com as condições de miséria, exclusão e de
exploração de nosso povo há 500 anos.
Argumentaremos nas partes seguintes do por que ser a
cidade estratégica, bem como sobre alguns aspectos importantes de
tal estratégia na cidade e dos fundamentos teóricos ao estudo da/na
cidade. Ao final apresentaremos algumas conclusões provisórias
sobre a temática desenvolvida.

1 A cidade como estratégica

A cidade é o local no qual as pessoas vivem e relacionam-


se em/com determinado ambiente natural, social, econômico e sob
determinado arcabouço jurídico e sob determinadas formas de
produção dos meios de sua subsistência. Nela se produz e re-
produz a vida como um todo. Cada qual tem uma história,
tradições e culturas constituídas através dos tempos que lhes dão
"um charme particular". Mas ela é obra dos cidadãos, daqueles que

60
agem, mas também daqueles que nela apenas habitam. Neste 1

sentido, desenvolve-se na cidade um processo educativo que se


assenta numa determinada realidade social, econômica e natural.
A produção desta "base" desenvolve-se, por exemplo, nas
atividades de ensino (nas redes de ensino e escolas), e também
através das leis da (in)justiça e da/na produção material e/ou
manifestações artísticas 2 como produção de hegemonia, de
consenso, etc., “traduzindo-se” nas relações sociais no cotidiano e
no vivido. Isto porque, na sociedade/cidade como há divisões
sociais, territoriais, classes e grupos diferenciados em termos de
lugar em que vivem, no acesso aos benefícios das políticas, dos
bens produzidos e à justiça, bem como aos centros de decisões e de
poder, a percepção e o vivido de todos e de cada um é diferente (e
diferenciado). Mas, além disso, a cidade é o "lugar de combate
entre as classes” (LOWY, 2006, p. 59-60).
Ao mesmo tempo, devemos considerar as cidades, em suas
particularidades, mas também onde se localizam, ou seja, na
América do Sul (Rio Grande, Santa Clara, Cienfuegos,
Montevidéu, etc.) são cidades capitalistas (Rio Grande,
Montevidéu) ou socialistas (Santa Clara e Cinefuegos), como
exemplos. Nas cidades, ou em nosso continente, invadido em 1500
pelos europeus, diz Ouriques e Rampinelli (2000, p. 86) devemos
considerar o que chamam de conquista interminável:

A configuração do Estado, da economia e das classes sociais sempre


esteve condicionada pela forma histórica de integração da região à

1
Diferenciaríamos os seres humanos que vivem na cidade como cidadãos
(ativos, os quais podem ser divididos entre aqueles que desenvolvem ações
rebeldes e aqueles que desenvolvem ações conformistas) e
moradores/habitantes. Estes são como árvores, pedras, animais, pois apenas
vivem, comem, dormem e fazem sexo, além é claro, de serem “mão de obra” do
sistema. Tais definições e/ou separações inspiram-se em Boaventura de Sousa
Santos (2001, 2007).
2
A sustentabilidade ecoestética é tema de estudos do prof. Dr Pablo René
Estevez, autor de artigo deste livro intitulado “Lo Estético En La Naturaleza
Humana”.

61
economia mundial. O velho colonialismo foi superado e a dependência
afirmou-se de maneira completa revelando que as elites são
historicamente incapazes de romper o círculo de ferro que determina a
exploração e a alienação de milhões de seres humanos em nosso
continente. A dependência transformou-se na única mercadoria que
constantemente se renova em negociatas intermináveis no mercado
mundial (OURIQUES e RAMPINELLI, 2000, p. 9).

Tais aspectos são importantes, pois a cidade (sociedade) em


que vivemos – neste sistema-mundo (WALLERSTEIN, 2001) – é
uma cidade capitalista decorrente de um processo de urbanização
que se revelou/ampliou desde os anos 60 do século passado. E,
sendo assim, as políticas urbanas (e/ou sociais na cidade) criam e
re-criam "constantemente os lugares" e novas centralidades que se
deslocam produzindo novas formas de uso/consumo do espaço
(GONÇALVES, 2004, p. 11).
Tal processo deve ser inserido na nova subordinação
constituída nos últimos tempos com o chamado neoliberalismo.
Este em decorrência da globalização capitalista nas últimas
décadas passou por cima dos estados nacionais, avançou mais
profundamente sobre todos os espaços da vida e sobre a natureza.
Chegamos à mercantilização de tudo – portanto, a barbárie total -
na/da sociedade e na/da natureza e na/da vida. Mas, ao mesmo
tempo, o local e a cidade, o lugar onde as pessoas vivem "parece"
emergir como importante componente de suas identidades e
envolvimentos em processos participativos nas últimas décadas em
nosso país. Sendo assim, devemos contextualizar a cidade em sua
história nacional e internacional (sistema-mundo) em sua
especificidade sociopolítico-econômica dentre outros aspectos para
percebermos suas diferenças, mesmo em relação a temas e lutas
aparentemente comuns.
Finalmente, pensar a cidade como estratégica, implica de
um lado não se esquecer dos processos globais, mas pensá-los
articulados com os espaços e as lutas locais que se localizam e
desenvolvem na cidade, em cada cidade. Neste sentido, as próprias
estratégias transformadoras devem ser reestudadas buscando nelas

62
o lugar da cidade, e de forma crítica buscar elementos à sua
inclusão de forma diferente nas estratégias futuras. Por quê?
Levantaremos uma hipótese.
As estratégias de transformação social ao longo do século
XX, sempre tiveram o local como parte da estratégia final, e não
também, como momento de iniciar-se a efetivação nesta das
utopias propostas ao nacional e ao mundial. Mas, concretamente,
diríamos que as lutas dos trabalhadores, dos socialistas e dos
comunistas, sempre tiveram o espaço nacional como ponto de
partida para as transformações mundiais, e que se não superarmos
o modo de produção de mercadorias não haverá futuro para a
humanidade.
E foi assim na URSS (1917) e em Cuba (1959), por
exemplo, ou seja, os processos revolucionários desenvolveram-se
em diferentes lugares no interior até chegar ao nacional. Para
ampliarmos um pouco, também podemos citar o caso de Portugal e
de suas cidades que, inserem-se na crise do “colonialismo
português” e da ditadura militar nos anos 1973-74 através da
Revolução dos Cravos (1973-74) (Secco, 2006); o caso, da
Venezuela, também é sui generis visto desenvolver-se a partir de
uma ação militar (grupo de militares) que é derrotada, e seus
líderes junto com a crise da dominação e com a organização
popular, derrotam eleitoralmente as classes dominantes, e dizem
caminhar para o socialismo.
Nos primeiros processos revolucionários (URSS e CUBA,
por exemplo), o local era parte da transformação do nacional, parte
do momento da transformação do todo e a ocupação de espaços e
de instituições (sindicatos, associações de moradores, partidos,
entidades estudantis, etc.) como momentos de acúmulo de forças à
transformação nacional. Ao chegar neste, leia-se ao "estado
central" iniciavam-se as transformações pela estatização dos meios
de produção, os quais deveriam produzir novas relações,
mentalidade, valores, etc.
No entanto, a história do socialismo mostra que
predominou a estatização dos meios de produção, e não sua

63
socialização, e menos produção de novas relações sociais, de
valores, ideologias, etc. ou, procedimentos rumo ao fim do estado
e a autogestão generalizada da sociedade. Já o ocorrido, nos anos
70 em Portugal e, mais recentemente, na Venezuela, evidencia
estratégias ou movimentos diferentes dos citados acima. A cidade
nessas diferentes situações e processos históricos certamente
vivenciou-os, também, de forma diferente.

2 Aspectos da estratégia na cidade

Pensar a efetivação da cidade sustentável implicaria


levarmos em consideração suas diferenciações (semelhanças e
diferenças), bem como o lugar (contexto no país e na história) de
cada uma. Por exemplo, o caso de Rio Grande. A possibilidade da
entrada de inúmeras empresas de celulose visando explorar o
biopampa do Rio Grande do Sul com seus eucaliptos e pinheiros
usufruindo as águas do Aquífero Guarani, de portos para escoar a
produção de celulose e de governo subservientes em diferentes
níveis, coloca-nos inquietações acadêmicas e cidadãs 3. Ou seja, a
questão acima, terá impacto na educação, na justiça, na produção
econômica, enfim na cidade como um todo e é, neste sentido, que
os aspectos particulares (temas e lutas) devem se pensar enquanto
totalidade que se articula a outros temas e lutas. Mas, cada tema
em sua particularidade é um mundo por si só. Assim, por exemplo,
o GTJUS e o CEA4 tratam e acompanham aspectos da legislação e
das lutas ambientais na cidade, mas aspectos dessas temáticas
dizem respeito também à educação e à produção econômica.
Outro exemplo, no relacionado à produção material. Neste
caso, para além da economia tradicional (ou da produção
econômica tradicional, que devemos lutar para transformá-la)

3
Um subgrupo dos pesquisadores desenvolverá estudos sobre a questão
ambiental e a justiça sustentável no espaço da cidade.
4
O CEA é a primeira ONG da região Sul, fundada oficialmente em 1983, em
Rio Grande, atualmente com foco de abrangência regional.

64
devemos pensar e desenvolver as bases econômico-sociais e de
produção dos meios necessários à vida na cidade numa perspectiva
alternativa. Nesse caso, seguimos as contribuições da economia
popular e solidária, da qual diz Tedesco (2001, p. 11) “as ações de
colaboração solidária, tendo a cooperação, a integração e a
democratização nas decisões, nos lucros e no saber, dão-se nas
esferas locais, regionais, nacionais e mundiais; abarcam horizontes
econômicos políticos e culturais” (TEDESCO, 2001, p. 17).

Pensar no trabalho, hoje, é ir além de suas históricas macro-


organizações; é voltar a pensar em noções de necessidade, de utilidade,
de apropriação da riqueza produzida socialmente; é pensar no fator
substituição, no fator integração social, no fator autonomia; é colocar
na ordem do dia questões de gênero, de informalidade, de precarização,
da exploração, da extração de formas cada vez mais aperfeiçoadas de
mais-valia; é, enfim, pensar no seu significado vital para o ser humano
(TEDESCO, 2001, p. 11).

Os empreendimentos “econômicos solidários [...] começam


a ganhar forças e amplitude regional, estadual, influenciando
econômica e politicamente. Tornam-se atores cada vez mais
importantes no processo de transformação das relações de
dominação entre o capital e o trabalho para relações de autogestão”
(TEDESCO, 2001, p.38).5
Na cidade de Porto Alegre, BARROS (2005) evidenciou
experiências e alternativas que se desenvolviam no campo da
economia solidária, de cooperativas e grupos de produção que
tiveram apoio/incentivo do governo da cidade (de 1989-2004).
Dizem as promotoras do livro (Agência de Desenvolvimento
solidário da CUT, Cáritas/RGS e Instituto Popular Porto Alegre)
que:

no decorrer da história, o capitalismo tem se caracterizado pela forma


como consegue desenvolver as capacidades produtivas. Contudo, sua

5
O NUDESE/PROEXT/FURG, desenvolve pesquisas e atividades de extensão
relacionadas a esta temática.

65
produtividade tem sido acompanhada por uma constante concentração
de riqueza e renda, resultando em crescentes desigualdades sociais,
miséria e, principalmente, exclusão (p. 1).

Ignácio Ramonet (2004) já destacara outros aspectos do


desenvolvido em Porto Alegre, mas também, em decorrência dos
Fóruns Sociais Mundiais ocorridos nessa cidade. E MACHADO
(1999, 2005) estudou as políticas educacionais e a gestão nessa
cidade destacando avanços e limites dessa experiência contra-
hegemônica.
Finalmente, em parte inspirados em Boaventura de Sousa
Santos (2006), que ao ser perguntado sobre quais seriam as
grandes questões que deveríamos enfrentar, aproveitamos para
aprofundá-las em nossos estudos e atividades. Diz Santos (2006):

A água [...] e a terra, pois as transformações ambientais vão levar à


escassez de água potável. E todas essas questões são dimensões das
novas questões ambientais. Questões pouco mapeadas pelas forças de
esquerda e pela teoria crítica é a militarização do planeta, a religião e a
educação. Em relação a esta última, é preciso fazer uma profunda
transformação da universidade, que lhe permita realizar articulações
virtuosas entre a ciência moderna e a ecologia de saberes populares
(SANTOS, 2006, p. 21).

3 Fundamentos teóricos da cidade como estratégica

Sposito e Whitacker (2006), em 2003, ao desenvolverem


estudos em “cidades médias e pequenas”, analisando as relações
“entre o urbano e o rural, o campo e a cidade”, constatam
diferenças entre o campo e cidade, as dimensões das cidades ou
características específicas de tal ou qual cidade. Fernanda Sanchez
(2003), a partir de inquietações relacionadas às “políticas de
promoção da cidade” em escala mundial, ao desvelar os diferentes
meandros e aspectos envolvidos neste processo – constata a
produção de cidades mercadorias, às quais são “vendidas” no
mercado mundial nos anos 90 (SÁNCHEZ, 2003, p. 26-27).
Ambos os estudos contribuem às nossas reflexões em

66
determinados aspectos. No entanto, se de um lado situamos a
cidade, de forma explícita, no contexto do capitalismo global
constituído nas últimas décadas, de outro, buscamos perceber as
potencialidades de cada cidade em sua particularidade, articulações
e em relação aos temas concretos de nossos estudos e reflexões.
Além disso, como buscamos diferentes cidades (capitalista, em
transição e socialista) outros aspectos emergem como
diferenciador dos aspectos estudados pelos pesquisadores acima.
Sendo assim, partimos, inicialmente, das reflexões de Henri
Lefebvre (1901-1991), que entre os anos 1960-975, desenvolveu
estudos sobre a cidade 6 em decorrência das transformações e de
mudanças que ocorriam na região em que tinha vivido em criança
(LEFEBVRE, 1975, p. 226). Em 1968, no primeiro livro (1989),
ao se referir ao direito à cidade menciona que esse “manifesta-se
como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à
individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito
à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem
distinto à propriedade) estão implicados no direito à cidade”
(LEFEBVRE, 1969, p. 124).
Outros direitos deveriam se tornar reais aos cidadãos pela
superação da realidade atual ao entrarem para a prática social
como o "direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à
habitação, aos lazeres, à vida" (LEFEBVRE, 1969, p. 131). Noutra
obra, intitulada em português como A cidade do Capital (1973),
ele sistematiza obras de Marx e Engels destacando o lugar e os
processos de constituição das cidades ao longo dos processos
históricos e na emergência do capitalismo. E numa obra chamada
A Produção do Espaço (1974), desenvolve aspectos relacionados a
transformações da natureza do/no espaço da cidade, articulando-as
6
São seis livros: Le droit à la ville (1968), Du rural à l'urbain (1970), La
révolution urbaine (1970), La pensée marxiste el la ville (1972), Espace et
politique, second volume du Droit à la ville (1973), en enfin, sorte de
couronnement du tout, La production de l'espace (1974) (HESS, 2000, p. IX).
Estes livros e contribuições serão estudadas/desenvolvidas no primeiro ano, por
subgrupo desta pesquisa.

67
com o processo de produção das relações sociais e o capitalismo.
Portanto, tendo tais questões sobre a cidade (no caso, do
conjunto dos cidadãos) e dos diferentes temas que pretendemos
desenvolver nesta pesquisa, podemos contribuir na
problematização da cidade existente – a cidade capitalista, a cidade
em transição e a cidade socialista – visando com isso relacionar
aspectos à produção da cidade sustentável enquanto utopia
acadêmica e dos pesquisadores envolvidos neste empreendimento.

Considerações finais

Tendo, portanto, os fundamentos resenhados nas partes


anteriores, diríamos ser necessário a estudo, a sistematização e o
acompanhamento das lutas da/na cidade numa perspectiva de
totalidade e de forma que articule diferentes “olhares” e “saberes”
no que Santos (2006, 2007) vem chamando de “ecologia dos
saberes”. Por outro lado, é necessário aprofundarmos o estudo e as
particularidades de cada cidade (no caso, das cidades que elegemos
e com as diferenciações sugeridas). No caso da cidade capitalista
(Rio Grande, Montevidéu, Porto Alegre, ou outras) ou da cidade
socialista (Santa Clara, Cienfuegos, ou outras) buscando nos
aspectos relacionados à educação, à natureza, à justiça e à
economia popular solidária. 7
Do projeto de extensão desenvolvido, e de seus resultados,
no caso os projetos que foram desenvolvidos nos anos seguintes, e
que este livro apresenta parte de suas reflexões, articulações e
algumas contribuições, avançamos no debate e na produção
coletiva, participativa e solidária de ações de pesquisa, intercâmbio
e atividades que apontam para ampliarmos nossas reflexões para a
7
Estes temas avançaram em suas explicitações e foram traduzidos em projetos
em desenvolvimento pelos autores, em particular, num elaborado sob a
coordenação do professor Dr. Jaime Ruiz (Cuba, Universidade Marta Abreu de
Las Villas) e professor Dr. Francisco Quintanilha Veras Neto (Brasil,
Universidade Federal do Rio Grande), onde este livro insere-se como parte das
reflexões individuais e coletivas.

68
produção/criação de nossa cidade como sustentável e socialista.
Enfim, afirmaríamos que, a atividade de extensão foi a
possibilitadora da “sinergia” entre os participantes e organizadores,
ao gerar o que em decorrência do mesmo produzimos em seguida.
Este livro e as informações e reflexões nele presentes é um
exemplo disso.

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69
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70
CONSCIENTIZAÇÃO AMBIENTAL E LEGITIMIDADE
DA POLÍTICA AMBIENTAL
Francisco Quintanilha Véras Neto
Benilson Borinelli

Introdução

No presente artigo discutimos as relações entre as ações


classificadas como a conscientização ambiental e a legitimação da
política ambiental. Faremos isso extraindo elementos de uma outra
investigação sobre a gênese e evolução da política ambiental estadual
em Santa Catarina 1. Mais particularmente se discutem os dados que
dizem respeito às primeiras iniciativas governamentais de
conscientização ambiental do início dos anos 1980. A referida
investigação analisou as diversas formas assumidas pela debilidade
institucional da política ambiental em Santa Catarina no período de
1975 a 1991, enfocando, sobretudo a dinâmica da Fundação do Meio
Ambiente – FATMA, órgão executor da política ambiental
catarinense. Neste artigo, também pensaremos o problema da relação
entre conscientização ambiental e legitimação da política ambiental
dentro do marco da debilidade institucional da política ambiental.
Num sentido geral, se entende a debilidade institucional como uma
política deliberada, cuja expressão mais evidente é ausência crônica e
persistente daqueles recursos de poder necessários à eficácia de uma
política pública quando comparada a seus objetivos formais.

1
Trata-se da dissertação de mestrado “Um Fracasso Necessário: Política
Ambiental em Santa Catarina e Debilidade Institucional (1975-1991)”,
defendida pelo segundo autor, em 1998 no Programa de Pós-Graduação em
Administração da Universidade Federal de Santa Catarina.

71
A análise da debilidade institucional na pesquisa original
teve como um de seus objetivos específicos a identificação dos
principais mecanismos e condicionantes que contribuíram para a
manutenção da legitimidade da política ambiental estadual. Foi
neste ponto que nos ocupamos com o estudo da conscientização
ambiental promovida pelo governo catarinense, seu contexto e
função política. Em especial, com o Governo de Jorge Konder
Bornhausen e Henrique Córdova (Aliança Renovadora Nacional -
ARENA/Partido Democrático Social - PDS), de 1979 a 1983, que
este objetivo demonstrou-se mais saliente. Sucedendo seu primo,
Antonio Carlos Konder Reis, Jorge Konder Bornhausen foi o
último governador indicado pelo Governo Federal e eleito
indiretamente em Santa Catarina antes do retorno das eleições
diretas em 1982. Este governador dava continuidade às relações de
ascensão sobre a administração pública dos interesses da quase
totalidade do grande empresariado do estado, aglutinados em torno
do partido governista, o Partido Democrático Social – PDS. Um
dos principais traços desse governo foi uso intenso e estratégico da
máquina pública para fins eleitorais, visando a permanência das
forças políticas tradicionais no poder, elegendo Esperidião Amin
Helou Filho, e derrotando o candidato do Movimento Democrático
Brasileiro – MDB. Este partido já comandava no início dos anos
1980 quase todas as principais cidades do estado.
Os condicionantes deste contexto político preparatório da
abertura política e a eclosão da questão ambiental no país e no
mundo, no início da década de 1980, potencializaram a politização
dos problemas ambientais e, portanto, acentuaram as exigências
por respostas estatais mais consistentes. O crescente volume de
denúncias de novos e tradicionais movimentos, e a reduzida
disposição de recursos institucionais logo evidenciou não só uma
crise ambiental no estado, como a existência de um órgão
ambiental sem possibilidade de resolvê-la. Por sua vez, a relativa e
difusa expressão política dessas crises deram uma identidade
funcional à FATMA na gestão de demandas políticas divergentes.
A FATMA, várias vezes ameaçada de extinção neste governo

72
diante de sua inoperância, passou a ter sua existência assegurada,
porém para administrar a crise ambiental e não solucioná-la. É
nesse cenário que o governo catarinense começa a intervir num
espaço de quase uso privado e que busca garantir sua legitimidade,
mobilizando um conjunto de instrumentos, entre outros, a
conscientização ambiental.

1 Contexto da discussão ambiental no cenário externo e a sua


influência na busca da legitimidade institucional da questão
ambiental

Há autores que reconhecem a existência de políticas


ambientais desde o século XVII, mas é nos últimos 40 anos que a
questão ecológica produziu políticas públicas originadas em
pressões externas. Estas políticas são encaminhadas
principalmente a partir do pós-guerra até a Conferência de
Estocolmo, em 1972. Neste contexto histórico não havia
propriamente uma política ambiental, mas políticas que resultaram
nela. Os temas dominantes eram o fomento à exploração dos
recursos naturais, o desbravamento do território, o saneamento
rural, a educação sanitária e os embates entre os interesses
econômicos externos, os conservacionistas que defendiam a
proteção da natureza, através da exploração controlada como a
Fundação Brasileira de Conservação da Natureza (FBCN), e os
nacionalistas que defendiam a exploração pelos brasileiros como a
Campanha Nacional de Defesa e Desenvolvimento da Amazônia
(CNDDA). A legislação que dava base a essa política é da década
de 30 e era formulada pelos códigos de águas, florestal, de caça,
pesca e mineração (VIEIRA & BREDARIOL, 2006).
O exemplo do Código das Águas dado pelo ambientalista
Antônio Soler revela o surgimento da problemática ambiental num
nível incipiente da regulamentação do uso de recursos naturais como
a água: “Esta era a lei 24643, de 10 de julho de 1934, que visava o
aproveitamento industrial das águas” (SOLER, 1996, p. 67).
Neste período inicial, a legislação ambiental brasileira era

73
marcada pela fragmentação, ou seja, as questões ambientais não
eram vistas dentro de uma totalidade e estavam desconectadas, as
partes estavam isoladas do todo. A natureza era um objeto, um bem
econômico, e como não havia uma visão mais ampla do meio
ambiente, a natureza era vista como algo posto, que devia ser
dominado a favor do homem, que não fazia parte desta última.
Nas décadas seguintes surgem mudanças na percepção da
questão ecológica, que fazem surgir outro modelo legal orientado
pelo ambientalismo e baseado em uma visão holística, ou seja, que
vê os problemas ambientais dentro de um contexto, de uma
totalidade caracterizada, pela interdependência ecossistêmica, tema
ampliado pelas teorias da complexidade e visão ecossistêmicas que
hoje são reavaliadas e reintegradas por autores como Loureiro a
uma crítica mais ampla conjugada ao plano da dialética marxista,
que compreende a totalidade sistêmica dentro de um cenário de
contextualização sócio-histórica situada no desenvolvimento da
sociedade capitalista (LOUREIRO; VIEGAS, 2008).
A conscientização da crise ambiental torna-se mais nítida no
imaginário social estético expressivo do próprio movimento
ecológico a partir da reinvenção dos valores ambientais, agora
legitimados por uma série de eventos que têm como marcos
significativos de posicionamento da luta pela conscientização verde:

O ambiente político-cultural que caracteriza as condições de


emergência do campo ambiental tal como o demarcamos, ou seja, como
configuração contemporânea, pode ser pensado no âmbito do
movimento contracultural e do ideário emancipatório dos anos 60, no
qual surgem os movimentos ecológicos (CARVALHO, 2002, p. 39).

No caso do Brasil este cenário está demarcado pela cena


contracultural brasileira que era inevitavelmente mixada com o
regime autoritário brasileiro e latino-americano (CARVALHO,
2002). A conjuntura sócio-histórica, que levou a criação das
políticas públicas no campo ambiental brasileiro, situou-se
inicialmente dentro do quadro internacional que pressionava a

74
ditadura militar a adotar algum posicionamento em relação a
questão ambiental. Nos anos do Milagre econômico 2, o governo
teria convidado os poluidores para investirem no país em plena
conferência de Estocolmo realizada em 1972:

(...) A participação da comitiva brasileira na Conferência de Estocolmo


norteou-se por tentar cativar empresas estrangeiras a investirem em
terras brasileiras. Nossos diplomatas usaram o fato da inexistência de
leis ambientais rigorosas no Brasil como atrativo para investidores. As
empresas que aqui se instalassem não teriam que se preocupar com
gastos em equipamentos, sistemas ou pessoal especializado para evitar
impactos ambientais negativos de sua atividade industrial, o que
certamente lhe economizaria muitos dólares. Propagandeou-se, no
exterior, a aceitação do Brasil da poluição industrial. Situação
testemunhada ocularmente na Europa por Carlos Minc e relatada da
seguinte forma: em 1974, quando eu estava exilado e estudava em
Paris, vi estupefado um out-door de propaganda do governo brasileiro
convidando os investidores para virem poluir no Brasil, pois aqui não
havia qualquer controle ou penalidade para a poluição. É de matar...
(SOLER, 1996, p. 70).

A crise ambiental situa-se num processo de longa duração,


que está representado significativamente com mais força nas
últimas décadas, que na verdade expressa a exploração dos
recursos naturais pelos agrupamentos humanos em distintas partes
do planeta, o uso em larga e crescente escala dos recursos naturais

2
O milagre econômico é o jargão que intitulava o crescimento econômico
“extraordinário” ocorrido especialmente no governo Médici, dando a entender
que o Brasil logo seria uma potência líder se continuasse seguindo o modelo
econômico proposto pela ditadura. O crescimento econômico estava ligado
especialmente a internacionalização da economia brasileira, com a entrada de
grandes multinacionais no país. Para que tal processo pudesse ser efetivado
foram despendidos grandes recursos na infraestrutura, com a realização de
grandes obras, muitas delas faraônicas, algumas exitosas como Itaipu e outras
condenadas ao fracasso como a Transamazônica. O crescimento econômico foi
logo bombardeado pela crise do petróleo de 1973, ocasionando uma maior
dependência do país das potências internacionais, além de concentração de
riqueza, achatamento salarial e desnacionalização do parque industrial.

75
pela sociedade industrial tem provocado desequilíbrios sociais e
ambientais que integram a agenda política internacional das
últimas décadas (MARTINEZ, 2006, p. 53):

A busca de alternativas para a sobrevivência do modelo industrial e a


manutenção das condições de vida no planeta tem predominado nos
documentos emitidos pela comunidade internacional. Esta busca
coloca, muitas vezes em lados opostos, os interesses de importantes
segmentos da sociedade e da comunidade científica e os interesses das
grandes corporações empresariais que exploram recursos naturais e de
governos vulneráveis às suas pressões. O desenvolvimento de
programas nucleares, a adoção de sementes transgênicas, os limites
éticos da comercialização da genética humana e a conquista dos
espaços são exemplos desta disparidade entre as necessidades sociais
no âmbito geral e as conveniências econômicas particulares
(MARTINEZ, 2006, p. 53-54).

Os anos 1980 sinalizam para a distensão e transição


orquestradas pelas cúpulas do sistema ditatorial. O início do
processo da discussão ambiental ocorreu num contexto de
redemocratização, mas também de crise da dívida externa e do
modelo de Estado interventor. No processo de transição, vários
setores ditatoriais civis e militares tentaram formar novas
arregimentações oligárquicas em um momento de grande agitação
promovida por organizações populares, associações civis, novos
movimentos sociais e ecológicos.
Neste cenário, o sistema ambiental brasileiro passa por
vários momentos, dentre os quais se inclui a passagem de uma
legislação fragmentada, como a do Código de Águas criada nos
anos 30 por decretos, e que era baseada no uso econômico e
industrial das águas, especialmente para a produção hidroelétrica.
Em momento posterior, foram criadas as legislações que tratarão
da questão ambiental sob um viés holístico, caracterizando a
proteção ampla dos ecossistemas de uma forma mais complexa e
efetiva, apesar da notória ineficácia dos processos de fiscalização e
punição a degradação ambiental. Longe de ser apenas um
problema de gestão, a ineficácia é a expressão mais aparente do

76
fenômeno político da debilidade institucional da política
ambiental, cujas determinantes primeiras originam-se na
contradição central do Estado na regulação da apropriação dos
recursos naturais; qual seja, de ter que restringir o livre uso desses
recursos em nome da segurança ambiental e, ao mesmo tempo,
depender política e economicamente da apropriação dos recursos
naturais nos moldes capitalistas.
A legitimação ideológica deste modelo atenderá aos limites
da reprodução capitalista periférica ditada pelas oligarquias
internacionais multilaterais, nacionais e regionais que no novo
ambiente partidário da democratização conduzirão as questões
ambientais dentro dos limites de reprodução da desigualdade da
sociedade capitalista brasileira. O foco aqui se dirige
especificamente ao plano da dinâmica regional catarinense e da
sua organização institucional voltada para a filtragem da questão
ambiental por interesses limitadores do alcance das demandas
ambientais, fixadas pela legitimidade da reprodução de formas de
conscientização ambiental compatíveis com a reprodução do
sistema capitalista. Daí ser a legitimação de uma das principais
funções das instituições para aproximar esses extremos que
constituem a política ambiental contemporânea.
O primeiro passo para a criação desta visão holística
ecossistêmica na legislação ambiental brasileira ocorreu após a
extinção da Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA qu e
havia sido criada em 1973, durante o governo militar. De acordo
com Soler (1996), esta Secretaria do período militar estava
orientada para a conservação do meio ambiente e ao uso racional
dos recursos naturais. Assim o governo poderia levar adiante o
projeto da industrialização brasileira, desconsiderando seu custo
ambiental, concomitantemente à criação da SEMA, fato que
combateria determinadas pressões ambientais que emanavam do
cenário internacional (SOLER: 1996).
Após a extinção desta Secretaria, criada no regime militar
apenas para legitimar a falta de preocupações ambientais daquele
regime, garante-se a transição da legislação ambiental para a etapa

77
holística que passa a se consolidar paulatinamente no plano das
leis. Isto a partir do marco estabelecido pela Lei nº 6.938/81 criada
ainda no período militar e que inicia a visão de uma legislação
ambiental holística, voltada para a compreensão ampla da questão
ambiental e que posteriormente se sedimentará na Constituição do
período democrático promulgada em 1988 (SOLER, 1996).
Portanto a visão ecossistêmica e holística baseada na
conexão entre o local e o global, ou seja, na interdependência e
conexão em rede dos ecossistemas e da sociedade humana, foi
contemplada nestas duas leis da década de 80.
No contexto de um cenário nacional pressionado por uma
conjuntura em que ascendia a preocupação ambiental na agenda
pública internacional produziu importantes reflexos no Brasil e em
Santa Catarina, os quais desencadearam um conjunto de ações. Por
um lado, essas ações sinalizavam avanços na inclusão da questão
ambiental na agenda púbica, mas, por outro, apontavam para a
inviabilidade das mesmas. A importância assumida pelo controle
da poluição, em especial a industrial hídrica, entre as ações da
FATMA, indicava que não era mais possível ignorar os graves e
conflituosos problemas ambientais, sendo necessário, portanto,
uma nova estratégia para o momento eleitoral e de abertura
democrática em marcha. Medidas cosméticas e reativas como a
alardeada aprovação da primeira legislação ambiental do estado, a
Lei n 5.793 de 05/06/1981, que buscava sobretudo a constituição
de um sistema de controle da poluição industrial; a neutralização
do Conselho Estadual de Tecnologia e Meio Ambiente; a
instalação tardia de unidades da FATMA no interior do estado -
foco dos maiores desequilíbrios ambientais - em plena campanha
eleitoral; a proposição de Comissões Municipais de Defesa do
Meio Ambiente para canalizar e padronizar as ações locais. É no
interior deste processo que surgem as primeiras iniciativas estatais
de conscientização ambiental, aqui entendidas como ações de
caráter legitimador e compensador dos déficits, do restrito espaço
de poder da política ambiental estadual.
Um restrito espaço de poder está geralmente associado a uma

78
situação de crise institucional. Pode-se afirmar que um órgão público
está em crise institucional “quando uma dada condição social estável
e auto-sustentada deixa de poder garantir os pressupostos que
asseguram sua reprodução.” (SANTOS, 1995, p. 190).
Contudo, a crise institucional não indica necessariamente o
seu fim, pois as instituições podem sobreviver com um mínimo de
consentimento social ou de legitimidade. A compreensão deste
conceito é muito importante, pois permite uma avaliação dos
mecanismos e condições para administrar o nível de legitimidade
institucional perante os diferentes segmentos sociais. O conceito
de legitimidade, em um sentido geral, é compreendido como o
consentimento de quem obedece sobre quem manda, portanto, um
importante teste político para os governos e para o Estado na
relação com suas demandas. “A legitimidade é o principal atributo
do estado social, como consenso acerca dos critérios qualitativos
que orientam sua intervenção, pautado nos resultados.”
(MARTINS, 1996, p. 143). Assim, os resultados da política
pública não precisam necessariamente corresponder aos preceitos
legais. Mas pelo caráter contraditório e dinâmico do Estado e
sociedade capitalistas, a política pública pode alcançar uma
relativa e precária legitimidade invertendo totalmente sua ação,
sujeitando-a apenas, em casos extremos, ao consenso na base
social (OFFE, 1984).
Offe, quando se refere às estratégias da política pública
para “descarregar” o excesso de demandas que comprometem sua
legitimidade, afirma que a crise das instituições políticas tende a se
manifestar quando o desacordo entre os motivos das instituições e
suas funções objetivas resultam de uma expansão dos conflitos. No
caso desta pesquisa, as discordâncias entre as funções inerentes à
política ambiental configuradas na FATMA. Em resposta a esses
conflitos, as instituições desenvolvem mecanismos de defesa que
se originam da combinação de estratégias de a) redução da
probabilidade da emergência de conflitos ou b) a redução do
impacto de suas manifestações (OFFE, 1984, p. 170).
É a partir dessa perspectiva que analisaremos as primeiras

79
iniciativas de conscientização ambiental do Estado catarinense em
suas múltiplas interfaces com a legitimação da política ambiental
e, consequentemente, dos governos. Por certo, com tal perspectiva
não pretendemos esgotar as possibilidades analíticas da questão,
mas dentro do espírito exploratório deste trabalho, demarcar
importantes balizas e relações para pensar a dimensão política e
ideológica da conscientização ambiental, aqui também pensada
como um elemento privilegiado da educação ambiental.

