Sie sind auf Seite 1von 68

APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

Apontamentos
aulas de Direito da Família,
2009/2010

AUTOR

PROF. MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA

1
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

“A minha família é o povo do mundo”

Adelaide Teles, que foi autarca da Graciosa

2
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Aulas teóricas nºs 1 e 2

2009
Ao iniciar o Curso de Direito da Família parece-me fundamental, não só
apresentar o objecto do seu Programa, mas ainda a justificação do mesmo.
O objecto do Direito da Família não é difícil de identificar nesta fase em
que os alunos se encontram, nos últimos anos da licenciatura.
Afirmei antes, quando tive ocasião de dar Aulas de Direito da Família ao 4º
Ano, que inserido naquela fase, o Curso só teria sentido como uma
disciplina de cúpula e de reflexão.
Terei admitido implicitamente que fosse possível um outro entendimento,
menos crítico, da matéria. Terei sobretudo feito apelo à minha própria
experiência, de quartanista desta Casa quando o enfrentei, à conclusão que
então me pareceu evidente, de que a maturidade filosófica, social, jurídica,
era incompatível com um estudo anterior.
Mas, menos de um ano passado sobre esse episódio não partilho tal
opinião. Afinal, iniciamos a Filosofia do Direito nos tempos do 1º Ano e só
ganhamos com a experiência formativa. A reflexão sobre os institutos
sociais e os seus fundamentos, que o Direito da Família propicia, requer,
sem dúvida, espírito crítico, capacidade de compreensão dos fenómenos
sociais, políticos, capacidade de abstracção, maturidade para o ensaio
inevitável de caminhos alternativos, sempre que uma solução mostra não
satisfazer as solicitações cidadãs. Mas tal acontece em todo o Direito.
Onde está então a diferença?
Diria que no modo como aqui somos interpelados. Pois em Direito da
Família não é um instituto ou um acervo delimitado dos mesmos que se
encontra sob a espada de Dâmocles da mudança. São todos, ou quase todos.
Dieter Schwab é um Autor alemão, um grande civilista, um nome maior do
jusfamiliarismo. Quando confrontado com a missão de introduzir a este

3
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

ramo escreveu que em nenhum outro lugar encontrava o Direito Civil tanta
alteração ao longo do último século, em nenhum outro ramo fora tão
favorável, também, à aceitação de tal mudança. 2009
Sugiro que leiam Schwab, mas reconheço que bem podemos acompanhar
as linhas mestras do seu pensamento de antemão.
O Direito da Família cura de uma realidade institucional que tem sofrido
enormes mutações. Não é mais a Família em sentido biológico apenas,
embora essa componente biológica seja essencial. Não preciso de recordar
as consequências sociais negativas que resultam do abandono, do repúdio
de um filho, de um parente próximo. Inscrita no código de valores que
sufragamos desde logo em sede constitucional há uma axiologia que tem
por base a realidade familiar próxima. E, subjacente à mesma, não está
apenas (embora o esteja de algum modo) a solidariedade, o espírito de
entreajuda, que invectiva a não abandonar um pobre, um indefeso. Há mais
do que isso, ainda que se afigure difícil determinar o quê, qualificar o
fundamento deste dever para com a Família.
Nos tempos mais recentes fala-se e escreve-se dobre a importância dos
afectos no Direito. Estes afectos seriam o alicerce a partir do qual se pode
erguer a rede de obrigações de ajuda entre pais e filhos, netos e avós, e
muitas outras relações de verdadeira proximidade vivencial.
Mas a delimitação dos contornos dos afectos é um Sísifo. Em que consiste.
É verdade que já Aristóteles sustentava uma ética de responsabilidade pelas
emoções e pelo modo como as exprimimos em termos sociais.
Em todo o caso, a ideia releva de uma outra ideia anterior, que ganhou
foros na doutrina anglo-americana e também europeia a partir dos anos 60.
Trata-se da ideia da concepção do homem como ser cultural, social, em
grande medida produto do meio que o recebe e do qual partem os influxos
essenciais na construção da sua personalidade.

4
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Esta ideia tem repercussões imensas na visão que se tenha da função


educativa da Família (aqui muito diferenciada das teses tradicionais da
construção da personalidade pelo arbítrio) e sobretudo, abre as portas a 2009
uma concepção familiar que muda. Pois não só a identificação de cada ser
humano, mas por igual a do par humano ou de outra forma de agregado
pela qual opte cada um, dependem de uma escolha social que nada, a não
ser a opção de cada ser humano, condiciona. É este afinal o caminho que
conduz à persistente tentativa de opção por formas institucionais
moldáveis, extensíveis no seu campo de aplicação a outras situações.
Quando se fala no matrimónio homossexual, na adopção por esse modelo
de par, está-se neste ponto: clamando pela integração de um outro modelo
de par na instituição matrimonial.
Mas será só isso que acontece? Ou, admitindo-o, é antes o Casamento que
se altera, no sentido inicial com que se edificou sobretudo a partir do
cristianismo, de união de carne e leito, de projecto de vida que comporta,
senão a vivência no seio de um figurino sexual determinado, pelo menos
um ritual de vida que o tem como referente e do que, afinal, apenas um
pouco se afasta, quando assumidamente se afasta?
Chegam-nos neste tempo novas edições os Direitos das Famílias. Em
Portugal, esteve em Abril a jurista Maria Berenice Dias, que escreve sobre
o Direito das Famílias. Porquê? Porque quer acentuar a diferença, a
pluralidade de perspectivas.
Creio que é claro para a Autora que é correcto, possível admitir
perspectivas várias sobre o género, sobre as possibilidades de modelos de
matrimónio e instituições afectivas abrangíveis por essa casa comum que
seria a Família.
Não tenho, porém, a opinião de que a Constituição da República
Portuguesa opte por tal caminho, vá por aí. Creio que a ideia de Casamento
está entre nós cunhada pela separação firme entre os dois sexos, sem

5
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

prejuízo de uma total falta de legitimidade para imputarmos ao legislador


constituinte preconceitos impeditivos de outras construções jurídicas para
situações diferentes. Justiça distributiva, sim, porque se entende que são 2009
diferentes os sexos.
E justiça distributiva que requer o estudo e conseguinte conhecimento das
diferenças aí onde estas se evidenciam. Ora, como veremos adiante, há uma
pluralidade de formas de modelação jurídica da realidade familiar entre
nós: o Casamento, a União de Facto, outras formas de Relação
Parafamiliar.
É verdade que uma é dominante e as outras se ofuscam pela parcimónia.
Será este aspecto critério de justificação para um seu estudo esmorecido
também?
Não creio. Lembro Foucault, a ocultação dos temas que a sua supressão
científica, ou minoração dogmática, vem provocar. É certo que o
casamento é o modo de Família mais expressivo e que as outras formais se
subalternizam em dimensão. Mas não creio que seja igualmente certo que
exista hoje uma simetria entre o carácter mitigado na experiência social das
outras uniões para além do Casamento, e a importância que vem registando
como tema de politologia, política legislativa também. Enfim: como tema
que provoca a discussão acesa acerca do entendimento constitucional e se
mostra susceptível de trazer para a agenda da opinião pública muito mais
do que os temas “partidariamente correctos”, aqueles que um regime
partidocrático impõe e para os quais, por regra, não se encontra na ordem
social surto de resposta autónoma.
Assim, penso que a Família como tema de reflexão, a inclusão dos
elementos do seu objecto, são determinantes. E por aí se começará,
portanto.
Estamos em plena Dogmática Geral, portanto. Preferi dar ao primeiro
Capítulo um outro título, Introdução às bases do Direito da Família. É que

6
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

me pergunto se, afinal, teremos condições para neste modesto tempo que
nos é destinado penetrar verdadeiramente em temas de dogmática especial
com o apuro que esta requer. E, nesta fase primeira, afora o panorama da 2009
Família legal contemporânea, são as questões tradicionais que os ramos do
Direito convocam que nos ocupam.
Assim: a Família na Ciência Jurídica, as ligações ao direito privado e a
crescente ligação ao direito público, Constitucional e Penal. Hoje, estas
relações são absorventes, muitas vezes esgotantes. Assim acontece, como
veremos, com os temas de Direito Internacional, com as Convenções
Internacionais que proliferam, relativas a Mulheres em risco (Tráfico,
Escravatura) e a Menores, também aos Idosos. Não esquecendo a ligação
ancestral do Direito da Família português ao da Santa Sé, que se modificou
de modo importante com a Concordata 2004.
Mas as ligações ao direito privado permanecem. Não sei dizer em que
medida proliferam, se proliferam. Os regimes de bens são múltiplos, a lei é
permissiva, como veremos, de uma grande amplitude nesse domínio. Mas
será, na prática, tão importante assim o regime de bens num Casamento que
tende para a fragilidade, que surge no horizonte legal, vivencial dos
nubentes com medidas de dissolução ágeis e que parece vocacionado para a
precariedade? Não estou emitindo um juízo de valor sobre a opção
legislativa. Mas olho as novas normas no diálogo que impõem com o
direito anterior e pergunto-me acerca do carácter em parte semântico que
este vem, em alguns aspectos, assumindo.
Claro que a Lei do Divórcio, entrada em vigor há menos de um ano,
desempenhou aqui papel fundamental. Estudá-la-emos a seu tempo.
Ainda no âmbito privado, surge a ligação ao direito sucessório. Tão
importante para alguns autores que se criou, designadamente na nossa
Faculdade, uma disciplina de Direito da Família e das Sucessões.

7
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Este Direito não mudava o conteúdo das normas vigentes, mas procurava
centrar o núcleo de cada um dos Direitos em conexão com o núcleo do
outro. Obnubilando os elementos que, tanto no Direito da Família, como no 2009
das Sucessões, relevavam dos contributos dos momentos liberais e de
vanguarda da legislação, acentuava o seu carácter institucional. Por este
modo, centravam os estudantes a atenção nos elementos em que a vontade
dos progenitores, titulares de bens, se fazia incidir sobre o proveito dos
membros do seu agregado. Membros face aos quais todos os demais
adquirentes mortis causa de bens eram figuras alheias, de móbil
concorrencial e compreendidas numa lógica hereditária que sublinhava a
sua distância face ao fenómeno sucessório em questão.
A seu tempo veremos das consequências de uma tal compreensão.
Enfim, analisaremos as fontes essenciais do Direito da Família, a
Constituição e o Código Civil. Se estivessem na Alemanha (suponham que
haviam tido a dita de serem alunos de Schwab!...) encontravam com muita
probabilidade já um Capítulo intitulado Enquadramento Constitucional
Que inaugurava as fontes do Direito da Família. Hesito em ir por aí.
Reconheço a supremacia dos princípios constitucionais, mas tenho também
presente que a interpretação da Constituição se completa, nesta matéria,
com um a plêiade de conceitos oriundos do direito civil O Código Civil
fornece a primeira pista, logo no princípio do Livro IV, ao enunciar as
fontes das relações jurídicas familiares. Estudar-se-á aqui, pois, o
parentesco, o casamento, a afinidade, a adopção. Diria: numa primeira fase,
o parentesco, o Casamento. São os conceitos que referenciam situações e
instituições determinantes na compreensão da Constituição, de todo o
Direito da Família.
Mas sob que perspectivas?

8
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Vejamos em traços muito gerais o objecto das leis a trabalhar, os regimes


jurídicos que nos vão ocupar e tentaremos surpreender a partir daqui um fio
condutor. 2009
Inicialmente, quando se estudava Direito da Família nas Faculdades de
Direito, pegava-se no Código Penal (de Seabra, depois no Código Civil de
1967) e no caso deste último, abria-se logo o Livro IV. É verdade que nessa
altura já se tinha aprendido o objecto do Livro da Família, como sub ramo
do Direito Civil, ou mesmo tomado contacto com os conceitos de
casamento, a propósito dos negócios jurídicos, e das relações familiares
bem como da condição de menor, do poder paternal, estudando tantíssimos
institutos nas cadeiras de introdução ao direito privado.
Mas aqui o ângulo de observação é outro.
Exemplificando. Claro que quem contrai casamento cria laços familiares,
constitui uma família. Mas que características tem esta?
Até aqui, referimos a pluralidade da Família na perspectiva de um possível
desdobramento de formas de manifestação. Agora, porém, o foco da análise
é diferente. Trata-se de ver a família não através da descrição dos seus
factores constitutivos, mas sim do desempenho social que exibe,
independentemente do modelo sexual. Ou melhor: atendendo a que, na
sociedade dos nossos tempos, este outro problema coloca-se
essencialmente em relação às famílias tradicionais. A elas afinal nos
devemos dirigir, por uma questão de realismo.
É uma família autocrática, exprime a autoridade de um dos seus membros,
aquele que tem mais poder intelectual, financeiro, mediático? Faz sentido
dizer que estas pessoas contrataram, como afirma o Código, ou o acordo
que celebram tem outro sentido?
E se duas pessoas decidirem viver juntas e não casar? Há vínculos jurídicos
reconhecidos pela lei apesar desta situação, que há décadas se denominaria
de ignomínia (“um escândalo”, na picardia de Eça de Queirós, mas sem

9
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

prejuízo de recordarmos que o actual Código Civil ainda não abriu mão,
como veremos, da expressão concubinato), um concubinato, uma
imoralidade com algum reflexo jurídico? 2009
Vemos então que o anátema social existe, quer em razão do modelo de vida
sexual, quer das formas de organização interna. Uns aceitam a igualdade
plena dos cônjuges, dos unidos de facto, outros rejeitam-na e persistem em
quadros familiares que exibem paradigmas anteriores. A autoridade do
marido/homem paterfamilias é uma relíquia que perdura em vastos meios.
Claro que não pode ser assim, pois há uma lei sobre uniões de facto, o que
mostra que colhem a respeitabilidade do legislador, reflexo seguro do
respeito social. Mas as reticências mantêm-se. Há quem considere a lei um
erro. Independentemente de formular agora juízos sobre ela, uma coisa
parece certa: há hoje mais lei entre o céu e a terra do que o Livro IV do
Código Civil. Ora, deve esta matéria albergar-se na nossa disciplina? Se
provarmos que se deixa cobrir por um denominador comum, a resposta será
afirmativa. Mas não basta ser legalista e argumentar com a existência de
uma lei. O legislador pode ter criado um regime obsoleto, ou
terminologicamente indutor em erro. E que fazer nesse caso? Só se
detivermos uma matriz dogmática segura poderemos opinar. Ora isso
implica um conceito material de Família para efeitos de Direito.
E o parentesco, que importância tem para além das relações mais estreitas
que marcam o núcleo familiar nos nossos dias? Faz sentido conferir o
poder paternal a um tio que vive noutra cidade ou mesmo noutro país e mal
conhece o sobrinho? Não seria mais realista recorrer de imediato, em tais
casos, a instâncias da comunidade, experientes, pedagogicamente
apetrechadas para ajudar uma criança, um jovem, disponíveis para
acompanhar os seus conflitos? Ou antes dá-lo de adopção a pais de vocação
que o desejem? Ou explorar as potencialidades que a nova Lei do
Apadrinhamento Familiar desde ontem nos oferece? *

10
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Mas olhando o próprio casamento, à primeira vista, o reduto da estabilidade


dogmática da nossa matéria. Deverá ele continuar sendo o casamento de
pessoas de sexo diferente ou abre-se a constituição, a sociedade portuguesa, 2009
a uma inflexão neste domínio? E onde encontrar a sede da resposta: na
Constituição, num sentimento social evidente, ou aceitar que subsistem
dúvidas, cabendo saber de que grau: grande, poucas…?
E será que anda bem o legislador em aceitar que se dissolvam com
facilidade as sociedades conjugais, ao fim de um ano, como admite o
Decreto que a Assembleia da República, após o veto presidencial, e não
obstante o mesmo, tendo vindo a converter-se em Lei por decisão da
Assembleia da República (Lei do Divórcio) Decerto que este veto, político,
exprimiu a posição do Presidente e mais do que a sua própria, a posição de
um espectro de que se entende representativo, o que aponta na direcção de
que a nova Lei irá, a entrar em vigor, quebrar nexos importantes na
sociedade portuguesa.
Quem é esta Família que a um tempo se alarga e o retrata na lei, que se
demite da vocação à perpetuidade e o quer retratar mais incisivamente na
lei, que legisla em nome e no interesse dos menores e tantas dúvidas tem
por resolver a propósito das decisões que toma?
È a personagem central da nossa cadeira. Interpelada por nós, estudantes,
docentes, e interpeladora, já que requer opinião para os seus contornos que
vêm mudando em crescendo. Recorde-se que a Lei das Uniões de Facto
mudou, mas mantém-se agora inalterada desde 2001. Não obstante,
verificou-se tentativa recente no sentido do seu alargamento. E, apesar de
não ir por aí o sentido imediato do caminho legislativo, far-se-á uma
referência. Pois, afinal, é o sentido pulsante de um espectro social que aí se
exprime e sendo-o, convém proceder à sua ponderação. Os temas centrais
são os que referimos. Vendo bem, é todo o Direito da Família que eles
convocam, pois não é possível trabalhar isoladamente os vários institutos.

11
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

II

Direi pois que duas características marcam o recente Direito da Família,


instabilidade e mudança legislativa efectiva, arrisco creditar que tantas
vezes algo precipitada.
Mas tomaremos um ponto de referência, já que o nosso âmbito é
dogmático, e a história vem a propósito na medida em que prove o
problema, a reacção ao problema.
O ponto vai ser a Reforma de 77. Com ela não nasce o Código Civil, mas
renasce o mundo do Direito da Família adequado à Constituição de 76.

Vejamos o que acontece.


Entrara em vigor a Constituição de 76. Com ela, surgia, entre os Direitos
Fundamentais, o direito à igualdade perante a lei, o direito a constituir
família, dentro e fora do casamento e o direito a contar com um regime
igualitário dessa mesma relação matrimonial, ainda que o sistema formal
adoptado para contrair casamento não tivesse sido o mesmo, o que
acontecia, no caso dos casamentos católicos, que a Constituição reconhece,
agora de novo, após a revisão da Concordata com a Santa Sé.
Quando olhamos esta Reforma recordamos nomes muito importantes da
Faculdade de Direito de Lisboa, e desde logo, o da Senhora Profª. Isabel de
Magalhães Collaço, que presidiu, o da Senhora Doutora Maria de Nazareth
Lobato Guimarães e o da Dra. Leonor Beleza, Assis então assistente de
Direito da Família e especialista da matéria junto da Comissão da Condição
Feminina.