2 A conscientização ambiental pela educação ambiental


capitalista e a reprodução da legitimidade das políticas
públicas em Santa Catarina

A discussão dos processos de conscientização ambiental


por modelos de educação ambiental voltados para a conservação
da legitimidade dos interesses de reprodução da sociedade
capitalista é fundamental para a compreensão dos limites dos
processos de conscientização formal sobre a crise ambiental. Eles
buscam fundamentalmente manter a legitimidade política negando,
dissimulando e amenizando os impactos capitalistas sobre a
sociedade e o meio ambiente. O debate promovido não envolve
elementos mais amplos de uma nova perspectiva ético-política, o
que exigiria tratar de questões como racismo, o falocentrismo, o
urbanismo criador de desastres e a justiça ambiental. Esse novo
olhar envolveria a libertação da criação artística do mercado e uma
nova pedagogia capaz de inventar seus mediadores sociais, dentro
da problemática da existência humana em novos contextos
históricos (GUATTARI, 1990).
Partimos da premissa de que o início das ações de
conscientização ambiental em Santa Catarina, durante o governo
de Jorge Konder Bornhausen, está principalmente relacionado à
necessidade de conquistar legitimidade em função das sucessivas
crises institucionais deste período, bem como pela necessidade
crescente de justificar uma opção institucional pela orientação em
detrimento da coerção aos infratores. Em ambos os casos, tentando

80
justificar a existência institucional da política ambiental ao ocultar
e amenizar os conflitos inerentes à apropriação contraditória de
recursos naturais vigentes nas sociedades de mercado.
Na proposta do governo, conscientizar no campo ambiental
consistia em promover e desenvolver programas educativos e
informativos que concorressem para “uma melhor compreensão
social dos problemas ambientais, o uso adequado dos recursos
naturais e a participação efetiva de toda a comunidade no processo
de controle e do meio ambiente (...) [as palestras tinham como
preocupação básica] a descentralização dos conhecimentos acerca
do manejo dos recursos naturais e a formação de estruturas
mentais voltadas para aspectos de conservação, preservação e
melhoria da qualidade de vida, a partir da mudança de
comportamento (...)”. (FATMA, 1982, p. 23 e 25).
Um conjunto de ações do período analisado pode
enquadrar-se nesse esforço: a) criação de premiações e títulos
honoríficos às pessoas e entidades que se projetaram em atividades
relacionadas com o meio ambiente, com destaque para a primeira
edição do Troféu Fritz Müller 3; b) edição e publicação de obras de
pesquisadores autônomos; c) distribuição de mudas de plantas e
árvores, cartilhas e camisetas; d) acordos com a Secretaria de
Educação, visando a elaboração de projetos específicos como
cartilhas e programas; e) campanhas publicitárias; f) outros
eventos, como passeios ecológicos e palestras.
Dividiremos esta análise em dois momentos relevantes e
inter-relacionados, o primeiro que trata dos atrativos operacionais
da opção pela conscientização ambiental, e o segundo, em que se
apresenta a relação entre a necessidade da conscientização
ambiental e o seu conteúdo para a produção de legitimidade da
política ambiental.
Em primeiro lugar, as atividades entendidas como de

3
Controvertido naturalista e pesquisador alemão que viveu em Santa Catarina
entre 1852 e 1897, internacionalmente conhecido por suas contribuições à teoria
evolucionista de Charles Darwin.

81
conscientização ambiental costumam ser de baixo custo e ter
impacto positivo sobre a opinião pública. O custo reduzido
geralmente se deve tanto à própria dimensão dos eventos quanto à
possibilidade de uso de recursos externos, como na distribuição de
mudas e árvores à população ou em acordos e convênios com
outros órgãos públicos, por exemplo, com a Secretaria da
Educação na elaboração de cartilhas e de programas específicos.
Igualmente, o abalo orçamentário de oferecer troféus e prêmios a
pessoas e entidades que se destacam na área do meio ambiente, e
campanhas publicitárias esporádicas como formas de
contrabalançar os desgastes divulgados na mídia são infinitamente
inferiores aos investimentos necessários a uma política ambiental
consequente.
Geralmente, com uma pontual e intensiva divulgação na
mídia, o conteúdo destes eventos costumava recorrer a apelos
científicos e emocionais (românticos), ambos com chances de
convencimento da opinião pública. Desta forma, esses recursos
podem também ter um relativo sucesso na produção de uma
imagem positiva para a instituição contra denúncias de omissão do
órgão ambiental advindas de regiões específicas e, em geral,
carentes de consistência e persistência.
Além disso, estas ações implicam na maior parte dos casos
em um baixo nível de conflito. Em geral, uma fatia expressiva da
população informada concorda que para resolver grande parte dos
problemas ambientais falta “consciência” às pessoas. Assim, os
meios de conscientização que atingem grande parte da população,
direta ou indiretamente, têm a vantagem de gozar de um baixo
nível de conflito político e social. O mesmo não acontece às
medidas de coerção moral ou impedimento de funcionamento de
atividades econômicas. Afinal, estas medidas vão contra toda
lógica de funcionamento da sociedade de mercado, só justificáveis
em casos de extremo impacto sobre o meio social e natural,
espacial e temporalmente identificados.
Em segundo lugar, importa considerar a impossibilidade de
controlar satisfatoriamente as externalidades ambientais das

82
atividades produtivas e daí a necessidade de ocultamento das
contradições do modelo capitalista de apropriação dos recursos
naturais. Essa situação leva a necessidade de criação de um cenário
difuso e minimizador da socialização das externalidades
ambientais negativas e, consequentemente, da decisão política que
elas envolveriam, deslocando a ênfase dos principais problemas
para outras instâncias. Por sua vez, isto exige a (re)construção de
uma percepção social que circunscreva, numa dimensão
relativamente segura e adequada ao sistema, o que é a Natureza, o
meio ambiente, a crise ambiental, seus sintomas, dimensões e
interlocutores legítimos e as soluções aceitáveis.
Como adverte Folari, analisando a função ideológica
assumida pelo conceito de interdisciplinaridade no discurso
ecológico, quando não há decisão política, “melhor é apelar para
cortinas de fumaça, como a interdisciplinar, que conduzem a
soluções imaginárias pautadas na imanência do técnico e no
adormecimento das consciências sobre as opções que teriam real
eficácia” (FOLARI, 1993, p. 89).
As chamadas de campanhas publicitárias durante a gestão
da FATMA de 1979-1983, como “Dê uma mão a natureza”, “Cuide
bem dessa bola. Deus não vai fazer outra” ou “Poupar a natureza
faz bem” - são bons exemplos de um ocultamento ideológico da
realidade social e política. Numa sociedade que se desenvolve pela
desigualdade, almeja-se tornar todos simetricamente responsáveis
por problemas ambientais, em geral indefinidos. Ao mesmo tempo
em que se socializa a responsabilidade sobre uma crise ambiental,
sugere-se que a mesma pode ser resolvida pela soma das mudanças
de comportamentos individuais. E como defende o termo
“ecodesenvolvimento” e mais recentemente “desenvolvimento
sustentável”, disseminado pela ONU, os conflitos existentes na
apropriação desigual dos recursos naturais e seus conflitos são
passíveis de conciliação 4. Mais recentemente, a ONU alude a

4
Ver mais sobre a crítica à proposta de “Desenvolvimento Sustentável” no
contexto das sociedades capitalistas em STAHEL (1995).

83
questão da década internacional para Educação voltada para o
desenvolvimento sustentável, os efeitos da crise ambiental no
plano social são principalmente: sexismo, racismo, catástrofes
ambientais e sociais, mas o conceito de desenvolvimento
sustentável permanece em sua abstração etérea mítica, fixado na
moldura semântica dos ideais liberais da conscientização
ambiental aprisionada ao modelo de capitalismo globalizado.
Aliás, modelo esse hoje combalido, ao menos temporariamente,
pela crise financeira. Situação que não faz cessar, antes, mais
provavelmente, agrave as causas estruturais do quadro de
holocausto ambiental que está na sua eminência histórica.

A Década Internacional da Educação para o Desenvolvimento


Sustentável (2005-2014) é uma das tênues estratégias que as Nações
Unidas propõem como necessárias ao enfrentamento dos problemas
mais urgentes no século XXI, a paz e a redução das desigualdades
sociais. Estas, em suas diferentes formas de manifestação, como o
racismo, a opressão da mulher, a concentração da riqueza, da cultura e
do poder, a fome e a pobreza, podem desembocar em situações de
completa desestruturação social, nas quais nem mesmo a ajuda
humanitária e a assistência social seriam capazes de restabelecer e
assegurar a paz e a vida em sociedade. É o que já ocorre em países
como o Haiti ou em favelas de grandes metrópoles brasileiras como o
Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo (MARTINEZ, 2002, p. 54).

De volta ao caso catarinense, foi possível identificar a


existência de um calendário mínimo de reposição de legitimidade,
onde o rol de medidas exposto anteriormente entra em ação sob
múltiplas combinações. As principais referências desse calendário
situam-se no mês de junho, no dia 5, Dia Mundial do Meio Ambiente,
de 05 a 12 de junho, Semana Nacional do Meio Ambiente, e em
menor grau o Dia da Árvore, no dia 21 de setembro. Outros
importantes momentos deste calendário podem ser identificados nos
pleitos eleitorais e, emergencialmente, em acidentes ecológicos.
Nesse sentido, também se observa a preocupação para que
“grandes” acontecimentos relacionados ao meio ambiente, que são
poucos para se dispersar durante o ano, tenham seus lançamentos

84
“oficiais” concentrados em datas estratégicas, quando as atenções
se dirigem para as avaliações da problemática ecológica e é
necessário dissimular a impressão de que não se está fazendo nada.
É a partir do Governo Bornhausen que se instalou, em
consequência das intensas pressões sobre as políticas ambientais, a
constituição de um ritual nas semanas do meio ambiente, onde se
conjugam críticas, denúncias, justificativas, comemorações
simbólicas e apresentação de novos programas e declaração de
intenções, para só serem retomados como fatos públicos no
próximo evento. A título de ilustração, no governo analisado foram
lançados ou sancionados, preferencialmente em dias da Semana do
Meio Ambiente ou em datas do mês de junho, o decreto que
regulamentou a legislação estadual do meio ambiente (5.06.81), a
Reserva Biológica Estadual de Aguaí (05.06.78), e as reservas
biológicas estaduais de Canela Preta e da Serra Furada (20.06.80).
Portanto, uma educação e uma conscientização ambiental
equivocadas não devem ser vistas apenas como ações resultantes
da má vontade ou incompetência de certos agentes, mas, e
principalmente, como ações dependentes, na definição de seu
conteúdo e forma, do atendimento ao critério supremo de garantir
à perpetuação da sociedade capitalista industrial. De uma maneira
ou de outra, isto se dá pela predominância neste campo de
abordagens e termos unidimensionais, instrumentais e autoritários,
prevalecendo desta forma, pela execução de um “currículo oculto”,
como defende Brügger (1999), algo melhor caracterizado como
um adestramento ambiental.

Em suma, a chamada educação ambiental deve ser vista também como


uma luta pela difusão de uma determinada concepção de mundo, que
permita a perpetuação das classes dominantes - e não somente como
uma tentativa de conscientização ambiental (BRÜGGER, 1999, p. 99).

Essa luta a que se refere Brügger pode, conforme Beck


(1992), também ser interpretada como uma operação central da
sociedade de risco, onde “à lógica positiva da apropriação se

85
contrapõe uma lógica negativa do eliminar, do evitar, do negar, do
reinterpretar" os riscos ambientais (BECK, 1992, p. 33). Aqui, as
instituições aparecem "gerindo" os riscos e as percepções dos
mesmos ao se envolverem ativamente em relações de definição, ou
seja, “as leis, instituições e capacidades que estruturam a
identificação e avaliação dos problemas e riscos ecológicos, a
matriz legal, epistemológica e cultural, segundo a qual se conduz a
política de ambiente” (GOLDBLATT, 1996, p. 241). Fórmulas
explicativas dos riscos, como afirma Beck (1992), não ficam em
pé por si só. Relações públicas ("carpinteiros de argumentações")
de grupos científicos, empresariais, governos ficam na linha de tiro
da crítica pública. Nesta luta de definições para obscurecer ou
revelar os riscos 5 o acesso à mídia se torna decisivo.
Assim não parece sem propósito que nos meios de
comunicação de massa, na grande maioria das vezes, a
problemática ambiental receba uma cobertura isolada e
fragmentada, dissociada de um contexto político, social e
econômico, onde se destaca o acesso privilegiado de setores com
maior poder social como fontes de informação, a exemplo dos
setores governamental e empresarial. Dessa forma, parece lógico
que os mais graves problemas ambientais não encontrem
repercussão proporcional à distribuição de seus malefícios.

essa forma de atuar tem repercussões sobre o processo de formação de


opinião a respeito da problemática ambiental, restringindo o seu
espectro, e, consequentemente, inibindo a conscientização dos direitos
do cidadãos das responsabilidades do poder público dos agentes da
sociedade civil em relação ao meio ambiente (RAMOS, 1995, p. 150).

5
Beck comenta sobre os obstáculos ao reconhecimento dos riscos da
modernização: "Aqui, não são decisivas (ou não só) as consequências para a
saúde, para a vida das plantas, dos animais, e dos seres humanos, senão os
efeitos secundários sociais, econômicos e políticos dos efeitos secundários:
demolição de mercados, desvalorização do capital, expropriação furtiva, novas
responsabilidades, deslocamento de mercados, obrigações políticas, controle das
decisões empresariais, reconhecimento de pretensões de indenização, custos
gigantescos, processos judiciais" (1992, p. 86).

86
A problemática do adestramento ambiental pode ser
posicionada em um quadro mais amplo em que não há
compatibilidade entre um modelo de educação ambiental
emancipatória e transformadora com o modelo de sociedade
capitalista que se utiliza de alternativas moralistas. Estas deslocam
o comportamental do histórico-cultural que está ligado a própria
estrutura do capitalismo caracterizado pela coisificação e
mercantilização da natureza, com a consequente banalização da
vida, e a dicotomização que resulta no maior deslocamento do ser
humano em sua relação com a natureza. Desta forma, produzem-se
projetos de alcance ambiental calcados no individualismo social,
que não visam à justiça social, ao equilíbrio ecossistêmico e à
indissociabilidade entre humanidade e natureza (LOUREIRO,
2006, p. 94).
Portanto, a partir de um quadro analítico mais amplo, que
posiciona a discussão sobre o meio ambiente dentro das possíveis
formas de conscientização e intervenção na questão ambiental
legitimadas por estratégias de ação, consumam-se as políticas
públicas ambientais no ambiente contraditório das sociedades
capitalistas. Nesse ambiente, as atividades econômicas não podem
aceitar, ou apenas sob formas restritas e rentáveis, limites como o
do fim da “externalização” dos custos ambientais.
No contexto nacional e específico de Santa Catarina, isto
demarcará a emergência de um ambientalismo cosmético das
políticas públicas através de um tratamento fragmentado e distante
de qualquer possibilidade de conscientização da sociedade civil e
da esfera pública em geral, que se contentará com medidas
insignificantes em face aos problemas estruturais de ordem
econômica e institucional que envolvem a problemática ambiental.
A internacionalização da agenda ambiental nos anos 1990,
contribuiu para uma inflação de temas no campo ambiental,
levando a uma maior complexidade da questão. Por outro lado, os
ataques teóricos e práticos ao Estado por forças neoliberais
promoveram um processo ambíguo de descentralização do poder
decisório. O que se chamou também de uma modernização política

87
(ARTS; TATANHOVE, 2000) promoveu um deslocamento de
responsabilidades políticas no campo ambiental, tornando, por sua
vez, esse campo mais difuso e de difícil controle e compreensão.
O deslocamento de responsabilidades ambientais dos setores
dirigentes para a sociedade assumiu novas dimensões com o
aprofundamento do processo de globalização; seja pela natureza
extraterritorial de alguns problemas ambientais, seja pela
constituição de novas esferas decisórias internacionais. A
racionalidade básica da representação democrática, como constatou
Hay (1994), encoraja o Estado a restringir suas respostas às crises
ambientais ao mínimo necessário para a restauração da legitimidade
de curto prazo. Uma das formas de fazer isso é deslocar a crise em
diferentes direções – para dentro da sociedade civil (ao tornar o
indivíduo responsável por uma resposta à crise ambiental,
facilitando assim, a sua transformação em um consumidor “verde”),
para o programa político global ou ainda em outra direção,
apresentando a crise como, por exemplo, problema de legitimação
de outro estado. Com isso, consegue-se rebaixar a um segundo
plano a dimensão regional da problemática ambiental, diluindo
desta forma as responsabilidades dos setores dirigentes nos
problemas locais. Esse escapismo deliberado tende a reduzir ou
isentar as elites locais de suas responsabilidades sobre o
gerenciamento da problemática ambiental, diluindo e enfraquecendo
a pressão da sociedade sobre as questões ambientais locais.
Isto é ampliado pelas tendências conservadoras e pragmáticas
dominantes, que estabelecem ações educativas dualistas entre o social e
o natural, e que se amparam em um modelo de educação ambiental
não-compromissado com o vetor da transformação social e
civilizacional (LOUREIRO, 2006, p. 81).

A estratégia de um ambientalismo cosmético perpassa hoje


também a conquista do discurso ecológico por grandes intelectuais
coletivos como as empresas, especialmente as transnacionais que
passam a investir no marketing ecológico publicitário e em
projetos comunitários de educação e conservação ambiental

88
dirigidos para setores excluídos pela sociedade capitalista. A
finalidade retórica desses protagonismos é atrair a opinião pública
para os ideais do capitalismo verde que eliminaria as contradições
geradas pela predação acima dos limites de sustentabilidade
planetária e pelo consumo excessivo, especialmente no norte
planetário, mas também nas nações que almejam um
desenvolvimento capitalista exponencial com grandes impactos
socioambientais.

Considerações finais

Como esse estudo exploratório deixou entender, é


necessário ainda desenvolver novas pesquisas considerando outras
experiências para um melhor conhecimento das relações entre a
conscientização ambiental e a produção de legitimidade da política
ambiental. Contudo, acreditamos ter apresentado aqui algumas
importantes pistas para tal esforço a partir de dados do caso de
Santa Catarina.
Neste texto propomos a ideia da existência de medidas
governamentais engajadas na formação de uma percepção pública
do conceito de Meio Ambiente e Natureza, enquanto ações
estratégicas para a produção de legitimidade da política ambiental,
dado que desta forma forjou-se a redução da probabilidade da
emergência de conflitos ou do impacto de suas manifestações. A
contribuição das ações de conscientização ambiental para tal tarefa
pode ser percebida em dois momentos que evidenciam os seus
atributos operacionais de baixos custos e grau de conflito, e a
necessidade de ocultamento das contradições que movem a atual
crise ambiental através do uso de um repertório de iniciativas
estrategicamente apresentadas no tempo. Segundo a perspectiva
teórica adotada aqui, esse repertório, mais recentemente, permite a
reposição de legitimidade da política ambiental deslocando as
responsabilidades pelos danos ambientais em diversas direções -
para a própria sociedade, para a esfera global e para o mercado.
Esta diluição das responsabilidades dos dirigentes pressupõe a

89
elaboração de um conteúdo e forma para a conscientização
ambiental que privilegie uma percepção social das relações com o
meio natural funcional à manutenção do atual padrão de produção,
consumo e distribuição das riquezas.
Contudo, é possível imaginar que a existência de alguma
contribuição real por parte dessas iniciativas de “conscientização
ambiental” - embora de difícil avaliação - para a formação de uma
percepção social dos problemas ambientais necessária para dar
maior expressão política à questão ecológica. Há a possibilidade
de que muito embora essas iniciativas visem o ocultamento das
contradições ambientais, elas estejam estimulando novas
demandas e, consequentemente, aumentando a visibilidade das
contradições inerentes a esta política. Assim, é no campo de luta
das relações de definição em torno da educação e conscientização
ambiental que pode, dialeticamente, surgir e se disseminar um
novo viés pedagógico emancipatório e transformador.
Por fim, continua sendo necessário reafirmar o
compromisso, nada fácil, com a busca de novos caminhos para a
construção de uma educação ambiental. Por um lado, que não
admita abrir mão do seu caráter complexo, mas restrito à
consciência possível e às necessidades daqueles que a pensam; e por
outro lado, que faça isto assinalando a sua dimensão política e ética,
na medida em que os impasses e riscos socioambientais para a
humanidade na atual sociedade não possam mais ser desvinculados
dos conflitos inerentes à distribuição e uso desigual dos recursos
naturais, se é que em algum outro momento isto foi possível.

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90
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VIEIRA, Liszt & Celso Bredariol. Cidadania e política ambiental. 2ª Edição.
Rio de Janeiro. São Paulo, 2006.

91
92
FLEXIBILIZAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DAS ÁREAS
DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E DIREITO À
MORADIA NAS CIDADES SUSTENTÁVEIS:
CONVERGÊNCIA OU INCOMPATIBILIDADE? *

Eugênia Antunes Dias**


Antonio Carlos Porciúncula Soler ***

Para evitar, não só o colapso 1, mas também os seus


prenúncios, como as causas e consequências do aquecimento
global, vários desafios requisitam a atenção do movimento
ecológico 2. Certamente, o mais grandioso deixou de ser promover

*
O presente trabalho partiu de um artigo apresentado no I Encontro
Internacional de Ciências Sociais/III Encontro de Ciências Sociais do Sul:
Democracia, Desenvolvimento, Identidade, organizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais (PPGCS – ISP/UFPel), em abril de 2008, em
co-autoria com a Profª. Dra. Maria Tereza Rosa Ribeiro.
**
Bacharel em Direito e Mestre em Ciências Sociais/PPGCS pela Universidade
Federal de Pelotas/UFPEL, pesquisadora do Grupo Trandisciplinar em Pesquisa
Jurídica para a Sustentabilidade (GTJUS) da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG, consultora técnica na área do Direito e Ecopolítica no Núcleo
de Desenvolvimento Social de Econômico (NUDESE/FURG) e membro do
Centro de Estudos Ambientais/CEA – eugeniaad@gmail.com
***
Professor de Direito Ambiental, pesquisador do GTJUS/FURG, Coordenador
Institucional do CEA, Coordenador de Projeto de Extensão no NUDESE/FURG
e discente do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da
Universidade Federal do Rio Grande (PPGEA/FURG) acpsoler@gmail.com
1
Ver Diamond (2006).
2
Preferimos usar a expressão movimento ecológico, pois entendemos que existe
diferença entre esse e a categoria movimento ambiental. Para Dias (2008, p. 46)
apud Pádua (1995, p. 26) “a diferença entre ambos os movimentos aflora na
superação de um antropocentrismo, através de uma nova visão de mundo (...)”,
sendo esta a proposta do movimento ecológico.

93
o avanço, mas, sim, evitar o retrocesso do marco jurídico
ambiental brasileiro. Esse conquistado ainda no século passado,
notadamente desde a década de 60, na qual a Lei 4771/65,
denominada Novo Código Florestal Brasileiro (NCFB) é o
destaque, entre outros aspectos, pela criação da Área de
Preservação Permanente (APP), passando pela Constituição
Federal de 1988 (CF/88), com seu inovador artigo 225, o qual
prevê o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, chegando a diplomas legais como a chamada Lei de
Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) e a Lei 11.428/06, que dispõe
sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata
Atlântica, cuja referência podemos fazer como a última conquista
dos ambientalistas/ecologistas.
Atualmente, uma intensa campanha com ampla ressonância
no meio político pela minimização do Direito Ambiental em
benefício de interesses antiecológicos, é protagonizada por setores
produtivistas ligados ao agronegócio e à cidade, na sua face
mercadológica.
Isso aparece claramente e com abundância em posturas e
iniciativas dos governos municipais, estaduais e federal. No Rio
Grande do Sul, a alteração do marco legal do licenciamento para
atender o tempo e os interesses da monocultura de eucaliptos3; em
Santa Catarina, o escândalo da Máfia Verde 4 e a recente alteração
da proteção da APP, com a promulgação do ilegal Código
Ambiental Estadual. Na Amazônia, a Medida Provisória (MP)
458 5, é outro exemplo disponível para destacar a minimização da
proteção legal da Natureza. Igualmente, a revisão dos Planos
Diretores, prevista na Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), tem sido

3
Ver Soler e Dias (2008).
4
Nome batizado a uma investigação realizada pela Polícia Federal a qual tinha
como objeto um grupo de pessoas (agentes políticos com cargos eletivos,
empresários, servidores públicos da área ambiental, entre outros) e suas
eventuais relações com a fraude em processos de licenciamentos ambientais.
5
Tal MP dispõe sobre a regularização fundiária em terras situadas em áreas da
União, na Amazônia Legal.

94
um espaço onde, pela atual correlação de forças, possibilita, em
determinada medida, um retrocesso no Direito Ambiental
Brasileiro. Nessa esteira podemos citar a Lei 5.502/08, que
aprovou o III Plano Diretor de Pelotas, cuja ilegalidade aparece
quando do tratamento dado às APPs.
Nesse processo de desmanche do ordenamento jurídico
ambiental, desponta como mais significativas as numerosas
propostas para modificar o NCFB, cujo resultado poderá nos levar
a um cenário onde não mais existam APPs, não somente no plano
formal (retiradas da lei), mas também na realidade material, por
exemplo, na beira de um rio ou qualquer outro corpo d’água. Essa
é uma proposta de um inegável reacionarismo jurídico, pois vai
nos levar, caso aprovada, ao início do século passado, mais
precisamente para a década de 30, antes de ser decretado o
primeiro Código Florestal Brasileiro (Decreto 23.793/34), onde já
havia tipo de tutela jurídica para essas áreas. É assim, também,
momento de enfrentamento decisivo pelo não retrocesso do Direito
Ambiental Brasileiro.
Nas áreas urbanizadas ou sob influência das cidades, o
conflito material é claro. As APPs são ocupadas e suprimidas pelos
mais diversos usos, que vão desde os meramente especulativos,
econômicos, passando pelo lazer e chegando até a moradia, em
alguns casos, como a única opção. Parte desse conflito está
consubstanciado no Projeto de Lei (PL) 3057/00 6, que dispõe
6
Não é a única nem a primeira tentativa legislativa de retirar as regras do NCFB
das áreas urbanas. O PL 2.109/99, por ex., que dispõe sobre o patrimônio de
afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de
Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, o qual veio a se transformar na
Lei 10.931/04, em seu art. 64 estabelecia: “Na produção imobiliária, seja por
incorporação ou parcelamento do solo, em áreas urbanas e de expansão urbana,
não se aplicam os dispositivos da Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965".
Após forte mobilização das ONGs ecológicas e ambientais, bem como do
Ministério do Meio Ambiente (MMA), o referido artigo foi vetado pelo
Presidente Lula, através da Mensagem 461/04. Entre as razões de fato ao veto
está expresso: “considerando que a Lei no 4.771, de 1965, é um dos pilares da
política ambiental do País, sendo, pois, um dos mais importantes instrumentos

95
sobre o parcelamento do solo para fins urbanos e sobre a
regularização fundiária sustentável de áreas urbanas, chamada
também de Lei de Responsabilidade Territorial, na qual nos
deteremos em seguida.
Cabe ressaltar que essa proposta não vem sozinha. Muitas
outras medidas legislativas e administrativas sustentadas pelo
capital e pela política contra o interesse público, estão em gestação
e/ou já foram executadas, como a dispensa de Licença Prévia (no
âmbito do Licenciamento Ambiental) às “obras rodoviárias de
pavimentação, melhoramentos, adequação e ampliação de
capacidade a serem executadas no âmbito das faixas de domínio de
rodovias federais existentes, por terem estas a destinação vinculada
à lei e constarem do Plano Nacional de Viação – PNV 7”.
Outra ameaça oriunda da histórica ganância do
agronegócio, já consubstanciada em proposta do Ministério da
Agricultura 8, novamente volta a atacar a APP e a Reserva Legal.
Parte dessa nova ameaça já se encontra em forma de proposição
legislativa, através do PL do Código Ambiental Brasileiro, o qual
almeja restabelecer a Política Nacional de Meio Ambiente,
definindo os bens que pretende proteger e criando os instrumentos
para essa “proteção”; e cria a política geral de meio ambiente
urbano. Esse PL, se aprovado, revogará diversas diplomas legais,
especialmente a Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional
do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e
aplicação e, o alvo central, a Lei 4.771/65, o NCFB.

de gestão ambiental, ter-se-á o afastamento de todas as condicionantes


ambientais, relativas às construções.
7
A proposta foi incluída na MP 452/08, que dá nova redação para a Lei nº
11.887, de 24 de dezembro de 2008, que cria o Fundo Soberano do Brasil –
FSB, e para a Lei nº 11.314, de 3 de julho de 2006, que autoriza o Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) a executar obras nas rodovias
transferidas a entes da Federação, que desobriga a obtenção de licença prévia
para obras de recuperação e/ou ampliação de estradas de rodagem.
8
O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, em março de 2009, apresentou
uma proposta de alteração do NCFB, contemplando o uso e ocupação de APPs.

96
Paradoxalmente, diante de uma planetária e crescente
degradação ambiental, sempre indissociada da miséria social e
violação dos diretos humanos fundamentais da maioria, é esse
mesmo Direito Ambiental já atacado que pode garantir uma
proteção para os ecossistemas, biomas e à vida em geral, se usado
e aplicado como instrumento para uma cidadania ecológica, ainda
a ser construída.
Para enfrentar o desmonte do marco legal ambiental
brasileiro, que tem como consequência o enfraquecimento do
Poder Público frente aos conflitos ecológicos e a afronta ao direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
necessário se faz achar respostas para as recorrentes e indesejáveis
perguntas que surgem no dia a dia de grande parte do movimento
ecológico/ambiental, dentre elas: como garantir, mais que a teoria,
mas uma prática sustentável mínima – não necessariamente
ecológica –, no espaço urbano e para além desse? A busca pela
resposta é assumida publicamente, não só por
ambientalistas/ecologistas, mas também por aqueles que, mesmo
motivados pelo oportunismo profissional, debruçam-se sobre o
tema, bem como por setores ligados aos interesses econômicos ou
até mesmo pelos que não se dizem ambientalistas ou ecologistas.
Nesse caso o motivador, via de regra, são questões de saúde e/ou
sobrevivência.
No presente arrazoado, vamos destacar alguns aspectos do
conflito urbano em torno das APPs, dando continuidade a estudos
realizados no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais/PPGCS da Universidade Federal de Pelotas/UFPEL, no
Grupo Transdisciplinar em Pesquisas Jurídicas Para
Sustentabilidade (GTJUS) 9 e na organização ecológica não
governamental (ONG), Centro de Estudos Ambientais (CEA) 10.

9
O GTJUS é um grupo de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG), vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPQ).
10
O CEA é a primeira ONG ecológica da região Sul do Rio Grande do Sul,

97
As Cidades (In) Sustentáveis

Se o pensamento humano, a ciência e a prática daí


decorrentes estão em permanente transformação, o conceito de
Cidade Sustentável é certamente um dos mais claros exemplos
dessa incerta metamorfose, pois o mesmo não está imune às
disputas das concepções de mundo. Assim, devemos abordar os
enfrentamentos que despontam no cenário das cidades
contemporâneas, considerando, entre outros aspectos, os valores
antropocêntricos 11 intrinsecamente associados ao racionalismo
moderno, sem deixar de traçar sua relação com as variáveis acerca
do conteúdo da sustentabilidade, sob pena da incompreensão
dessas disputas de poder, dos conceitos e práticas inerentes a tais
embates e, dessa maneira, não ultrapassaremos o limite do
paliativo e das superficialidades, o que nos aprisiona distante da
ideal e necessária sustentabilidade urbana e também para aquém
dela. Claramente se apercebe que essa é a opção mais confortável
e, por isso mesmo, é hegemônica no âmbito da Administração
Pública e de seus respectivos governos, das mais variadas matrizes
ideológicas. Na Academia, que não está imunidade às ideologias,
essa também é a posição majoritária colaborando, assim, para que
a Cidade Sustentável ainda seja uma meta a ser compreendida e
alcançada e não uma experiência em vias de concretização.
As relevantes tentativas visando à construção de
alternativas ao conflito decorrente dos interesses que gravitam em
torno do conceito de moradia e da tutela ambiental, demonstram
ser um caso da incapacidade de ultrapassar esse ponto de
superficialidade. Tal conflito urbano é paulatinamente
incrementado pela restrição e/ou eliminação do acesso à habitação

fundada em 1983, no município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Ver:


http://centrodeestudosambientais.wordpress.com/.
11
Conforme PEPPER (1996, p. 34) “[...] antropocentrismo, definido como (a)
considerando os valores humanos a fonte de todo o valor, e (b) querendo
manipular, explorar e destruir a natureza para satisfazer desejos materiais dos
seres humanos.”

98
via mercado imobiliário, juntamente com a omissão, conivência e,
alguns casos, estímulo do Estado 12 em fragilizar e/ou deixar de
adotar as devidas e obrigatórias medidas para tutelar áreas
legalmente protegidas em razão de elementos ambientais,
independentemente se o é com vistas a proteção da biodiversidade
(valor ecocêntrico 13), ou para atender interesses e necessidades
somente humanas (valores antropocêntricos).
Outros fatores também contribuem para estimular esse
enfrentamento, como a inquestionável capacidade dos núcleos
urbanos em atrair pessoas. Segundo Soler (2001):

As cidades, no mundo contemporâneo, globalizado pelo


neoliberalismo, cada vez mais têm sido o centro da vida da maioria das
pessoas 14. Na esperança de um emprego, de uma morada, de
conhecimento, de saúde, as pessoas têm abandonado a vida rural,
mudando para o meio urbano. Entretanto, as cidades, especialmente nos
países pobres, não têm oportunizado todos esses sonhos às pessoas,
muito antes pelo contrário. As cidades são, em geral, o ímã, o
agregador dos maiores problemas vividos por nós, administradores
públicos ou munícipes. Insuficiência e ineficiência dos serviços
públicos, com o incremento da violência, da exclusão social e da
poluição, lugar de morada da infelicidade e da desesperança. Hoje, no
planeta, inexiste água potável para 220 milhões de pessoas, 600
milhões não dispõem de uma morada adequada e 420 milhões estão
longe de um serviço mínimo de saneamento. Entretanto, os padrões de
consumo e, por consequência, de impacto no ambiente daqueles que
vivem em países ricos é muito acima do dos pobres que vivem nas
cidades dos países pobres. Na Flórida, é necessário dois litros de

12
Como foi a postura do Ministério do Meio Ambiente (MMA), no processo de
negociação do projeto de resolução que se transformou na Resolução do
Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) 369/06, a qual permite a
supressão de APP em determinados casos.
13
Conforme Dias (2008, p. 56) apud Capra (1996, p. 28) “[...] valores
ecocêntricos (centralizados na Terra). É uma visão de mundo que reconhece o
valor inerente da vida não-humana. Todos os seres são membros de
comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de
interdependências”.
14
Em torno de 73 % dos latino-americanos vivem nas cidades.

99
gasolina e mil de água para produzir um suco de laranja. Para uma
tonelada de papel, são empregadas 98 toneladas de diversos outros
elementos naturais. O volume de refugo resultante da produção de um
laptop chega a quatro mil vezes o seu peso. Esse modo de relação com
o ambiente é insustentável. As cidades atuais são insustentáveis. A
produção e o consumo sem preocupação social e ecológica é uma das
principais causas da insustentabilidade. Os moradores de Londres, para
manterem os seus níveis atuais de consumo, somente para suprir suas
necessidades de alimento e madeira, exigem a exploração de uma área
58 vezes maior que sua superfície da metrópole. Se fosse possível que,
todos os habitantes do planeta, por um passe de mágica, consumissem
nos mesmo padrões dos londrinos ou dos estadunidenses, precisaríamos
de mais três Terras.

Agrava-se esse cenário quando nos deparamos com dados


inéditos na história da humanidade: mais da metade ou, ao menos
metade da população do planeta vive em cidades. No caso das
cidades latino-americanas, o índice é preocupantemente maior. Em
alguns casos, 80% da população está concentrada nas cidades,
causando e sofrendo, não na mesma medida, impactos ambientais
e suas consequências. Chegamos a esse patamar exagerado para a
escala humana, pois em torno de 100 anos atrás apenas 10% da
população mundial era urbana, o que é fruto do processo acelerado
da urbanização motivada, especialmente pela economia capitalista,
gerando também intensa ameaça ecológica e injustiças sociais.
Ambientalmente devemos considerar, ao menos, os
impactos no território das cidades, independe dos critérios
utilizados para defini-lo, bem como as modificações da natureza
para além desse território. Impactos esses que podemos entender
melhor através do conceito de pegada ecológica 15. Segundo

15
Segundo Gonçalves (2006, p. 40) “(...) a pegada ecológica estima a pressão
que uma determinada amenidade humana exerce sobre os ecossistemas
mundiais (...). Segundo o PNUMA (Perspectivas de médio ambiente mundial
2002 – GEO-3) é uma unidade de área que ‘corresponde ao número necessário
de hectares de terra biologicamente produtiva para produzir os alimentos e
madeira que a população consome, a infraestrutura que utiliza, e para absorver o
CO2 produzido durante a queima de combustíveis fósseis”.