12
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Lendo o preâmbulo da Reforma na Parte que respeita ao Direito da Família,


que é aliás uma leitura essencial nesta fase primeira do Semestre,
verificamos que os temas que marcam a Reforma são o tema da igualdade e 2009
seus reflexos na Família, bem como a proibição de discriminação entre
filhos nascidos dentro e fora do casamento, tal como, ainda, a questão do
divórcio e as novas modalidades e pressupostos da sua concretização.
Escrevia-se no texto do preâmbulo: “Deve, de resto, notar-se que na última
década se tem assistido em quase todos os países europeus a profundas
alterações do direito da família, determinadas pelo triunfo do princípio da
igualdade entre os cônjuges e pela revisão de muitas das soluções
tradicionais em matéria de filiação.
As soluções agora adoptadas puderam assim basear-se em larga e recente
experiência de sistemas jurídicos próximos do nosso”.
Mas a afirmação continha muitos laivos de modéstia, pois que esta
Reforma de 77 exprimia, diferentemente do movimento que percorria
muitos outros Direitos em sede de Família, a necessidade de ultrapassar
soluções inconstitucionais e implantar na ordem positiva o Estado de
Direito. Foi por isso uma Reforma funda, comparada com as suas
congéneres de outros países.
Desde logo, o princípio da igualdade entre os homens e as mulheres vem
determinar a sua não discriminação na sociedade conjugal. Marido e
mulher lideram esta sociedade conjuntamente, o que vale por dizer que será
inconstitucional uma norma (contida, por exemplo, em Convenção
Antenupcial, em acordo celebrado antes do Casamento, que estudaremos
adiante) de acordo com o qual o marido delegue na mulher, ou o contrário
(seria este contrário, presumo, o mais previsível, já que era a realidade
correspondente à experiência anterior) a orientação dos assuntos da família,
o modo de educar os filhos, os princípios de vida a que deveriam respeito,
como por exemplo a escolha da casa de morada…A lei retoma o filão

13
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

constitucional, ao estipular que ambos os cônjuges irão reger a vida


comum. Por outro lado, o papel de ambos é tido em igual dignidade,
mesmo na sua expressão financeira. A lei desinteressa-se de saber se os 2009
rendimentos obtidos provêm do trabalho de um ou de ambos, para efeitos
sucessórios. Aí, também o cônjuge sucessivo que não tenha trabalhado fora
de casa e não tenha sequer participado no montante hereditário através de
bens próprios, adquiridos por qualquer via (doação, herança…) estará na
primeira classe dos sucessíveis, ao lado dos filhos e mesmo em situação de
vantagem face a estes, já que é titular do estatuto de herdeiro legitimário ou
forçado e detém pelo menos um quarto dos bens que correspondem à massa
desta fatia hereditária.
Por outro lado, valerá, como fundamento de invalidade do casamento, o
erro sobre a pessoa do outro cônjuge, desde que corresponda a qualidades
suas essenciais e além disso, o divórcio passa a ser possível, não apenas nos
casos de incumprimento dos deveres conjugais, como ainda se porventura
um dos cônjuges não assentir em assentir num mútuo consentimento, desde
que a separação se verifique há pelo menos seis anos. Atentando a que o
Código de Seabra apunha aqui um prazo de dez anos, a diferença é
decisiva, direi que socialmente algo “labónica” ainda, mas favorecedora de
possibilidades e indicativa de que a lei não persiste em impor a solução do
“casamento para a vida” a quem não comungue desse projecto ou não parta
de ideias em tal sentido.
Ora pegámos na Reforma de 77. Certamente porque foi a mais importante
que ocorreu a marcar o essencial do Direito que ainda vigora.
Mas também porque não só por acção, como por omissão, ela marca a
agenda dos primeiros temas contemporâneos do Direito da Família.
Quando penso na Reforma de 77, recordo um texto, um livro, que foi
publicado poucos anos antes da entrada em vigor daquela. Um livro que li

14
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

na adolescência e (permitam a nota pessoal) ainda hoje acredito que foi um


grande responsável pela opção que depois fiz: Direito.
Trata-se da publicação do primeiro grande debate sobre estes temas a que a 2009
Faculdade de Direito abriu as suas portas em 1968 e no qual participaram
figuras de vários domínios, mas entre eles, juristas empenhados na
Reforma, naquele tempo.
O livro é “A mulher na Sociedade Contemporânea”, uma publicação da
Associação Académica de Direito de 1969.
Se (como espero) o percorrerem, verificarão que os grandes temas jurídicos
então eleitos são relativos ao estatuto da Mulher, como cônjuge, como mãe.
Eu assinalo aqui os de Elina Guimarães, que faria uma análise histórica
sobre o estatuto da mulher dentro do casamento, perante o marido e os
filhos. Elina Guimarães chama a atenção para que sendo, “dentro da sua
época”, o Código Do Visconde de Seabra (1867) uma legislação “aberta”,
persistia, em sede de situação jurídica das mulheres, em manter duas
grandes ordens de fundamentos de incapacidades discriminatórias das
mulheres. Por um lado, as que provinham logo do próprio sexo; por outro
lado as incapacidades em razão da família, como as que diziam respeito à
mulher casada e à mãe. Sobre estas últimas, focava a perda da
nacionalidade que o casamento com estrangeiro provocava (e que só
verificada uma situação de perda absoluta de qualquer nacionalidade podia
ser repristinada, mediante um processo de todo o modo complexo); o dever
de obediência ao marido, chefe da família, o dever de o acompanhar para
todo o lado, podendo até dar-se o caso de ser obrigada a regressar pela
força ao domicílio conjugal. A administração dos bens competia ao marido,
mesmo a respeitante aos seus próprios bens. E, recordando a Lei do
Divórcio, segundo a qual os fundamentos para a separação de facto eram
iguais para ambos os sexos, nem por isso deixou de apontar o dedo ao
novel então Código Civil de 1967, dizendo então: “…peço vénia …para

15
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

declarar que o art.º 1674º do novo Código, fulcro da situação conjugal, é


detestável: ‘o marido é o chefe de família, competindo-lhe nessa qualidade
representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum’”. 2009
Era, suponho, constrangedor já naquele tempo, reconhecer aqui, e ouvir de
uma das mais antigas e prestigiadas ex-alunas da Faculdade, que estava em
vigor a norma segundo a qual o marido podia requerer a entrega civil da
mulher no lar conjugal, caso esta o abandonasse sem “fundamentação
justa”.
A Dra. Maria da Conceição Homem de Gouveia voltou ao tema do estatuto
jurídico da mãe para advertir que “o poder paternal regulado pelo novo
código Civil [de 1967] deverá ser interpretado extensivamente, para poder
adaptar-se às realidades sociológicas”. Ou seja: não era, no entendimento
da Autora, inequívoca a interpretação da lei segundo a qual o estatuto da
mulher mãe ombreasse com o do marido em matéria de exercício do poder
paternal.
Mas do meu ponto de vista, o texto verdadeiramente premonitório que o
livro que venho citando contém é de uma escritora, Sophia de Mello
Breyner Anresen. Sophia intitulou a intervenção de “A Mulher na Cidade
do Homem” e começou por dizer que não vinha falar de direitos mas de
vocação feminina, se é que “existe uma vocação”.
A verdade, porém, é que falou de direitos da maneira mais incisiva.
Recordou o Evangelho, onde entre Marta, a fazedora de coisas materiais e
Maria, a teórica, a contemplativa, fora Maria a que “tivera a melhor parte,
pois foi ela que “ascendeu à contemplação do divino”. No entanto,
continuava Sophia, “as sociedades vêm tratando a mulher como se
fundamentalmente ela fosse Marta”.
Sophia terminava recordando que “a maternidade é missão e
responsabilidade”. E que por isso, através dos filhos que tem, conclui-se
que a história da mulher não é a sua história: “pois não existe o problema

16
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

da mulher, mas sim o problema da humanidade. E é por isso que o


Feminismo é um caminho errado e ultrapassado. Aliás sempre à roda das
mulheres se criaram falsos problemas”. E acrescentava também: “Assim 2009
muitas vezes se tem oposto vocação maternal e vocação criadora. Mas a
maternidade é plenitude e não mutilação, é maioridade e não menoridade. E
a maternidade que é escolha e vocação é também escolha e
responsabilidade”.
Eu admiro o carácter premonitório destas palavras, porque creio que elas
contêm a universalidade que os Direitos Humanos projectam. Ora a
dignidade das mulheres, a igualdade, surgem pouco depois na Constituição
de 76. Menos de uma década.
Por aqui nasceu a Reforma. Ou seja, pelos temas matriciais do Direito da
Família, pelo estatuto do pai de família, que aqui sai de primeiro plano no
palco e assiste á entrada de outro personagem. Que pela primeira vez não é
o único protagonista.
E os filhos?
Os filhos são, aqui, os menores ou os incapazes, aqueles que se submetem
ao poder paternal. Indo mais longe, poderíamos falar dos adoptados.
Reflictamos rapidamente sobre o contexto em que a sua situação se
modifica.
Claro que todos os seres humanos são ganhadores quando os direitos
fundamentais se impõem. Seria dislate afirmar que não têm eles um papel
relevante nesta nova geração jurídico-familiar. Têm-na, o que a igualdade
entre todos, independentemente do nascimento, dentro ou fora do
casamento, logo reflecte. Com a Constituição de 76 termina a distinção
entre filhos legítimos e ilegítimos Têm-na ainda, quando se implementa o
seu interesse na determinação de aspectos fundamentais da sua vida.
Porém, não são eles, os menores, os destinatários de um acervo legislativo
imediato, ou com o impacto fundamental.

17
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Em parte por esse motivo, o descontentamento e a inquietação neste nosso


Direito continuam. Recordo que faço prova da disciplina num tempo (anos
80) em que se procurava já ver o texto de 77 com um olhar avaliador. “É 2009
uma Reforma demolidora, desagrega um projecto, muito mais do que
constrói outro”, lembro-me de que sustentei na altura.
Mas a esta distância não penso assim, redimo-me da análise injusta que fiz
então. A Reforma de 77 não é vocacionalmente demolidora de um edifício
legislativo.
Por isso, antes de falar dos filhos, insisto ainda neste ponto do estatuto da
mulher, afinal, no estatuto de um dos titulares do poder paternal.
Edificou um Projecto, permitiu traduzir com mais autenticidade, no Direito,
as opções da vida e da experiência familiar que existiam, ou pretendiam
muitos, em Portugal. Pretendia-se igualdade entre todos os membros,
reflexo em cada solução jurídica do princípio da dignidade. Pretendia-se
maior abertura à possibilidade de exprimir o projecto de vida que o
casamento reflectia, ao invés da obrigatoriedade de uma retórica, absurda,
imposição de algo às avessas. Pode decidir-se mal ou bem, mas tem-se o
direito de tomar a decisão e a Reforma reconheceu-o. Mais: teve
consideração pelo empenho de cada cônjuge dentro do casamento e
assentiu em que o divórcio não era apenas uma questão de imagem social,
era para muitos, sobretudo para muitas mulheres, a perda de uma referência
em instituição. Elas a quem não fora reconhecido um papel cívico activo e
que muitas vezes tinham entrado na família do marido aos 14 anos, a idade
núbil então, em nome da sua alegada maturidade. Sem experiência
profissional, tantas; sem experiência de integrar mulheres nos seus quadros,
muitíssimos empregadores. Vedada mesmo a oportunidade de acesso a
várias profissões, era preciso reconhecer a medida fortíssima em que o
mundo de muitas mulheres portuguesas era a sua família, na melhor das
hipóteses, aliada a uma vago sonho de alternativa que quase nunca

18
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

concretizavam. Este mundo desaparecia entretanto e a Reforma de 77 foi


muito realista no seu contributo para esse desaparecimento, ao mesmo
tempo que tinha em conta o novo papel social e profissional, mas 2009
sobretudo, a nova dignidade e cidadania activa das mulheres: em matéria
de titularidade de bens e na sua administração, de compromisso na edução
dos filhos partilhada em co-responsabilidade, em matéria de definição das
classes de sucessíveis, onde o cônjuge sobrevivo passou para o primeiro
plano.
Mas não deixa de ser verdade que este pensamento jurídico estruturado,
entre nós e internacionalmente, sobre as mulheres e o Direito da Família
não tem a mesma vocação acolhedora quando pensamos nas crianças, como
a não tem em sede de estatuto dos idosos. E refiro a questão das crianças e
dos idosos lado a lado com o estatuto das mulheres porque, e apenas
porque, estamos falando de personagens que o universo da família integra,
ou seja, estamos vendo que direitos lhes são reconhecidos, em que medida
o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos se cumpre, por
um lado e em que medida se estruturam diferenças de carácter jurídico e
função protectora dos que em certa fase se mostre mais carentes. Neste
universo e sob estes pontos de vista, o estatuto das crianças e dos idosos
era, tal como o das mulheres, carente de atenção do legislador. Não
esqueçamos porém que o problema dos direitos das mulheres, o problema
da igualdade de género, é sempre e muito diferente. É transversal a todas as
faixas etárias, como o é a etnias, raças, culturas…Uma coisa é a
discriminação em função da menoridade, outra ainda, a discriminação que
acresce sobre uma criança do sexo feminino. Consciente de que é assim,
escrevia a Dra. Leonor Beleza logo após a entrada em vigor da
Constituição de 76: “ Parece-nos incorrecto o tratamento do sexo
exactamente ao mesmo nível de outras realidades. É que, por um lado _ e
sem contraposição com a ascendência, o território é de origem ou a língua

19
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

_ o sexo é um elemento essencial na vida da pessoa humana; é-se e ser-se-á


necessariamente diferente ser homem ou mulher, mesmo que a situação
actual de atribuições estereotipadas a um e a outra venha a desaparecer” 2009
(“O Estatuto das Mulheres na Constituição”, Estudos sobre a Constituição,
1977).
A Autora defendia a tese segundo a qual a questão das desigualdades em
razão do sexo acrescem pela especificidade que incorporam a todas as
outras desigualdades sociais e são, por isso, mais difíceis ainda de lidar, de
tentar debelar. Tese que, aliás, continua a fazer caminho, pesem as
dificuldades que se lhe deparam tantas vezes, talvez pelo nível de
abstracção que tem inerente, talvez, também, pela necessidade de
transcendência que impõe, ou seja, sair de si próprio(a) e da sua
circunstância e olhar o outro, ver o que marca um sulco às vezes bem
subtil, nem por isso presente, na vida, no Direito, claro.
As crianças começam então, nos anos 70, a ver despontar os primeiros
instrumentos internacionais a seu respeito. Os idosos, esses aguardam ainda
uma Carta de Direitos, que terá como sempre, em relação a instrumentos do
tipo, um papel sobretudo simbólico. Na verdade, se é muito meritório
acentuar o seu papel como personagens do Direito da Família, este
acentuação tem implícito o reconhecimento de conter uma espécie de
vanguardismo ainda e eu pergunto-me às vezes se não se dará o caso de,
pesem as intenções jurídicas também, maravilhosos que lhe estão inerentes,
não se tornar o que seria um risco terrível, algo perverso.
Mas o que nos importa saber, afinal, é a medida em que outras matérias
entram no Direito da Família. Referimos o casamento e a propósito dele o
estatuto de ambos os sexos e o das crianças.
Diria que esta dimensão das crianças está mais incrustada nos problemas
que ocupam o Direito do que possa à primeira vista imaginar-se. Pois a

20
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

humanidade inerente a cada criança determina o seu estatuto na família e


há com certeza reflexos em várias instituições que deverão ser atendidos.
È, porém, certo que há muito de contemporaneidade na descoberta das 2009
crianças enquanto titulares de direitos. Eu arriscaria dizer que isso é mais
visível no caso dos direitos das crianças do que no caso dos direitos das
mulheres. Aliás, já vimos que se reflectiu na maneira como são construídos
os estatutos de filiação, proscrevendo uma forma mais prestigiada que outra
e como também se olha na lei o poder paternal, tendo em conta os
interesses do menor.
Porém, este dado é bastante recente na cultura europeia. E não se dirá que
tem mais ou menos a mesma gestação que se encontra para o aparecimento
dos direitos das mulheres. Na realidade, penso que tem uma gestação mais
tardia e também mais lenta.
Há quem afirme que a cultura europeia encara a criança como um
homúnculo até ao século XVI. A pintura depõe muito nesse sentido: figuras
infantis apenas nas proporções, já que em tudo o mais se assemelham a
homens e mulheres. Esta forma expressiva que a Arte toma transpõe-se
para a vida real, ou mais precisamente, é um seu reflexo. Não havia,
entende-se, uma percepção social e normativa da criança nas suas
particularidades, como ser humano em formação e carente de um processo
educativo que ao Direito, designadamente, competisse conformar.
O Humanismo possuiu todas as condições para, olhando o Homem por
outro prisma, contemplar também os seres humanos em formação e
educação.
Ora, a realidade mostra que este caminho não foi percorrido. É verdade que
têm uma parte forte de razão as teses que afirmam que durante muito tempo
foram as crianças usadas como meio de superação de frustrações dos
adultos a cargo de quem estavam, os pais, naturalmente, incluídos. Mas, se
é certo que surgiram entretanto algumas obras demonstrativas da