100
O’Meara (1999, p. 142) as cidades ocupam 2% do território da
superfície da Terra, mas consomem 76% do que é retirado da
natureza.

(...) é majoritariamente para manter as cidades que exploramos a


natureza e a transformamos em energia ou em matéria. O que antes era
floresta podem ser móveis ou alimentos, aqui e na Europa. Os carros já
foram petróleo ou subsolo. As construções e eletrodomésticos também
foram elementos naturais. Do total da população urbana do planeta,
76% são favelados em países pobres, como o Brasil. Número esse
maior do que a população total dos países ricos (Canadá, EUA, Japão e
europeus). E mais, 20% da população mundial consome a maior parte
da natureza (três quartos), sobrando apenas um quarto para os demais
80%. A degradação é proporcional ao consumo. Quem consome mais,
degrada mais” (SOLER, 2007).

Assim, os modelos urbanos contemporâneos predominantes


são insustentáveis. O padrão médio de consumo verificado em
cidades de países dominantes e em algumas de países dominados é
impossível de ser alastrado para todo o planeta 16. Intrinsecamente
inerente ao consumo está a degradação ambiental. O lixo, produto
do consumismo, espalha-se pelas cidades e junto com ele as
doenças e o caos na saúde pública, como foi o caso da dengue, no
Rio de Janeiro. O culto crescente ao consumo ilimitado de
automóveis, que disputam as vias das grandes e médias cidades,
faz com que seus moradores desperdicem horas e horas em
congestionamentos, como em São Paulo, cujo engarrafamento já
passou de metros e chegou a quilômetros. As medidas 17 adotadas
pelos governos locais para conter seus impactos negativos quase
sempre são paliativas e não atingem a causa primeira dos

16
A população dos países mais ricos é a que mais consome a natureza
transformada. Londres, por exemplo, exige 58 vezes o tamanho equivalente a
sua superfície para atender sua necessidade de alimentos e madeira (SOLER,
p. 06, 2001).
17
Como o rodízio de veículos em São Paulo ou o pedágio em determinadas
cidades europeias para acesso de algumas zonas centrais.

101
problemas ambientais. Mas não é só isso, as cidades estão
dominadas pela violência, pelo medo e pela diminuição dos
espaços de convivência social, como as praças e os parques, onde
alguns dos poucos que existem são submetidos ao cercamento e,
consequentemente, ao cerceamento do acesso público livre.
De tal modo, pela materialidade do cenário urbano e pelos
valores que nos levam a ele e à busca de soluções, não é uma
tarefa fácil administrar as cidades em padrões sustentáveis.
Conforme a II Conferência da Organização das Nações Unidas
(ONU) sobre Assentamento Humano (Habitat II)18 “abrigos
adequados a todos e tornar os assentamentos humanos mais
seguros, saudáveis e habitáveis, mais igualitários, sustentáveis e
produtivos”, estão entre as características de uma cidade
sustentável. Cinco anos depois, esse espírito foi incorporado ao
ordenamento jurídico brasileiro pelo já citado Estatuto da Cidade,
o qual estabeleceu como primeira diretriz da política urbana
garantir o direito a cidades sustentáveis “entendido como o direito
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (inciso I,
art. 2º, Lei nº 10.257/01).
Consideramos que muitos são os pré-requisitos, alguns já
consagrados na lei ambiental, que podem ser elencados para a
construção de uma cidade sustentável. Podemos citar alguns:
redução do consumo; reciclagem de resíduos; Aterro Sanitário;
sistema de ciclovias; implantação e manutenção das Unidades de
Conservação; disponibilidade de ruas, praças e parques
arborizados; ocupação dos vazios urbanos, especialmente com
hortas ecológicas comunitárias; aplicação de material de baixo
impacto na construção civil; reuso da água; iluminação natural nos
prédios e, principalmente, zelo pelas APPs.
Mas, sem dúvida, todas essas medidas não serão adequadas

18
Ocorrida em junho 1996, em Istambul, reuniu 171 Estados e 576
representantes de cidades.

102
se não existir concomitantemente o combate à fome e à pobreza, e
a garantia de democracia ambiental, com colegiados ambientais
deliberativos e espaços públicos para debates sobre a política
urbana. O controle público do orçamento e dos fundos ambientais
também são uma premissa inarredável, assim como a devida
transparência dos atos administrativos ambientais realizados no
plano municipal, sejam eles emanados do governo local
(Executivo e Legislativo), do Ministério Público e do Judiciário.
Um sistema de licenciamento ambiental eficaz e com
acompanhamento pela coletividade é, sem dúvida nenhuma, um
fator constitutivo de uma Cidade Sustentável. Por fim, a produção
legislativa e a gestão urbana sustentável não devem ser tecnicistas
e nem moldadas pelo interesse de mercado, como tem sido a marca
de alguns processos de elaboração de planos diretores.
Contudo, como pré-requisito para levar adiante todas essas
ações deve ser enfrentada, dentre outras, a inadequação no uso dos
conceitos que permeiam essa disputa.

A luta pelo significado do conceito

A modernidade tem sido marcada por disputas acerca da


prevalência de sentido em torno dos conceitos. A questão da
polissemia versus a totalização do sentido permeia os discursos e
as práticas nos diversos campos do saber e entre esses. Se há um
conceito que tem sido atravessado por vários campos com intuito
de dizer qual seu real significado e a partir disso hegemonizar seu
uso, é o de sustentabilidade e, por conseqüência, de
desenvolvimento e de cidade sustentável. Assim, não raras vezes,
apesar de antagônicos, faz parecer que liberais de mercado e
ecologistas profundos compartilham do mesmo ideal. Segundo
Dias (2008, p. 53), a “Ecologia Profunda acaba combinando
preocupações com a Natureza e o desejo de transformar
radicalmente a sociedade, posto que as relações entre as mesmas
não podem ser transformadas dentro das atuais estruturas sociais.
Ademais, também se baseia em conhecimentos emocionais e

103
intuitivos, historicamente negados pelo Tecnicismo e Cientificismo
dominantes.”
A produção dos variados sentidos de sustentabilidade parte
da adesão, consciente ou não, a uma determinada concepção de
natureza e da relação da humanidade com ela e consigo mesma.
Gonçalves (2004, p. 23) afirma que cada sociedade forja
seu conceito de natureza, sendo esse um dos pilares no qual essa
sociedade ergue-se, estabelece sua cultura e em razão disso suas
relações. No caso da cultura ocidental dominante, o conceito
hegemônico de natureza instituído, evidentemente sem a
participação ativa de cada cidadão, reforçado e difundido
diariamente pela globalização do capitalismo, inclusive para
culturas que possuíam concepção diversa, coloca-a como um
elemento externo à sociedade. Mas não só. A sociedade encara a
natureza de forma inferior e opressora, mantendo relações
pautadas no critério de utilidade. Essa referência constitui o
antropocentrismo, ou seja, o homem prioritariamente no centro das
considerações da humanidade 19.
Nessa direção, Leis e D’amato (2005) classificam a relação
dos seres humanos com a natureza mediante critérios de inclusão
ou exclusão dessa do contrato social. Identifica que o
antropocentrismo adota critérios de exclusão, ou seja, a natureza
não faz parte do contrato social que só considera os seres humanos
(e, ainda assim, poucos deles que possuem capital social,
econômico e político para ocuparem o pólo do dominante).
Enquanto que o biocentrismo parte de critérios de inclusão da
natureza nesse contrato.
Santos (2006, p. 188) também adota essa perspectiva para
analisar a dominação da natureza que leva ao processo de
degradação socioambiental que a contemporaneidade experimenta,
afirmando que o paradigma dominante, de origem cartesiana, parte

19
Em contrapartida temos o ecocentrismo, o qual considera a humanidade como
parte da natureza e em igualdade de consideração, sem que se estabeleça uma
relação utilitarista.

104
do pressuposto de exclusão da natureza do contrato social. O valor
do Outro dominado, tanto natureza, quanto oprimidos (igualmente
ele ressalta que nem toda a humanidade ocupa o polo do
dominador), é o da utilidade. Essa dominação é possível porque a
natureza é exterior ao homem (colonizador), assim ele pode
subjugá-la. Da mesma forma, os colonizados são considerados
inferiores, o “selvagem”, portanto podem ser dominados e
civilizados (SANTOS, 2006, p. 181-190). Diante disso, essa
perspectiva de exteriorização e de inferiorização está no centro de
toda a dominação experimentada até os dias de hoje.
Destarte, a partir do antropocentrismo ou do
biocentrismo/ecocentrismo 20, se cunham os diversos significados
em torno do conceito de sustentabilidade e cidade sustentável.
Leff (1998, p. 20) é um dos mais enfáticos na denúncia da
existência de significados diferentes para o termo sustentabilidade.
O mais evidente é o forjado pelo discurso ambiental dos neoliberais,
que permeia a maioria dos discursos e dos conceitos
desenvolvimento sustentável, desenvolvimento durável, crescimento
sustentável, propalados por diversos campos em disputa.
Nessa perspectiva, estaria o conceito de Desenvolvimento
Sustentável, meta consolidada na Conferência Eco-92 promovida
pela ONU, cunhado a partir do Informe de Bruntland 21, pois
compartilha dessa raiz antropocêntrica. Pretende através dos
mecanismos de mercado conseguir um desenvolvimento passível
de atender aos anseios da atual geração sem comprometer os da
geração vindoura. Assim, além de manter a relação utilitarista da

20
Ambos os conceitos não são antagônicos, ainda que não possuam o mesmo
significado.
21
Em 1984, mediante solicitação do secretário-geral da ONU, foi criada a
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento que tinha como
atribuição avaliar o avanço dos processos de degradação ambiental e as políticas
ambientais de enfrentamento dos mesmos. As conclusões dessa comissão foram
publicadas num relatório intitulado Nosso Futuro Comum, também conhecido
como informe de Bruntland (nome da Primeira Ministra da Noruega à época,
uma das autoras do relatório) (LEFF, 1998, p. 19).

105
sociedade para com a natureza, amenizada por ações que procuram
mitigar ou compensar a degradação, não rompe com a lógica
geradora da degradação, e ainda antecipa que os anseios das
gerações futuras também beberão dessa fonte. É, ao mesmo tempo,
uma manutenção e uma antecipação do antropocentrismo.
Castri (2002, p. 26) atentamente menciona que
desenvolvimento e sustentabilidade são termos antagônicos, posto
que o primeiro reflete um processo dinâmico, aberto e com um
comportamento caótico, sendo impossível sua presivibilidade e
determinabilidade. Porque “sustentável” é uma característica dos
sistemas fechados, estáveis, previsíveis, impossível nas atuais
relações que estão em constante mutação e ampliação de suas
fronteiras e de seus efeitos, principalmente no ambiente.
Inversamente, temos um significado que busca a ruptura da
racionalidade dominante, notadamente econômica neoliberal, que
nega a Natureza, compreendendo a sustentabilidade no sentido de
condição para a construção de uma nova realidade ambiental, que não
seja antropocêntrica. Conforme a definição de Leff, sustentabilidade,
conceito pedagogicamente desenvolvido em contraponto ao termo
desenvolvimento sustentável, é um princípio que:

(...) surge como uma resposta à fratura da razão modernizadora e como


uma condição para construir uma nova racionalidade produtiva,
fundada no potencial ecológico e em novos sentidos de civilização a
partir da diversidade cultural do gênero humano. (...) Trata-se da
“reapropriação” da natureza e da reinvenção do mundo; não só de “um
mundo no qual caibam outros mundos”, mas de um mundo conformado
por uma diversidade de mundos, abrindo o cerco da ordem econômico-
ecológica globalizada (LEFF, 1998, p. 31).

Fruto da propalada racionalidade antropocêntrica


dominante, apontamos a CF/88, também conhecida como
Constituição Cidadã 22. Ainda que em raros momentos ela assinale

22
Ainda que a CF/88 tenha sido cunhada no antropocentrismo, mesmo que
alargado, a sua aplicação levaria a uma significativa alteração na relação da

106
para considerações mais próximas a um ecocentrismo quando, por
exemplo, veda quaisquer práticas que submetam os animais (não
humanos) à crueldade, identifica-se mais com um conceito ainda
em formação, qual seja, o antropocentrismo alargado. Esse advoga
a manutenção da humanidade no centro das considerações, embora
seja mais receptivo a tolerar outras formas de vida como relevantes
e com um fim em si mesmas. Aceita a concessão de determinados
direitos, em decorrência da capacidade de sofrimento, conforme o
pensamento de Peter Singer, a partir da teoria de Jeremy Benthan
(no qual a capacidade “sofrimento” é o “passaporte” para ser
tutelado juridicamente e sendo merecedor de igual consideração),
rompendo com a lógica Kantiana que atribui somente aos animais
humanos um valor intrínseco e um fim em si mesmo, premissa que
sustenta o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Além disso, esse sofrimento deve mobilizar nos seres
humanos sentimentos que os levem a tutelar e salvaguardar a
integridade daquele animal (não humano) que sofre, que se dá
menos em função de uma utilidade explícita (antropocêntrica) que
tenha, e mais por um remorso implícito e por um desejo de não
culpa (antropocentrismo alargado), mas que não pretende romper
com a relação hierarquizada, privilegiada e opressiva dos animais
humanos para com outras formas de vida. Proposta essa de difícil
aplicação, pois quais seriam os parâmetros para verificar a
capacidade e o grau de sofrimento. Talvez a maior ou menor
proximidade biológica despertasse um sentimento de compaixão e
de proteção.
A origem da ideia de que a vida humana pela simples razão
de sua existência é titular de determinados direitos considerados
naturais e que não são objeto de alienação, advem, segundo Sarlet
(2007, p. 45), do mundo antigo e que foi incrementada pela
filosofia clássica e pelo pensamento cristão. Conforme Gonçalves
(2004, p. 28), da mesma forma no pensamento greco-romano,
notadamente a partir de Sócrates, houve a distinção entre homem e

sociedade com a natureza não-humana.

107
natureza, originando o antropocentrismo, o qual foi revigorado,
principalmente pela ciência moderna de origem newtoniana e
cartesiana, e que está impregnado no pensamento e no agir
ocidental, traduzido, especialmente, na cultura urbana.
Sobretudo no século passado, concluiu-se na luta e na
experimentação da degradação humana e do ambiente, que não
bastava garantir o direito à vida humana se essa não fosse digna. A
ONU, em função das consequências da II Guerra Mundial, teve
papel preponderante nessa formulação posto que capitaneou
conferências 23 com a participação dos movimentos sociais (na
grande maioria das vezes, secundarizada) e de chefes de Estado,
que derivaram em pactos internacionais 24, cujo objeto e força
motriz foram o reconhecimento e a salvaguarda da dignidade
inerente à pessoa humana, derivando em um vasto inventário de
direitos e garantias, assim como deveres, fundamentais para a
realização e seguridade dessa dignidade 25 e que no caso brasileiro,

23
Na política ambiental internacional, a Conferência de Estocolmo
(Estocolmo/1972) e a Eco-92 (Rio de Janeiro/1992). No tema assentamentos
humanos as conferências Habitat I (Canadá/1976) e a Habitat II
(Istambul/1996). Nos encontros de avaliação dessas conferências foi unânime a
conclusão de que pouco se avançou na reversão da degradação social e
ambiental, em todas as escalas, ao contrário, tendo sido agravadas.
24
Alguns instrumentos internacionais relevantes para a questão da dignidade da
pessoa humana: no âmbito da ONU: a Carta das Nações Unidas; o Pacto
Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Já
no domínio da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção
Americana de Direitos Humanos.
25
Santos (2006, p. 433-470) defende a ideia de uma reconstrução intercultural
dos direitos humanos, posto que acusa o atual inventário de estar incompleto,
tendo sido construído pelo imperialismo do norte ocidental (onde para nós a
ONU tem papel de destaque), num processo de universalização sobre culturas
não ocidentais e do hemisfério Sul, que não reconheceu as especificidades das
mesmas e estando a serviço da globalização hegemônica neoliberal. A proposta
do autor está a favor de uma política de direitos humanos progressista e
emancipadora. Não obstante, em nenhum momento, Santos (2006) afirma que
os direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a

108
refletiu na formulação do direito interno.
De tal modo, indissociavelmente para satisfazer essa
prerrogativa e para dar substância ao princípio da dignidade da
pessoa humana foi pactuado que são necessários, dentre outros
elementos, um ambiente equilibrado e uma moradia adequada.
Embora a ONU tenha tido papel destacado nesse pacto, essa
compreensão foi conquistada majoritariamente através da ação dos
movimentos sociais e ecológicos, e não derivados diretamente de
premissas liberais que asseguraram, por exemplo, os direitos,
também considerados fundamentais, de propriedade e de herança.
Ainda que a raiz de ambos seja antropocêntrica, as estratégias de
conquista tiveram percursos diferentes e alcançaram resultados do
mesmo modo diferenciados.
Nesse mesmo sentido, a CF/88 possui um extenso rol de
normas que enunciam direitos e garantias fundamentais da pessoa
humana, que igualmente são em menor escala fruto da concessão
dos legisladores originários, mas ao contrário, produto de
movimentos políticos, sociais e ecológicos que nomearam (e
continuam nomeando), de forma incisiva e combativa, essas
questões como objeto de tutela jurídica especial. Muito embora ao
arrepio dessa legalidade, seguem sendo violadas nos dias de hoje.
Lutas essas que também se vinculam a uma determinada concepção
de natureza e sociedade (já frisamos que predominantemente de
matriz antropocêntrica) e que, dependendo da ocasião, mobilizaram
recursos suficientes para sua admissão constitucional.
Assim, está evidente que o direito não encontra
internamente seu próprio fundamento, distanciado das
interferências da realidade social (tese internalista). Também não é
um reflexo direto das relações de força da sociedade (tese
externalista), sendo duplamente determinado na luta dos variados
campos, conforme Bourdieu (2006).

moradia tenham sido cunhados nessa perspectiva. Ao contrário, afirma que uma
das grandes conquistas imperiais foi justo a dominação da natureza e dos seres
humanos inferiorizados e oprimidos.

109
Diante disso, segundo Dias (2007), nos Títulos I e II da
CF/88, estão dispostos os princípios, direitos e garantias
constitucionais fundamentais da pessoa humana, dentre eles, o
direito fundamental à moradia (Título II, art. 6º), tardiamente
incorporado através da Emenda Constitucional (EC) nº 26/2000.
Devido ao caráter aberto da constituição nesta matéria, podem-se
encontrar direitos fundamentais em outros títulos do corpo
constitucional, como é o caso do direito ao ambiente
ecologicamente equilibrado, situado desde a promulgação da
CF/88, no Título VIII, que dispõe sobre a ordem social (art. 225).
Portanto, esse direito teve status constitucional anterior ao direito à
moradia, mas não em grau de importância destacada.
É relevante destacar que a salvaguarda jurídica formal,
mesmo com a proeminência desse status, não é suficiente para a
sua realização material, sobretudo quando falamos dos direitos
destacados acima, posto que historicamente aqueles que os evocam
e defendem encontram-se fragilizados no processo tutelar, o que
justifica a permanente necessidade de lutar por sua realização e, de
forma mais anacrônica, pelo próprio reconhecimento, mesmo com
todo o arcabouço jurídico.
Como forma de dar efetividade aos mesmos, a doutrina
jurídica procurou se debruçar sobre essa temática através da
relativização de direitos fundamentais nos casos concretos de
colisões e concorrências entre os mesmos, buscando supostamente
através da técnica (autonomeada de universalista e neutra),
solucioná-las. Segundo Martinho (2006), o Brasil não adotou um
limite para a relativização dos direitos fundamentais. Diante disso,
Dias (2007) afirma que no cotidiano dos operadores do direito,
assim como no dia a dia de gestores públicos e privados, os
direitos fundamentais ao ambiente ecologicamente equilibrado e a
moradia são ponderados e suprimidos, algumas vezes amparados
por essa técnica jurídica e, na maioria, à margem dela, levando em
conta “outros exercícios” não condizentes com o Estado

110
Democrático de Direito 26.
Ainda que compartilhem da mesma matriz antropocêntrica,
tais direitos não são conflitantes entre si. Na sua formulação,
embora os seres humanos encontrem-se em posição de maior
relevância em relação a outras formas de vida e elementos
naturais, não há impedimento de ordem substancial para que se
concretizem. Compreendemos que para haver dignidade da pessoa
humana tem de necessariamente existir um meio ambiente
ecologicamente equilibrado e uma moradia adequada, sendo que
um não se realiza sem o outro, são complementares, ainda que o
primeiro seja condição para o segundo.
Portanto as soluções práticas que concedem, por exemplo,
o direito a determinado indivíduo de residir 27 em áreas legalmente
protegidas em razão de elementos ambientais, como são as APP,
concede um placebo de direito de moradia a um, extirpando formal
e materialmente, o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado
de todos, inclusive desse mesmo indivíduo, diminuindo seu
próprio rol de direitos. Enfim, não é uma solução de cunho
fundamental, e sim paliativa e pragmática. Seria imperativo
averiguar antes de chegar-se a uma situação de extirpação, não
somente o fato concreto, e sim o histórico do mesmo. Diante desse
exercício poder-se-ia identificar a falha na providência do direito e
determinar sua irremediável correção, e não decidir que em dado
caso tal direito irá preponderar em detrimento de outro. Afinal,
conforme já exposto, na sua concepção, tais direitos fundamentais
não são excludentes, e sim convivem harmonicamente nessa
interdependente e complexa rede que conforma a dignidade da
pessoa humana.
Assim sendo, tais mecanismos de regularização fundiária
26
Não se exclui o aniquilamento de direitos e garantias fundamentais pelo
Estado Democrático de Direito, sob o condão da legalidade.
27
Morar é um conceito complexo que necessariamente reúne diversas variáveis.
Compreende-se moradia como um somatório de condições de ordem material e
psíquica, que não dispensam, por exemplo, o direito ao ambiente
ecologicamente equilibrado.

111
para fins de moradia em APPs, que serão mais bem detalhados na
sequência, ofendem até mesmo a ordem antropocêntrica
(alargada), legitimada através de tais garantias legais.

Ameaça à tutela jurídica das Áreas de Preservação


Permanente (APP)

A utilização de APPs com fins econômicos vem levando


larga vantagem sobre a luta política e jurídica que pretende sua
proteção. Há uma distância muito grande entre o que recomenda a
doutrina jurídico-ecológica, o que prevê a lei e o que acontece nas
APPs (DIAS, 2007b).
A disputa sobre as APPs não diz respeito somente ao seu
uso e ocupação material, mas também ao conceito adotado pela lei
e pela doutrina. Legalmente, tal conceito 28 veio com a alteração do
NCFB, através da edição da MP nº 2.166-67/01, a qual também
elencou os casos especiais onde é possível a supressão de sua
vegetação (interesse social, utilidade pública, obtenção de água,
supressão eventual e de baixo impacto), delegando ao CONAMA,
a competência para definir outros casos. Cabe ressaltar que tal MP
foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), na parte
em que modificou o NCFB, ao prever a alteração ou supressão de
vegetação em APP. Embora tal pretensão tenha sido derrubada
pelo Supremo Tribunal Federal, citamos manifestações respectivas
dos ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio, expressamente
contrários à possibilidade de supressão de vegetação em APPs:

O caráter concessivo da medida provisória assusta, preocupa-me muito


o problema da desertificação no Brasil, porque se nós suprimirmos de

28
Art. 1º - (...); II – (...) área protegida nos termos dos arts. 2 º e 3 º desta Lei,
coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os
recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o
fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das
populações humanas; (NCFB, Lei n º 4.771/65, alterado pela MP nº 2.166-
67/01)

112
uma área de preservação permanente a própria vegetação, pode ser
fatal, o que sobrará dessa área de proteção especial? Fonte: O Direito
por Um Planeta Verde (2007).

(...) pobres gerações presentes e futuras no que se acaba por olvidar os


parâmetros da Carta da República, os parâmetros voltados ao meio
ambiente e à integridade e ao respeito ao meio ambiente indispensável
ao próprio homem. (...) Se a medida provisória vier ser rechaçada pelo
Congresso, o mal já estará consumado e o fato consumado no Brasil
tem um efeito incrível em termos de alteração que a Constituição
Federal visa a afastar, que é a alteração do meio ambiente com a
supressão da vegetação, que é indispensável em se tratando de
território. Fonte: O Direito por Um Planeta Verde (2007).

Posteriormente, o CONAMA editou a já comentada


Resolução nº 369/06, como resultado de um processo conflituoso
devido aos diversos interesses dos atores lá presentes e/ou
representados. Foram apresentadas cerca de cem emendas ao texto
do projeto de resolução, com a juntada de abaixo-assinados,
pareceres técnicos, notas de repúdio e manifestações de
organizações não-governamentais (ONGs) ecológicas 29 e de
membros do Ministério Público. Todas contrárias à supressão de
vegetação em APP.
A Resolução citada, salvo melhor juízo, ilegalmente
permitiu ao órgão ambiental competente autorizar a intervenção ou
supressão de vegetação em APP 30 para a regularização fundiária
sustentável (qual é o sentido de sustentabilidade?) em área urbana,
considerada de interesse social, quando: inexistir alternativa
técnica locacional; inexistir riscos de agravamento de processos
como enchente, erosão ou movimentos acidentais de massa
rochosa; for declarada pelo Plano Diretor do Município, ou outra
29
Notadamente do Fórum Brasileiro de ONG’s e Movimentos Sociais para o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS), que aglutina mais de 500
entidades em todo o Brasil.
30
Já a Resolução CONAMA 303/02, apresentava definições de APPs e a
reboque definiu Área Urbana Consolidada, preparando o cenário para as futuras
flexibilizações.

113
legislação municipal, como Zona de Especial Interesse Social
(ZEIS); for predominantemente residencial e ocupada por
moradores de baixa renda; a ocupação possuir no mínimo três
itens, dentre os discriminados na resolução, de infraestrutura
urbana implantada; apresentar densidade demográfica superior a
cinquenta habitantes por hectare; tratar de ocupações consolidadas
e apresentarem Plano de Regularização Fundiária Sustentável.
Encorajados pelo caminho aberto pelo CONAMA, de claro
favorecimento aos interesses produtivistas e antropocêntricos, o
qual contou com a regência do governo federal, ganhou força no
Congresso Nacional o comentado PL nº 3.057/2000, apelidado,
inadequadamente, de Lei de Responsabilidade Territorial, o qual
altera a Lei do Parcelamento do Solo Urbano – Lei 6.766/79.
ONG’s ecológicas, o Conselho Nacional de Procuradores-
Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, a Associação
Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente, manifestaram-
se contrários ao PL. Em contrapartida, o Fórum Nacional de
Reforma Urbana (FNRU), o Instituto de Registro Imobiliário do
Brasil e da Câmara Brasileira da Indústria da Construção
declararam seu apoio.

A origem do conflito que ameaça formal e materialmente as


APPs – considerações finais

A existência de conflito entre os direitos fundamentais ao


ambiente ecologicamente equilibrado e à moradia, mais
especificamente à de interesse social, decorre de uma visão
reduzida e cartesiana dos mesmos, configurando um conflito
artificial. Fernandes (2004) já apontou para a falsificação desse
conflito.
O latifúndio no Brasil, responsável por grande parte da
degradação ambiental e social, o qual efetivamente empurra as
populações de baixa renda para as APPs, conforme assinala
Maricato (2000, p. 150-151), tem resistido, através de acordos
políticos, econômicos e jurídicos, há 4 séculos a todo e qualquer

114
debate e proposta de mudança. Com ele, a concentração de renda e
de terra urbana, também resistem. A autora condena exatamente o
que propõem a Resolução CONAMA 369/06 e outros diplomas
legais de igual natureza, ou seja, buscar solucionar problemas
sociais somente através da alteração legislativa.
No caso em comento, defrontamo-nos com a flexibilização
da legislação ambiental, a qual visa a dita regularização fundiária
sustentável em APPs urbanas, cujas ocupações sejam classificadas
como consolidadas. Entretanto, a entrega meramente formal de um
título de posse ou propriedade (regularização), mesmo que
acompanhada de programas de saneamento e qualificação
ambiental, o que não é a regra, não se aproxima dos requisitos de
uma cidade sustentável. Posto que, sob o ponto de vista ecológico,
as APPs, mesmo urbanas, apresentam grande diversidade biológica
e importantes funções ecológicas e sociais. Ademais, tal
regularização obsta à efetividade dos direitos fundamentais ao
ambiente ecologicamente equilibrado e à moradia, que se torna
ainda mais claramente fragilizado quando as APPs apresentam
risco eminente ao patrimônio e à integridade física de quem lá
“mora”, tendo em vista as enchentes e os deslizamentos de terra,
pois não há medida tecnológica ou de gestão que retire esse
ameaça de forma permanente de tais ambientes.
Ao analisarmos os acordos internacionais, a CF/88, a
legislação ambiental, a urbanística, a do consumidor, o próprio
Estatuto da Cidade, a doutrina acerca da sustentabilidade e da
Cidade Sustentável, não encontraremos nenhuma disposição que
afirme que o exercício do direito ao ambiente ecologicamente
equilibrado impede o direito à moradia.
O conflito que efetivamente existe, conforme já pincelado,
é entre moradia e ambiente ecologicamente equilibrado num pólo e
uso abusivo do direito de propriedade, sem observância de sua
função social, no outro. Quando as APPs estiverem ocupadas na
sua totalidade será a hora de enfrentar esse conflito que é real?
Santa Catarina, e até mesmo, Pelotas, no Rio Grande do Sul,
sentiram as consequências da supressão/ocupação das APPs, com

115
as recentes enchentes.
Assim, é comum e equivocado, principalmente se nos
localizamos na superfície da questão, afirmar que a tutela jurídica
das APPs produz ilegalidade. Na verdade, o que gera a ilegalidade
é a concentração de terra urbana e a ausência de políticas públicas
que enfrentem a primazia do mercado sobre a proteção ambiental e
a melhoria das condições sociais das classes oprimidas.
É claro que existem alternativas locacionais para os
ocupantes de APPs. São elevados os números de imóveis
desocupados e/ou subocupados, e de vazios urbanos fora delas que
podem e devem ser a regra na distribuição de terra urbana.
Merece crítica um dos objetivos da Secretaria Nacional de
Programas Urbanos 31, do Ministério das Cidades 32, o qual busca a
remoção dos “obstáculos” da legislação ambiental federal para a
implementação do Planejamento Territorial Urbano e Política
Fundiária com inclusão social. Talvez por que o enfrentamento do
conflito real, a questão da acumulação fundiária e imobiliária, seja
politicamente mais custoso, atingindo os que desejam manter o
status quo dominante, passando ao largo da raiz do problema, qual
seja, o não cumprimento da função social da propriedade e a
acumulação de riqueza e renda, no caso, no espaço urbano.
Mesmo ao adotar a matriz de análise antropocêntrica,
concluímos que as referências conceituais para a defesa de um
direito à regularização fundiária em APPs, e os futuros usos e
ocupações almejados para as mesmas, estão equivocadas, pois se
admitirmos que atendem o direito à moradia (o que não ocorre
materialmente), não atendem o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo,

31
http://www.cidades.gov.br//index.php?option=content&task=section&id=
15&menupid=203&menutp=progurb
32
A questão ambiental dentro do Ministério das Cidades é vista, em grande
parte, como política de saneamento ambiental. É notável que essas políticas não
necessariamente correspondem e têm como objetivo o ambiente ecologicamente
equilibrado.

116
conforme a CF/88. Direito esse igualmente antropocêntrico. Salvo
se entendermos que o antropocentrismo não visa beneficiar a todos
os seres humanos, mas somente aqueles que estão no pólo da
dominação social, econômica e política e, assim, fazem valer sua
vontade e seu poder.
O paradigma cartesiano-instrumental, predominantemente
economicista, não considera, ou omite a consideração que,
independente do estatuto jurídico que se dá a “coisa” (Benjamim,
2001), as APPs possuem função ecológica e que sua
descaracterização/supressão antrópica, não ocorrerá sem
consequências negativas ao ambiente e, obviamente, ao ser
humano. O que leva a um distanciamento do conceito de Cidade
Sustentável e da potencialidade de sua concretização.
Destarte as “dimensões da tragédia humana”, em apologia a
Maricato (2001), serão maiores, e, principalmente, mais severas
para as classes oprimidas da população, e no interior dessas, para
crianças, jovens e idosos. E não são mais os ecologistas,
pejorativamente chamados de românticos, catastróficos e acusados
de insensíveis às causas sociais que apontam para essas
consequências danosas ao ambiente natural ou não. São também
cientistas do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) 33 da ONU, membros da OEA, a mídia, igrejas,
empresas e outras tantas instituições, tanto progressistas, quanto
neoliberais, a maioria dos seus feitores é letrada nos bancos dessa
mesma razão dominante, produtivista, antropocêntrica.
Nesse caso de regularização das ocupações em APPs,
principalmente em área urbana e para fins de moradia de
populações de baixa renda, o falso conflito tem proporcionado
uma aliança esdrúxula entre parte dos movimentos sociais de luta
pela moradia e setores privados e/ou públicos, responsáveis diretos
pelas mazelas dos primeiros, assim como, pela degradação do
ambiente e pela alteração da legislação tutelar social. A citada

33
Criado em 1988, reúne diversos cientistas do mundo todo para avaliar, sob
diversos aspectos, o aquecimento global, propondo formas de enfrentá-lo.

117
aliança dos dominantes com parte dos movimentos sociais é
baseada na utilidade que um tem para o outro, mas a distribuição
do ônus e do bônus, como a história demonstra, não é equitativa!
Devemos buscar alternativas à aparente única opção
(proposital e antropocêntrica) que pode ser traduzida nas seguintes
questões: a quem cabe o direito de degradar a natureza em proveito
próprio ou de terceiros? Ao “grande” ou ao “pequeno”? Ao rico ou
ao pobre? Parece-nos que não devemos escolher entre nenhuma
dessas possibilidades, mas, sim, aquela que exclua a premissa da
degradação e da opressão. A justiça social, neste caso o acesso à
moradia, não pode vingar e ser mantida à custa da degradação do
planeta, pois para nada servirá a equidade social sem o ambiente
ecologicamente equilibrado, por uma razão simples, não haverá
possibilidade para a vida, humana ou não.
A crise ecológica leva-nos a uma reflexão sobre a urgente
repactuação social dentro de padrões não-antropocêntricos, os
quais obviamente incluem a natureza, desconsiderada do pacto
moderno. E que tal premente repactuação seja realizada em
condições de consideração e não de subjugação da natureza em
relação a determinados animais humanos (SANTOS, 2006). Assim
sendo, a flexibilização da tutela jurídica ambiental diverge dos
elementos que apontam para o ideal de cidade sustentável.

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120
DIREITO COLETIVO DO TRABALHO E
COOPERATIVISMO POPULAR
A contribuição da autonomia coletiva do Direito Coletivo do
Trabalho para organização dos trabalhadores em Cooperativas

Paulo Ricardo Opuszka 1

RESUMEN
estudios de Derecho Laboral Colectivo, en que pretiñe en la
formación e afirmación de la autonomía colectiva, pueden surgir
de la categoría trabajo, para desarrollo de nuevos derechos
inscritos en los instrumientos colectivos de trabajo. Esto potencial
puede sir recuperado por las Cooperativas Populares, para sus
organizaciones sea en lo agrupamiento dos emprendimientos o su
aprimoramento en la estruracion de las organizaciones en Red.

PALABRAS-CLAVE: autonomia coletiva, derecho laboral coletivo,


cooperativismo popular.

Introdução

O objetivo do presente artigo é resgatar e problematizar a


categoria autonomia coletiva, sob o ponto de visto sócio-
econômico, no sentido de encontrar pistas para organização do
trabalho cooperado no capitalismo brasileiro, e jurídico, afim de
re-significar cooperação enquanto opção de trabalho e renda com

1
Paulo Ricardo Opuszka é mestre e doutorando em Direitos Humanos,
Democracia e Desenvolvimento do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná. Professor de Processo do Trabalho da
Universidade Federal de Rio Grande – FURG/RS e membro do Núcleo de
Direito Cooperativo e Cidadania.

121
proteção jurídica, a partir das reflexões nos recortes de
investigação do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Paraná e do Núcleo de Desenvolvimento Social e Econômico –
NUDESE da Universidade Federal de Rio Grande – FURG.
O percurso a ser desenvolvido será da abordagem de
elementos do Direito Coletivo do Trabalho, em especial na forma
como se consolidou no Brasil, na tentativa de apresentar um
modelo de organização sindical, no qual se encontra uma
possibilidade de afirmação de autonomia coletiva a partir da
possibilidade de criação de novos direitos para os trabalhadores
organizados em cooperativas e que, essas experiências e
conquistas do mundo da organização sindical sirvam para o
cooperativismo popular.
As fontes autônomas do Direito Coletivo do Trabalho, que
se consolidaram enquanto instrumentos de criação de direitos
coletivos a partir da Convenção Coletiva de Trabalho e do Acordo
Coletivo de Trabalho e também a fonte heterônoma, na forma de
heterocomposição, denominada sentença normativa, que também
possibilita a criação de direitos por parte do Estado Juiz,
apresentam um modelo de organização, para além do contrato
(fonte de Direito que privilegia a relação individual) e da Lei
(fonte de Direito que privilegia a relação universal), onde um
agrupamento de indivíduos, mas especificamente uma categoria,
cria sua própria proteção jurídica e apresenta suas conquistas
enquanto classe a partir de um instrumento normativo que
estabelece autonomamente o seu limite no Estado de Direito.
É certo que a autonomia coletiva sofreu uma limitação
substancial em relação àquelas estabelecidas nos países onde o
movimento sindical teve intensa organização como é o caso da
Itália, Rússia e Alemanha, ou mesmo alguns países da América
Latina como o México, Argentina e Chile, uma vez que, no Brasil,
ela esteve atrelada aos princípios da unicidade sindical
(representatividade no limite da base territorial) e contribuição
sindical compulsória.

122
Outro limitante a ser considerado é a formação do Tribunal
Superior do Trabalho, a qual acarretou um legado jurisprudencial
legalista e conservador.
Entretanto, ainda assim, o poder normativo da Justiça do
Trabalho, em especial, do Tribunal Regional do Trabalho, órgão
competente para decidir acerca do dissídio coletivo, também
submetidos a terceiro (nesse caso o Estado Juiz) permaneceu com
um poder para, dentro de um conteúdo pré-estabelecido (nas
propostas de negociação do sindicato dos trabalhadores e proposta
de acordo do sindicato patronal), decidir sobre a incidências de
novos direitos e obrigações no prazo de 2 anos a contar do Acordo
ou Convenção que não se consolidou cabendo ao Poder Judiciário
uma solução criativa e criadora.
Salienta-se, portanto, que ao lado do Mandado de Injunção,
diferente do que se estabeleceu nos demais casos de exercício da
Jurisdição no Direito Brasileiro, as sentenças normativas dos
Dissídios Coletivos acabam por tornar-se outro instrumento de
criação de direitos 2.
Cabe ressalvar que, atualmente, a inscrição da expressão de
comum acordo ao § 2°, do inc. IX, do art. 114 da Constituição
Federal, pela emenda 45/2004, o exercício do poder normativo está
limitado ao acordo das entidades sindicais para o ajuizamento do
dissídio coletivo, o que limita consideravelmente o exercício da
autonomia coletiva de uma classe, já que os interesses dos patrões
e empregados, pela sua natureza capitalista, permanecem e
continuarão em conflito. A luta de classe é o movimento da
sociedade moderna.
Contudo, o exercício da autonomia coletiva ainda
permanece e pode ser útil para a organização coletiva das
entidades cooperativas, embora a nova Lei do Cooperativismo

2
O Mandado de Injunção serve para proteger direito fundamental quando o não
exercício de direito fundamental esbarrava em norma não regulamentada. O
Supremo Tribunal Federal atualmente está recuperando tal instrumento que a
própria Corte promoveu o desuso.

123
talvez venha a legitimar a Organização das Cooperativas do Brasil
como único órgão de representação geral das Cooperativas 3.
Para refletir a partir dos argumentos escolhidos, sob os
quais nos conduzirá a reflexão teórica, necessária se faz a
recuperação da categoria trabalho, na medida em que a mesma já
nasce enquanto um problema para Modernidade, já que essa nova
configuração de mundo das relações, do pensamento, da política,
da economia e da regulação social configura-se finalmente
enquanto modelo individualista, formalista, civilizado e excludente
daquilo que foge ao seu universo de alcance.
Nossa proposta passa pelo resgate do Direito Sindical
enquanto uma opção para construção da autonomia coletiva, de
forma que suas noções e categorias para criação coletiva de
direitos possam servir para as novas organizações de trabalho, em
especial a organização em Cooperativas e os contratos delas
decorrentes.
Por fim, pretende-se chegar a conclusões capazes de
apontar pistas ao desenvolvimento do Cooperativismo,
especialmente o popular, no que tange a sua organização e
manutenção no que se pode denominar sustentabilidade local,
dentro do que se considera um dos princípios do Cooperativismo
pela Aliança Cooperativista Internacional, que é o interesse pela
comunidade, aliado a intercooperação, a partir da autonomia
coletiva, caracterizada pelo princípio da autonomia e
independência.

3
O projeto de Lei que discute uma readequação do Cooperativismo Brasileiro
tem sido bastante modificado no sentido de consolidar o denominado
cooperativismo empresarial, capitaneado pelo agronegócio, cooperativas ligadas
a OCB e OCEPAR, Unimed e outras empresas que não compõem o
cooperativismo em análise já que procuramos tratar do cooperativismo popular
e não do cooperativismo tradicional, de cunho empresarial.

124
1 Categoria Trabalho: um problema para Modernidade

1.1 O trabalho na autonomia da vontade ou da autonomia


liberal

Na denominada Modernidade podemos afirmar que o


mundo possível, para o Direito, é um mundo no qual o Estado
reconhece, protege e pretende transformar todos os direitos em
individuais.
Segundo Carlos Frederico Marés de Souza Filho

(...) a construção do Estado contemporâneo e de seu Direito foi


marcada pelo individualismo jurídico ou pela transformação de um
todo titular de direito em um indivíduo. Assim foi feito com as
empresas, as sociedades e com o próprio Estado; criou-se a ficção de
que cada um deles era uma pessoa, chamada de jurídica ou moral,
individual. Assim também foi feito com os diferentes povos, criando a
ficção de que cada povo indígena seria uma individualidade com
direitos protegidos. Isto transformava s direitos essencialmente
coletivos dos povos em direitos individuais4.

Na continuação do texto completa

O Direito contemporâneo, além de individualista, é dicotômico: às


pessoas – indivíduos titulares de direitos – corresponde uma coisa, o
bem jurídico protegido. A legitimidade desta relação se dá por meio de
um contrato – acordo entre duas pessoas. É evidente que este esquema
jurídico não poderia servir aos povos indígenas da América Latina,
porque, mesmo que considerasse cada povo uma individualidade de
direito, os bens protegidos (os bens que os povos precisam proteger) e
sua legitimidade não têm nenhuma relação com a disponibilidade
individual e com a origem contratual5.

A Modernidade, nesse sentido, cria e consolida, enquanto


bases estruturantes de Direito Privado, categorias jurídicas que

4
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de.
5
Idem 5.

125
projetam um modelo de Direito, fundador de um complexo
legislativo que assentará, ao longo do séc. XIX, o marco
legislativo e contratual da sociedade oitocentista.
Segundo Luiz Edson Fachin, o Direito Privado e,
consequentemente o Direito Civil, possui três pilares
fundamentais, três categorias capazes de sintetizar o projeto
moderno de Direito, assinalados como o contrato, o projeto
parental e as titularidades, frutos da necessidade burguesa de
afirmação de um Estado e Direito que atendesse suas necessidades
de classe 6.
Entretanto, o advento do séc. XX – toda conjuntura das
duas grandes guerras, as revoluções operárias, os efeitos do crack
da Bolsa de New York, além das mutações econômicas estruturais 7
– criam as condições objetivas materiais para a alvorada de um
Direito, denominado Contemporâneo, fundado na Dignidade da
Pessoa Humana, capaz de resgatar certo Humanismo, perdido nas
Luzes, rica em anseio de Liberdade, mas de eficiente vocação
abortiva no que tange a emancipação do Homem. Esse Direito
ganha o nome de Direito Social.
Atualmente o Direito, em sua complexidade, reflete
preocupações do Jurista do séc. XXI, pensador que se habilita na
compreensão dos denominados direitos humanos, na incidência do
que se denomina sentimento constitucional 8 e no resgate da

6
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p. 6.
7
Sobre o tema HOBSMAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX
1914-1991. 2ª edição. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
8
A expressão nasce das reflexões de Karl Loewenstein e Pablo Lucas Verdú
citados pelo professor Raul Machado Horta referindo-se ao sentimento
manifestado pelo vínculo moral entre as instituições e os homens, sem o qual
nada é sólido nem regular, de acatamento á Constituição, para assegurar sua
permanência, que não se resolve exclusivamente no mundo das normas
jurídicas, decorrente, além da imperatividade jurídica, da adesão á
Constituição se espraiando na alma coletiva da Nação gerando formas difusas
de obediência constitucional.. FACHIN, Zulmar. Curso de Direito
Constitucional. 3ª edição. São Paulo: Método, 2008.

126
autonomia coletiva9, expressões anteriormente independentes das
faces do Direito Internacional, Direito Público e Direito Privado,
que já não se podem ser demarcadas com precisão já que o que se
denominou ramos do Direito, aproxima-se muito mais de uma
separação didática para compreensão do fenômeno jurídico do que
sua factibilidade na práxis jurídica.
Mas no limiar da Modernidade o Direito representou o que
seus teóricos denominaram a morte do sagrado, dando origem ao
que se pode entender por reificação ou sacralização do econômico.
O ponto de partida dessa afirmação é a Renascença e as
reflexões dos denominados autores da transição, que por dentro
dos átrios da Igreja Católica, preparam a alvorada da Modernidade.
Embora a filosofia moderna tenha avançado através dos
pensadores racionalistas, o humanismo de contestação
(representado por teóricos, dentre outros, Willian de Ockham,
Erasmo de Roterdã, Picco Della Mirandola e John Duns Scot) é o
verdadeiro prolegômeno do moderno campo jurídico.
Pode-se buscar no Mercador de Veneza a constatação da
influência de Modernidade sobre a nova disposição do corpo, ou
simplesmente denominar-se a nova configuração do Direito a
partir do Monismo Jurídico 10, que será pormenorizadamente
explicado por Max Weber.
Os questionamentos da Renascença, em relação ao conceito
de Direito Justo de São Tomás de Aquino, enquanto Direito
9
DEL CLARO, Maria Ângela Marques. A emergência da autonomia privada
coletiva no Brasil. Ação sindical nos anos 80 do século XX, Constituição
Federal de 1988 e surgimento das Centrais Sindicais. In Sindicalismo desafiado:
reinvenção do ator social referencial na representação da subjetividade do
trabalhador na obra de RAMOS FILHO, Wilson. Direito Coletivo do Trabalho
depois da EC 45/2004. Curitiba: Gênesis, 2005.
10
No mercador de Veneza encontra-se o julgamento de um judeu de nome
Shilock, que pretende o pagamento de dívida através de libras de carne humana,
mas é surpreendido pela Direito Estatal que o deixa na miséria, devendo para
coroa italiana bem como ao nobre que lhe afrotava diariamente com cuspes na
face. Shakespeare demonstra, incidentalmente, como o Estado se apodera do
monopólio do discurso jurídico.

127
Natural é a vontade divina racionalizada pelo Soberano 11
recuperam textos clássicos como a Antígona de Sófocles,
subtraindo o direito que já existia antes da vontade do soberano,
uma espécie de direito dos deuses.
Esse choque de interesses coloca em disputa a
racionalização do Justo, inaugurando o denominado
convencionalismo.
Pode-se afirmar que as teorizações desses pensadores pré-
modernos serviram de base para o pensamento moderno acerca da
Filosofia e abriram as portas para o novo paradigma: o indivíduo.
A partir do conceito de indivíduo – o mínimo existencial
indivisível capaz de relacionar-se socialmente – toda teoria acerca
do sujeito de direito será estabelecida ao longo dos séculos de
consolidação da Modernidade, somando-se a construção do
Estado, o denominado processo civilizatório, o advento da Razão e
o surgimento do Capitalismo.
O pensamento de Thomas Hobbes é fundamental para
estabelecer a possibilidade de um pacto, entre os cidadãos –
indivíduos – de submissão ao Soberano, resguardados os direitos
relativos à reprodução da vida, ou seja, a sua segurança
(preservação da vida).
No Estado imaginado pelo pensador inglês a força de
reproduzir e proteger a vida humana se dava na qualidade do
Homem Artificial 12.
Para a compreensão do individualismo ocidental no
Direito, entretanto, as reflexões mais relevantes, são as de John
Locke, no que tange ao limite do Soberano na atuação estatal, dado
pelo conjunto de indivíduos que compunham o povo 13,

11
GOYARD-FABRE, Simone. Filosofia crítica e razão jurídica. Tradução de
Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
12
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro. Coimbra:
Fundação Caloustre Colbenkian, 2001.
13
Problematização de John Locke em seu clássico Dois Tratados sobre Governo
quando discute a questão da propriedade como direito natural já que o homem,
pela modificação da terra, deixa um pouco de si mesmo, de sua vida nela, o que

128
especialmente no limite dado à invencibilidade do direito de
propriedade, tão fundamental quanto o direito a vida, já que a
propriedade se conquistava com o trabalho na terra, onde parte da
vida se debilitava através do esforço e a recompensa se dava na
modificação da propriedade, agora em simbiose ao próprio
indivíduo, passava a ser parte de sua individualidade – leia-se seu
direito fundamental.
Convém lembrar também, no mesmo período, a própria
idéia de ação egoísta de Adam Smith, princípio do individualismo
utilitarista, onde caberia a cada unidade individual a realização de
suas tarefas baseadas no seu interesse particular, restando a mão
invisível o controle do que restava, neste caso o mercado 14.
Dentre os pensadores contemporâneos, que refletem acerca
do Direito e do Estado Moderno, em especial Max Weber, apontam
o séc. XVIII como determinante para construção do momento em
que, através de uma burocracia estatal composta por um grupo de
indivíduos qualificados para exercer o serviço público, um aparato
militar público e uma estrutura organizacional (assenhoreada do
uso exclusivo da força) com a finalidade de cobrança de tributos,
como um marco fundamental para fundação do Estado Moderno e,
por conseguinte, Direito Moderno.
Por caminhos teóricos que não serão objeto de nossa
análise, o Estado se impõe através do modelo de Estado de Direito,
em conjuntura combinada entre a necessidade de organização do
Poder Político na tentativa de fuga do estado de natureza e a
limitação desse poder político através da titularidade do povo no
exercício de sua vontade popular (marcada pela soberania popular
assinalada por John Locke, conforme afirmação anterior) onde o
povo representava o conjunto de proprietários, ou seja, os
possuídos da terra onde se deixou um pedaço da vida e, portanto,

lhe legitima na disposição natural sobre a mesma.


14
SMITH, Adam. Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações.
4ª. Edição. Coimbra: Fundação Caloustre Gulbekiam, 1999.

129
tornou-se seu direito natural15.
Na crítica de Karl Marx, esse Estado de Direito será a
clivagem, o substrato de formação do Direito Moderno, enquanto
Estado que gerencia interesses da burguesia, garantindo a
reprodução das suas condições de produção, no mundo
capitalista 16.
Nesse sentido, portanto, o coroamento de projeto da
Modernidade se dará no Direito, enquanto reprodutor e garantidor
da harmonia (paz social), ou ainda, espaço de contingenciamento
das demandas sociais (segundo o modelo hegeliano), agindo na
consolidação dos três pilares fundamentais anteriormente
considerados: a família – ou o denominado projeto parental - o
contrato e a propriedade – ou ainda, na expressão de Luiz Edson
Fachin – as titularidades.
O projeto parental, espaço de proteção do patrimônio,
reprodutor da possibilidade de manutenção do poder econômico
burguês através de sua sucessão hereditária, permite a manutenção
da fixação do poder político na classe a que desde o início pertence
a burguesia.
Importante salientar que em países como o Brasil a
regulação da família passa pela realidade sócio-política nacional,
advinda de uma economia agrícola, influenciada pela elite
latifundiária que, embora tenha dado acesso aos seus filhos à
formação jurídica européia – á época embebida pelos auspícios
liberais – não aplicaram as mesmas categorias em nosso direito,
deixando as conquistas dos códigos oitocentistas somente com o
advento do Código de 1916.
Nosso Direito Civil começa com certo atraso no que tange
a proposta liberal do séc. XIX, e dispõe de um Direito de Família
15
Importantes as reflexões de RUZIK, Carlos Pianovski em texto denominado
Locke e a formação da racionalidade do Estado Moderno: o individualismo
proprietário entre o público e o privado in FONSECA, Ricardo Marcelo (org.)
Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004.
16
MARX, Karl. 18º Brumário de Luis Bonaparte. Tradução de Paul Singer.
Coleção Os pensadores. Rio de Janeiro: Editora Abril, 1976.

130
bastante conservador.
Afirma Orlando Gomes

Para o casamento dos menores de vinte e um anos, exige o


consentimento de ambos os pais, mas discordando, prevalece a vontade
paterna. O marido é o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe
administrar os bens particulares da mulher, fixar e mudar o domicílio
da família e autorizar a profissão da esposa. O Juiz pode ordenar a
separação dos filhos de mãe que contrai novas núpcias, se provado que
ela, ou o padrasto, não os trata convenientemente. A mãe binúba perde,
quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder. O direito
de nomear tutor compete ao pai. Consagra-se assim a posição
privilegiada do homem na sociedade conjugal17.

O Código Civil de 1916 acaba por apresentar predileção


incontestável ao casamento, assim denominado enquanto única
forma legítima de família dispondo, em seu art. 315, que o
casamento válido só se dissolvia com a morte de uma dos
cônjuges, demonstrando a indisposição da legislação brasileira
para com o divórcio 18.
Nosso destaque é afirmar que o Direito de Família, anterior
ao Código de 1916, está calcado nas Ordenações Filipinas e no
modelo por ela apresentado (de axioma medieval) o qual, mesmo
com o advento do referido Código, ainda a Igreja Católica era a
principal referência normativa para as relações familiares a
disposição hereditária.
Os institutos contemporâneos de proteção à sociedade
conjugal, qual seja união estável, direitos dos filhos fora do
casamento, família mono-parental, a questão dos homo-afetivos,
são realidade de difícil consolidação, mesmo a partir da
Constituição de 1988.
O contrato, para o Direito Moderno, se apresenta enquanto
autêntico garantidor da dinâmica de circulação de bens, negócios e

17
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro.
In Direito Privado (novos aspectos). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 87.
18
Idem 10.

131
propriedades, desde que realizadas na intermediação do mercado,
ou ainda, segundo Carlos Eduardo Pianovski Ruzik instrumento de
trânsito jurídico de bens e interesses formado pelos princípios
resgatados do Direito Romano adaptados à realidade comercial
moderna.
O que significa afirmar que o Liberalismo Econômico não
caminha no compasso do Liberalismo Social, muito menos no
Liberalismo Político.
As teorizações modernas acerca dos contratos parte da
denominada autonomia da vontade, ou espaço de liberdade no qual
o Estado nada dispõem, espaço de total garantia da liberdade
cumprindo ainda, seu papel, quando da manutenção da referida
garantia.
Segundo Francisco Quintanilha Veras Neto a autonomia foi
constituída inicialmente enquanto postulado de ordem liberal,
através do conceito de autonomia da vontade utilizada enquanto

ideologia liberal que formatou importantes conceitos de mercado de


trabalho capitalista, como o da autonomia individual, explícito no
âmbito da contratação de bens jurídicos como mercadoria, inclusive
força de trabalho submetida ao mecanismo de subsunção formal e
material da força de trabalho e da garantia da apropriação privada da
mais-valia social pela sua formalização jurídica 19.

Entretanto, por dentro do modelo liberal, nasce a percepção


da necessidade, ainda que sob a forma de discurso, da proteção de
direitos para além da liberdade e igualdade, uma espécie de agir
positivo, na tentativa de aproximação da efetivação de direitos.
A primeira vez que esta idéia emerge pode situar-se no
projeto de Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de
1793, de Robespierre, assente a preocupação de reelaborar o

19
VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Autonomia Coletiva na Economia
Solidária in Revista do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Rio Grande – FURG, Vol. 11, Ano 2005. Rio Grande: FURG, 2005,
p.289.

132
conceito de liberdade tornando-o indissociável do de fraternidade,
numa perspectiva social e não meramente individualista. Isto é, o
Estado aparece como agente direto do interesse coletivo com a
obrigação de fornecer diretamente aos cidadãos meios de
satisfação de necessidades e como orientador das atuações
privadas no sentido da solidariedade, da fraternidade e da
salvaguardas de direitos fundamentais.
Estava assim esboçado o primeiro núcleo daquilo que são
atualmente os direitos sociais. A história da sua elaboração
doutrinária coincide, em grande parte, com a história dos dois
últimos séculos da luta dos homens pela sua emancipação e pela
garantia de seus direitos.
Nesse momento, segundo os estudos de Ana Prata, o
Direito Administrativo aparece enquanto primeiro locus para que a
regulação das relações capital trabalho encontrasse guarida dentro
do ordenamento jurídico, ou ainda, para que o Estado depositasse a
demanda decorrente das relações do trabalho, sustentado por
autores como Leon Deguit 20.
A legislação tão somente englobaria as sociedades
comerciais, para além do individuo e do Estado. O Direito Francês
da segunda metade do séc. XIX colocaria o Estado como agente
do interesse coletivo.
Segundo a mencionada autora caberia ao Estado, em
primeiro lugar, a incumbência de promover as condições materiais
de acesso dos pobres, tarefa que esse, e tão somente esse, deve se
desincumbir.

1.2 O capitalismo social ou da fase intervencionista do


capitalismo

O próximo período do capitalismo é marcado pela


necessidade de adaptação do Estado e do Mercado que geraram
consequentemente adaptações ao próprio capitalismo, momento

20
PRATA, Ana. Constituição e Autonomia Privada.

133
em que a autonomia da vontade cede lugar à denominada
autonomia privada, ou seja, a intervenção da Lei sob os contratos
no sentido de garantir a igualdade de condições ou de contratar,
conforme realidades que surge ao longo da prática contratual –
leia-se comercial – no capitalismo.
Nesse momento, surge à necessidade de adaptação do
Direito Administrativo como uma espécie de deslocamento para o
Direito denominado Operário, que ganha autonomia tornando-se
Direito do Trabalho, ligado ao Estado (no Brasil inclusive porque o
Tribunal do Trabalho surge de uma atividade estatal exercida
eminentemente pelo Ministério do Trabalho), mas que aos poucos,
em toda a América Latina, ganha caráter especial, inclusive com
uma Justiça Especializada, a denominada Justiça do Trabalho.
Nos estudos de Ana Prata, recuperando a proposta de
Direito Público de Leon Deguit, o Direito Social deveria estar
contido nas competências das políticas públicas de Estado, ou seja,
o Direito do Trabalho era um problema de Estado, regulado pelo
mesmo e não um problema de Direito Subjetivo, ou ainda, uma
questão de Direito Privado.
Tal herança genética (qual seja a origem da seara para
resolução de demandas laborais junto ao Estado) foi menos
discutida em nossa teoria acerca da formação do Direito do
Trabalho uma vez que no Brasil, a maior parte dos autores, sempre
sustentou sua gênese nas políticas populistas interventoras da
década de 40 e não nos problemas que começam no lugar do
Direito em que os conflitos entre capital e trabalho se resolvem.
Entretanto, convém salientar que no primeiro manual de
Direito do Trabalho, ainda denominado Direito Operário, datado
de 1905, da lavra do Prof. Evaristo de Morais, o lugar do Direito
Operário seria dentro do próprio Código Civil.
Mas tal empreendimento foi rechaçado pelos civilistas da
época e não se manteve no Código de lavra do então autor, o
jurista Clóvis Beviláqüa em 1916, sobrando o Direito do Trabalho
para regulação do Estado.
A Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 regulou tão

134
somente uma única espécie de trabalho, a condição de emprego ou
a expressão econômica do assalariamento, deixando de lado as
demais relações de trabalho que encontravam lugar, quando
consideradas autônomas, aí sim no Código Civil tais como a
empreitada ou a prestação de serviços.
Assim, os problemas posteriores do mundo do trabalho,
especialmente nos tempos que se seguiram aos anos dourados e
primeiras crises do capital, fundaram relações de subemprego,
trabalho precário, informalidade, associativismo, cooperação,
dentre outros, fazendo com que diversos empreendimentos na
tentativa de formalização de todas as expressões de trabalho não
possibilitasse sua organização aliada à proteção social.
Nesse sentido a Constituição Federal de 1988 acabou por
regular o Direito do Trabalho na intenção de observar o direito ao
trabalho, mas curvou-se aos limites do modelo retrógrado e
corporativista das legislações da década de 40 e 50.
Todavia, o modelo de Direito Sindical estabelecido
concentrou determinada possibilidade no que tange a denominada
autonomia coletiva, oportunizando a organização coletiva, ainda
que nos limites de dois instrumentos normativos próprios, quais
sejam os já denominados instrumentos normativos Acordo
Coletivo de Trabalho e Convenção Coletiva de Trabalho, vez que o
denominado Contrato Coletivo não vingou no ordenamento
brasileiro.

2 A adequação jurídica da realidade social a partir da


normatização principiológica

A partir das conquistas decorrentes da Constituição Federal


de 1988, no Direito como um todo, aparece uma necessidade de
adequar a ordem jurídica a uma noção principiológica baseada na
contemporânea doutrina da Teoria do Direito Liberal (Herbert
Hart, Robert Alexy, Karl Larenz e especialmente Ronald Dworkin)
e nas adaptações nos estudos da Ordem Constitucional Ocidental,
especialmente na contribuição de Joaquim José Gomes Canotilho.

135
Para Canotilho, em análise que faz no seu Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, os princípios, a partir de
Ronald Dworkin são standards de exigência da Justiça ou,
segundo Karl Larenz, standards de proximidade da idéia de
direito. Aponta ainda, a demoninação de Robert Alexy enquanto
mandatos de otimização baseados nas exigências da Justiça 21.
Celso Antonio Bandeira de Mello dispõe princípios
enquanto mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce
dele, disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e
lhe dá sentido humano.
Segundo a análise de Tarso Fernando Genro, a partir da
obra de Américo Plá Rodrigues, esse novo ramo do Direito se
constitui a partir de uma série de princípios, que representam a
necessidade de novas realidades que envolveriam a tarefa indigesta
ao capital, de regular as relações que nascem da tensão – imanente
tensão – oriunda acima de tudo de relações de proprietários e
despossuídos, indivíduos proprietários de capital e indivíduos
proprietários de mão-de-obra.
Além disso, cria-se uma política pública, que ainda
configura-se aquela desenvolvida no modelo fascista do governo
Mussolini, que dispunha de um enquadramento sindical, no qual,
as atividades da Indústria e Comércio, estavam pré-definidas
dentro de um quadro limitado onde a organização dos
trabalhadores só é possível nas categorias que a própria
Consolidação das Leis do Trabalho permitia.
O eminente autor uruguaio dispõe que princípios que se
consolidam no Direito do Trabalho emergem do denominado
princípio protetivo, desdobrado em 3 sub-princípios: in dubio pro
operario, norma mais favorável e condição mais benéfica e mais

21
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição.

136
cinco outros importantes pilares do juslaboralismo:
irrenunciabilidade de direitos, continuidade da relação de emprego,
primazia da realidade, razoabilidade e boa-fé 22.
Sergio Pinto Martins também classifica os princípios a
partir dos estudos do autor uruguaio, porém destaca que os
princípios da razoabilidade e boa-fé não são exclusivos do Direito
do Trabalho, mas da Teoria do Direito como um todo, encontrados
em qualquer ramo autônomo 23. Tal afirmação sofre a correção
oportuna de José Afonso Dallegrave Neto destacando que na
classificação de Américo Plá Rodrigues a existência do princípio
da boa-fé tem sentido diverso dos demais ramos do Direito uma
vez que as relações entre capital e trabalho tendem a ser tensas,
qualquer ato de má-fé afetaria a negociação coletiva e perderia o
sentido o máximo esforço para que as relações oriundas da
negociação salarial fossem ao menos harmônicas.
O princípio protetor ou protetivo traduz a própria essência
tutelar do Direito do Trabalho buscando a mínima nivelação, no
plano jurídico, que é concretamente negada pela realidade social,
pela predominância de uma situação histórica que é
fundamentalmente adversa do trabalhador. Suas regras são in
dubio pro operario, norma mais favorável e condição mais
benéfica.
A regra do in dubio pro operario ou pro misero cacarteriza-
se pela aplicação em questões que se tem dúvida, do melhor direito
em benefício do trabalhador, o que faz com que o empregador não
possa nunca deixar dúvidas em relação às condições de trabalho
que divergem daquela que apresentada pelo denominado
hipossuficiente, sendo daquele a prova da certeza.
A regra da norma mais favorável acaba por inverter a
hierarquia tradicional das fontes formais. Quando uma norma é

22
GENRO, Tarso Fernando. Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr,
1985, p. 17.
23
MARTINS, Sergio Pinto. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas,
2005, p. 96.

137
mais favorável ao trabalhador do que outra, em suas condições
materiais, aplica-se a mais favorável. Quando a Lei ou Convenção
Coletiva de Trabalho prevê vantagem ao trabalhador em relação à
Lei, ou mesmo ao mínimo previsto na Constituição Federal, vale a
condição mais favorável.
A regra da condição mais benéfica destaca que as
condições mais benéficas ao trabalhador adquiridas ao longo do
contrato de trabalho, se aderem ao mesmo, de forma que devem
sempre permanecer em vigor. O trabalhador, por exemplo, não
pode ter redução salarial.
O princípio da irrenunciabilidade adverte que os direitos
alcançados pelos trabalhadores, nas melhorias das condições de
trabalho, não podem ser renunciados nem mesmo por eles. Esta
prerrogativa entende que a vontade do trabalhador está sujeita ao
vício de consentimento devido a situação inferior em relação ao
empregador. Portanto, ocorre a presunção de vício. Sendo assim, o
direito obtido é irrenunciável.
O princípio da continuidade caracteriza que, por ser o
contrato de trabalho de interesse público, já que o próprio emprego
é de interesse público no país, este princípio visa à manutenção do
contrato de trabalho em vigência. Por isso, a norma prevê o
pagamento de multa quando da quebra do mesmo, por parte do
empregador.
O princípio do Contrato Realidade e princípio da verdade
real traduzem que, no Direito do Trabalho, são válidas as relações
que se travam entre as partes e não as formalidades documentais.
Tarso Genro prevê ainda, enquanto relevante ponto de
reflexão do presente trabalho, o princípio da autodeterminação
coletiva, que extingue a autonomia individual oriunda do Direito
Civil, caracterizada na primeira parte da presente reflexão, e faz
nascer uma autonomia do individuo trabalhador dentro de sua
classe, envolvido no conflito de sua associação sindical-
profissional.
Nesse sentido, do processo do Trabalho dois princípios
merecem resgate no esteio de nossa argumentação: o princípio da

138
sentença normativa decorrente do poder normativo da Justiça do
Trabalho e o princípio da coletivização das ações individuais.
O princípio da Sentença Normativa se dá na possibilidade
do Juiz criar direitos, agir, segundo Carnelutti, no instrumento
normativo com corpo de sentença e alma de lei.
Já no princípio da coletivização das ações individuais o
objetivo é eliminar a ocorrência de inúmeras ações individuais
idênticas. Assim sendo, no processo do trabalho o legislador
permite que o sindicato postule em juízo em nome da categoria
que representa.
Esse conjunto de princípios revela a face do Direito do
Trabalho, um problema para lógica individualista moderna já que,
para apaziguar o conflito decorrente da demanda dos trabalhadores
uma série de pressupostos que confrontam com a lógica formal-
individual, mas que são condenados a conviver, no Estado Social e
Democrático Brasileiro, mas que, diversamente do que alguns
autores podem afirmar, não de forma pacífica, mas em inúmeras
vezes, conflituosa e violenta já que durante todo o tempo o direito
individual, se impõe a realidade social coletiva.
Poderia se denominar, a lógica formal-individual do Direito
Moderno de fetiche da coletividade, ou a adequação do coletivo a
lógica individual, ainda que coletiva por detrás do uno.

3 Alguns contornos do Direito Coletivo do Trabalho no Brasil


segundo o direito positivo.

O Direito Coletivo do Trabalho no Brasil aparece


historicamente, segundo afirmações de Marcio Túlio Vianna
quando o chão de fábrica acaba por unir os trabalhadores em
agrupamentos nos espaços de produção, nas grandes fábricas, nos
grandes galpões de exaustivo labor. Essa dura realidade originou o
Direito Sindical.
O Direito Sindical Tradicional criou o Dissídio Coletivo de
trabalho enquanto um processo coletivo julgado pelos Tribunais
para estabelecer condições de trabalho aplicáveis às pessoas

139
envolvidas ou para interpretar determinada norma jurídica.
No dissídio coletivo são criadas novas condições de
trabalho para categoria, entretanto, ainda na lógica do direito
individual como veremos no final da exposição.
Nos dissídios individuais, o objeto é a aplicação dos
direitos individuais do trabalhador. Os sujeitos nos dissídios
coletivos são indeterminados, pois na maioria das vezes alcançam
a categoria. Nos dissídios individuais, há empregado, de um lado,
e empregador de outro, diferente dos dissídios coletivos onde o
que está em jogo é o interesse da categoria como um todo.
Os dissídios coletivos podem ser divididos em econômicos
e jurídicos. Nos dissídios econômicos ou de interesse os
trabalhadores reivindicam novas e melhores condições de trabalho.
Objetiva-se a criação, modificação ou extinção de determinadas
condições de trabalho.
Nos dissídios jurídicos, ou de direito, o litígio ocorre na
aplicação ou interpretação de determinada norma jurídica a cuja
finalidade é apenas declarar o sentido da norma jurídica já
existente ou interpretá-la, como no caso da declaração de
abusividade de greve.
A sentença, no dissídio coletivo de natureza econômica,
tem natureza constitutiva ao criar as novas regras para categoria
enquanto que no dissídio coletivo de direito, sua natureza jurídica
será meramente declaratória.
O dissídio coletivo é uma ação de competência originária
dos Tribunais Regionais do Trabalho. Os Tribunais Regionais do
Trabalho serão competentes para conciliação e julgamento dos
dissídios coletivos instaurados na região de sua jurisdição.
Se o dissídio coletivo for de âmbito nacional ou envolver
um território de mais de um Tribunal, será competente o TST. A
competência para julgamento dos dissídios coletivos é da Seção de
Dissídios Coletivos conforme o art. 2º da Lei 7.701/88.
Os limites do poder normativo estão na Constituição e na
Lei estabelecendo o § 2º do inc. IV do art. 114 da Constituição,
que a Justiça do Trabalho, ao estabelecer normas e condições de

140
trabalho, deve respeitar as disposições convencionais e legais
mínimas de proteção ao trabalho. Esta, quando julga o dissídio
coletivo, emite uma norma chamada de sentença normativa.
Segundo Carnelutti, conforme já mencionado, a sentença
normativa tem alma de lei em corpo de sentença, sendo sua
natureza jurídica de ato jurisdicional, pois depende de provocação
do Poder Judiciário, não se tratando de ato legislativo, pois não é
emitida pelo Poder Legislativo.
Uma das conseqüências funestas para autonomia coletiva, a
partir da Ementa Constitucional 45/2004 foi à inclusão, nos
dispositivos constitucionais da condição, para que a parte ajuíze o
dissídio coletivo, além da tentativa de negociação coletiva ou a
arbitragem, que já existiam anteriormente, da necessidade de
assinatura de termo de comum acordo (§ 2º, inc. IV do art. 114 da
CF/88) tratando-se, portanto, de condição da ação do dissídio
coletivo. Além disso, dispõe o art. 859 da CLT que a representação
dos sindicatos para instauração da instância fica subordinada à
aprovação de assembléia da qual participem os associados
interessados na solução do dissídio coletivo, em primeira
convocação, por maioria de 2/3 dos membros, ou, em segunda
convocação, por 2/3 dos presentes. O TST entende que o art. 859
da CLT está em vigor conforme sua Súmula 177.
Existindo convenção, acordo ou sentença normativa em
vigor, o dissídio coletivo deverá ser instaurado dentro de 60 dias
anteriores ao respectivo termo final, para que o novo pacto
coletivo tenha vigência no dia imediato a este termo (§ 3º do art.
616 da CLT).
Aquele que ingressa com o dissídio coletivo é chamado
suscitante. Suscitado é aquele contra o qual foi ajuizado o dissídio
coletivo. Tendo o dissídio sido instaurado pelo Ministério Público
do Trabalho (suscitante) as demais partes serão suscitadas.
O dissídio coletivo terá de ser instaurado mediante petição
escrita, dirigida ao Presidente do Tribunal (art. 856 da CLT). A
petição inicial terá tantas vias quanto forem os suscitados (art. 858
da CLT), mais uma.