21
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

importância que se vinha conferindo à missão educativa, esta era entendida


como a educação para a chefia da família, a defesa dos seus interesses e
subsistência, financeira e na projecção social. Será a educação daquele que 2009
detendo a chefia do agregado, participará activamente na vida da polis
democrática que emerge com a Revolução Francesa.
É verdade que a consciência progressiva dos Direitos Humanos, o seu
processo de sedimentação proporcionaram um outro enquadramento dos
problemas dos menores. Entre a época em que o pai de família podia a seu
alvedrio entregar o filho a uma instituição devido a alegado comportamento
ilícito, subrogando-se aos tribunais (um poder que o Código de Napoleão
vem indeferir em 1810), afinal e esta época em que os Tribunais de
Menores assumem uma intervenção tutelar educativa, ou de protecção,
como última instância, vai um fosso muito importante.
Esse fosso, exprime-o bem o caminho legal percorrido entre o Código de
Seabra e o Código Civil de 1967, que em muitos aspectos é considerado,
como vimos, altamente inovador.
Concluiríamos então que o tempo actual é um tempo que finalmente
centrou devidamente os problemas dos menores, e que, se dúvidas ou
arrimos de lacuna legislativa subsistem, são matéria a completar através das
adequadas reformas legislativas.
Não compartilho todavia deste ponto de vista. Creio que há ainda um
caminho, também de compreensão sociológica da situação dos menores,
em que as opiniões divergem; e que estas teses têm reflexos jurídicos. E
por isso há aspectos a clarificar, a corrigir.
Penso desde logo na controvérsia que hoje separa os entendimentos
comunitaristas e voluntaristas sobre os direitos das crianças.
Segundo a concepção comunitarista, os destinatários de políticas públicas
devem ser consideradas no carácter de membros da comunidade, pelo que a
consideração de um ser humano, ou de um grupo de seres humanos, dentro

22
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

da família, se compadece com este tipo de análise considerada adequada


pelos comunitaristas. Resta, porém, saber em que medida a família tem
capacidade de resposta a todos os problemas e realidades humanas que 2009
decorrem da personalidade, designadamente do menor. Creio que uma
resposta afirmativa é irrealista, redutora. É verdade que os menores se
desenvolvem dentro de pequenas comunidades e nelas se procede a uma
parte essencial do seu processo de socialização. Sendo assim, têm razão os
comunitaristas ao sustentar que será a família uma realidade essencial a
considerar neste domínio. Não só porque no seu interior se reconhecem
direitos, mas sobretudo porque é legítima representante de muitos
interesses e direitos dos menores perante toda a sociedade.
Mas aqui termina a parte aceitável do comunitarismo.
Pois ele padece dos problemas próprios de todas as correntes que,
integrando a pessoa numa comunidade, lhe esbatem ou mesmo tendem a
anular a autonomia essencial em cada momento da vida. O homem é um
ser comunitário mas sem que isso impeça ou muito menos exclua a sua
dimensão de ser único, e esse reconhecimento é a grande conquista dos
Direitos Humanos que esta tese arrisca comprometer.
Em segundo lugar, creio criticável ao comunitarismo ser ele muito vago ao
sustentar a ideia segundo a qual a integração das pessoas na sociedade
familiar permite que seja esta representativa, em última instância, e de
forma plena, dos seus direitos. Como, através de que mecanismos? E
sobretudo, como comprovar que o ser humano é um ser institucional em
todo o sentido?
Mas a tese comunitarista é uma tese que se reclama dos Direitos Humanos,
seguida por muitos autores e não poderá ser ignorada. O sentido da crítica é
evitar descambar num silêncio comprometedor. De facto, não defendo as
conclusões comunitaristas sobre os menores como democraticamente
possíveis, compatíveis com a Constituição.

23
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Já as teses voluntaristas singram pelo modelo oposto. De acordo com elas,


e recorrendo ao argumento de se poderem mais confortavelmente reclamar
dos Direitos na sua expressão clássica, direi real, como direitos pessoais e 2009
essencialmente compreensíveis nessa óptica, os direitos dos menores são
considerados na sua expressão de direitos individuais. A conclusão, porém,
deixa muito a desejar. O voluntarismo pondera os direitos dos menores mas
para concluir que as crianças não têm a capacidade de autonomia
plenamente desenvolvida. Sendo assim, aos pais competirá tomar a defesa
dos seus direitos. E isto vale por dizer que terão legitimidade para os
interpretar em todas as circunstâncias, com a ressalva, com certeza, dos
casos de incapacidade do próprio progenitor ou de quem o represente.
A tese não se adapta à realidade biológica, social das crianças. Reconhece-
se hoje que estas são seres em evolução, sim, mas municiadas com um
conjunto de direitos que exprimem uma personalidade existente na
infância. E sobretudo, é-lhes reconhecida a dignidade, também social, que
indefere a ideia desta tese.
Enfim, as correntes que hoje insistem em entender que a personalidade se
constrói através da afirmação participativa do menor na sociedade, para o
que contribui a sua afirmação dentro, também, do agregado familiar e as
consequências que deverão ser reconhecidas a tal afirmação.
São teses realistas e apelativas. O problema que colocam é ainda assim
difícil. Trata-se de saber a quem compete tomar posição, caso os menores
não colham na opção de um dos seus progenitores, ou de ambos, uma
solução compatível com o seu próprio projecto e detenham já idade
bastante para que se torne relevante, pertinente ouvi-lo.
Estas reflectem-se já nos instrumentos internacionais, se bem que de modo
não muito assertivo. Assim, a Convenção Europeia dos Direitos das
Crianças não torna claro o papel que deva cometer-se realmente à criança
neste processo de decisão. Concretizando: posto que o menor não se mostre

24
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

de acordo com os pais em relação a aspectos da sua realização e


desenvolvimento, como são os respeitantes ao ensino que irá ter e à
educação religiosa que lhe será ministrada, como decidir? Compete ao juiz 2009
tal decisão? A verdade é que o juiz, tendo por si a vantagem da isenção
face a possíveis interesses que as opções dos pais reflictam, não tem
decerto um conhecimento do menor que lhe permita tomar com grande à
vontade posição no processo decisório. Sempre se poderá dizer que tem o
juiz a possibilidade, mesmo o dever, de se fazer acompanhar na formação
deste processo decisório pelo conselho de família, por técnicos de
psicologia, pedagogos qualificados. Mas este aspecto, que aliás já a lei em
vigor contempla, não contém sortilégios: Há aspectos educativos de grande
melindre sobre os quais sempre, em última instância, se coloca a alternativa
entre a outorga aos pais ou a quem os represente e a ênfase reconhecida à
vontade em sentido diverso do menor.
Enfim, a propósito dos menores e do seu reconhecimento social e jurídico,
gostava de vos dizer que, não obstante a importantíssima movimentação
jurídica que se está a verificar nestas últimas décadas em torno da
consciência disseminada dos seus direitos, não compartilho a ideia
desresponsabilizadora e maniqueísta que permite um juízo maniqueísta
sobre o “passado” e um presente que caminha em direcção do mirífico…
Infelizmente, sou um tanto menos optimista. Prefiro reconhecer que há uma
consciência social e sobretudo, instrumentos jurídicos que representam um
progresso incomparável. Os nossos Tribunais de Menores fazem muito
pelos direitos das crianças, como veremos Mas, caso se proporcionasse
escolher um quadro representativo das crianças na Europa eu não escolhia
Rubens, também não escolhia Picasso ou Dali, nem sequer Paula Rego e as
suas fantásticas, misteriosas meninas! Escolhia Velasquez. Tomava Las
Meninas. Claro que não vamos discutir o quadro, saber qual o irrealismo
que ele junta à realidade. Mas basta ter em conta que a consistência que ali

25
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

existe (ali, onde tudo é volátil, susceptível de várias interpretações: para


onde olha o pintor? Que retrata o espelho no fundo da sala, o Rei e a
Rainha ao nosso nível, sentados a posar para o retrato? Porque observa o 2009
homem lá atrás a cena?) parte de uma família. O que dá consistência e
unidade é a família do Rei Filipe IV. A Infanta Margarita irrompe na sala
onde o pintor se encontra e faz, parece, uma birra: está farta de ser pintada
por aquele homem, desde bebé. Todos tentam persuadi-la: as aias
portuguesas (“Las Meninas”, a irmã, Teresa, talvez o Rei e a Rainha que
porventura olham para nós, reflectidos num espelho. Talvez, ainda,
Velasquez…). É uma família muito prosaica que dá consistência ao quadro.
E é uma família que acarinha uma criança, não a ameaça por não querer
posar pela enésima vez. Há sentimentos que perduram. Nisto se traduz um
papel decerto pouco consistente no passado, mas representativo da nossa
cultura acerca da infância.
Ora este ponto abre as portas a uma realidade que tem de ser devidamente
realçada neste início do estudo do Direito da Família. Trata-se de saber que
pontos da vivência das pessoas, que revestem a qualidade de pais, filhos,
educadores, menores de idade, idosos, devem ser do âmbito do Direito da
Família. E se porventura há segmentos deste processo e da sua expressão
jurídica que devam exorbitar o Direito da Família.
Ou antes, se afinal domina aqui a mesma tendência que vemos perpassar
muitos ramos do Direito. Uma dificuldade cada vez mais acentuada em
criar núcleos de compartimentação entre o que e “coisa privada” e “coisa
pública”. Pois a realidade é que há muitos aspectos do Direito da Família
que se fazem permear por influência notável do direito público também.
Desde logo, as regras e princípios constitucionais que o conformam, os
tratados internacionais que lhe dizem respeito. Mas, muito mais do que
isso. Os direitos da Segurança social, do Trabalho, da Administração
Pública, fazem aqui a sua incursão. Claro que a opção do legislador por