141
Na petição inicial, serão designados e qualificados os
suscitantes e os suscitados e a natureza do estabelecimento ou
serviço (art. 858, alínea “a” da CLT).
Devem-se informar, também, os motivos do dissídio e as
bases para conciliação (art. 858, alínea “b” da CLT).
As partes deverão apresentar, fundamentalmente, suas
propostas finais, que serão objeto de conciliação ou deliberação do
Tribunal.
O sindicato deverá comprovar que está autorizado a
instaurar o dissídio coletivo pela assembléia geral, bem como que
foram frustradas as tentativas de conciliação e arbitragem e juntada
de termo de comum acordo. Devem-se, também, apresentar a
convenção, ou o acordo, ou a sentença normativa que estava em
vigor, ou, ainda, o laudo arbitral, acaso existente.
Quando o dissídio for instaurado em razão de greve, a
petição inicial deverá ser instruída com a comprovação dos
requisitos legais para o exercício desse direito (Lei 7.783/89),
principalmente se foi atendido o aviso prévio de greve,
requerendo-se a declaração de abusividade do movimento
paredista, se for o caso.
As cláusulas constantes do dissídio coletivo poderão ser:
(a) econômicas, que são as que dizem respeito a reajuste de
salários, aumentos reais, de produtividade, piso salarial; (b)
sociais, atinentes a garantia de emprego, condições de trabalho
menos gravosas à saúde, sendo, portanto, vantagens indiretas; (c)
sindicais, que tratam de relação entre as empresas e o sindicato,
como as cláusulas que instituem representantes sindicais na
empresa, as que prevêem descontos assistenciais, etc.
A alínea c do inciso II do art. 2º da Lei 7.701/88 permitiu
ao TST expedir precedentes normativos, a respeito dos precedentes
jurisprudenciais em dissídio coletivo, que acabam sendo cláusulas
mais comuns no processo coletivo, devendo as cláusulas
estabelecidas pelas partes adaptar-se a tais regras.
No dissídio coletivo, é vedada a estipulação ou fixação de
cláusula de reajuste ou correção salarial automática vinculada a

142
índice de preços. Nas revisões salariais na data-base anual, serão
deduzidas as antecipações concedidas no período anterior a
revisão. Qualquer concessão de aumento salarial a título de
produtividade deverá estar amparada em indicadores objetivos.
A Justiça do Trabalho não tem competência para julgar
dissídios coletivos de funcionários públicos e quando o Estado
quando vai conceder reajustes salariais a seus servidores deve
primeiro ater-se ao princípio da estrita legalidade, que norteia a
Administração Pública.
Os militares se mantém sem o direito de ajuizamento de
dissídio coletivo, pois estão excluídos da sindicalização e da greve
(art. 142, § 3º, IV, da Constituição Federal).
Os empregados de empresa pública, sociedades de
economia mista ou outras entidades públicas que explorem
atividade econômica poderão ajuizar dissídio coletivo na Justiça
do Trabalho, como ocorre com o Banco do Brasil, Petrobrás, pois
estão sujeitos ao regime celetista, sendo titulares dos direitos
sociais regulados pela Constituição Federal.
O cumprimento do dissídio coletivo será feito por
intermédio de ação de cumprimento, perante a Vara do Trabalho,
pois a sentença normativa não é suscetível de execução, mas de
cumprimento; a referida ação deverá ser instruída com a certidão
da decisão coletiva.
Apesar de no Parágrafo único do art. 872 da CLT estar
escrita a palavra salário, deve-se entender que a ação de
cumprimento estende-se a quaisquer outras condições de trabalho,
que forem previstas na sentença normativa e não cumpridas
espontaneamente pelo empregador. Não é necessário o trânsito em
julgado da decisão normativa para ajuizar-se a ação de
cumprimento (enunciado 246 do TST).
A ação de cumprimento tanto poderá ser proposta pelo
empregado como pelo sindicato. Este pode ajuizar a ação
independentemente da outorga de poderes dos substituídos.
A legitimidade do sindicato para propor ação de
cumprimento estende-se também à observância de acordo ou de

143
convenção coletiva de trabalho (Em. 286 do TST). Nas ações de
cumprimento, os empregados poderão fazer-se representar pelo
sindicato da sua categoria (art. 843 da CLT).
Na defesa, é vedado discutir matéria de fato e de direito já
apreciada na sentença normativa (Parágrafo único do art. 872 da
CLT) e se houver necessidade, será feita instrução processual,
sendo ouvidas as partes, testemunhas e até determinada perícia
para apurar as diferenças cabíveis.
Assim, ainda se estabelece, ante ao direito positivo o
procedimento de dissídio coletivo no Brasil.

4. Das conquistas e condicionamentos institucionais da


autonomia coletiva no Direito Brasileiro

Segundo Flávio Antonello Benites o estudo de Direito


Coletivo do Trabalho no Brasil está necessariamente condicionado
pela existência de dois modelos jurídicos inconciliáveis. De um
lado a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu modelo
corporativista e autoritário de regulação; de outro, uma
Constituição Democrática que infelizmente acabou reforçando as
vigas mestras do modelo anterior. O contraditório modelo sindical
traçado no art. 8° da Lei Maior é, em si mesmo, um limite ao
exercício da liberdade sindical que pretende assegurar.
Afirma o autor acerca da autonomia coletiva

A manifesta incompatibilidade entre esse direito fundamental e a


unicidade sindical, a contribuição sindical compulsória, o
enquandramento obrigatório por categorias profissionais e a noção de
base territorial, todos esses mecanismos impostos por lei, é pressuposto
do exame proposto a seguir. Não menos importante, ainda do ponto de
vista das restrições impostas por nosso sistema jurídico ao exercício da
autonomia coletiva, o chamado poder normativo da Justiça do
Trabalho, autêntica arbitragem pública obrigatória, é outro elemento
oriundo do corporativismo autoritário elevado à esfera constitucional.

Segundo Eder Dion de Paula Costa, em sua tese de

144
doutoramento datada de 2004, o trabalho portuário no Brasil
contribuiu para as conquistas do direito constitucional do trabalho,
ao mesmo tempo em que limitou o seu potencial emancipatório na
medida em que

é um marco da organização sindical brasileira, principalmente porque


inicia-se pelos trabalhadores na estiva do Rio de Janeiro do início do
séc. XX, Bacia de Campos, quando recém libertos os escravos
passaram a ocupar espaços no trabalho portuário e conseguem, depois
de muita luta e trabalho para reconhecimento, as primeiras
organizações associativas criando um modelo de sindicato onde a mão
de obra passa a ser organizada e disponibilizada a partir de um interesse
da própria categoria, representada por ela através do seus organismos
de trabalho, ou seja, o sindicato dos trabalhadores nos Portos,
verdadeiro intermediador da mão-de-obra na estiva 24.

Para esse autor, foi na Organização Coletiva do Trabalho


Portuário que nasce, no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, em
Campos, as primeiras organizações sindicais, já no séc. XIX, a
partir dos negros fugidos que se aglomeraram em torna ao cais,
realizando tarefas da estiva e, pela primeira vez, organizando o
trabalho em organismos que mais tarde foram reconhecidos como
sindicatos que criaram um modelo de intermendiação de mão-de-
obra, que por muito tempo garantiu o trabalho e a profissão dos
trabalhadores no Porto.
Não se pode negar pela história dos Portos Brasileiros que
foram os sindicatos dos trabalhadores portuários que organizaram
a respectiva prestação de serviços, na condição de trabalho avulso
no Brasil e assim mantiveram a referida categoria que até hoje não
foi substituído por mão-de-obra oriunda das Empresas
denominadas Órgão de Gestão de Mão-de-Obra.
Embora a Lei 8.630/93, denominada “Lei de Modernização
dos Portos” tenha criado o Órgão de Gestão de Mão-de-Obra, a

24
COSTA, Eder Dion de Paula. O trabalho portuário avulso na modernização
dos portos. Tese para obtenção do título de doutor em Direito pelo Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2004.

145
Constituição de 1988 já tinha igualado o direitos dos trabalhadores
portuários aos demais direitos protegidos pelo seu art. 7°, e ainda,
a nova Lei, manteve a lista dos filiados na entidade sindical, únicos
alocáveis para prestação de serviços.
Somente com a proposta de constitucionalizar o direito ao
trabalho, corroborando com a proposta da Organização
Internacional do Trabalho, quando tal direito passou ao status de
direito fundamental, no sentido de positivação de direito humano –
conforme proposta de Robert Alexy 25 – acontece à recepção
constitucional da regulação do direito ao trabalho e tal preservação
serve ao Direito Cooperativo na medida em que o trabalho em
Cooperativas pode também vir a ser organização a partir de um
Direito Coletivo, direcionado para os organismos cooperativos de
forma e configuração jurídicas ainda em aberto (já que atualmente
não existem associações de cooperativas).
O Cooperativismo se funda na propagação de sete
princípios fundamentais, quais sejam a gestão democrática, adesão
livre e voluntária, independência econômica, autonomia financeira,
educação para o cooperativismo, o interesse pela comunidade e
intercooperação.
Percebe-se que no Cooperativismo Popular (conjunto de
Cooperativas formadas essencialmente por trabalhadores, oriundas
do Movimento Social de trabalhadores) os empreendimentos
organizam-se em Redes, devido à fluidez do mecanismo de
organização social, que possibilita a capilaridade e mobilidade
necessária para a organização, já que as firmas, na atual fase de
organização do capital, utilizam o sistema de redes para se
organizar, desagrupar e reagrupar com maior rapidez.
Para a presente reflexão, mais do que os demais princípios
acima elencados interessa-nos especial atenção ao interesse pela
comunidade e a intercooperação, para afirmação das realidades

25
Na obra, traduzida pelo Prof. Luis Afonso Heck direito fundamental é o
direito denominado humano positivado pela Constituição Federal de um Estado
Nacional.

146
locais, desenvolvimentos das comunidades em que vivem os
trabalhadores cooperados e formação de uma rede de
comercialização de produtos oriundos de uma nova ética do
trabalho, que garanta a democratização dos resultados do trabalho.
O interesse pela comunidade deve estar aliado à autonomia
coletiva, pois ninguém é livre ou autônomo quando não percebe o
verdadeiro significado das palavras aqui construídas, eivadas do
conteúdo e significação de seu verdadeiro sentido.
Autonomia Coletiva é interessar-se pelo desenvolvimento
de sua comunidade, pois significa a garantia de aprimorar o
trabalho em prol do desenvolvimento social dos próprios
trabalhadores fazendo com que, inclusive no que tange a nova
condição do trabalhador e da forma como se reconhece no mundo,
ele possa melhor servir-se da vida.
A educação para o cooperativismo garante ao trabalhador a
educação para melhor inserção no trabalho, na ação, na conquista
de sua dignidade, no reconhecimento enquanto cidadão, qual seja,
componente de uma comunidade em que todos têm acesso ao
respeito.
Os trabalhadores que se educam, no melhor sentido do
termo, não somente com o conhecimento tradicional, mas o
popular (reconhecimento enquanto detentor de conhecimento no
sentido acadêmico do termo), participam do espaço de civilidade,
fazendo parte da formação da esfera pública porque se sentem
dentro dela, ou seja, se sentem inseridos.

Conclusões

A organização dos trabalhadores, em decorrência das


modificações do mundo do trabalho no séc. XXI, também mudou
assim como a organização e divisão do trabalho, a partir das
adaptações do capital, apresentou novas organicidades em
diferentes organizações. Entretanto, a percepção de ambas passa a
ser a chave do novo mundo do trabalho. Há muito as pistas se
apresentam, mas cabe ao pesquisador, ao intelectual, desvendá-las.

147
Fernanda de Oliveira Santos e Eloíza Mara da Silva 26
escrevem a respeito das inovações da Economia Popular Solidária,
dos empreendimentos populares que, embora se reconheça o seu
espaço de organização incipiente em relação ao espaço de
organicidade e socialização do capital, mas são lacunas do modelo
atual. Concordamos com a afirmação das autoras por acreditar que
nas lacunas encontramos os sinais dos tempos futuros.
Uma das inovações organizacionais das últimas décadas do
séc. XX e primeiras no séc. XXI é a organização em Rede,
decorrente de uma nova divisão do trabalho.
Segundo Abili Lazaro Castro de Lima, a globalização
econômica produz uma nova divisão do trabalho, a denominada
divisão internacional, que gera uma exclusão estrutural, para além
dos limites dos direitos garantidos pelas estruturas estatais.
Vejamos

Quando analisamos a globalização econômica, vimos que ela produziu


uma nova divisão internacional do trabalho, caracterizada pelo
processo de produção sendo realizado em vários países. Este novo
processo, que engendra o desemprego, a diminuição progressiva de
salários e das condições de trabalho e a perda das garantias sociais,
segundo a leitura de Milton Santos gerou um tipo de peculiar pobreza,
por ele denominada “pobreza estrutural” orquestrada pelas empresas
transnacionais e instituições internacionais, globalizando-se por todo
mundo e propagando a exclusão social. 27

Entretanto, independente da questão da exclusão, a nova


organização se dá sob a forma de rede. No texto o império do
26
SANTOS, Fernanda de Oliveira e SILVA, Eloíza Mara da. A legitimidade da
economia solidária: os eixos principiológicos dos grupos populares para
legalidade do Estado Democrático de Direito Brasileiro – princípios da
economia solidária. Artigo publicado na Revista “Estudos de Direito
Cooperativo e Cidadania” do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2007.
27
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: as
mazelas causadas no plano político jurídico. Porto Alegre: Fabris, 2002, p.291-
292.

148
sentido François Dosse traz a idéia de rede para o campo das
ciências sociais

As redes são ao mesmo tempo reais como natureza, narradas como


discurso, coletivas como a sociedade. Ao contrário do seu sentido
usual, a utilização do termo redes em antropologia das ciências
corresponde à vontade de manipular uma noção qie permita evitar toda
a visão compartimentada da sociedade. Ela se diferencia assim da idéia
de campo, subcampo, instituições que pressupõem conjuntos
homogêneos definidos por tipos de ações, regras de jogos particulares.

Também define nosso autor que

a segunda característica dessas redes é a confusão que implica entre


humanos e não-humanos, sujeitos e objetos. São redes sócio-técnicas
que envolvem “fluxo de instrumentos, competências, literatura,
dinheiro, que alimentam e sustentam laboratórios, empresas ou
administrações. As redes assim são marcadas por uma forte
heterogeneidade. Levá-las em consideração permite insistir sobre a
importância daquilo que parecia até então exterior à ciência.

Mas, se existem as Redes nas empresas, também aparece,


no campo das Ciências Sociais, uma proposta de organização que
acaba sendo utilizada pelo cooperativismo popular que, de certa
forma, combate no campo da organização do trabalho
fundamentando a formação e organização do movimento social no
formato de redes, tais como prevê François Dosse.
Se, por um lado, o Direito Coletivo do Trabalho, em
especial a parte denominada Direito Sindical, encontram na
seletividade nacional um modelo complexo – um ramo do Direito
em que alguns instrumentos normativos, ainda que limitados pela
capacidade adquirida pelo consenso constitucional (partindo do
pressuposto que a Constituição de 1988 foi o limite possível da
Democracia Brasileira) que aportou na realidade os limites de
nossa capacidade democrática, desde a manutenção do modelo
celetista, composição do Supremo Tribunal Federal e julgados
desse Tribunal de ação limitada na possibilidade da constituição de

149
novos direitos na exploração do potencial emancipatório da
Constituição Federal de 1988 – de outro não tira a capacidade
criadora do Direito Coletivo, seja na esfera da negociação seja na
criatividade do Poder Judiciário.
Uma nova realidade: no meio do processo de organização
capitalista, que salvaguarda nossa reflexão aparece a
contemporânea crise do modelo do sistema financeiro. Nos últimos
quatro meses não ouvimos as análises dos intelectuais
neoclássicos, neoliberais ou neomarginais (uma denominação mais
apropriada aos economistas que criticam as políticas de bem estar
a partir de Bretton Woods, que se aproximam muito mais do
marginalismo do que do liberalismo clássico).
Os intelectuais da economia estão retomando Keynes e
nunca na história da Alemanha o capital de Marx teve suas edições
tão esgotadas (motivo que representa deleite para nossa satisfação
teórica e política – um sentimento de alívio de quem não estava o
tempo todo enganado!).
Ainda, na construção da Economia Popular Solidária, o
processo de organização dos empreendimentos populares carrega a
esperança de construção da intervenção social, que acaba por
construir a consciência do trabalhador: a certeza que na
solidariedade se afirma a vida se afasta o egoísmo, se ajusta a
igualdade.
A felicidade está muito mais próxima do coletivo do que do
individual porque uma casa, um barco, um frigorífico, uma sala de
aula, construída pelas mãos dos trabalhadores, para ser a casa em
eles vão morar, o barco em que eles vão pescar, o frigorífico em
que serão beneficiados os peixes que eles próprios vão
comercializar e mesmo a escola em que seus filhos vão estudar
garantem a liberdade para sua comunidade.
O interesse pela comunidade é a garantia da autonomia e da
liberdade, a efetivação da sua identidade.
É o que ocorre de mais importante na constituição dos
sujeitos coletivos.
É preciso afirmar que no processo de formação, de

150
construção do sujeito, de recuperação da auto-estima e valorização
pessoa humana é que ocorre a afirmação, e a partir dela a
construção da autonomia.
Pensar as conseqüências dos modelos sociais, o futuro do
capitalismo, a viabilidade dos empreendimentos solidários sem
esquecer dos processos de formação e enraizamento dos valores
humanos e acima de tudo do resgate da dignidade dos homens
(processos em que se valorizar a dignificação da vida comunitária,
tal e qual ela significa para cada um de seus membros ou sujeitos)
isso sim pode ser denominado horizonte socialista.
Porque o socialismo não é um futuro igualitário, um
destino emancipatório, uma cruzada pela utopia: o socialismo é a
plena felicidade na compreensão de limite de sua dimensão para
permitir a felicidade do outro. É ser feliz por permitir a felicidade
plena; ser feliz somente na felicidade de todos.

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Revista do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rio Grande –
FURG, Vol. 11, Ano 2005. Rio Grande: Universidade Federal de Rio Grande – FURG,
2005.

152
A (IN)SUSTENTABILIDADE LOCAL NO PROCESSO DE
GLOBALIZAÇÃO DA LAGUNA DOS PATOS: O CASO DA
PESCA ARTESANAL

Maicon Dourado Bravo 1

Introdução

A massificação e a vulgarização do termo globalização têm


levado a um empobrecimento de sua complexidade e todas as
implicações a que ele conduz. As promessas de uma globalização
que permitiria o livre trânsito de sujeitos e ideias, da aldeia global
onde as alteridades encontrar-se-iam em posições equivalentes e
trocariam experiências, da formação de um mundo plural,
mostraram-se, para não dizer falaciosas, efêmeras, virtuais,
resumidas a um aparelho de TV que cada vez mais uniformiza os
diferentes, cada vez mais massifica os sujeitos conforme seus
padrões hegemônicos estereotipados.
A essa interpretação vulgar de globalização opõe-se uma
outra, crítica, consciente da contraparte do global, o local, que
nessa relação torna-se espoliada e rejeitada, barrada, clandestina na
contemporaneidade.
A inserção nesse mundo globalizado, no entanto, desponta
como pré-requisito para o derradeiro desenvolvimento dos
subdesenvolvidos – ou “em desenvolvimento”, termo que toma
como em andamento o processo de globalização homogeneizante.
No mundo ocidental, pior do que ser explorado, é não ser

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental/FURG –
maiconbravo@yahoo.com.br

153
explorado, é permanecer aparte de todo o processo promovido pela
“globalização”. O não explorado é o rejeitado, é o vagabundo, o
preso ao local ou o aprisionado, e em tempos contemporâneos
perder a mobilidade é estar atrelado aos rejeitos, pois os proveitos
já foram abduzidos.
Trazida com promessas de desenvolvimento, nada claras e
nem um pouco precisas, a globalização teve um incremento de sua
presença na Laguna dos Patos por volta da década de 1940, com as
firmas de salga e pescados, mas foi durante a década de 1970, que
alcançou seus ápices com as políticas públicas para
desenvolvimento da atividade pesqueira no país. O Decreto-Lei
221 de 28 de fevereiro de 1967 concedeu incentivos e isenções
fiscais à pesca, o que acabou superdimensionando a capacidade de
extração e ocasionou a sobrepesca, com impactos sentidos até
hoje, três décadas após o frenesi pesqueiro empresarial-capitalista.
As relações de exploração da natureza e dos seres humanos
dadas nesse contexto contrariaram as propostas de
desenvolvimento da pesca – ou não, caso se considere
desenvolvimento como des-envolvimento das populações dos seus
locais, o que então poderia ser considerado um sucesso
significativo 2 – e o surto industrial pesqueiro das décadas de 1970-
80 foi-se junto com os cardumes extintos pela inexistência de
limites à exploração da natureza. Em meio a isso, a globalização
mostra seu lado pouco louvável, seu desapego ao espaço e aos
valores a que presta reverência.
Na primeira etapa de desenvolvimento da reflexão, far-se-á
um esforço para compreender o termo globalização e suas
implicações socioambientais. Num segundo momento, pensar-se-á
o dito “des-envolvimento” da pesca e as políticas públicas que
favoreceram sua disposição. Por fim, tentando um cruzamento

2
Carlos Walter Porto-Gonçalves trata o termo “desenvolvimento” como “des-
envolvimento”, ou uma estratégia de “[...] subverter o modo como cada povo
mantém suas relações de homens (e mulheres) entre si e desses com a natureza”
(2006, p. 81).

154
entre o termo globalização e as práticas de industrialização da
pesca na Laguna dos Patos pensar-se-á a globalização do local,
suas consequências e vistas a uma sustentabilidade da atividade
pesqueira.

1 Do conceito de Globalização

A compreensão e análise do processo de globalização da


Laguna dos Patos exige uma reflexão sobre o termo
“globalização”. Para isso, dois autores apresentam-se como
fundamentais: Zygmunt Bauman e Carlos Walter Porto-Gonçalves.
O conceito é manipulado de diversas formas, principalmente pela
mídia, maquiado para parecer universal e universalizável, um
mundo, uma humanidade. A própria ideia de universalização, de
acordo com Bauman,

[...] foi cunhada com a maré montante dos recursos das potências
modernas e das ambições intelectuais modernas. [...] Declarava a
intenção de tornar semelhantes as condições de vida de todos, em toda
parte, e, portanto, as oportunidades de vida para todo mundo; talvez
mesmo torná-las iguais” (1999, p. 67).

Essa proposta enseja o rompimento de barreiras locais e


nacionais, fabricando e vendendo sonhos de personagens globais,
cenários globais, alegando ser essa derrubada de fronteiras um
processo relacionado à própria dinâmica da natureza, e a
oportunidade de todos poderem transitar livremente conforme
quiserem, uma conquista nunca antes imaginada. Entretanto, essa
liberdade de movimento existe apenas, universalizada, no espaço
efêmero dos televisores, aproximando reinterpretações alienantes
de um mundo global enquanto que os locais estão eternamente
presos ao seu espaço limitado, quando conseguem conquistar seu
espaço digno.
A globalização em sua atual fase, ou a globalização
neoliberal, conseguiu, como em nenhuma outra fase anterior –

155
colonialista, imperialista ou fossilista fordista – embora partes do
mesmo processo, operar uma compressão do espaço-tempo
fantástica. As comunicações entre pontos geograficamente
distantes são instantâneas, ignorando completamente o percurso
físico que a mensagem deveria percorrer desde seu remetente até
seu destinatário. Isso, por um lado, oportuniza um amplo alcance
na capacidade de troca de experiências entre sujeitos em pontos
distantes no globo, tornando a comunicação quase instantânea. Por
outro lado, o acesso a locais distantes, a mobilidade que ignora
restrições físicas e a operação sob valores regidos pela acumulação
capitalista tornam a existência concreta nos locais que atraem a
atenção dos “investidores” bastante insuportável, pois que, sendo
global, o capital não mais se vê responsável pelos locais onde se
instala provisoriamente para explorar suas atividades produtivas.

A mobilidade adquirida por ‘pessoas que investem – aquelas com


capital, com o dinheiro necessário para investir – significa uma nova
desconexão do poder face a obrigações, com efeito uma desconexão
sem precedentes na sua radical incondicionalidade: obrigações com os
empregados, mas também com os jovens e fracos, com as gerações
futuras e com a autorreprodução das condições gerais de vida; em
suma, liberdade face ao dever de contribuir para a vida cotidiana e a
perpetuação da comunidade (BAUMAN, 1999, p. 16).

A dialética da globalização prevê a inexistência de barreiras


para os globais, bem-vindos e bem-recebidos onde quer que vão; e
um adensamento das barreiras para os locais, que estão
aprisionados em lugares que podem, cedo ou tarde, ser saqueados
pelo capital e jogados de lado como rejeitados (BAUMAN, 1999,
p. 85-110).
Esse processo tem início, de acordo com Porto-Gonçalves,
já nos séculos XV-XVI, com o Colonialismo e a implantação da
moderno-colonialidade. A difusão da exploração da natureza e de
outras etnias não-europeias pelos europeus estabeleceu as bases
para a conformação de um mundo não diverso mas desigual. “[...]
A modernidade europeia inventou a colonialidade e a racialidade

156
(base da escravidão moderna) e, assim, essa tríade – modernidade-
colonialidade-racialidade – continua atravessando, até hoje, as
práticas sociais e de poder” (2006, p. 25).
A segunda fase, o Capitalismo Fossilista e o Imperialismo,
tem início no século XVIII, estendendo-se ao início do século XX
e aos dias de hoje. É marcado pelo início da utilização do carvão
como fonte de energia, “armazenada numa pequena unidade de
matéria”. Assim, “[...] a indústria, com a máquina a vapor, não tem
mais que estar junto ao local onde é produzida a matéria- prima,
sobretudo quando a máquina a vapor é adaptada aos transportes
(ferrovias e navegação oceânica)” (PORTO-GONÇALVES, p. 28).
Sem as restrições relativas de espaço para a produção em massa de
mercadorias, sendo a própria energia transformada em mercadoria,
o capital começa a se desamarrar do local, começa a se tornar
ainda mais global em sua atividade produtiva.

[...] Tudo passa a ser removido e movido pelo mundo, submetido pela
lógica da produção de mercadorias sob o comando dos grandes
monopólios industriais financiados pelos grandes bancos, dividindo
territorialmente em áreas de influência entre os diversos imperialismos
nacionais (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 31).

A terceira fase, que vai de 1930 aos anos de 1960-70 e até


hoje, categorizada como Capitalismo de Estado Fossilista Fordista,
é marcada pelas pretensões de universalização do estilo de vida
consumista proposto pelo polo dominante europeu e norte-
americano, que “em nenhum momento considera a natureza em
seus cálculos, tanto como supridora de matérias-primas, como
absorvedora de rejeitos” (PORTO-GONÇALVES, p. 33). Para
além do fordismo, após a Segunda Guerra Mundial, o estado ganha
importância no planejamento do desenvolvimento econômico por
meio de instituições governamentais.
A quarta fase, mais atual, chamada de Globalização
Neoliberal, recebe destaque pelos usos e manipulações exercidos
sobre as preocupações ecológicas que foram originadas e

157
originaram reciprocamente esta fase. A manutenção e o acesso a
territórios passou a representar uma larga zona de interesse para o
capital e para o seu desenvolvimento sustentável, explorando
racionalmente para explorar sempre. No entanto, não se considera
a tendência ao ilimitado que a acumulação de capital promove, e
sob sua égide nenhum desenvolvimento consegue ser sustentável.
Ao bradar desenvolvimento sustentável deixa-se de perguntar:
sustentar o quê? para quê? para quem? por quanto tempo?
Questões cruciais para preservar ou transformar a atual situação
limite a que chegamos (consultar PORTO-GONÇALVES, p. 40-2,
e o conceito de Pegada Ecológica).
A globalização, ou a globalização capitalista, tem suas
várias fases atualizadas na contemporaneidade, sendo que o
Colonialismo e o Imperialismo mostram-se como nunca atuantes
nos padrões dominados das relações de poder mundiais. Presos
numa localidade que lhes priva a saída, mas permite a entrada de
agentes a mando dos capitais extraterritoriais, os locais sofrem
uma globalização concreta e imaterial: despojados de seu acesso
aos locais públicos, de acesso à voz nas decisões diretamente
ligadas às suas vidas, eles também são despojados de seus saberes
e fazeres, de sua cultura, sendo globalizados, transportados para
um ambiente virtual produzido pelas elites globais onde se cultua
seus valores e relega ao status de cafonice tudo o que é local.
Despregando dessa forma os sujeitos, a globalização transforma a
todos em criaturas sem lenço nem documento, para além das
identidades fragmentadas da contemporaneidade.
Para justificar e legitimar seu discurso e seus valores, a
globalização faz uso do discurso científico e da técnica como
panaceia de todos os problemas humanos, inclusive os ecológicos.
Sempre haverá uma solução técnica capaz de minimizar, não
eliminar, os problemas. A discussão política, econômica e social
passa ao largo do epicentro do desafio ambiental contemporâneo, e
o capital justifica-se e à sua exploração por meio de um jeito,
senão certo, então melhor, de fazer as coisas – às custas dos locais
(naturezas e pessoas).

158
Como outra ferramenta para sua hegemonia, a globalização
utiliza a proposta do desenvolvimento e sua difusão como forma
de acessar todos os lugares. Transformado em desejo na sociedade
de consumo, o desenvolvimento segue seu caminho sem fim até
não poder mais ser suportado pelo local, pois quando não mais
puder explorar os locais e os do local, retira-se e parte para campos
mais verdes. Desenvolvimento, nesse sentido, soa como
dominação da natureza e os fins a que almeja esse termo nebuloso
são distorcidos e incertos, uma vez que a produção nada produz,
quando muito extrai, e a riqueza é promovida às custas da miséria
alheia. Proveitos e rejeitos são divididos desigualmente, sendo que
poucos ficam com os proveitos e muitos ficam com os rejeitos,
polarizados.
O ideal de globalização do progresso segue a agenda da
globalização capitalista e esse modelo é definitivamente
insustentável.

Quando se sabe que 20% dos habitantes mais ricos do planeta


consomem cerca de 80% das matérias-primas e energia produzidas
anualmente, nos vemos diante de um modelo limite. Afinal, seriam
necessários cinco planetas para oferecermos a todos os habitantes da
Terra o atual estilo de vida vivido pelos ricos dos países ricos e pelos
ricos dos países pobres que, em boa parte, é pretendido por aqueles que
não partilham esse estilo de vida (PORTO-GONÇALVES, p. 71).

Ao colonizar as mentes, a globalização capitalista tem meio


caminho andado para colonizar os territórios. Ao aproximar-se e
ser desejado o capital, vislumbra, com sua lógica de acumulação
intensiva e a curto prazo, a natureza enquanto recurso, contabiliza
os gastos, e nesses cálculos passa a desconsiderar os impactos de
suas ações, no máximo transformando suas agressões em cifras a
serem repassadas no valor de suas mercadorias. Ao enfrentar
interlocutores mais interessados e menos comprometidos com seus
valores, que não apressam estudos de impacto ambiental para não
atrapalhar os cronogramas dos investidores ou que impõem
condições e contrapartidas, o capital simplesmente se retira,

159
procurando outras paragens e maior flexibilidade.

Flexibilidade do lado da procura significa liberdade de ir aonde os


pastos são verdes, deixando o lixo espalhado em volta do último
acampamento para os moradores locais limparem; acima de tudo,
significa liberdade de desprezar todas as considerações que “não fazem
sentido economicamente”. O que no entanto parece flexibilidade do
lado da procura vem a ser para todos aqueles jogando no lado da oferta
um destino duro, cruel, inexpugnável: os empregos surgem e somem
assim que aparecem, são fragmentados e eliminados sem aviso prévio,
como as mudanças nas regras do jogo de contratação e demissão – e
pouco podem fazer os empregados ou os que buscam emprego para
parar essa gangorra (BAUMAN, 1999, p. 113).

Sabe-se que o maior domínio técnico não significa isenção


de problemas ou incapacidades, pois a técnica mais sofisticada só
garante uma extração mais sofisticada, não a criação do elemento.
Ademais, toda técnica está submetida a uma intencionalidade, e
numa sociedade cuja acumulação sem limites é legítima, a técnica
proporciona a maior exploração do meio no menor tempo possível.
E nesse sentido a dimensão do efeito de uma técnica limitada e de
baixo impacto difere bruscamente do efeito de uma outra técnica
massiva e instantânea. “[...] A técnica traz em seu uso a intenção
em estado prático: por meio da técnica, meios e fins tornam-se
praticamente concretos. [...] Uma crítica à técnica é, sempre, uma
crítica às intenções nela implicadas. [...] Toda técnica, sendo meio,
está a serviço de um fim” (PORTO-GONÇALVES, p. 79).
Por isso a política entra como mediadora da relação da
sociedade com o ambiente, impondo limites às ações do capital
que visa ao infinito, mas não limites definidos pelos próprios
representantes do capital, em acordos de compadres e
corporativismo, manipulação de percepções e valores, tais como a
promoção de um consumismo irracional como condição de
cidadania, a projeção das atenções para um espaço efêmero
midiático e a adoção de usos e costumes apregoados pelas classes
dominantes; limites definidos de forma democrática por meio da

160
inclusão dos diversos protagonistas no espaço de decisão de suas
próprias vidas, seus próprios destinos, democratizar a democracia.
Porém, seguindo o sentido inverso, a Laguna foi globalizada.