26
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

considerando bens comuns os bens adquiridos a título de rendimento do


trabalho na constância do matrimónio, mas sem prejuízo de outorgar a sua
administração ao cônjuge que os aufere e incluindo, pois, a possibilidade de 2009
alienação dos mesmos. Ora este aspecto decorre do sentido jurídico-laboral
do salário a que não é indiferente a ordem jurídico-familiar neste ponto. Por
outro lado, quando a lei das Uniões de Facto admite o regime de férias,
faltas e licenças laborais aos companheiros, mesmo na legislação referente
à Administração Pública, estará a olhar de novo a realidade familiar na
perspectiva familiar, num segmento em que interesses de ambos os direitos
intervêm. O direito da segurança social intervém por sua vez na outorga de
pensões de sobrevivência e na definição do respectivo critério a familiares
e unidos de facto. E assim por diante.
Concluímos assim que, se uma época existiu em que falávamos com
propriedade de um direito laboral da família, securitário social, fiscal, etc.,
hoje entram em cena direitos com expressão familiar cujo acervo de
consequências jurídicas passa em grande parte por outras esferas ou ramos
do Direito. Concretizando: a propósito das Uniões de Facto, há com certeza
um modelo a que estas têm de obedecer, sob pena de não se subsumirem as
situações em questão à categoria. No entanto, uma vez reconhecida a
existência da União de Facto, vemos que as suas principais consequências
são atinentes a outros ramos do Direito.
Ora, isto não acontecia, não acontece com institutos clássicos, como o
matrimónio, a filiação, a adopção… Há uma realidade emergente que entra
no Direito da Família por via do reconhecimento de proximidade face às
matérias que este contempla. No entanto, uma vez entrado, o cerne dos
temas de que cura o Direito da Família a seu respeito abre uma janela
gigantesca sobre outras realidades jurídicas. Muitas destas realidades são
de direito público e têm a pretensão de assegurar as pessoas que fizeram

27
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

tais opções de vida no mundo laboral ou em segmentos seus, no mundo da


segurança social, da saúde, no plano da habitação.
Muda, pois, o Direito da Família, sofre uma espécie de crise de identidade 2009
não assumida. Na realidade, sob a capa de uma aparente certeza que se
transmite, a de que é fácil e urgente integrar neste domínio a parte que
claramente lhe compete, constitui quinhão seu, alberga-se a realidade
inversa: o que falece são os critérios de fronteira entre o que é ainda Direito
da Família e aquilo que, sendo direito que emerge de relações de tipo
familiar, não tem os problemas próprios do Direito da Família. Mas, ainda
se perguntará e não terão sido esses problemas que mudaram, não se dará o
caso de ser este afinal o caminho de uma reformulação conceitual e
material do conteúdo?
Porque não há como dar por adquirida uma resposta sem o estudo, direi que
é este o nosso objecto. Determinar, de entre as matérias incluídas nos
programas tradicionais e as matérias que clamam por inclusão, entre o
casamento e a União de Facto, tanto na sua expressão legislativa (que o
direito da Família toma como filha, não sei se adoptiva, ou mesmo natural)
como na expressão de maior força normativa pela qual tantos clamam
(casamento entre homossexuais, reconhecimento dos mesmos direitos que
os conferidos ao matrimónio), entre o direito dos menores na sua vertente
familiar directa, por vínculo de filiação ou de adopção, e a sua afirmação
social mais ampla, entre os direitos dos idosos, de novo incluídos no
agregado familiar mas analisada a sua situação como pessoas fora dele, há
uma resposta específica do Direito da Família que nos leva a dizer: são
tudo problemas que integram este domínio jurídico.
Eu reconheço que, se muitas serão as dúvidas sobre a pertença correcta,
dogmaticamente certa, ao Direito da Família, este constitui hoje, no estudo
universitário, a sede de encontro com os problemas equacionados. E nesse
sentido, não creio que lhes devamos fechar a porta do nosso objecto.

28
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Partimos assim para a análise do objecto tradicional da disciplina, tal como


o Código Civil o enuncia. Veremos que relações familiares existem e quais
são as suas fontes. 2009
O Código Civil recebeu, como foi dito, grande influência constitucional em
77. Sendo assim, era desde logo importante analisar o modelo de Família
na Constituição. Mas sê-lo-ia em todo o caso, já que a Lei Fundamental
determina, molda os grandes institutos e não teria qualquer sentido
proceder a um exame do Direito ordinário alheio a este cadinho da aferição
constitucional.
Era tradição chamar a depor, a este propósito a dignidade das pessoas para
enquadrar os direitos de todos os membros de qualquer agregado familiar,
tal como os princípios da igualdade perante a lei, cujos reflexos são
determinantes na estrutura jurídica do Matrimónio ou das Uniões de Facto,
como ainda as relações parafamiliares em geral. Mas hoje como já
dissemos, acrescem outros pontos. Desde logo, a extensão do regime do
casamento, o problema da sua aplicabilidade a outras formas de sociedade
familiar. Porque o tema convoca a Constituição, será estudado a propósito
dos princípios constitucionais. Antes do regime dogmático incluído na Lei,
é um problema constitucional sobre que compete tomar posição.
Seguimos com o estudo do Direito Matrimonial. O casamento e a forma de
união heterossexual mais adoptada em Portugal. De forma espontânea, as
pessoas optam pelo casamento como forma de institucionalizar relações
estáveis e duradouras.
Porém, a existência do Matrimónio Católico, adoptado por muitos
portugueses suscita, em função de uma difícil interpretação do texto da
Concordata 2004 com a Santa Sé, articulado com o texto constitucional,
algumas dúvidas de constitucionalidade, para sectores da doutrina. O tema
será abordado, antecipadamente face ao Casamento Católico, nos
princípios constitucionais. Refiro a questão da constitucionalidade da

29
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

norma do Código Civil relativa ao regime do casamento rato e não


consumado.
O Semestre passado foi atravessado pela entrada em vigor de (mais) uma 2009
alteração ao regime jurídico do Divórcio. Foi um tempo de intranquilidade
feliz: de acordo ou contra, uma geração depôs sobre a matéria. E deixou-
nos a responsabilidade de continuar. Reputo a questão do maior interesse.
Porventura, tanto quanto consegui aperceber-me até agora, não sobretudo
pelas soluções que veio directamente impor, mas sim devido aos propósitos
legislativos menos evidentes. O que se pretende? Inverter o sentido
“ideológico” do Divórcio em Portugal, tornando-o extensivo a mais
situações, acrescidamente flexível? Ou por outras razões ainda? Será o
tempo de ensaiar uma resposta.
Termina-se com os direitos das crianças, dos jovens, dos idosos.
Os primeiros conhecem uma nova lei, do Apadrinhamento, que se reputa de
grande importância e da qual se esperam frutos.
Quanto aos últimos, subsistem, para mim, algumas dúvidas sobre o lugar
da sua abordagem temática. Tenho por claro, todavia, que algum deverá
existir e que a sensibilidade jusfamiliarista abre as suas portas à
compreensão dos institutos que aqui se encontram. Tentar-se-á, nesta sede,
olhar o direito dos jovens nos segmentos que nele me parecem merecer
mais destaque: a questão dos jovens em risco e muito especialmente, dos
jovens em risco de delinquência ou de serem vítimas de crime.

30
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

AULA nº 3
O objecto do Direito da Família.
Da proximidade entre as formas juridicamente
contempladas à tese da heteronomia; Direito da
Família e direito das famílias.

1. Questões preliminares.
Procuramos agora o objecto jurídico da Família. O problema
é complexo e é-o em crescendo. Por um lado, há um
substrato cultural proveniente da realidade da vida que
conduz a uma corrente de opinião maioritária a este
respeito, como conduz por igual a uma visão muito
partilhada sobre o sentido das realidades que, existindo na
lei, se afastam dos paradigmas tradicionais. A Família, para
a generalidade das pessoas, não estará muito distante da
fórmula quase poética com que um autor americano a
retrata. É o lugar onde nascem os filhos e se enterram os
maiores, um lugar inconfundível com qualquer instituição
que se mostre transcendente ao plano da intimidade que
biológica e culturalmente construímos.
E esta Família sulca-se, na Lei, por dois conceitos que
retratam instituições indispensáveis ao nosso plano de
abordagem. Penso no Casamento.
Depois, com o tempo, recebeu a ordem jurídica portuguesa
novos parâmetros, que hoje se acolhem nas Leis 6 e 7 de
2001, de 11 de Maio. As Uniões de Facto adquirem
importância crescente: aumentaram um tanto e sobretudo,
alargou-se o debate sobre a sua legitimação. Esse debate,
permeado de argumentos de vária ordem, é também (para
nós, é essencialmente) um debate jurídico.
Quem, partindo de um núcleo familiar, constrói o seu
próprio paradigma, por aproximação ou distanciamento à
realidade matriz, opta em Portugal pelo Casamento. O
Casamento é o modelo a partir do qual se reproduz a
institucionalização dos padrões de vida e de afectos entre