2 O Desenvolvimento da Pesca, ou o Empresarial-Capitalista


sobre o Artesanal

A atividade pesqueira sempre foi uma constante no


município de São José do Norte, às margens da Laguna dos Patos,
caracterizando-se sua piscosidade como um dos fortes motivos
para a disposição geográfica da cidade. De fato, a abundância das
safras de peixes e camarão foi destaque para a região desde as
décadas de 1940-50. Manchetes em jornais da época registram tal
momento histórico, anunciando os “55 milhões” que “foram pagos
às parelhas de pesca em São José do Norte” (Diário de Notícias,
08/01/1954), “Industrializados 405 mil quilos de bagre em São
José do Norte” (Diário de Notícias, 24/10/1952), “Abundante safra
de camarão” (Diário Popular, 20/03/1957), “800 mil quilos de
peixes foram pescados em São José do Norte” (Folha da Tarde,
21/01/1958). Termos como “recorde” são recorrentes durante esse
período nos jornais.
Durante a década de 1950, também, Heinrich Bunse faz uma
descrição da atividade pesqueira no município, distinguindo a pesca
no oceano e a pesca na Laguna dos Patos, ambas com características
de pequena produção mercantil pesqueira, ou pesca artesanal,
conforme definição de Diegues (1983). Na Laguna existem
[...] certos peixes, como a tainha, peixes migratórios que, em
determinadas épocas do ano empreendem a ‘corrida do peixe’, saindo
em cardumes imensos da Lagoa dos Patos, através da Barra do Rio
Grande, para o mar, empreendendo a corrida ao longo do litoral rumo
ao norte (BUNSE, 1981, p. 85).

Esse aspecto da pesca é confirmado pelo sr. Hugo, velho


homem que esteve diretamente ligado às atividades industriais
pesqueiras em São José do Norte desde a década de 1940, onde as

161
parelhas aguardavam a captura dos peixes enquanto saíam da
laguna após desovar, assegurando sua reprodução. Pontuando
Capivaras, Passinho, Praia do Norte, Cocuruto e Barra, as parelhas
dispunham-se nessa ordem, de norte a sul pelo interior da laguna
para capturar o peixe, sendo que, mesmo depois de sua saída pela
barra, o mesmo cardume ainda seria pescado no oceano pelo
arrasto de praia.
Um ritmo pautado pela temporalidade da natureza era
predominante, e mesmo se tendo oscilações na pesca, essas eram
sazonais e alheias, em grande parte, às atividades do ser humano.
Tal submissão aos ritmos da natureza, no entanto, foi interpretada
como “atraso”, como falta de desenvolvimento, e em finais da
década de 1960 gestaram-se políticas públicas para

[...] ampliar a produção nacional de pescado e o parque industrial


processador desse produto. A política de incentivo à produção
pesqueira iniciou-se em 1967 com a promulgação do Decreto-Lei 221.
Este decreto incluiu esta atividade entre as relacionadas com o
desenvolvimento do país (FINCO & ABDALLAH, p. 172).

Através de incentivos fiscais e financiamento das


atividades voltadas para a exploração da pesca, promoveu-se uma
potencialização da captura de pescado em todo o país. Abdallah e
Bacha apresentam números significativos dessa atividade, sendo
que entre 1960, produzidas 281.512 toneladas de pescado, e 1967
– ano de implementação do Decreto-Lei 221 – houve um aumento
de pouco mais de 50%, 429.422 toneladas para o último ano. Entre
1967 e 1974, houve um aumento de 90% na produção, 815.720
toneladas, sendo que só o município de Rio Grande foi responsável
por 9% dessa produção, ou seja, 73.852 toneladas, 88% do total
produzido no Rio Grande do Sul (FINCO & ABDALLAH).
São José do Norte esteve intimamente ligado a esse
processo, e Wyse identifica, no Período de Consolidação e Auge da
atividade industrial no município (2000, p.42-9), cinco indústrias
que se instalaram na cidade entre os anos de 1971 e 1983 e tinham
como atividade principal o processo do pescado. Dessas, três eram

162
de proprietários locais, trabalhavam com o pescado seco e salgado,
e empregavam 375 trabalhadores permanentes e temporários; as
outras duas, filiais de empresas com sede em São Paulo e Rio de
Janeiro, dispunham dos benefícios do Decreto-Lei 221/67,
produziam pescado congelado e filé de peixe, e empregavam 860
trabalhadores.
A produção de pescado no município de Rio Grande
alcançou seu ápice entre os anos de 1973-4, com 93.679 toneladas
de pescado (FINCO & ABDALLAH), e a partir desse ano entrou
num ritmo de oscilações decrescente. Muito embora a
Superintendência para o Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE)3,
coordenadora das atividades pesqueiras no país, tenha surgido “[...]
num contexto de proteção dos recursos naturais renováveis e de
desenvolvimento das atividades voltadas à exploração dos recursos
naturais renováveis” (ABDALLAH, 1998, p. 44), sua função
fiscalizadora foi bastante limitada e pouco atuante. Devido
principalmente à falta de reflexões sobre os impactos que tal política
e tal ampliação da exploração teriam, deu-se início a um processo
que se tornaria a nêmese da pesca na laguna, a sobrepesca.

O problema da sobrepesca foi ressaltado por muitos autores que


estudam o recurso pesqueiro no país, para os quais, o governo não
considerou as potencialidades pesqueiras do litoral brasileiro ao lançar
a política de incentivos fiscais à pesca (iniciada com o Decreto-Lei
221/67) (ABDALLAH & BACHA, 1999, p. 13).

As políticas públicas que se propunham a “administrar a


exploração” e a “promover o desenvolvimento” (ABDALLAH,
1998) mostraram-se deficientes em longo prazo, sendo incapazes
de impedir a superexploração do ambiente ao ponto da
impraticabilidade das atividades. Dentro desse contexto, os
pescadores artesanais foram os maiores prejudicados, uma vez que

3
A SUDEPE fora extinta por meio da Lei nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989,
sendo substituída em suas atribuições e competências pelo Instituto Brasileiro
de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA).

163
foram em sua maioria privados do apoio do Decreto-Lei 221/67
(DIEGUES, 1983).
A pesca artesanal, para além do uso de técnicas
rudimentares ou avançadas em suas atividades, pode ser
rapidamente caracterizada por: a) utilização de mão de obra para
além da família; b) atividade pesqueira é principal fonte de renda e
os padrões de distribuição, em partes, são menos igualitários que
os da pesca de subsistência, diferenciando proprietários e
camaradas; c) exige conhecimentos específicos; d) a propriedade
dos meios e instrumentos de trabalho têm papel importante; e)
avanço tecnológico com a embarcação motorizada, redes de
náilon, novos processos de conservação e transporte; f) firmas
ganham terreno sobre o atravessador (DIEGUES, 1983).
Por outro lado, a pesca empresarial-capitalista apresenta: a)
a propriedade dos instrumentos por uma empresa capitalista; b)
todas as funções são remuneradas em salário; c) o poder de decisão
sobre a pesca escapa às mãos do pescador; d) descaracterização do
saber fazer do mestre em detrimento de equipamentos técnicos; e)
escala da produção implementada por grandes barcos e ampla
infraestrutura de terra; f) a atividade é voltada à produção de
mercadoria.
A organização, as metas e o alcance do impacto do
pescador artesanal foram sobremaneira afetados pelo surgimento,
exploração/desgaste e evasão das indústrias pesqueiras. Se seus
saberes e fazeres garantiam-se reproduzidos com a hegemonia da
pesca artesanal e sua submissão aos ritmos produtivos naturais,
com a introdução de outros modos de produção e outros valores
estimulados e promovidos pelo estado e a imposição dos ritmos do
capital, o pescador artesanal começou a se ver privado de acesso
aos mercados consumidores. “[...] Os pescadores artesanais por
não possuírem tempo disponível para a venda do pescado e nem
meios de conservarem o produto para futura comercialização,
foram extremamente prejudicados” (FINCO & ABDALLAH, p.
183). Mesmo podendo vender sua produção às indústrias, as
pressões foram feitas em sentido de uma adaptação às novas

164
formas de organização da produção e a absorção de mão de obra,
basta destacar que para a maior produção de pescado do município
de Rio Grande entre os anos 1973-4, das 93.679 toneladas, 67.639
provieram da pesca industrial e apenas 26.040, 28% do total, da
pesca artesanal (FINCO & ABDALLAH). Estes números servem
para indicar, também, a capacidade de exploração a que a pesca
empresarial-capitalista pode submeter à natureza.
Diante de tamanha adversidade, a pesca artesanal acabou
sucumbindo às pressões exercidas pela pesca empresarial-
capitalista, e apesar de nenhuma das duas formas terem
desaparecido, nada lembra os Períodos de Organização Industrial,
ápice da pesca artesanal, e Consolidação e Auge, representativo da
pesca empresarial-capitalista 4.

3 O Processo de Globalização da Laguna

O modelo de globalização que promove, por um lado, a


dissolução das barreiras entre os lugares, tornando acessível a
poucos escolhidos os muitos lugares; e por outro lado adensa as
fronteiras para a massa de locais, que se veem privados da tão cara
mobilidade, alcançou já pela década de 1940 a Laguna dos Patos.
As diferentes propostas e iniciativas para promover o
desenvolvimento local na maioria das vezes se mostraram
limitadas, parecendo muito mais propostas de “des-envolvimento”
dos sujeitos locais do local.
Por meio da categorização proposta por Wyse (2000),
pode-se acompanhar os diferentes períodos de desenvolvimento da
atividade industrial no município de São José do Norte,
associando-os ao processo de globalização da Laguna dos Patos.
O primeiro período, de Organização Industrial, que
compreende 1940-65, é marcado pela hegemonia do pescador

4
Wyse (2000) categoriza três períodos da atividade industrial na cidade de São
José do Norte, sendo eles: a) Período de Organização Industrial, 1940-65; b)
Consolidação e Auge, 1965-85; c) Término das Atividades, 1985-95.

165
artesanal e das firmas comerciais, que beneficiavam e distribuíam
o produto pescado. Os destinos principais das mercadorias eram
Rio de Janeiro, São Paulo e a Região Nordeste do país. Pode-se
notar o desvínculo que há entre os produtores e os consumidores
do pescado, e diante da dita abundância, característica nos
noticiários locais da época, a produção de excedente deveria ser
fantástica, proporcionando uma acumulação significativa por parte
dos proprietários das firmas.
O que mais caracteriza o momento, no entanto, é sua
inserção na terceira fase da globalização, sugerida por Porto-
Gonçalves, ou o Capitalismo de Estado Fossilista Fordista. A não
percepção da existência de limites autoimpostos pela natureza à
sua exploração, nublada pela limitação das atividades extratoras,
seja pela técnica, seja pela organização social do trabalho, criou a
falsa realidade de infinitude da exploração da natureza. A
abundância alcançada dentro de um determinado contexto, muito
mais definido pelos ritmos da natureza do que pelo domínio dela
pelo homem, criou uma expectativa de eternidade daquela
situação. Entre 1932 e 1962

[...] as regulamentações voltadas para o ordenamento pesqueiro (no


sentido de estabelecer regras de acesso aos recursos pesqueiros) não
foram relevantes. [...] Nesse período, a atenção estava voltada antes
para a promoção do desenvolvimento e organização do sistema
agroindustrial do pescado no Brasil, uma vez que não se destacava a
questão da sustentabilidade do recurso pesqueiro no processo de
captura do mesmo, dado que o volume capturado não era ameaçador à
reprodução biológica dos cardumes (ABDALLAH, 1998, p. 44).

A introdução de novos modos de organização da produção,


oportunizada pelos incentivos governamentais, sob essa perspectiva
de recursos ilimitados a serem explorados pode ter representado
papel significante na sobrepesca da laguna. De fato, a abundância de
peixes na laguna e os ótimos resultados conseguidos na pesca
durante o período de organização das atividades industriais no
município, atraíram a atenção do capital extraterritorial para a

166
região, que acabou por inserir suas lógicas e organizações de
trabalho no local. Mais do que em qualquer outro momento, o
Período de Consolidação e Auge da atividade industrial em São José
do Norte representou o processo de globalização na laguna.
A ampliação da produção conseguida através de políticas
públicas federais “abriu” de modo significativo a laguna aos
interesses globais. Mais do que transportar os produtos para serem
consumidos em outros locais, desvinculados do local de produção,
agora os investidores também eram extraterritoriais, e o objetivo
último da produção, o lucro, também escoava do local para outros
pontos do país, no caso Rio de Janeiro e São Paulo. O aporte do
capital nas atividades locais, tido como desenvolvimento, sempre
procurando pela flexibilidade, foi muito bem-recebido, sustentado
com promessas de bem-aventurança e riqueza para a região. O que
não foi considerado pelos investidores globais e pelo estado,
contudo, foram os limites para o exercício das atividades extrativas
do pescado na laguna.

[...] O recurso pesqueiro por ser de propriedade comum e de livre acesso,


tem uma tendência a ser sobre-explotado, e a fiscalização tem fracassado
em evitar a sobrepesca, já que não existe um engajamento efetivo dos
setores envolvidos na atividade pesqueira: pescadores, armadores,
indústrias, agências estatais, etc. (FINCO & ABDALLAH, p. 181).

O terceiro período, de Término das Atividades (1985-95),


marca a falência da pesca empresarial-capitalista no município e a
evasão do capital para outras regiões do país (DIEGUES, 1983).
Numa amostra bastante clara da separação e disposição dos
proveitos e dos rejeitos, a laguna em si é rejeitada após alcançar
seu limite de exploração e não ser mais capaz de sustentar a
atividade pesqueira em nível intensivo como se fez durante a
década de 1970. O capital sem fronteiras debanda para lugares
mais atrativos, deixando aos sujeitos locais imobilizados uma
laguna estéril, que nada lembra a situação quando chegaram.
Entra em cena, por fim, o conceito de desenvolvimento
sustentável, promovido por uma globalização neoliberal, que lida

167
com preocupações ambientais e com a reprodução de seu sistema.
Medidas como “[...] limitar a pesca por ‘tempo’ determinado,
controlar as licenças de pesca, estabelecer taxas pelo produto
pescado, bem como determinar cotas de capturas como forma de
impor uma exploração racional do recurso pesqueiro” (FINCO &
ABDALLAH, p. 181), são tomadas a fim de gerenciar a
disponibilidade dos cardumes para a exploração. No entanto, o
conceito de sustentabilidade exige complementos.
Leila da Costa Ferreira define sustentabilidade como o ato
de

[...] sustentar algo, ao longo do tempo, [...] para que aquilo que se
sustenta tenha condições de permanecer perene, reconhecível e
cumprindo as mesmas funções indefinidamente, sem que produza
qualquer tipo de reação desconhecida, mantendo-se estável ao longo do
tempo (In FERRARO JÚNIOR, 2005, p. 315).

Também José Silva Quintas indica que

[...] sustentabilidade vincula-se ao real e à lógica das práticas humanas.


Assim, se constitui historicizada e socialmente construída, tendo raízes
em questões como: sustentabilidade do que, para quem, quando, onde,
por que, por quanto tempo. Isso significa que os atores sociais movem-
se, em seus discursos e práticas, buscando legitimá-los, ou sendo por
outros(as) deslegitimados, de modo a prevalecerem aqueles(as) que vão
construir autoridade para falar em sustentabilidade e, assim,
discriminar, em seu nome, aquelas práticas que são sustentáveis ou não
(In LAYRARGUES, 2004, p. 121).

Ao responder o que se quer sustentar, se estabelece um


ponto-chave na compreensão da manutenção das relações sociais e
de poder. Sabe-se que os valores capitalistas financeiros
desconexos da espacialidade não podem levar em conta os limites
naturais às suas explorações: a acumulação tende ao infinito, e é
isso que os investidores globais almejam no final das contas. O
desvínculo entre os centros de decisão e os locais de produção e de
consumo oportunizado pela globalização, promoveram a

168
desconsideração da sustentabilidade do local e dos habitantes do
local como de responsabilidade do agente explorador. Polarizando
os proveitos de um lado e os rejeitos de outro, extraídos de sua
materialidade concreta, a globalização criou uma sociedade
calcada na desconexão, na displicência e no abuso, por regra
insustentável. As pessoas que consumiram os filés de peixe da
Laguna dos Patos nas regiões Sudeste e Nordeste não tinham como
imaginar que seu deleite custou a morte da Laguna.
Então sustentabilidade e capitalismo são, em todos os
sentidos, incompatíveis, pois seus valores de consumismo e
produção de riqueza abstrata escapam da materialidade limitada
que a sustentabilidade exige.

A discussão sobre a construção da sustentabilidade no tempo presente


está vinculada à quantidade de bens ambientais que é extraída da
natureza para a satisfação das necessidades das presentes gerações, sem
que se inviabilize as gerações futuras. Significa também entender o que
são necessidades humanas e como elas podem ser satisfeitas de maneira
sustentável (QUINTAS In LAYRARGUES, 2004, p. 122).

O processo de globalização da Laguna dos Patos foi um


exemplo claro das propostas insustentáveis do modelo capitalista
de exploração da natureza a longo e até médio prazo.

Considerações Finais

O processo de globalização da Laguna dos Patos está em


curso desde os anos de 1940 – mesmo antes, se considerar o papel
da laguna enquanto meio para consolidar a hegemonia colonial
portuguesa e as estratégias imperiais brasileiras: o porto de Rio
Grande há muito tempo desempenha papel fundamental de
conexão com o mundo globalizado. Mas é apenas a partir do
segundo quarto do século XX, que o capital vê na região uma
oportunidade para reproduzir e espalhar-se.
A década de 1960 representou um alargamento e
aprofundamento da exploração da laguna. Amparada por políticas

169
públicas de estado desenvolvimentista e fiscalização ineficiente,
limites nublados para a exploração da natureza, a globalização
triunfou sobre o local, transformando o mais rápido que podia
natureza em mercadoria, ignorando completamente o impacto de
suas atividades sobre a região. O resultado foi um esgotamento da
piscosidade da laguna e um processo de rejeição do local uma vez
que já “não fazia sentido economicamente” permanecer aqui.
Como bem coloca Jeremy Seabrook apud Zygmunt
Bauman, “a pobreza não pode ser ‘curada’, pois não é um sintoma
da doença do capitalismo. Bem ao contrário: é evidência de sua
saúde e robustez, do seu ímpeto para a acumulação e esforço
sempre maiores...” (1999, p. 87). A Laguna dos Patos representou
por determinado tempo o sucesso capitalista na região, a promessa
de boa vida e riqueza para os do local. No entanto, não passou de
uma vítima, uma hecatombe para o sustento do capital, que logo
em seguida se deslocou, voraz, para outras regiões.
Se ao vencedor cabem as batatas, aos perdedores resta
permanecer no local e tentar organizar o que restou, a despeito de
todo incontável dano sofrido, ambiental e humano.
A experiência vivida, no entanto, não pode ser espoliada, e
esse triste episódio deve servir como um alerta sobre a ausência de
travas ao capital, sobre a submissão do trabalho diante do capital e
sobre as dúbias propostas de uma aldeia global. Apenas através da
consciência cidadã, para além de uma cidadania composta de
direitos e deveres, que insira o protagonista no seu local como
responsável por sua manutenção, cidadania que se queira crítica,
transformadora e emancipatória, pode-se pensar em
sustentabilidade. Sujeitos que compreendam o real como não
definido nem definitivo, que tenham consciência de sua
maleabilidade e seus limites e que percebam a autonomia que
detêm, são sujeitos preparados para um enfrentamento digno do
desafio ambiental contemporâneo, e definitivamente um dos
caminhos para a formação desse sujeito, não o único, mas como
outros primordial, é a educação, que também se queira crítica,
transformadora e emancipatória.

170
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(doutorado em Economia Aplicada) – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz,
USP, Piracicaba, 1998.
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pesqueira no Brasil: 1960-1994. Teoria e Evidência Econômica. Passo Fundo, n. 13, p. 9-
24, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 144p,
1999.
BUNSE, Heinrich A.W. São José do Norte: aspectos linguístico-etnográficos do antigo
município. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto/Instituto Estadual do Livro, 134p, 1981.
DIEGUES, A.C.S. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática,
1983.
FERREIRA, Leila da Costa. Sustentabilidade: uma abordagem histórica da
sustentabilidade. In: FERRARO JÚNIOR, Luiz Antonio. Encontros e caminhos:
formação de educadores(as) ambientais e coletivos educadores. Brasília: MMA, Diretoria
de Educação Ambiental, 2005, p. 315-321.
FINCO, Marcus Vinícius Alves & ABDALLAH, Patrízia Raggi. Análise da atividade
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Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental. Rio Grande, I Congresso de
Educação Ambiental na Área do
PRÓ-Mar-de-Dentro. p. 172-198, 2001.
http://www.remea.furg.br/mea/remea/congress/artigos/comunicacao17.pdf, acessado em
08/03/2009
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globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 431 p, 2006.
QUINTAS, José Silva. Educação no processo de gestão ambiental: uma proposta de educação
ambiental transformadora e emancipatória. In: LAYRARGUES, Philippe Pomier (coord.).
Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília: MMA, 2004, p. 113-140.
WYSE, Rosângela de Fátima Coelho. A atividade industrial no município de São José do
Norte no período de 1940-1995. Rio Grande: FURG, 69p, 2000.

171
172
NATUREZA DA/NA CRISE DOS PARADIGMAS
NO SÉCULO XXI

Denise Gamio Dias


Claudia Battestin
Carlos R S Machado

Introdução

O Ocidente passou por muitas modificações nos


paradigmas de cada época, fazendo com que esses fossem
repensados, reavaliados e modificados. Mas, quando dizemos
Ocidente estamos falando de que região/território afinal, e em que
época? Neste momento, estaremos nos referindo ao Ocidente
tradicional, o qual foi em época remota – a civilização grega, a
romana, o feudalismo europeu, e depois a Europa e as Colônias,
passando pelo “mundo livre” do capitalismo no período da “guerra
fria”. Podemos, vagamente, identificar como sendo este lado,
aquele banhado pelo Atlântico (Américas, África e Europa
Ocidental), mas, também, parte do Pacífico, àquela que rodeia as
Américas. Portanto, quando falamos do mundo e da humanidade
estaremos nos referindo a esta parte ou porção de humanos em
suas relações com a natureza.
A relação dos humanos entre si e com a natureza, incluindo
aí a compreensão e o conteúdo das mesmas, compondo uma tripla
relação complexa em processos de mudanças através dos tempos
históricos. Essa é a base, o ponto de partida e de chegada do debate
dos paradigmas que destacaremos.
Na parte inicial, faremos com a ajuda de Carlos Walter
Porto-Gonçalves, a construção de um mapa mental macro visando

173
representar o período histórico do qual estaremos nos referindo,
nos debates paradigmáticos das partes seguintes com Boaventura
de Sousa Santos, Immanuel Wallerstein, Aníbal Quijano e outros.

1 O Cenário de fundo no debate dos paradigmas

O cenário de fundo da discussão dos paradigmas no


Ocidente, pelo menos neste texto introdutório, são os últimos 500
anos, seja nos processos de emergência do atual sistema
hegemônico de pensamento, bem como sua relação com as demais
bases que formam a tripla relação referida. Diz Porto-Gonçalves
(2006) que passamos por diversos momentos da chamada
globalização.
O primeiro momento seria aquele que precederia esse
mundo moderno (antes do século XVIII), que se torna referência
aos demais espaços territoriais do mundo, e que fala por sua vez o
inglês, o francês e o alemão. Nesse, acreditar-se-ia que o progresso
da humanidade deve se ancorar em um saber técnico-científico,
saber esse tomado como superior. São esses valores que têm
comandado nossas práticas, inclusive as educativas. Foi nesse
período que se configurou o sistema-mundo, conforme Wallerstein,
e que em outras palavras foi a efetivação do capitalismo enquanto
sistema hegemônico em todo mundo (Ocidente).
A modernidade ibero-americana, a partir dos
“descobrimentos”, constituiu as bases das relações, das
colonizações e das explorações, destruições e do etnocídio a “ferro
e fogo”, diria Marx, dos tempos atuais nesta parte do globo. Deixar
escapar essa história pregressa e os processos que nos conformam,
e que estão subjacentes ao contraditório mundo que vivemos, bem
como as explicações dessas, é contar apenas parte da história.
Além disso, os momentos não são cronológicos e separados,
articulam-se no ontem e no hoje, e na medida em que, não
articulamos o primeiro momento com o segundo e o atual, em suas
múltiplas relações, ficamos com uma visão parcial do nosso
sistema-mundo. E isso nos leva a reproduzi-lo enquanto concepção

174
fragmentada (por parte), lineares em sua sequência e subsumida à
visão hegemônica do segundo momento e das concepções a ele
subjacente sobre os demais. É preciso descolonizar o pensamento,
e neste pensarmo-nos como parte de um todo, e que, esta parte (a
América Latina), emergiu enquanto subalterna e explorada pelo
centro, a Europa e agora os EUA (DUSSEL, 1991). E que, este
centro produziu-se como sendo o todo, o universal, o destino que
deveríamos seguir enquanto nação, país ou povo em suas
concepções hegemônicas de pensar e de viver (WALLERSTEIN,
2006; WALTER-PORTO, 2006).
O segundo momento ou movimento será aquele a partir do
século XVIII, que diferente do anterior que era regido por Deus,
que era quem autorizava o que quer que seja; que desvendava
através das escrituras e de seus asseclas o conhecimento dos
mistérios da natureza e “catequizava os bárbaros” (diga-se domínio
e subjugação dos povos conquistados). Neste momento, será a
ciência (os saberes humanos) que ao justificar compreensão das
coisas e de seu funcionamento autorizaria a sua exploração e
usufruto a bel prazer (dominação). Eis a síntese do imaginário que
sai da segunda moderno-colonialidade: o homem está autorizado a
dominar a natureza, posto que conheça objetivamente os seus
mistérios por meio do método científico (WALTER-PORTO, 2006,
p 20).
Em decorrência dessa concepção, e da aceitação desses
fundamentos paradigmáticos que não se faz nos céus, mas bem
aqui na terra, cada vez mais as relações mundanas, cotidianas, são
mediadas por relações na qual a quantidade (o número, a exatidão,
a lei, o que pode ser provado, a razão, o cérebro) impõe-se sobre a
qualidade (a subjetividade, o acaso, a sensibilidade, o coração, a
vida). O lucro (dinheiro) mediará, enquanto representante supremo
desta concepção, as relações dos homens e mulheres entre si e com
a natureza (WALTER-PORTO, 2006 p. 21). Processo esse que se
ampliará a todos os espaços na medida em que o sistema
socioeconômico-político que o subjaz, o capitalismo, mundializa-
se e ocupa todos os espaços. Até mesmo o tempo é reduzido a

175
dinheiro e sua riqueza esvai-se, quando reduzido a uma abstração
matemática (HARVEY, 2001).
Por fim, o terceiro movimento da globalização, será aquele
no qual passamos a viver, nos últimos 30/40 anos, o aparente
paradoxo de ver o ambiente entrar definitivamente na agenda
política e nos meios de comunicação e, ao mesmo tempo,
assistimos a um processo de devastação jamais visto (PORTO,
2006, p. 26). De um lado, nunca se devastou tanto o planeta como
no período em que se falou em salvá-lo, reconhecido como auge, a
Rio-92 1.
No entanto, os encaminhamentos dados depois de então,
não avançaram muito na problematização dos fundamentos ou das
raízes da própria crise que é o próprio sistema capitalista em que
vivemos. E nesta de que os limites da relação da racionalidade
eurocêntrica e sua tecnociência, como parte das suas relações
sociais de poder, com a natureza e com outras matrizes de
racionalidade começam a ser atingidos como assinala o
aquecimento global, a gripe aviária, o mal da vaca louca, a AIDS,
entre outros (WALTER-PORTO, 2006, p. 26).

Daí a necessidade de descolonizar o pensamento e, principalmente, se


abrir para as múltiplas matrizes de racionalidade que o mundo
comporta e que a ideologia do progresso e do desenvolvimento impede
de dialogar por negá-los na sua outridade. Nesse sentido, os marcos do
pensamento eurocêntico negam a outridade tanto do outro absoluto –
natureza – como dos outros povos com suas distintas matrizes de
racionalidade, de Boaventura dos Santos, 2002 (WALTER-PORTO,
2006, p. 24).

Diante disso, diríamos que há em meio a esse contraditório


turbilhão, e de crise do paradigma hegemônico, alternativas sendo
construídas. Emerge pensamentos subalternos pós-moderno, pós-
1
A II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Humano, realizada em 1992 no Rio de Janeiro, teve como principal tema a
discussão sobre o desenvolvimento sustentável e sobre como reverter o atual
processo de degradação ambiental.

176
colonial, pós-tradicional, forjado pelos movimentos sociais com
diversos nomes (socioambientalismo, ecologismo dos pobres,
ecologismo de sobrevivência, ecologismo feminista, racismo
ambiental, justiça ambiental, racionalidade ambiental, PORTO,
2006, p. 26), que são pontos de partida de um paradigma
emergente.
Diferentemente de um ambientalismo de matriz
eurocêntrica que se desenvolveu com base no mito moderno da
natureza intocada, na feliz caracterização crítica de A. C. Diegues
(2004), há esse outro ambientalismo que emana do pensamento
subalterno e que parte da criatividade cultural e da produtividade
biológica primária em busca de uma racionalidade ambiental (Leff,
2006). São pensamentos e ações com, e não contra, a
natureza/meio ambiente, que retira sua força do conhecimento do
lugar (pensamento local), e de sua relação com o meio ambiente,
mas sem pretensão de universalização/generalização. Entretanto,
como tudo que é humano, é universalizável, esses podem perder
seu caráter alternativo se perderem seu vínculo com o “real” e
serem “canibalizados” pelos “poderes”, pelo sistema, pela ordem
e, assim, servirem para o domínio e a subserviência, e não
enquanto meio de mudança e transformação permanente. O
universal abstrato é a colonialidade do poder através de um saber
colonizador, que quer nos fazer crer que há um conhecimento
superior e, por isso, naturalmente, deve se impor sobre tudo e
todos.
Eis o desafio que se apresenta aos educadores e às nossas
sociedades, sobretudo para os setores subalternos. Assim como o
desenvolvimento expandiu-se em nome de superar o
subdesenvolvimento, vemos o mesmo no campo ambiental, onde o
des-envolvimento é recuperado enquanto ecodesenvolvimento ou
desenvolvimento sustentável, enfim, sempre alternativas de
desenvolvimento e não alternativas ao desenvolvimento. É de
outras racionalidades que carecemos, que Enrique Leff (2006)
vem, apropriadamente, chamando racionalidade ambiental, o que
requer uma ética da autoridade por meio de uma política da

177
diferença na igualdade e de uma política de igualdade na diferença
(WALTER-PORTO, 2006, p. 27).
Portanto, o modelo de desenvolvimento da sociedade
moderna, que tem sido claramente esgotado por ser insustentável
ambientalmente, tanto na sua dimensão biológica, como social e
justificado paradigmaticamente, ainda persiste enquanto
hegemônico nas perspectivas majoritárias. No entanto, subjaz e
articula-se a esta crise ambiental a própria crise de um modelo de
sociedade e de seus paradigmas, modelo que nos apresenta um
caminho único a seguir. Assim, estamos vivendo uma crise
civilizatória, na qual a compreensão e a ação prevalecem hoje em
muitas partes do mundo, e são intermediadas pelos paradigmas
construídos historicamente pela sociedade moderna e que
estabelecem essa relação de contradição/destruição entre os
indivíduos em sociedade e dessa com a natureza. Por essa relação
da vida moderna com o mundo, e que vem sendo crescentemente
intensificada ao longo dos últimos 500 anos, é que temos uma
crise ambiental que põe em risco a existência de todas as esferas de
vida como um todo. Nesse sentido, com Wallersntein (2001)
diríamos que é a própria crise do sistema-mundo constituído nesse
período, que se encontra agravando a crise. Vivemos numa
“bifurcação” na qual o que fizermos hoje poderá definir o nosso
futuro e o da humanidade. Conforme nos diz Pablo Gonzalez
Casanova (2006).

O ecossistema terrestre está ameaçado de morte a menos que se dê 'a


bifurcação' do sistema capitalista. Mas este pode derivar na granja
global de animais auspiciada pelas mentes enfermas do Pentágono, ou
em uma revolução democrática em boa parte violenta e, sobretudo,
política que conduza a humanidade a um socialismo democrático com
uma nova civilização do pluralismo, da libertação, da representação, da
participação, do poder, da produção e do consumo (Subcomandante
Marcos, In CASANOVA, 2006, p. 193).

Outros autores caracterizam esse momento como uma


“sociedade de risco”, em que os riscos a serem enfrentados pela

178
coletividade humana não são mais os fenômenos naturais, e sim os
riscos produzidos por essa própria sociedade. Segundo Guimarães
(2006), se essa crise ambiental é construção histórica, ela pode
também ser historicamente des-construída, bem como as relações
que a subjazem e das concepções que a explicam para nada mudar.
Na sequência, a partir do resgate do debate sobre a crise
sistêmica do capitalismo, da discussão dos paradigmas (no agir e
no pensar e do pensar e do agir) e da necessidade da produção de
um pensar e agir humano alternativo (SANTOS, 2006;
WALLERSTEIN, 2006), GULBENKIAN, 1996; QUIJANO, 2000;
CASANOVA, 2006) introduzimos o tema natureza: a natureza da
crise dos paradigmas e a natureza no debate da crise dos
paradigmas. Esses autores inserem o tema da Natureza como
fundamental ao pensar e à produção do "outro mundo possível"
dos Fóruns Sociais Mundiais. No entanto, mais do que inserir a
Natureza, ela deve ser incorporada como componente das relações
sociais, seja das classes e grupos sociais entre si, bem como, deste
como grupo ou indivíduos com a mesma, bem como o resultado
dessas relações (CASTRO HERRERA, 1994, O,CONNOR, 2007).
Isto porque, é pela transformação da natureza física pelas classes e
grupos sociais que se produzem as coisas, bens, cidades,
sociedades e o próprio conhecimento, portanto, uma natureza
produzida (MACHADO, et. Alli, 2008) enquanto totalidade aberta
e em permanente mudança e transformação.

2 A Natureza da crise e a natureza no debate da crise dos


paradigmas

2.1 Boaventura de Sousa Santos

Destacamos de Santos, inicialmente, o debate que propõe de


estarmos vivendo a crise do sistema de pensamento hegemônico (e
de vida, diríamos) e a emergência de elementos de um Paradigma
Emergente. Na edição brasileira, diz Boaventura (2006, p. 9):

179
Ponho em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das
explicações causais e defendo que todo o conhecimento científico é
socialmente construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e
que a sua objetividade não implica a sua neutralidade. Descrevo a crise
do paradigma dominante e identifico os traços principais do que
designo como paradigma emergente, em que atribuo às ciências sociais
antipositivistas uma nova centralidade, e defendo que a ciência, em
geral, depois de ter rompido com o senso comum, deve transformar-se
num novo e mais esclarecido senso comum (SANTOS, 2006, p. 9).

Parte, então, da ideia de necessitarmos de reflexões "cada


vez mais aprofundadas sobre os limites do rigor científico", como
se constituiu nos últimos 200 anos (com o Paradigma
Hegemônico), mas também, decorrente dos "perigos cada vez mais
verossímeis da catástrofe ecológica e da guerra nuclear"
(SANTOS, 2006, p.14)2 .Isto porque, diz que "temos que perguntar
pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no
enriquecimento ou empobrecimento prático das nossas vidas, ou
seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência pela nossa
felicidade", diante do "fim de um ciclo de hegemonia de certa
ordem científica" (SANTOS, 2006, p. 18-19). A ordem científica
constituída enquanto Paradigma Dominante, global e com certa
racionalidade pretendeu-se único e como o mais verdadeiro por
2
Talvez, depois de mais de 20 anos desta manifestação de Santos, seja com as
notícias sobre o aquecimento climático, seja com o possível ataque nuclear
eminente de Israel ou dos EUA sobre o Irã, cada vez mais nos aproximamos de
uma eventual catástrofe, se as “coisas” não mudarem significativamente! Na
Crítica à Razão Indolente (SANTOS, 2000, v. i) Santos ao se referir à
necessidade de superação do atual sistema, dá um exemplo relacionado a
incompatibilidade do sistema capitalista com a natureza, a vida e o planeta: de
que o padrão de vida americano, modelo e exemplo, aos demais países e classes
sociais mundiais, é impossível de ser reproduzido e generalizado ao mundo.
Cada família americana, em média tem dois automóveis, dentre outros aspectos
da vida consumista americana. Imaginemos, se cada chinês, em média tivesse
dois automóveis; e os indianos, etc; os gases despendidos na atmosfera
tornariam a vida impossível. Portanto, o sistema capitalista baseado no consumo
e lucro não é generalizável a todos os habitantes do planeta, pois coloca em
risco a própria vida no/do planeta.