31
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

nós. A generalidade dos portugueses não prescinde dele,


quando opta por laços de união mais intensos.
Quando se pondera o instituto do Casamento vem à ordem
do dia o conceito de Parentesco. 2009
À primeira vista, não se vislumbra qualquer relação directa
entre ambos.
O Parentesco (artigo 1578º CCivil) traduz-se num vínculo
familiar. A lei define-o como o laço que liga duas pessoas
que descendem uma da outra, ou ligadas por um
ascendente comum. Em todo o caso, a sua chamada neste
ponto da exposição afigura-se essencial. Pois o parentesco
decorre as mais das vezes de uma relação matrimonial ou
familiar de outra ordem.
Nasce-se por regra no seio duma União matrimonial ou de
Facto. É a circunstância de sermos filhos, netos, irmãos de
alguém que nos confere o direito a perceber uma inserção
no núcleo por eles integrado, a receber educação,
alimentos. Quando a Família é desconhecida, ou rejeita um
dos seus membros carentes (idoso, criança) a devolução do
problema à normalidade possível passará pela intervenção
das autoridades e deverá ser, por estas, sindicada
subsequentemente.
Por outro lado, cumpre ter em conta os obstáculos à
constituição de relações matrimoniais que decorre de um
parentesco próximo. Por razões eugénicas, de moral social,
pais e filhos não casarão, nem receberão reconhecimento
protector das uniões de facto que porventura estabeleçam
entre si. A mesma regra vale para todos os parentes na
linha recta, que em breve identificaremos.
Indo mais longe, veremos adiante que muitos outros
direitos decorrem e se preterem pelo parentesco, de acordo
com estas balizas apontadas, e que são muitas vezes
fundamentadas no decoro (moral social). Estou a pensar no
casamento entre tio e sobrinha (colaterais no terceiro grau,
como também veremos), vedado por razões que não são
apenas estas, de ordem biológica, mas que exigem
ponderações advenientes do laço de sangue, aliás muito
próximo.
Por outro lado, o Casamento é a fonte mais ampla de novas
relações de parentesco, sem prejuízo de o serem também
as formas de União não matrimonial que a lei contempla,
como em breve veremos. Mas decorrem mais formas de

32
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

parentesco do Casamento. Pela tradicional vocação de


estabilidade da relação matrimonial é no seio dela que se
desenvolve o núcleo mais alargado de família; que as
gerações familiares se entrelaçam e identificamos filhos, 2009
avós, netos, sobrinhos…
Vejamos então o conceito de Parentesco um pouco mais.
A lei define-o, dissemos, como o vínculo que une duas ou
mais pessoas que tenham um progenitor comum. Na
contagem dos graus de parentesco, que agora antecipamos
rapidamente e adiante estudaremos, acabaremos por
concluir quanto é essencial a determinação do seu carácter
ascendente ou descendente. E quanto é determinante o
critério da contagem dos graus.
[O esquema da relação vertical a que se acaba de fazer
referência identifica-se em primeiro lugar (primeiro esquema),
entre os gráficos que se apensaram ao texto desta Aula. A
possibilidade de o fazer deve-se à utilização de esquemas
utilizados para este efeito em vários Manuais que,
contemporâneos de uma Família mais alargada do que a dos
nossos dias, concediam ao tema uma grande relevância. E devo-
o muito especialmente à ajuda empenhada dos meus alunos…]
Parentesco na linha recta descendente: estabelece o
relacionamento entre pais e filhos, avós e netos, bisavós e
bisnetos…Há sempre um progenitor de que todos provêm.
A contagem do grau depende do número de pessoas
relacionadas, omitindo um dos progenitores. Por esta via
concluímos que pai e filho são ascendente/descendente no
1º grau; bisneto/bisavô ascendentes/descendentes no 4º
grau.
[Na “árvore” apresentada no último gráfico, que combina
várias modalidades de parentesco, encontramo-lo de novo].
A situação reconfigura-se quando não existe uma cadeia
horizontal de descendência, mas todos os parentes
referenciados provêm de um mesmo ascendente comum.
Assim, se A e B são filhas de C, A e B não estão “em
cadeia” na relação familiar. No vértice, sustentando a
ligação entre as duas, está o/a progenitor/a C. A e B são
colaterais no segundo grau: subo a linha, contando com A
(1º elemento da cadeia), tenho em conta B (2º elemento) e
não procedo à contagem de C. Se porventura A tiver um
descendente, D, a relação entre este e B, colateral em 2º
grau de A, é de colateralidade no 3º grau. E o processo de
contagem foi o mesmo. Alargando, imagina-se a relação

33
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

entre os descendentes directos de A e B (D e E). São estes,


colaterais no 4º grau. Se recorrermos à linguagem corrente,
diremos que tio e sobrinha, referidos supra, são colaterais
no terceiro grau, mais um grau, portanto, face à 2009
colateralidade dos irmãos. Diremos que os “primos direitos”
da linguagem corrente são colaterais no quarto grau. E por
diante…Sendo que em regra a lei permitirá a produção de
efeitos jurídicos até ao 6º grau da linha colateral, ao passo
que na linha recta esses efeitos não se cerceiam nunca. Há
casos de produção mais ampla de efeitos na linha colateral.
Mas serão vistos em sede própria, sob pena de uma grande
e inútil dispersão nesta fase.
[Os esquemas que surgem em segundo e terceiro lugar
reportam-se, claro está, a situações de colateralidade].
Encontrarão muitas vezes exercícios que pedem
identificação do tipo e grau de parentesco entre familiares
que a linguagem comum refere por nomenclaturas
variadas: cunhados, segundos primos, terceiros primos,
concunhados…Não se trata, contudo, de linguagem legal.
Penso que é mais útil para essa clarificação um dicionário
da Língua Portuguesa. A nós, interessa-nos balizar a
situação real das pessoas na família e depois, proceder ao
enquadramento jurídico. A minha geração ouviu, há muitos
anos, a linguagem dos 2ºs primos, dos sobrinhos netos…
Acredito que os jovens cuja socialização não ocorreu em
famílias alargadas terão outro tipo de interesses familiares.
A relação de filiação, sempre importante, ocupa o centro da
atenção legislativa e isso corresponde à realidade. Dentro
de um enquadramento matrimonial ou outro é uma relação
que suscita a emergência de direitos e obrigações a todos
os progenitores. Não é a circunstância do seu
enquadramento legal, é a circunstância da ligação familiar
que os torna titulares de direitos e deveres fortes em
relação aos descendentes. A Constituição impõe este
reconhecimento do Menor e dos seus direitos à margem de
factores relacionados com a vida e opções dos pais Artigo
36º CRP, que se estudará adiante, a propósito da Família na
Constituição). É da sua dignidade e interesses que cura o
legislador.
Temos, pois, que a uma instituição familiar dominante, o
Casamento, correspondeu a moldagem essencial do vínculo

34
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

de Parentesco e de tal modo, que muitos aspectos se


repercutem nas outras realidades familiares.
Também daqui decorre a importância destas instituições,
que agora abordamos. 2009
A União de Facto, consagrada hoje na Lei 7/2001, depois
de um processo de constituição algo turbulento, dá
testemunho de que é assim.
Colocamos então o problema central neste eixo da
constituição das relações familiares por casamento, união
de facto ou ainda, segundo a Lei 6/2001. Saber se é linear a
verificação de que procedem de um denominador comum
ou a sustentação de que entre todos haverá diferenças
qualitativas importantes. A sustentação de que são formas
de relações familiares ou antes, de que se trata de
realidades desprovidas da necessária conexão para um tal
entendimento. Enfim, uma outra alternativa. Saber se,
posto que se rejeitasse a subsunção de todas elas a um
denominador comum de Direito da Família, era ainda
possível concluir que o legislador assentara num
entendimento polissémico da realidade familiar, de tal
modo que em vez de um direito da família, capaz de
conglobar as relações que nos surgem no Livro IV da
Família, nas Leis 6 e 7/2001, teríamos antes um direito
das famílias, cada uma dotada da sua fisionomia
autónoma, mas sempre reconhecidas como realidades com
a dignidade própria de um instituto com o cunho familiar.
Verifiquemos então os traços da dogmática geral de cada
figura chamada a depor.

2.O Matrimónio
A Constituição é o baluarte da sua consagração, o que
importa desde logo uma referência que se erga a partir dos
seus alicerces.
Não nos permitirá ela, contudo, avançar muito em sede de
densificação do conceito legal de casamento. Embora exista
doutrina em sentido contrário, que verbera a índole aberta
e susceptível de abarcar outras tipologias de casamento
para além da lei ordinária, a verdade é que sempre se
confronta essa discussão, que depois faremos, com o
problema de saber em que medida esta eventual ampliação
do conceito para além dos limites em que a lei ordinária
(Livro da Família, Código Civil) o recorta é injuntiva face ao

35
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

legislador ordinário, ou representa um quadro de referência


mais amplo das suas possibilidades de actuação
legiferante. Um quadro que se mostre permissivo de outros
modelos de casamento mais amplos, assentes em 2009
pressupostos que rompam o espartilho do actual regime
vertido no Código Civil.
Olhemos, pois, o recorte do Código Civil.
O artigo 1575º parece muito conclusivo a este respeito.
Afirma que o Casamento:
_ É um contrato;
_ Celebrado entre pessoas de sexo diferente;
_ que constituirão através dele uma “plena comunhão de
vida”;
_ celebrado nos termos e disposições deste código.

É a norma tão clara quanto parece?