180
meados do século XIX:

Sendo em modelo global, a nova racionalidade científica é também um


modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional e todas as
formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios
epistemológicos e pelas suas regras metodológicas (Idem, p. 21).

Se por um lado, desenvolveu-se enquanto método pela


exclusão de outras formas de pensar, enquanto conteúdo impôs-se
a partir de distinções "fundamentais, entre conhecimento científico
e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e
pessoa humana, por outro" (p. 24). No caso da Natureza, ela seria

tão-só extensão e movimento; é passiva eterna e reversível, mecanismo


cujos elementos se podem demonstrar e depois relacionar sob formas
de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça
de desvendar os seus mistérios, desvendamento que não é
contemplativo, mas antes activo, já que visa conhecer a natureza para
dominar e controlar (SANTOS, 2006, p. 25).

Em decorrência disso, Santos apresenta quatro teses ao


debate alternativo. A primeira propõe que "todo o conhecimento
científico-natural é científico-social", à qual incide diretamente na
separação do homem da natureza. Mas, para tanto, deveríamos
para além de introduzir a "consciência no acto de conhecimento,
nós temos hoje de introduzi-la no próprio objecto do
conhecimento, sabendo que, com isso, a distinção sujeito/objecto
sofrerá uma transformação radical" (SANTOS, 2006, p. 62). Neste
caso, diz que:

A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente


catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais
colocam a pessoa, enquanto ator e sujeito do mundo, no centro do
conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca
o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há
natureza humana porque toda natureza é humana (SANTOS, 2006,
p. 71-72).

181
A relação dos humanos entre si e com a natureza, e,
portanto, no "espírito" da primeira tese de Santos, mas também nos
autores resenhados neste texto, é interessante e útil ao pensar
alternativo. E neste caso, em contraposição à ideia de sistema, de
estruturas, de um funcionamento de ordem e do mundo como
separado dos humanos e da natureza, e não tendo com eles relação
ou articulação como o positivismo e outras formas de pensar
hegemônicas devem ser problematizadas. No entanto, seria
necessário relevar a existência, enquanto construção histórica
(portanto, das sociedades) ao longo dos tempos e espaços
diferenciados, perspectivas diferentes sobre a natureza humana e a
Natureza exterior. Neste caso, carecemos de estudos e debates
mais aprofundados. 3 Adiante aprofundaremos o tema, e
apresentaremos algumas contribuições nesse aspecto.
A segunda tese de Santos diz que "Todo o conhecimento é
local e total", pois de um lado, é um "conhecimento sobre as
condições de possibilidades [...] da acção humana projectada no
mundo a partir de um espaço-tempo local; por outro, tem como
"horizonte a totalidade universal", a partir da reconstituição de
"projetos cognitivos locais, salientando-lhes a exemplaridade"
(SANTOS, 2006, p. 76-77).
A terceira tese diz que "todo o conhecimento é
autoconhecimento", ou seja:

A ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonista por cada


cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se
conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do
real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de
valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza
ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação
(SANTOS, 2006, p. 83).

3
Por exemplo, se no pensamento ocidental, a partir do paradigma tradicional
constitui-se a ideia de separação e de superioridade dos homens sobre a natureza
e demais seres vivos; no extremo oriente, a ideia de união e articulação dos
humanos com a natureza exterior (e também interior) faz parte das inúmeras
correntes filosóficas e de formas de pensar e viver.

182
Finalmente, a quarta tese é de que "todo o conhecimento
científico visa se constituir em senso comum", pois é desse último
que orientamos nossas ações e damos sentido à nossa vida
(SANTOS, 2006, p. 88). Mas, também que não devemos esquecer
que "o conhecimento do senso comum tende a ser um
conhecimento mistificado e mistificador [...] conservador", por
outro lado, tem uma "dimensão utópica e libertadora", ao fazer
"coincidir causa e intenção", de estar assentado na "ação e no
princípio da criatividade da responsabilidade individual”, dentre
outras (Ibidem, p. 89). Nesta tese, há outro aspecto a ser
problematizado. Henri Lefebvre (1973, 1991) já havia mostrado
que o sistema capitalista, a partir das informações que se
processaram a partir dos anos 50 do século passado, o mesmo
estava incidindo sobre o cotidiano, produzindo e re-produzindo
relações sociais no espaço a partir de sua lógica de funcionamento.
Por outro lado, veremos com Quijano (2000) e Casanova (2006)
adiante, que o sistema capitalista incide sobre todos os aspectos do
viver, sejam as relações diárias como as concepções e formas de
produzir e consumir.
Portanto, devemos avançar na problematização de como se
produz e re-produz no cotidiano (vivido e concebido) o sistema e
de como esse se articula enquanto formas de pensar e de agir. E,
assim, pensar e produzir pensares e agires alternativos em todos os
espaços (sociais, no pensamento/conhecimento e na relação desses
com a natureza física e os demais seres vivos).

2.2 O Relatório Gulbenkian

Immanuel Wallerstein, 4 diante da transição e da crise pela


qual estamos passando, e dos argumentos acima referidos por
Santos com os quais ele também concorda, pois se manifestou em
diversas publicações e pesquisas, propôs a Fundação Calouste
Gulbenkian, em 1993, "liderar o labor intelectual de um grupo

4
Director do Centro Fernand Braudel.

183
internacional de estudiosos distintos - seis da área das ciências
sociais, dois das ciências da natureza e dois das humanas - com
vista a uma reflexão sobre o estado actual das ciências sociais e o
seu futuro". 5 O relatório foi dividido em três partes, sendo a
primeira uma re-construção histórica das ciências sociais, do
século XVIII até 1945, passando em revista "os grandes debates"
neste campo, e período, para finalmente, levantar a questão (e
responder): "Que tipo de ciências sociais cabe-nos, hoje,
construir?”
Na primeira parte do Relatório, destaca-se que a partir do
século XVIII, portanto com a constituição do sistema capitalista no
mundo, diríamos, "A ciência passaria a ser definida como a busca
de leis universais da natureza que se mantivessem verdadeiras para
lá das barreiras de espaço e tempo” (GULBENKIAN, 1996, p.17)
e para a qual, a ideia de "progresso passou a ser a palavra de ordem
- dotada agora deste recém-adquirido sentido de infinitude, e
reforçada pelas conquistas materiais de tecnologia" (idem, p.18).
No mesmo sentido, as ideias de leis, da quantificação, etc.
que ia se constituindo servia (melhor) casava-se com o Estado
capitalista emergente, já que este necessitava de "um
conhecimento mais exacto sobre o qual pudesse basear suas
decisões", fazendo com que surgissem "novas categorias de
conhecimento já no século XVIII" (p. 22). Mas também, do ponto
de vista político (do establiscment) "o conceito de leis
deterministas afigurava-se mais útil às tentativas de controle
tecnocrático dos movimentos [...] apostados na mudança" (Idem,
p. 27). As consequências foram que, "em toda a parte a ciência
(física) passa a ser colocada num pedestal e, em muitos países, a

5
Calestous Juma, secretário-geral da Convenção sobre a Biodiversidade da
ONU (Quênia); Dominique Lecourt (Filósofo, Universidade de Paris 7, França);
Evilyn Fox Keller (Física, EUA, MIT); Ilya Prigogine (química, Bélgica,
Prêmio Nobel de Química 1977); Jürgen Kocka (História, Universidade Livre
de Berlim, Alemanha); Kinhide Mushakoji (Ciências Políticas, Universidade de
Meiji Gakuin, Japão); Michel-Rolph Trouillot (Antropologia, Haiti,
Universidade Johns Hopkins, EUA); Peter Taylor (Geografia, Reino Unido).

184
filosofia ser relegada para um canto ainda mais escuro do sistema
universitário" (Ibidem, p. 27).

A ciência foi proclamada como sendo a descoberta da realidade


objetiva através do recurso a um método que nos permitia sair para fora
da mente, ao passo que aos filósofos se não reconhecia mais do que a
faculdade de cogitar e de escrever sobre suas cogitações
(GULBENKIAN, 1996, p. 27).

No entanto, se "ainda por volta de 1945, as ciências sociais


distinguiam-se claramente, por um lado, das ciências naturais - que
estudavam os sistemas não-humanos -, e, por outro, das
humanidades - que tomavam para seu objeto de estudo a produção
cultural, mental e espiritual das sociedades humanas 'civilizadas'
(Idem, p. 53), tal realidade começa a ser questionada, e a mudar".
Tal mudança teria sido provocada por três acontecimentos que
vieram a afetar profundamente a estrutura das ciências sociais
montadas ao longo dos últimos 100 anos: a "mudança verificada
na estrutura política mundial", ou seja, pela emergência dos EUA
como potência mundial, mas também pela da URSS; o aumento da
população e da produção nos 25 anos seguintes, o que também,
poderia ser associado à expansão do sistema universitário e,
consequentemente, a multiplicação dos cientistas sociais (Ibidem,
p. 55-56).
Depois de argumentar, sobre esses três aspectos, o
Relatório afirma três mudanças: "o da validade das distinções no
interior das ciências sociais"; "o da maior ou menor estreiteza do
legado que estas nos deixaram"; "o da utilidade e realidade da
distinção entre 'duas culturas" (p. 58-59). Do apresentado, é feito
um "apelo no sentido de um 'reencantamento do mundo'"
(Prigogine e Stengers) e do "desmantelamento das fronteiras
artificiais entre os seres humanos e a natureza, ao reconhecimento
de que ambos fazem parte de um universo único, enformado pela
flecha do tempo", visando com isso liberar "mais ainda o
pensamento humano" (GULBENKIAN, 1996, p. 107-108). Tal

185
apelo vai em sentido contrário ao 'desencantamento do mundo',
proposto por Max Weber no início do século passado, visando um
"conhecimento objetivo, liberto de sabedorias ou ideologias
reveladas e/ou aceitas" (p. 107). Mas, não se pretende com isso
retroceder à situação de então, mas ir além. Isto porque, àquele, ao
tentar libertar o cientista desembocou numa postura de
neutralidade, influenciado pelos positivistas (Idem, p.108).
Um segundo aspecto

é de saber reintroduzir os factores tempo e espaço por forma a fazer


deles variáveis constitutivas internas das nossas análises e não meras
realidades físicas imutáveis onde o universo social existe. Se
considerarmos que os conceitos de tempo e espaço são variáveis
socialmente construídas, que o mundo - e o investigar - utilizam para
agir sobre a realidade social e para interpretar, somos confrontados com
a necessidade de desenvolver uma metodologia que nos permita
colocar essas construções sociais no centro das nossas análises, mas de
modo a que não sejam vistas nem usadas como fenômenos arbitrários
(GULBENKIAN, 1996, p. 108-109).

Portanto, repõe-se novamente aqui, a questão do tempo e


do espaço, referida por Santos, mas também a ideia de que são,
também, conceitos construídos socialmente (diríamos construídos
e re-construídos espacial e historicamente de forma permanente).
Um terceiro aspecto seria o de como "ultrapassar as
divisões artificiais erigidas no século XIX entre os domínios
supostamente autônomos do político, do econômico e do social (ou
do cultural, ou do sociocultural)” (Idem, p.109). Tal divisão, que
existe em "várias dimensões de maior relevo" digna de análise e
debate, como a "distinção entre seres humanos e natureza"; do
Estado como "única baliza" em que se desenvolve a ação social; da
tensão entre universal e singular e "o tipo de objetividade que seja
plausível à luz das premissas sempre mutáveis da ciência" (Ibidem,
p.110), também devem ser problematizadas.
Dessas divisões, destacamos aquela relacionada à natureza,
pois:

186
As ciências têm vindo a evoluir no sentido de um respeito cada vez maior
pela natureza. Ao mesmo tempo, as ciências naturais têm evoluído no
sentido de encarar o universo como algo de instável e imprevisível,
concebendo-o, assim, como uma realidade activa e não como um
automaton submetido ao domínio dos seres humanos que de alguma
forma se situam fora da natureza (GULBENKIAN, 1996, p. 111).

Portanto, "o facto de o conhecimento ser socialmente


construído também que é socialmente possível haver um
conhecimento mais válido", mas para isso, devemos reconhecer
que isso "em nada contradiz o conceito de objetividade. Pelo
contrário, defendemos que a reestruturação das ciências sociais de
que aqui falamos é capaz de aumentar essa possibilidade, desde
que se tomem em consideração as críticas feitas à prática do
passado e que se erijam estruturas mais autenticamente pluralistas
e universais" (GULBENKIAN, 1996, p.130).

2.3 Aníbal Quijano

Numa perspectiva mais radical, Aníbal Quijano (2000)


discutindo o poder e a colonialidade como "elementos
constitutivos y específicos del patrón mundial del poder
capitalista", diz que os mesmos fundam-se na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo, visando assim,
operar "como piedra angular de dicho patrón de poder y opera em
cada um de los planos, âmbitos y dimensiones, materiales e
subjetiva, de la existencia social cotidiana y a escala societal" (p.
243). Diz ainda que, se origina e mundializa a partir de América,
ou seja, há mais ou menos 500 anos. Neste sentido, a associação
deste poder imposto num processo histórico longo (500 anos) e
associado ao sistema capitalista, coloca-nos a complexidade, e
profundidade, de tal poder ao "operar" em todos os âmbitos do
vivido, das concepções e relações humanas entre si e com a
Natureza e, em consequência, questões ao pensar e agir na
produção de alternativas em todos esses aspectos.

187
Desde el siglo XVII, en los principales centros hegemónicos de ese
patrón mundial del poder, en esa centuria no por acaso en Holanda
(Descartes, Spinoza) e Inglaterra (Locke, Newton), desde ese universo
intersubjetivo fue elaborado y formalizado un modo de producir
conocimiento que daba cuenta de las necesidades cognitivas del
capitalismo: la medición, la cuantificación, la externalización (u
objetivación) de lo cognoscible respecto del conocedor, para el control
de las relaciones de las gentes con la naturaleza y entre aquellas
respecto de ésta, en especial la propiedad de los recursos de
producción. Dentro de esa misma orientación fueran también, ya
formalmente, naturalizadas las experiencias, identidades y relaciones
históricas de la colonialidade y de la distribución geocultural del poder
capitalista mundial (QUIJANO, 2000, p. 343).

Diz Quijano (2000, p. 344-345) que foi somente depois da


II Guerra Mundial que tais questões começam a ser elaboradas
criticamente. Assim, pensar o poder em escala societal, na
atualidade, é pensá-lo como um:

espaço e uma malha de ralações sociais de


exploração/dominação/conflito articuladas, basicamente, em função e
em torno da disputa pelo controle dos seguintes âmbitos da existência
social: 1) o trabalho e seus produtos; 2) em dependência do anterior, a
"natureza" e seus recursos de produção; 3) o sexo, seus produtos e a
reprodução da espécie; 4) a subjetividade e seus produtos, materiais e
intersubjetivos, incluindo o conhecimento; 5) a autoridade e seus
instrumentos, de coerção em particular, para assegurar a reprodução
desse padrão de ralações sociais e regular suas mudanças (tradução
CM, QUIJANO, 2000, p. 345).

Tais aspectos, de um pensar e agir alternativo e, portanto,


antissistêmico, ao que se constituiu nos últimos 500 anos, exige-nos
considerar que tanto a perspectiva hegemônica como a perspectiva
contestatória "el materialismo histórico" encontram-se em crise nas
últimas décadas (Quijano, 2000, p. 345). O núcleo da crise estaria
na ideia de único, que poderia ser associada à ideia de um "sistema",
ou seja, da existência de uma "estrutura configurada por elementos
historicamente homogêneos" (idem, p. 346) e de que "as relações

188
entre os componentes de uma estrutura societal são dadas, a-
históricas, ou seja, são produto da atuação de algum agente anterior
à história das relações entre as gentes" (ibidem, p. 346).
Por fim, e relacionando mais precisamente ao debate em
foco, diz Aníbal Quijano, que a ideia de classificação, bem como
de classe (depois social) foi “introduzida nos estudos sobre a”
"natureza" antes que sobre a "sociedade" (p. 364). Para o mesmo
autor, ainda, (p. 365) é óbvia a vinculação da ideia eurocêntrica
das classes sociais com a ideia de estrutura como uma ordem dada
na sociedade e de processo como algo que tem lugar numa
estrutura, ilumina com clareza a persistência nelas de todas as
marcas 'cognitivas' de sua origem naturalista e através delas, de
sua duradoura impressão sobre a perspectiva eurocêntrica no
conhecimento histórico-social.

Considerações finais

Urge a necessidade de ampliarmos nossos referenciais,


incorporando em nossas reflexões e ações, uma perspectiva
histórica que considere que as classes são diversificadas em seus
processos de constituição coletiva e em seu interior das
individualidades, bem como da relação dessas com a natureza
externa (natureza física) bem como interna (a natureza humana).
(MACHADO, et Alli, 2008). Mas, e ainda, de que o sistema
constituído nos últimos 500/200 anos projetou nas múltiplas
relações e espaços concepções e práticas que se traduzem no
cotidiano de cada um e de todos em conformidade a seus objetivos
mais profundos.
Para tanto, é indispensável o conhecimento acerca da
complexidade do ambiente e das relações socioeconômicas do
local/na cidade em que estamos inseridos, bem como dos
fundamentos paradigmáticos que justificam e/ou explicam tal
relação. E tais fundamentos podem contribuir para
manter/justificar ou explicar sem ir à raiz das causas da destruição
ambiental e humana; ou ao contrário, construir bases teóricas e

189
práticas a fim de reinventar novas formas de produzir e permitindo
novas relações com a natureza, que ultrapassem a relação de
domínio e exploração, mas que se desenvolvam relações de
cooperação e inter-relação, que se fundamente num paradigma
ecológico diverso do paradigma mecanicista.
O paradigma “ecológico” emerge, portanto, neste contexto
histórico em que se evidencia a insustentabilidade do nosso modo
de vida, contesta e questiona os paradigmas, os conhecimentos que
legitimaram o desenvolvimento social e econômico da sociedade
capitalista na qual tudo se torna mercadoria. Mas, também se
contrapõe aos princípios do racionalismo cartesiano, de
fragmentação, objetividade, linearidade e estabilidade; científico
ou positivo, o concreto que pode ser quantificado, analisado e
provado, entre outros.
A crise dos paradigmas é necessária para a evolução da
história, porém devemos atentar para que não se tornem
pragmáticos – verdades – que servem para a dominação e
exploração de uns humanos sobre outros e sobre a (s) natureza (s).
Se, conforme Capra (1982), a própria essência da
consciência ecológica é a essência da sabedoria sistêmica, quanto
mais estudarmos os problemas atuais, mais perceberemos o quanto
a visão mecanicista está presente em nosso meio. Somos herdeiros
do cartesianismo, e isso tem gerado muitas necessidades supérfluas
e patológicas acerca do que é necessário para viver, criando estilos
de vida que não são compatíveis com a realidade vigente,
resultante de um processo histórico longo de construção dos atuais
paradigmas, como argumentamos. A consciência ecológica aponta
para a busca de um novo relacionamento com os ecossistemas
naturais a fim de que ultrapassemos a perspectiva individualista,
antropocêntrica e utilitária, a fim de propagar a necessidade de
pensar o meio ambiente como um meio viável de se viver, através
da construção de um novo paradigma – ecológico.
Finalmente, com este trabalho temos a pretensão de propor
um “debate” da necessidade de problematizar a própria natureza
dos paradigmas em sua relação com o sistema atual, e, portanto, da

190
relação desse com o ambiente/natureza de um lado, e de outro,
problematizar o lugar da natureza/meio ambiente na discussão dos
paradigmas. Evidenciamos ao longo do trabalho contribuições
positivas de diferentes autores de como devemos incorporar
criticamente tais aspectos no debate, e esperamos contribuir neste
campo e na construção/produção de alternativas de superação do
atual sistema (social e paradigmático) em que vivemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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192
LO ESTÉTICO EN LA NATURALEZA HUMANA

Pablo René Estevez

…la belleza tendrá que manifestarse como


una condición necesaria de la humanidad.
J. C. Friedrich Schiller

1 Lo estético como expresión de la sensibilidad humana

Lo estético hereda su numen semántico del término de


origen griego “Aisthesis”, que significa la “cosa” o “fenómeno”
que tiene relación con la percepción sensible. Así, por ejemplo, El
Pequeño Larousse Ilustrado (1968, p. 439) se refiere a la ciencia
Estética como “Teoría de la sensibilidad”. Sin embargo, aclara que
es la “ciencia que trata de la belleza y de los sentimientos que
hacen nacer lo bello en nosotros”. Así, pues, esta definición revela
una reducción del sentido inicial de lo estético, generalizado entre
los griegos, al restringir su dominio a la esfera de los objetos y
fenómenos catalogados, específicamente, como bellos.
En contraposición, resulta ilustrativa (por la amplitud del
dominio de lo estético) la siguiente definición de Rosental y Iudin:
Lo estético constituye la encarnación objetivamente sensible de
aquellos aspectos de las relaciones sociales objetivas (incluyendo el
dominio de las fuerzas y fenómenos de la naturaleza) que facilitan o no
facilitan el desenvolvimiento armónico del individuo, su libre actividad
creadora dirigida a la producción de lo bello, a la realización de lo
elevado y de lo heroico, a la lucha contra lo feo y lo bajo. Lo estético
incluye, asimismo, un aspecto subjetivo: el goce del hombre por la
manifestación libre de sus aptitudes y fuerzas creadoras, así como por
la belleza de los productos obtenidos en virtud de la actividad creadora

193
de los seres humanos en todas las esferas de la vida social y personal
(en el trabajo, en las relaciones sociales, en la vida cotidiana, en la
cultura). La expresión más plena y generalizada de lo estético se da en
el arte... (1981, p. 156).

Esta definición rebasa los marcos de lo puramente bello


para proyectarse al mundo de lo sensible y a las potencialidades
creadoras del hombre, que alcanzan una expresión cimera en el
arte. En función de ello, lo estético es considerado como la
categoría fundamental de la ciencia Estética, que ha dejado de ser,
por esa razón, la “ciencia de lo bello”: definición que capitaneó
prácticamente todo su desarrollo en la etapa premarxista.
Con la aparición del Marxismo se crearon premisas
favorables para la investigación (y por tanto, para la definición
científica) del objeto de la Estética, y con ello, para el desarrollo de
la teoría de la Educación Estética: un difícil camino a transitar en
medio de las conmociones epistemológicas dejadas por la
posmodernidad y de los avatares de una praxis, como la estética,
plagada de incertidumbre y amenazas provenientes de un modo de
vida (capitalista) que promueve el anestesiamiento del hombre y la
degeneración estética del medio que lo circunda.
De acuerdo con lo anterior, el gusto estético porta un
carácter clasista y se define, tentativamente, como la capacidad de
adecuada valoración (de lo estético) de acuerdo con el ideal
individual que, por lo general, se corresponde con el ideal estético
de la clase o grupo social políticamente dominante.
En el Diccionario de Filosofía, de Nicola Abbagnano, el
“gusto” se define como “el criterio o canon para juzgar los objetos
del sentimiento”. Y ello se explica de la siguiente manera:
Solo en el siglo XVIII se reconoció el sentimiento como facultad en sí,
distinta de la facultad teórica y de la práctica, la noción de G. [“gusto”].
Se determinó en el mismo período como la facultad del criterio del
juicio estético y, con este sentido, ha quedado la palabra en el uso
corriente. En su significado más general, el G. es definido por
Vauvenargues como “la disposición a juzgar rectamente los objetos del
sentimiento” (1972, p. 598).

194
La formación del gusto estético en el individuo tiene que
ver, además, con la capacidad de apreciación del arte: el
denominado “gusto artístico”. En realidad, existe una interrelación
dialéctica entre lo artístico y lo estético: lo estético opera en toda
la realidad circundante y es, por su esencia, universal; mientras
que lo artístico es solo una parte de ese universo. Por esa razón, la
educación estética promueve la aprehensión y reproducción de los
valores estéticos en todas las actividades humanas, mientras que la
educación artística promueve la formación de necesidades e
intereses que compulsan al individuo al disfrute y creación,
específicamente, de los valores artísticos. Y en ese sentido, el
objeto de la educación estética es mucho más amplio que el objeto
de la educación artística y, por tanto, no deben confundirse como
ocurre con frecuencia en el trabajo docente-educativo en las
escuelas.
La educación artística opera, muchas veces, como un
procedimiento específico de la educación estética. Ello ocurre
siempre que el receptor de la obra de arte establece una relación de
simpatía con el portador de los valores artísticos o cuando, en
virtud de la maestría de la obra, se identifica plenamente con sus
personajes y comienza a modelar su comportamiento a partir de
los nuevos códigos (éticos y estéticos) incorporados. De esa forma,
se produce un “salto cualitativo” a nivel de la sensibilidad del
receptor: esto es, el cúmulo de emociones estéticas del evento
artístico-comunicacional se transforma en una acción
cualitativamente superior, que lo compulsa a una actividad
estéticamente significativa y que compromete, integralmente,
múltiples estructuras de su personalidad.
Lo artístico, en este sentido, opera como un catalizador de
lo estético. Aunque su dominio es más reducido, la naturaleza
estética del arte hace que se potencialice su poder educativo
integral sobre la personalidad, llegando a constituir así el medio
fundamental de la educación estética. Los valores artísticos, pues,
promueven en el individuo elevados sentimientos que condicionan
su actitud hacia el mundo natural y social, expresando la esencia

195
estética de su naturaleza y su singularidad como el fruto más
acabado del proceso de desarrollo natural y social en el planeta
Tierra.
Finalmente, el gusto artístico “condensa” el nivel de
sensibilidad alcanzado por el individuo en una infinita gama de
experiencias estéticas. De la riqueza de esas experiencias
dependerá, en gran medida, el desarrollo de su conciencia estética
y, por ende, la calidad de sus propios juicios estéticos: lo cual
permite aseverar que la educación artística debiera orientarse hacia
la formación estética del hombre y no solo hacia el desarrollo de la
capacidad de percepción y disfrute del arte; ya que sin eso no es
posible formar un gusto estético elevado ni, a la postre, el
desarrollo integral de la personalidad.

2 Lo bello como expresión sensible de lo estético

Lo bello se emplea, frecuentemente, como sinónimo de lo


estético, y se define como la categoría fundamental de la ciencia
Estética. Este criterio se recoge, por ejemplo, en el Diccionario
Abreviado de Estética redactado por Mijail F. Ovsiannikov (1983,
p. 121). De ahí, la usual definición de la Estética como “ciencia de
lo bello”.
Sin embargo, los fenómenos que forman parte del objeto de
estudio de la Estética rebasan lo meramente bello. Si lo estético, en
su sentido primogénito, se refiere a la percepción de un objeto o
fenómeno estéticamente significativos (quiere decir, que operan en
la esfera de la sensibilidad y que son aprehendidos por nuestros
sentidos estéticos), no es difícil consentir en que su dominio abarca
aspectos de la realidad que no tienen, necesariamente, una
connotación bella implícita. Lo estético se manifiesta, pues, en
toda la rica actividad práctico-espiritual del hombre y está
determinado por las condiciones concretas de su desarrollo
histórico-natural; mientras que lo bello lo hace solo en
determinadas parcelas y, por lo tanto, abarca un dominio mucho
menor.

196
Fenómenos catalogados habitualmente como “feos” pueden
dar la medida de la diferencia entre lo bello y lo estético. Lo feo se
manifiesta como antípoda de lo bello; es, por su esencia, opuesto a
lo bello. Sin embargo, la apreciación de lo feo en un objeto o
fenómeno puede ser la base de un juicio estético. Lo bello es, por
tanto, solo una categoría (si bien importante) de la Estética. Pero
lo cómico, lo trágico, lo sublime, lo bajo y lo feo también lo son, y
participan, por ende, de la esencia de lo estético. En general, la
relación entre lo bello y lo estético puede establecerse de la
siguiente forma: todo fenómeno bello es, por su esencia, estético;
pero no todo fenómeno estético es, por su esencia, necesariamente
bello (Sánchez Vázquez, 1991).
Desentrañar la esencia de lo bello no es tarea fácil debido a
la pluralidad de sentidos que este asume en la historia del
pensamiento estético. Por otra parte, el carácter dinámico de la
vida social entraña el permanente “reajuste” de los valores y de los
conceptos que el hombre se hace de las cosas, de acuerdo con la
significación que éstas van alcanzando en el transcurso de su
aprehensión en las más diversas actividades de la sociedad
humana.
En la esfera de la aprehensión estética de la realidad, los
cambios son tan dinámicos y contradictorios que en otras esferas
de la vida social. De este modo, resulta comprensible que persistan
diferencias entre el criterio de lo bello de un materialista y el
criterio de un idealista, así como debe existir entre un esquimal y
un maorí. Incluso, se presentan diferencias en la intelección de lo
bello dentro de las propias concepciones materialistas e idealistas
del mundo, como han de haberlas entre los propios esquimales y
maoríes: reflejándose aquí el desarrollo (contradictorio) del
pensamiento estético-filosófico del hombre como un reflejo de su
actividad práctico-transformadora sobre la naturaleza y su propia
constitución como un sujeto activo.
En general, cuando hablamos de la belleza de un objeto o
de un fenómeno, nos referimos a la aprehensión de cualidades que
valoramos, primordialmente, de acuerdo con sus rasgos exteriores

197
(sin profundizar en su esencia). Se trata, básicamente, de la belleza
que encontramos en el color de una tela, en unos ojos y en los
pétalos de una flor. Sin embargo, cuando nos referimos a lo bello
lo hacemos a partir de una relación esencial entre los elementos de
su estructura interna y externa (forma interna y forma externa); de
sus propiedades, etcétera. Y en este nivel, pueden ser relevantes
(volviendo al ejemplo de marras) la textura de la tela; la belleza
“interior” de una muchacha y el perfume de la flor. Si la belleza es,
esencialmente, un producto del contacto directo con el objeto, lo
bello, por el contrario, es el producto de una reflexión acerca de su
belleza. Es decir, una abstracción, un constructo.
De esa manera, resulta arriesgado ofrecer una respuesta
absoluta a la pregunta: “¿qué es lo bello en la vida?”; pues los
objetos y fenómenos no son estáticos, sino que cambian con las
condiciones naturales y sociales donde están insertados, y de la
misma forma que cambian los sujetos de la valoración estética (los
hombres) y el propio concepto de lo bello.
Por tanto, la intelección de lo bello depende de la época;
de la organización política reinante; de la condición social del
sujeto, y del desarrollo cultural y estético alcanzado por la
sociedad en su conjunto. Muchos adornos de uso entre tribus del
ecuador africano o de la región amazónica (como incisiones en la
piel, anillas de metal, embadurnamientos y otros), según revela
Jorge Plejánov, son repudiados o, por lo menos, vistos como cosa
de “salvajes” por miembros de la sociedad “civilizada”, a pesar de
la similitud de algunos de los procedimientos utilizados por el
denominado body art y de la amplia gama de accesorios y
mutilaciones del cuerpo que, en calidad de “adornos”, proliferan
en la sociedad moderna: evidenciando, ante todo, el carácter
histórico-concreto e ideológico de los conceptos estéticos.
En la medida en que se desarrolla la sociedad, se enriquece
su reflejo espiritual; se hace más complejo su sistema de valores y,
como consecuencia, cambia el gusto (estético) de los individuos y
su concepto de lo bello. Sin embargo, el cambio en la aprehensión
de lo estético entraña (por su fundamento dialéctico) la

198
permanencia de cierto substrato que explica, por ejemplo, la
vigencia de los valores estéticos de los monumentos de la
Antigüedad y la aceptación universal de cánones de belleza a
veces disímiles entre sí: el hecho de que asimilemos el arte greco-
latino, el románico, el neoclásico, el romántico y el realista; o que
aceptemos que un vietnamita aprecie más la belleza de los
pómulos salientes y los ojos sesgados que un brasileño o que un
africano aprecie más la belleza de los labios gruesos y el pelo
ensortijado, digamos, que un blanco europeo; lo cual podríamos
hacer extensivo a los adornos y a la moda. Por lo general, esto es
así, y demuestra que el concepto de lo bello está mediado por
factores geográficos, etnográficos, históricos y sociales.
Lo que suele ser bello para un individuo o una determinada
colectividad, pues, no necesariamente tiene que serlo para otro
individuo o colectividad. Aquí influyen el ambiente natural; las
condiciones socio-económicas y culturales; las tradiciones y hasta
los factores puramente coyunturales: como la propaganda, con una
gran influencia, por ejemplo, en la sucesión de las modas. No
obstante, siempre existirá cierto consenso en cuanto a lo que es
bonito o feo, y esto dependerá, en gran medida, de la capacidad de
apreciación estética alcanzada por los miembros de la sociedad en
cuestión: esto es, del nivel de desarrollo de su conciencia estética;
ya que un ojo no entrenado no podrá encontrar belleza en una
pintura o en un paisaje, de la misma manera que un oído no
entrenado no la encontrará en una sinfonía o en el arrullo de las
pencas de una palma real. Y en ello estriba, precisamente, la
importancia de la educación estética; que debe ayudar al hombre a
hacerse bello a sí mismo y hacer bello a todo lo que lo rodea: en lo
que veía Anatoli Lunacharski, el gran esteta de la Revolución de
Octubre, su tarea principal.

3 Cultivar la belleza como expresión superior de la naturaleza


humana

Era frecuente ver a Vasili A. Sujomlinski, director de

199
escuela en la región de Kirovogrado, recorrer con sus alumnos las
estepas y detenerse a observar un pájaro, una especie rara de planta
o los pétalos de una flor. Amante de la naturaleza y de la belleza de
sus formas sencillas, no veía mejor modo de educar a los niños,
que estimulándoles el desarrollo de la capacidad de apreciación
estética en relación con los objetos naturales. Pues, según su
criterio:

La educación emocional y estética comienza con el desarrollo de las


sensaciones y de las percepciones. Tanto como requiere la educación de
la maestría en el trabajo de prolongados ejercicios de la mano, que
desarrollan la inteligencia y las capacidades intelectuales, requiere la
cultura espiritual, moral, emocional y estética, de prolongados
ejercicios de los órganos de los sentidos. Y antes que todo, de la vista y
el oído (1971, pp. 247-248).

Observar los paisajes naturales en su constante mutación;


apreciar los matices de sus colores; palpar los tiernos brotes de las
semillas: tal era la clave de los procedimientos pedagógicos de
Sujomlinski. Es decir, educar para la vida a través de lo bello. Si
enseñamos al niño a cultivar la flor; a percibir la belleza de sus
colores y la fragancia de sus pétalos, según el eminente pedagogo,
no es de esperar de ese niño acciones deleznables, la traición o el
mal. Pues el cultivo de su sensibilidad estética lo compulsará a
establecer relaciones estéticas y, en fin, a regir sus actos de
acuerdo con las “leyes de la belleza” en el entorno natural y social.
La personalidad estéticamente desarrollada será portadora,
además, de elevadas motivaciones éticas en su comportamiento
ciudadano. No es compatible la coexistencia de una elevada
cultura estética y un sistema de valores morales que se sitúe por
debajo de las exigencias éticas de la sociedad. Ser estéticamente
desarrollado entraña, pues, una coherencia entre “el pensar”, “el
sentir” y “el hacer” del individuo. No es coherente quien, habiendo
desarrollado cierto sentido de la belleza, no luche porque ella
impere en su entorno natural y social o quien, siendo capaz de
apreciar la belleza del paisaje, de la flora y de la fauna, no sienta

200
un profundo amor y respeto por la naturaleza.
La vida, como es conocido, es mucho más rica y
multifacética que la teoría que la refleja. Y por eso la metodología
de educar para la vida a través de lo bello debe partir de la propia
vida, y no de la teoría pura. Sin embargo, no podemos olvidar que
la capacidad de percepción estética del hombre no se desarrolla
espontáneamente con el simple acto de vivir. Ella debe ser
estimulada y, en un sentido estricto, educada. De ahí, el
insustituible papel de la educación estética para la formación de
una conciencia estética elevada en todos los miembros de la
sociedad: un reto solo al alcance de pocos proyectos socio-
políticos en el mundo neoliberal actual, donde la educación
estética no constituye una prioridad del mercado.

4 Vivir de acuerdo con las leyes de la belleza

Solamente el hombre es capaz de establecer relaciones


estéticas en su convivencia social, y eso lo diferencia del resto de
los animales. Por eso, Marx escribió al respecto:

El animal forma cosas de acuerdo al nivel y necesidades de la especie a


que pertenece, en tanto el hombre sabe producir de acuerdo al nivel de
todas las especies, y sabe aplicar en todas partes el nivel inherente al
objeto. Por consiguiente el hombre también forma cosas de acuerdo a
las leyes de lo bello (1965, p. 78).

Si los animales poseyeran un sentido de la belleza, como


pensaba Darwin, tendría que ser necesariamente de carácter
instintivo; pues no poseen conciencia como tal y, por lo tanto, no
pueden regir su vida de acuerdo con leyes que actúan por encima
de su psiquis. 1 Solo el hombre es capaz de actuar de acuerdo con
un sentido estético, aunque a veces su comportamiento sea

1
Los etólogos han llegado a reconocer solo determinados niveles de
preconciencia en algunos primates y otros animales de las especies más
avanzadas biológicamente.

201
instintivo y primitivo, seguramente, por no haber sido educado
para ello.
Vivir de acuerdo con las leyes de la belleza entraña vivir en
armonía con el otro (o la otra) y con las normas de la sociedad a la
que se pertenece (claro, siempre que no contradigan su naturaleza
humana, como acontece en la sociedad capitalista contemporánea,
al convertir al hombre en lobo de su semejante). Es decir, se trata
de alcanzar un estilo de vida culto en el seno familiar y en la
comunidad; de correlacionar la palabra con la acción individual o
social. Para lo cual, la sociedad requiere desarrollar un modelo
educativo con una orientación integral, que capacite al individuo
para valorar y comprender, en toda su complejidad y extensión, el
medio natural y social que lo rodea: para “leer el mundo”, como
quería Paulo Freire, o para “orientarse en el mundo de los valores”,
como pedía Antonio Gramsci. En fin, cultivar la sensibilidad para
que el hombre sea capaz de percibir la variada belleza de los
objetos y fenómenos y pueda establecer una comunicación con
ellos a través del sutilísimo tamiz de los sentimientos, y,
finalmente, intervenir con eficacia en el proceso de modelación de
la sociedad y contribuir a su perfeccionamiento estético.
No resulta ocioso insistir aquí en que no todas las
condiciones sociales posibilitan el desarrollo armonioso de la
personalidad. Y así lo constató Marx, cuando escribió:

El sentido circunscrito a las necesidades prácticas groseras tiene solo


un sentido restringido. Para el hombre que perece de hambre, no es la
forma humana del alimento la que existe, sino solo su ser abstracto
como alimento; bien pudiera estar allí en su más grosera forma, y sería
imposible decir si su actividad alimenticia difiere de la de otros
animales. El hombre abrumado de preocupaciones, urgido, no tiene
sentidos para la más hermosa obra de teatro; el traficante de minerales
solo ve el valor mercantil pero no la belleza y naturaleza única del
mineral; no posee sentido mineralógico. Así, la objetivación de la
esencia humana, tanto en su aspecto práctico como teórico, es necesaria
para que se forme el sentido humano del hombre, al igual que para
crear el sentido humano correspondiente a toda la riqueza de la
sustancia humana y natural (1965, p. 1140).

202
Ante esto, cabe preguntar: ¿será posible la “objetivación”
de la esencia humana para decenas de millones de personas, que
viven por debajo del umbral de la pobreza en decenas de países
eufemísticamente denominados “en vías de desarrollo”, y aún en
muchos de los países “desarrollados”? ¿Podrán cultivar el sentido
de la belleza, los niños desamparados que deambulan por las
grandes urbes de América Latina?
Claramente, no es posible. Únicamente la supresión de toda
forma de explotación, la redistribución de la riqueza y el imperio
de la justicia, crearán las condiciones sociales favorables para que
se manifieste lo estético en la condición humana y el hombre
pueda regir su vida por un patrón estético: un proceso
multifacético que compromete a toda la sociedad y que exige
instaurar un sistema de educación orientado a la formación integral
de la personalidad. La única vía para que el hombre pueda regir su
vida por las leyes de la belleza y pueda terminar el proyecto
(inconcluso) de su naturaleza humana.

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SUJOMLINSKI, V. El nacimiento del ciudadano. Moscú: Ed. Joven Guardia, 1971. (En
ruso).

203
204
AS TRÊS NATUREZAS E A NATUREZA DAS TRÊS

Carlos RS Machado *
Fabiana Dendena
Daiane Gautério

Introdução

A natureza humana em sua relação com a natureza física e


social foi discutida por Karl Marx desde suas primeiras obras. A
natureza humana emerge da natureza física e transforma-a pelo
trabalho produzindo obras, cidades, novas relações sociais e a
própria história dos humanos. No entanto, ao desenvolver-se tal
processo, os humanos estão se produzindo e re-produzindo em sua
interioridade, subjetividade e aspectos mais profundos de seu ser.
Portanto, poderíamos identificar três naturezas neste processo: a
Natureza física, a Terra da e na qual as demais emergiram; a
Natureza humana que emerge da primeira, e ao agir enquanto
individualidade e coletividade transformam-na; e, por fim, as obras
e produtos da ação humana sobre àquela. No entanto, esta natureza
teria uma dupla especificidade. De um lado, enquanto produtos ou
obras exteriores aos humanos, e de outro, aspectos internos a seu
ser, enquanto subjetividade, “psique”, emoções, valores mais
arraigados e profundos.
Afirmamos, então que, há evidências nas obras de Karl
Marx que podem servir de ponto de partida à produção de uma
relação não destrutiva da natureza, por parte dos humanos,

*
Carlos R S Machado – karlmac@ig.com; Fabiana Dendena -
fabi.de@bol.com.br; Daiane Gautério- daianegauterio@gmail.com.

205
diferente da relação tradicional que se desenvolve nas sociedades
capitalistas, à qual sintetizamos acima, e que desenvolveremos
neste trabalho. Mas, não devemos ter a ideia de que Marx e Engels
disseram tudo sobre o tema no século XIX. Tal concepção seria
antidialética, pois pressuporia que a realidade, dos últimos 50
anos, nas quais as questões ambientais e ecológicas vieram à tona
enquanto tema candente, já teria sido “visionado” por estes dois
autores. Ou, em outras palavras, Marx e Engels já teriam escrito
tudo sobre tudo. A perspectiva dos autores deste trabalho é outra.
O capitalismo constituído depois de mais de 100 anos de Marx
transformou-se, e aprofundou-se em inúmeros aspectos e
tendências daquelas constatadas por Karl Marx. Mas, novas
questões surgiram e cabe a nós ao investigá-las, buscar referenciais
mais aprofundados (ou aprofundá-los) teoricamente, e contribuir
para que na prática possamos produzir a superação do atual
sistema, e das relações entre os humanos e com a natureza dele
decorrentes, e a produção do “outro mundo possível” também
nesses aspectos.
Neste trabalho, primeiro apresentamos evidências em obras
de Marx sobre tais questões, visando constituir as bases teóricas ao
debate da/na natureza. Depois, três pesquisas que utilizando desse
debate/referencial exemplificam a pertinência das reflexões, e
contribuições para nossas utopias. O tema é potencialmente
significativo como referencial teórico-crítico à educação para uma
cidade e sociedade sustentável ao “outro mundo possível”
propugnada pelos Fóruns Sociais Mundiais.

1 A Natureza nas obras de Karl Marx

Nos Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004),


podemos encontrar referências à natureza como a “inorgânica”, o
“mundo exterior sensível”, o “mundo externo”, a “matéria do
trabalho”, “meio de trabalho” e “meio de vida”, “objeto de
trabalho” e “meio de subsistência do trabalhador”. Neste momento
seria algo, um meio, objeto, o mundo exterior ao homem.

206
O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior
sensível (sinnliche). Ela é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na
qual [o trabalho] é ativo, [e] a partir da qual e por meio da qual [o
trabalho] produz. Mas como a natureza oferece o meio de vida, no
sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se
exerça, assim também oferece, por outro lado, o meio de vida no
sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador
mesmo (MARX, 2004, p. 178)

No capitalismo, quanto mais “o trabalhador apropria-se do


mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho,
tanto mais ele se priva dos meios de vida” (MARX, 2004, p. 178).
No núcleo filosófico da questão, que tal processo de “se apropriar”
da natureza é também de produção da separação dele (homem) da
natureza. E tal processo desenvolve-se em “duplo sentido:
primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível deixa de ser
um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu
trabalho; segundo, que [o mundo exterior sensível] cessa, cada vez
mais, de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a
subsistência física do trabalhador” (Idem, p. 178). Sobre tal
processo caracterizado como “estranhamento”, diz Marx:
1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto
estranho e poderoso sobre ele. Essa relação é ao mesmo tempo a
relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza
como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2) A relação
do trabalho com o ato da produção no interior do trabalho. Essa relação
é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma
[atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a
força como impotência, a procriação como castração. A energia
espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o
que é vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele
mesmo, independente dele, não pertencente a ele”. [...] [Haveria ainda],
[XXIV] “uma terceira determinação do trabalho estranhado a extrair
das duas vistas até aqui. O homem é um ser genérico (Gattungswesen),
não somente quando pratica e teoricamente faz do gênero, tanto do seu
próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também – e
isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se
relaciona consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando

207
se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso
livre (MARX, 2004, p. 180).

Portanto, Marx relaciona a transformação da natureza através


do trabalho pelos humanos, depois foca o homem na relação “com o
produto do trabalho como algo estranho e poderoso sobre ele”; da
relação “do trabalhador com a própria atividade”, e diríamos na
própria atividade e no processo em que essa se desenvolve; e por fim,
da “relação do homem consigo mesmo” enquanto ser genérico ou
gênero humano como um ser universal, livre.
Nas Formações Econômicas Pré-Capitalistas (MARX,
1991), a natureza, mais precisamente a terra é a “base das
comunidades” que as influencia e no processo de constituição das
respectivas comunidades/hordas, o primeiro passo é a “apropriação
das condições objetivas de vida bem como da atividade que a
produz”: a terra “é o grande laboratório”.

As relações do homem com a terra são ingênuas: eles se consideram


como seus proprietários comunais, ou seja membros de uma
comunidade que se produz e reproduz pelo trabalho vivo. Somente na
medida em que o indivíduo for membro de uma comunidade como esta
– literal e figuradamente – é que se considerará um proprietário ou
possessor. Na realidade, a apropriação pelo processo de trabalho dá-se
sob estas pré-condições que não são produto do trabalho, mas parecem
ser seus pressupostos naturais ou divinos.” (MARX, 1991, p. 66-67)

No processo histórico analisado, desde a Europa, destacamos


diversos processos e possibilidades de desenvolvimento dessas
sociedades, bem como de suas relações com as condições naturais.
No entanto, nessa diversidade “a concentração na cidade
proporciona à comunidade como tal a existência econômica” e a
“manifestação da comunidade como associação” seguida de uma
“união, enquanto Estado” é algo mais do que uma “multiplicidade
de casas separadas” (MARX, 1991, p. 75).
A cidade seria algo produzido, algo externo à natureza
única e comum da comunidade, passa a existir independente das

208
assembleias e caracterizar-se-ia por algo de natureza diferente,
enquanto produção humana. Seria de outra natureza, uma segunda
natureza (diria Lefebvre, 1991, 1973), resultante do trabalho, da
produção e como obra humana produzida.
Mas, a sociedade e/ou a cidade para manter-se e
permanecer enquanto tal, ou seja, manter determinadas relações
sociais entres seus habitantes e desses com a natureza física e com
àquela produzida por eles através do trabalho e da produção em
sentido amplo, deve se reproduzir de forma permanente. Parece
óbvio que os poderes instituídos, no caso, o Estado e as
autoridades, as instituições e leis, articulam-se e visam a
manutenção e a reprodução das respectivas relações estabelecidas
em conformidade ao sistema vigente em cada local, momento
histórico e sistema social e político. Mas, as autoridades e as
classes através dessas ou do Estado têm que “convencer” as
maiorias (bem, como a cada indivíduo) de que “as relações
sociais” sejam “aceitas como dadas”, e, portanto, de serem
reproduzidas como tais.

1.1 A natureza do/no Capitalismo

No Manifesto Comunista (MARX, 1997), as referências à


natureza vinculam-se ao desenvolvimento do capitalismo e à luta
de classes.

A burguesia submeteu o campo à dominação da cidade. Criou cidades


enormes, aumentou num grau elevado o número da população urbana
face à rural, e deste modo arrancou uma parte significativa da
população à idiotia [idiotismus] da vida rural. Assim como tornou
dependente o campo da cidade, [tornou dependentes] os países bárbaros
e semibárbaros dos civilizados, os povos agrícolas dos povos
burgueses, do Oriente ao Ocidente” (MARX, 1997, p. 40).

Tal classe centralizou e potencializou os meios de


produção, aglomerou populações, centralizou todos estes recursos
e meios em poucas mãos, além de unificá-los.

209
A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção,
da propriedade e da população. Aglomerou a população, centralizou os
meios de produção e concentrou a propriedade privada em poucas
mãos. A consequência necessária disto foi a centralização política.
Províncias independentes, quase somente aliadas, com interesses, leis,
governos e direitos alfandegários diversos, foram comprimidas numa
nação, num governo, numa lei, num interesse nacional de classe, numa
linha aduaneira (Idem, 1997, p. 41).

A burguesia evidenciou as potencialidades do trabalho


social humano, criando forças produtivas massivas pela
“subjugação das forças da Natureza, maquinaria, aplicação da
química à indústria e à lavoura, navegação a vapor, caminhos de
ferro, telégrafos elétricos, arroteamento de continentes inteiros,
navegabilidade dos rios, populações inteiras feitas saltar do chão”,
em função de seus interesses de lucro e apropriando-se da riqueza
produzida de forma privada.(pág. 41).
No Capital, no capítulo V, intitulado o Processo de
Trabalho, desenvolvido nos processos produzidos nas empresas,
Marx diz que o “trabalho é antes de tudo um processo entre a
natureza e o homem”, no qual “realiza, regula e controla” mediante
sua ação, seu intercâmbio de matérias com a natureza (MARX,
1986, p.139). Mas, destaca: “Y a la par que de ese modo actúa
sobre la naturaleza exterior a él y la transforma, transforma su
propia naturaleza, desarrollando las potencias que dormitan en él y
sometiendo el juego de sus fuerzas a su propia disciplina”
(MARX, 1986, p. 139).
No capítulo VII, a jornada de trabalho no capitalismo,
aparece como limitadora da criação na/pela relação do trabalhador
com a natureza e as obras produzidas em sua atividade.

en primer lugar, [...] el obrero no es, desde que nace hasta que muere,
más que fuerza de trabajo; por tanto, todo su tiempo disponible es, por
obra de la naturaleza y por obra del derecho, tiempo de trabajo y
pertenece, como es lógico, al capital para su incrementación”
(MARX, 1986, p. 220-221).

210
A produção capitalista começa “alli donde un capital
individual emplea simultáneamente un número relativamente
grande de obreros es decir, allí donde el proceso de trabajo
presenta un radio extenso de acción, lanzando al mercado
productos en una escala cuantitativa relativamente grande”
(MARX, 1986, p. 278). No processo de constituição da manufatura
e do artesanato Marx diz que:

la manufactura brota de la combinación de diversos ofícios


independientes, que mantienen su independencia y su aislamiento hasta
el instante en que se convierten en otras tantas operaciones parciales y
entrelazadas del proceso de producción de una misma mercancía. De
outra parte, la manufactura brota de la cooperación de artesanos afines,
atomizando su oficio individual en las diversas operaciones que lo
integran y aislando éstas y haciéndolas independientes hasta el instante
en que cada una de ellas se convierte en función exclusiva y específica
de un obrero” (Ídem, p. 294).

Se “nos detenerlos a analizar de cerca y en detalle este


proceso, vemos ante todo que el obrero, reducido a ejecutar de por
vida la misma sencilla operación, acaba por ver convertido todo su
organismo en órgano automático y limitado de esa operación, lo
cual hace que necesite, para ejecutarla...[...] (Ídem, p.294). E a “La
repetición constante de las mismas operaciones concretas y la
concentración de la mente en ellas enseñan, según demuestra la
experiencia, a conseguir el efecto útil perseguido con el mínimo
desgaste de fuerzas” (Ibiden, p. 295). No entanto, o que se estaria
produzindo seria uma natureza limitada e/ou limitadora das
potencialidades humanas (interna) ao/no trabalhador em/a da
divisão do trabalho.
La división del trabajo dentro de la sociedad, con la conseguirte
adscripción de los individuos a determinadas órbitas profesionales, se
desarrolla, al igual que la división del trabajo dentro de la manufactura,
arrancando de puntos de partida contrapuestos. Dentro de la familia, 1 y

1
Engels adenda en la 3ª ed. “en un principio, no fue la família la que se

211
más tarde, al desarrollarse ésta, dentro de la tribu, surge una división
natural del trabajo, basada en las diferencias de edades y de sexo, es
decir, en causas puramente fisiológicas, que, al dilatarse la comunidad,
al crecer la población y, sobre todo, al surgir los conflictos entre
diversas tribus, con la sumisión de unas por otras, va extendiéndose su
radio de acción (Marx, 1986, p. 306-307).

O homem, assim, passa a vida executando atividades e


operações simples, não tendo possibilidades de disciplinar e
desenvolver sua inteligência, em consequência, “va convierténdose
poco a poco y en general en una criatura increíblemente estúpida e
ignorante” (Idem, p. 317). Fato percebido pelos capitalistas e seus
ideólogos, os quais para evitarem a completa degeneração do povo
propõe a instrução popular: “A. Smith recomienda la instrucción
popular organizada por el Estado, aunque en dosis prudentemente
homoepáticas” (Ibidem, p. 317).
A emergência do capitalismo e seu desenvolvimento
posterior não decorreu de um processo da Natureza, ou seja, foram
os humanos em sua história e com/através da relação deles com
àquela que o produziram. Na agricultura, ao expandir-se rompem e
destroem as antigas relações.

En la órbita de la agricultura es donde la gran industria tiene una


eficacia más revolucionaria, puesto que destruye el reducto de la
sociedad antigua, el “campesino”, sustituyéndolo por el obrero
asalariado. De este modo, las necesidades de transformación y los
antagonismos del campo se nivelan con los de la ciudad. La
explotación rutinaria e irracional es sustituida por la aplicación
tecnológica y consciente de la ciencia. La ruptura del primitivo vínculo
familiar entre la agricultura y la manufactura, que rodeaba las
manifestaciones incipientes de ambas, se consuma con el régimen
capitalista de producción. (MARX, 1986, p. 454)

desarrolló para formar la tribu, sino que, por el contrario, ésta constitye la forma
primitiva y natural de las asociaciones humanas basadas en los vínculos de
sangre, de la que luego, al disolverse, surgen las múltiples formas de família”
(MARX, 1986, p. 3006-307, nota 26).

212
Se por um lado tal sistema desenvolve todas as
potencialidades das forças sociais e humanas nunca imaginadas
criando novos bens e riquezas; de outro,

Al crecer de un modo incesante el predominio de la población urbana,


aglutinada por ella en grandes centros, la producción capitalista
acumula, de una parte, la fuerza histórica motriz de la sociedad,
mientras que de otra parte perturba el metabolismo entre el hombre y la
tierra; es decir, el retorno a la tierra de los elementos de esta
consumidos por el hombre en forma de alimento y de vestido, que
constituye la condición natural eterna sobre que descansa la fecundidad
permanente del suelo. Al mismo tiempo, destruye la salud física de los
obreros (MARX, 1986, p. 454).

No capítulo em que Marx discute o processo pregresso de


constituição do capitalismo evidencia que – a própria propriedade
privada – um bastião dos ideológicos e justificadores desse sistema
é decorrente da negação da própria propriedade. Foi a propriedade
privada dos meios de produção pelos trabalhadores que constituiu as
bases da pequena indústria, à qual é uma “condición necesaria para
el desarrollo de la producción social y de la libre individualidad del
propio trabajador” (MARX, 1986, p. 698). O Capitalismo destrói
essas condições, acaba com essas propriedades.

[…] la transformación de los medios de producción individuales y


desperdigados en medios sociales y concentrados de producción, y, por
tanto, de la propiedad raquítica de muchos en propiedad gigantesca de
pocos, o lo que es lo mismo, la expropiación que priva a la gran masa
del pueblo de la tierra y de los medios de vida e instrumentos de
trabajo, esta espantosa y difícil expropiación de la masa del pueblo,
forman la prehistoria del capital” (MARX, 1986, p. 698).

No circuito produtivo do capital: “la propiedad privada


sobre el suelo, y, por tanto, la expropiación de la tierra de manos
del producto directo – es decir, la propiedad privada de unos, que
implica la no propiedad de otros sobre la tierra – constituye la base
del modo capitalista de producción” (p. 819). Mas, também
consequências tenebrosas:

213
La gran industria y la gran agricultura explotada industrialmente actúan
de un modo conjunto y forman una unidad. Si bien en un principio se
separan por el hecho de que la primera devasta e arruina más bien la
fuerza de trabajo y, por tanto, la fuerza natural del hombre y la segunda
más directamente la fuerza natural de la tierra, más tarde tienden cada
vez más a darse la mano, pues el sistema industrial acaba robando
también las energías de los trabajadores del campo, a la par que la
industria y el comercio suministran a la agricultura los medios para el
agotamiento de la tierra (MARX, 1986, p. 820).

Engels, no ensaio O papel do trabalho na transformação


do macaco em homem já havia alertado para as consequências
dessas ações dos humanos.

Todos os modos de produção que existiam até o presente só


procuravam o efeito útil do trabalho em sua forma mais direta e
imediata. Não faziam o menor caso das consequências remotas, que só
surgem mais tarde e cujos efeitos se manifestam unicamente graças a
um processo de repetição e acumulação gradual. A primitiva
propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estádio
de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em
geral, as coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo
excedente de terras livres, que oferecia determinada margem para
neutralizar os possíveis resultados adversos dessa economia primitiva.
Ao se esgotar o excedente de terras livres, começou a decadência da
propriedade comunal. Todas as formas mais elevadas de produção que
vieram depois conduziram à divisão da população em classes diferentes
e, portanto, no antagonismo entra as classes dominantes e as classes
oprimidas (ENGELS, 2004, In Antunes, p. 32).

Nas críticas ao texto do programa do partido social-


democrata alemão, em relação à natureza, questiona a afirmação
de que o trabalho é a única fonte de riqueza, de toda a riqueza. 2
Marx contesta tal afirmação diferenciando valores de uso e de
valores de troca.

2
Diz o texto: “O trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda a cultura e, como o
trabalho produtivo só é possível na sociedade e pela sociedade, o seu produto
pertence integralmente, por igual direito, a todos os membros da sociedade”.

214
O trabalho não é fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores
de uso (os valores de uso são, de fato, a riqueza real!) tanto quanto o
trabalho, trabalho que é expressão de uma força natural, a força de
trabalho do homem. Esta frase repisada encontra-se em todos os
manuais e só é verdadeira se for subentendido que o trabalho é anterior,
e é executado com todos os instrumentos e procedimentos que o
acompanham. [...] Só enquanto o homem se coloca, desde o início,
como proprietário em relação à natureza, a fonte primeira de todos os
meios e objetos de trabalho, e a trata como se ela (a natureza) lhe
pertencesse, é que o seu trabalho se converte em fonte de valores de
uso e, portanto, em fonte de riqueza (MARX, 1975, p. 10).

A educação aparece nas proposições do programa, na


proposição de uma educação popular igual para todos a cargo do
Estado, contestado igualmente por Marx. Em primeiro lugar,
através de perguntas como se “as clases altas sean obligadas por la
fuerza a conformarse con la modesta educación pública” nas quais
estão os filhos dos operários e campesinos; em segundo:

Eso de ‘educación popular a cargo del Estado’ es absolutamente


inadmisible. !Una cosa es determinar, por medio de una ley general, los
recursos de las escuelas públicas, las condiciones de capacidad de
personal docente, las materias de enseñanza, etc., y velar por el
cumplimiento de estas prescripciones legales mediante inspectores del
Estado, [...] y otra cosa, completamente distinta, es nombrar el estado
educador del pueblo! Lejos de esto lo que hay que hacer es substraer la
escuela a toda influencia por parte del Gobierno y de la Iglesia. [...] el
Estado el que necesita recibir del pueblo una educación muy severa.
(MARX, 1975, p. 31).

2 A Natureza de/em três pesquisas em Educação Ambiental

Nesta parte apresentamos a natureza de/em pesquisas que


partem de Marx enquanto referência teórica 3.

3
A Pesquisa de Carlos RS Machado, de Fabiana Dendena e Daiane Gautério no
PPGEA/FURG.

215
2.1 A Educação e a Natureza na/da Cidade 4

A pesquisa parte das contribuições de Henri Lefebvre sobre


a cidade para evidenciar em suas obras sobre a educação e a
natureza. Disso diríamos que, a cidade é o local no qual as pessoas
vivem e relacionam-se em/com determinado ambiente natural e
social. Nela se produz e re-produz a vida como um todo. Cada qual
tem uma história, tradições e culturas constituídas através dos
tempos que lhes dão "um charme particular". Mas ela é obra dos
cidadãos, daqueles que agem, mas também daqueles que nela
apenas habitam. Na cidade desenvolve-se um processo educativo
que produz esta "base" através das atividades de ensino (nas redes
de ensino e escolas) como também, no espaço mais amplo como
produção de hegemonia, de consenso, etc., também através das
relações sociais no cotidiano e no vivido. Há uma tripla relação
neste processo educativo:
A primeira da educação que se desenvolve (enquanto
educação e o ensino) através do conteúdo da política educacional
(como policy) e sua relação com os cidadãos (como politics), ou seja,
relações de poder e de produção da dominação e da hegemonia da
cidade sobre seus habitantes. A segunda das relações da coletividade
(que não é única, mas diversas) com o meio ambiente/natureza e
neste de cada natureza humana consigo, com os outros e com a
natureza. A terceira decorreria destas abstrações relacionais com o
vivido de cada um de nós e de todos coletivamente.
Portanto, pensar a natureza da cidade capitalista e nela essa
tripla relação da educação que se desenvolve (em seu interior)
como resultante das ações humanas em sociedade e em
determinado contexto social e natural é pertinente à produção do
“outro mundo possível”. Buscando avançar nessa reflexão fez-se
necessário, e útil, as contribuições de Marx das três naturezas. No
desenvolvimento desta pesquisa, atualmente em sua ETAPA III,

4
Pesquisa em desenvolvimento por Carlos RS Machado com apoio financeiro
do CNPq (PIBIC/FURG (2007-2008).

216
avançamos nos seguintes aspectos: concluímos a pesquisa das/nas
obras de Lefebvre sobre a cidade, a natureza e a educação (Etapa
I), e avançamos para o estudo da cidade do Rio Grande, e das
relações de intercâmbio com cidades cubanas (Santa Clara e
Cienfuegos), das quais produzimos com a primeira uma proposta
de intercâmbio, e propostas de pesquisa, de aprofundamento do
estudo de caso (ETAPA III), da cidade do Rio Grande e de Santa
Clara, para os anos de 2009-2011. Neste contexto, a dissertação de
Daiane Gautério, é um exemplo. Outro é a monografia de Diego
Cipriano sobre a História Ambiental da Cidade do Rio Grande
(2009).

2.2 A inclusão e a exclusão nas políticas e nas legislações da


educação ambiental e da educação especial5

A pesquisa realizada por Fabiana Dendena parte de


questionamentos e reflexões da autora em seu processo
constituinte como educadora ambiental. Ou seja, é da própria
natureza da pesquisadora, enquanto vivência cotidiana e acadêmica
que o ambiente e a educação ambiental tornem-se relevantes como
foco de sua pesquisa. Reflexões e comprometimento ampliados no
mestrado, ao visar, então, refletir sobre a natureza da inclusão e da
exclusão nas políticas educacionais de Educação Ambiental e de
Educação Especial desenvolvidas numa sociedade capitalista –
como a brasileira do fim da ditadura até o presente. Depois de
constituir “um pano de fundo” histórico e da sociedade do período
descrevendo a trajetória das duas temáticas no campo educacional
(a educação ambiental e a educação especial) avança para a análise
documental e legal que lhes dão substância institucional. No caso,
analisa documentos oficiais, como as políticas públicas nacionais e
a legislação educacional brasileira, produzida ao findar a ditadura
militar (1988), a nova Constituição Federal e o recente documento,

5
Projeto de pesquisa desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da FURG.

217
ainda em produção, das Diretrizes Educacionais da Educação
Ambiental, dentre outras.
Seus questionamentos incidem sobre a naturalização e
normalização das injustiças às quais apontam para o conformismo
de que “nada mais há por fazer” e, portanto, de adaptação e
aceitação das relações sociais da sociedade capitalista. Sendo
assim, a pesquisadora ao problematizar a Educação Especial e a
Educação Ambiental numa perspectiva inclusiva, a partir da
evidência da natureza das mesmas no sistema vigente, busca uma
“nova” percepção social, em que igualdade e diferença não sejam
entendidas como homogeneização e desigualdade, seja entre os
humanos (natureza humana), bem como desses com a Natureza
(física, exterior) e, ainda mais, com a natureza criada. Nesse
aspecto, problematiza a própria natureza das normas e regras que
induzem para perspectivas homogeneizadoras e justificadoras das
desigualdades, bem como a não aceitabilidade das diferenças e
diversidades humanas.
Enfim, as reflexões e a pesquisa inserem-se no esforço de
produção, nesse campo e com essas relações, de aspectos ao “outro
mundo possível” com uma “democracia sem fim” (SANTOS
1998), na qual todos estejam incluídos, sejam as pessoas com
alguma “necessidade especial”, bem como a “natureza” na vida e
na sociedade humana, para além das perspectivas tradicionais que
subordinam ambos a uma pretensa normalidade enquanto padrão
enquadrador dos diferentes de forma pejorativa. Portanto, sonha e
pensa uma sociedade inclusiva, seja da natureza, bem como dos
indivíduos como horizonte de suas reflexões. A pesquisa e as
reflexões de Fabiana Dendena foram concluídas em 2008, e
defendidas em sua dissertação de mestrado na Universidade
Federal do Rio Grande, em seu programa de Pós-Graduação em
Educação Ambiental.

218
2.3 A educação e a natureza nas políticas da cidade

A dissertação de Daiane Gautério 6 sobre a Educação


Ambiental do município de Rio Grande entende as políticas
“públicas” como produto do trabalho humano (natureza
produzida), a partir da idealização pelo coletivo, ou por alguns em
benefício do coletivo, que se transforma em prática na medida em
que estes assumem espaços de governo e implementam ações em
decorrência de suas propostas, programas e leis que instituem. A
análise das políticas pode assim, evidenciar as utopias, concepções
e objetivos mais de fundo dos implementadores das políticas.
Parte do pressuposto de que o homem, enquanto natureza
humana,ocupa seu papel social transformando seu trabalho ou
atividade em produto da coletividade. O homem não cria somente
o produto, ou o resultante material fruto do trabalho braçal, mas
também o que concebe, a ideia precursora, a utopia (realizável).
Assim, concebe e vive de forma intensa e também subjetiva,
produzindo e reproduzindo-se continuamente enquanto natureza
humana e social.
Atualmente vivemos em uma época de transformação,
tanto nos estudos teóricos, que envolvem os problemas ambientais,
quanto em relação às ações e tentativas de mudanças
comportamentais, ligadas a eles. Divergem das concepções
biologicistas e comportamentalistas, ao dizer que, a natureza é
parte do homem e, assim, passível de ser usada conforme como
desejado; de outra, ao enfatizarem a necessidade de mudanças
individuais e coletivas nos hábitos cotidianos, tais como a
reciclagem, a diminuição do uso da água, consumo controlado,
etc., como alternativas à não-destruição do meio ambiente. A
perspectiva transformadora, utilizada pela pesquisadora, parte de
uma visão mais complexa, pois relaciona a natureza (ou as
naturezas) com os desafios políticos, sociais, culturais, econômicos

6
Dissertação O concebido e o vivido nas políticas de Educação Ambiental no município
de Rio Grande – PPGEA/FURG.

219
e ecológicos, aos quais estamos diretamente envolvidos. Em sua
utopia está a emancipação do sujeito, que se quer crítico e
comprometido com as questões sociais/ambientais nas quais está
imerso. Loureiro diz que “o projeto de emancipação humana
necessita estar associado ao projeto de defesa da natureza”, um não
existindo sem o outro. Tal dissociação ou fragmentação implica na
reprodução do modelo capitalista vigente.
Concretamente, seu projeto de pesquisa investiga as
concepções político-pedagógico-ambientais das secretarias (SEMA
e SMEC) e suas inter-relações em documentos fundamentais da
cidade do Rio Grande constituídos pelos gestores municipais das
duas últimas gestões à frente da cidade (2000-2004; 2005-2008).

Considerações Finais

Em primeiro lugar, podemos afirmar que há indícios da


discussão de Karl Marx sobre a Natureza. Mostramos que, em seus
primeiros textos, ele evidencia uma relação dos humanos com a
natureza física, da qual aqueles “saíram” a partir das atividades e
processos que os diferenciaram dos animais. O texto de Engels
utilizado exemplifica tal questão. No entanto, o trabalho de
transformação da matéria pelos humanos em bens e coisas úteis
tem como consequência a própria transformação desses neste
processo. Mas, a criação humana é mais do que objetivos
materiais, coisas e bens, pois a produção humana é também
simbólica, envolvendo afetividade, a linguagem, as próprias
relações sociais, além das cidades, dos sistemas sociais, etc. Neste
sentido, afirmamos, então, a existência de três naturezas, conforme
a produção de Karl Marx, às quais se articulam dialética e
contraditoriamente em cada contexto e realidade social, bem como
pela relação que as classes sociais estabelecem. Além disso,
devemos considerar os processos históricos que levaram à
institucionalização de determinadas relações e concepções da/com
a natureza em cada realidade.
Em segundo lugar, como já vínhamos argumentando nas

220
partes anteriores, tal perspectiva é bastante sugestiva para
pesquisas sobre a temática da educação ambiental. Com a pesquisa
de Carlos RS Machado, por exemplo, evidenciamos a utilidade do
referencial no estudo da cidade capitalista, portanto, da natureza da
cidade, e nessa da educação enquanto processo político permeado
de contradições e pelos interesses das classes e grupos sociais em
conflito. Fabiana Dendena mostra-nos a nuance da articulação da
exclusão com a inclusão no capitalismo. Foca, no entanto, como as
políticas educacionais especiais e ambientais, como campos de
estudos tradicionalmente “excluídos” incorporam-se ao campo
educacional, portanto, são incluídas e nesse processo alteram-se
em seus pressupostos transformadores. Por fim, Daiane Gautério
utiliza o referencial para evidenciar a natureza da/nas políticas
públicas de uma gestão municipal que está à frente da cidade do
Rio Grande há 8 anos. Busca perceber, dessa forma, as
potencialidades e contradições dessas políticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Expressão Popular, 2004.
DENDENA, Fabiana. A inclusão e a exclusão nas políticas educacionais e nas
legislações da educação ambiental e da educação especial em uma perspectiva
transformadora. PPGEA/FURG, 2007.
GAUTÉRIO, Daiane. O concebido e o vivido nas políticas de Educação Ambiental no
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia. Lisboa: Gadiva/Fundação
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www.vetorialnet.com.br/~editfurg/
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