Procuremos sindicar cada uma das afirmações assinaladas.
“O casamento é um contrato”. Qual a dimensão de uma
asserção como esta? Responderia, antecipando uma
discussão que abordaremos, como disse, mais tarde. Creio
que o é, e creio sobretudo que a lei portuguesa não permite
uma sua consideração diversa. A tese, aventada por certos
autores, de que os afectos se não contratualizam, parece-
me deslocada nesta sede. Não é argumento consistente.
Pode aceitar-se um projecto de vida do qual decorre abdicar
de um modelo de vivência e optar por outro, tenha lugar
sem que isso implique a preclusão da liberdade ou do
direito à liberdade. Diria que a consideração do homem
como “ser com os outros”
(de raiz multimoda no pensamento, sustentável através da
filosofia tomista, sobretudo pelos fichteanos, mas em bom
rigor desenvolvida por todos os cultores do idealismo
kantiano. Aliás, presente, creio, em Kant, na tese segundo a
qual o númeno é um arquétipo, enquanto o homem
fenoménico surge após o contrato social e não dispensa a
sua compreensão os laços de reconhecimento e interacção
recíprocos)
é, alias, incompatível com outra conclusão que não passe
pela compressão natural de direitos que, pela sua natureza,
apenas se exprimem através de um processo de concessão
permanente. Não ver isto é assentar num individualismo
totalmente destituído de suporte na realidade. Enfatizo:

36
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

nem o mais empedernido Kant, na sua tese “numénica”, vai


por aí; coloca, lado a lado com os postulados da razão pura,
a relacional idade como postulado da razão prática. O
contrato de intimidade é afinal um contrato de socialidade. 2009
Esquecer isto é esconder a cabeça ao argumento que a
realidade impõe. Um erro sem saída.
A vida que exprime nas suas relações formas de intimidade
é necessariamente concessiva de um modelo incompatível
com a titularidade estática dos direitos e deveres de cada
um.

_ o casamento é uma relação entre pessoas que nos termos


da lei pretendem empreender uma plena comunhão de
vida.
O conceito é bastante obscuro, creio. Pois, se por um lado
terá visado afastar a obrigatoriedade de uma relação
amorosa sexual, moldada no cadinho daqueles ditames que
a Igreja Católica estrutura para o Matrimónio enquanto
sacramento, a verdade é que não contrapôs claramente um
sentido. Antes admite vários. Haverá casamento válido
desde que o projecto de vida comum implique vida
conjunta, lealdade recíproca. E se é certo que a ligação
sexual e o intuito procriativo estarão presentes na maioria
dos casos, não hão-de estar necessariamente. E porque
esta porta que agora se abre, relativamente ao que era
antes imposto pelo Matrimónio católico, é muito ampla, o
seu carácter problemático ergue-se como um tributo à
plasticidade da nova figura.
_O casamento obedecerá aos termos das disposições deste
Código.
De novo, a infixidez assumida marca esta última passagem
do excerto. Significará que não pretende agora o legislador
avançar mais sobre o sentido do casamento, objecto e fim.
Que admite a sua evolução de acordo com princípios e
regras que a lei venha a considerar dignas de contemplação
doravante.
A verdade, porém, é que assim abre a lei a porta a qualquer
regulamentação, o que vale por dizer, a toda a espécie de
alterações ao regime em vigor, ainda que adulterando a
sua configuração básica. O limite à regra é longínquo no
horizonte: não poderá ser inconstitucional. Mas pode ser
derrogadora do matrimónio na sua actual configuração.

37
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Este aspecto, que se previu em 1977, está bem patente na


distância profunda que marca a precariedade, ou
fragilidade, progressiva, da relação matrimonial desde
então até à entrada em vigor da actual Lei do Divórcio. A 2009
partir dela, não só o fim do casamento pode ocorrer por
vontade das partes findo o mais curto período de vigência
da sua história, como termina tendo por consequência,
entre outras, uma alteração ao regime de bens que pode
determinar uma perda patrimonial expressiva face às
expectativas que se verificavam no momento da celebração
e durante todo o decurso da relação pessoal até esse
momento. E, se dúvidas podem ocorrer acerca da opção no
plano da constitucionalidade, cumprirá em todo o caso
conceder na certeza de que é uma possibilidade anunciada
pelo próprio conceito legal de casamento.
Deixámos para último lugar a diferença sexual que a lei
impõe. Diria que não constituía tema, no momento em que
se reaprecia o conceito matrimonial, a questão da união
legal entre pessoas do mesmo sexo. Indo mais longe,
afirmar-se-á que tema central era então a igualdade social
e o seu reconhecimento entre pessoas de sexo diferente.
Por esta, como se viu, se clamara, esta se consagrara. O
problema de saber em que medida seria legítimo o
casamento de pessoas do mesmo sexo colocava-se,
decerto, porque o tema tem a mesma universalidade e a
mesma recorrência. Mas não tinha na época a amplitude de
discussão ou mesmo de preferência na opinião pública.
Não deixarei de recordar um tema emblemático da
discussão jurídica que agora se fazia. Tratava-se de
recordar Ana de Castro Osório e a sua obra.
Com a implantação da República, no dealbar do século XX,
a escritora Ana de Castro Osório, fortemente implicada na
preparação do regime republicano, viera a publicar O
Direito da Mãe. É uma obra de leitura simples. Conta a saga
de uma jovem mãe de família pertencente aos meios
burgueses que vivia o drama de compartilhar a vida com,
um companheiro cujo espírito devasso lhe trouxera doenças
venéreas; doenças que contaminavam agora a prole. Ela, a
mãe de família, pretendia salvar a família, mas debatia-se
com uma sociedade hostil e uma lei contrária aos seus
intentos. Afinal, a Lei do divórcio, filha dilecta da República,
salvara a situação.

38
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Por 1977 a obra é recordada, mas cumpre fazer uma


advertência. O Código que sai da Reforma não deixa de
considerar esta situação entre os erros essenciais sobre a
pessoa do cônjuge, caso a situação existisse já quando se 2009
contrai o casamento e fosse desconhecida da outra parte,
por motivos compreensíveis. Só no caso da superveniência
do problema marital se estaria ante uma situação
reclamando a aplicação do regime da extinção da
sociedade conjugal através do Divórcio.
Mas o facto de a discussão trilhar por este caminho é bem
reveladora dos objectivos intrínsecos ao debate sobre o
casamento e seu conteúdo. A distância a que a sociedade
portuguesa se encontrava do debate actual, inclusivo do
tema da homossexualidade, grita neste silêncio que rodeia
o tema.
Concluímos, pois, que o Casamento, enquanto conceito
legal, é frágil na construção e efeitos precípuos.
O que o mantém então? A pré-compreensão social, sem
dúvida. Uma ideia que se sobrepõe às ambiguidades e às
lacunas legislativas em nome de experiência, vivência e
sentido dos âmbitos de mudança socialmente desejados ou
pelo menos tolerados.
Ao fim e ao cabo, exprime-se aqui a capacidade de coesão,
o potencial de tolerância numa sociedade em que a ruptura
de concepções, ideologia e hábitos sociais entre as várias
classes sociais, entre católicos e laicos, se erguia num
núcleo essencial do instituto e rejeitava a hipótese de
mutação radical.

3.Do casamento a outras formas de Família


Ora esta “força atractiva para o casamento” é determinante
no processo de compreensão da relação que vem
estabelecer-se entre ele e as relações familiares que a Lei
paulatinamente integra.
Na génese destas relações não resultantes do casamento
mas juridicamente produtoras de efeitos está um preceito
da Reforma de 77, o artigo 2020º. Nos termos deste, o
unido a pessoa solteira, viúva ou separada judicialmente de
pessoas e bens terá direito a perceber alimentos da
herança, posto que deles prove necessidade e os venha
reclamar. Em linguagem sucessória diremos que não é este

39
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

unido de facto um herdeiro legitimário ou forçado, ou


sequer um legatário, mas um mero credor da herança.
A norma do artigo 2020º, que conheceria forte reacção no
seu tempo inicial, só anos depois recebeu um impulso 2009
decisivo, com o diploma de 1995. Decisivo, porém, no
sentido de enfatizar a importância das uniões de duas
pessoas, de sexos diferentes ou do mesmo sexo, revelar-se-
ia a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio. Foi então que pela
primeira vez se institucionalizaram, de forma sistemática e
mais ampla, tipologias de direitos de que seriam titulares os
sujeitos de uma União de Facto protegida.
Tanto quanto sucede com o artigo 2020º, a Lei continua
sendo aqui rigorosa nos pressupostos de reconhecimento
dos direitos envolvidos. Mister é que os unidos de facto
estejam vivendo em comum há pelo menos dois anos. Se
compararmos hoje o tempo legalmente requerido para que
ocorra uma acção de divórcio litigioso, veremos que estes
dois anos parecem marcar o legislador, que, afigurando-se
normas algo instrumentais, técnicas, ao serviço de uma
segurança exigível neste âmbito, vemos que o legislador se
obstina nestes dois anos, porventura, à míngua de um
critério equitativo para o feito. E apenas por esse facto, a
saber, ausência de ponderações transportáveis para um
discurso justificador racional, chamo a atenção para a
persistência numa norma técnica. Perguntando se será este
o melhor caminho; sobretudo, se é adequado o processo de
legiferação nesta matéria que sobretudo requer justificação
de pendor valorativo.
A lei das Uniões de Facto possui os seus traços de
diferenciação:
_ O processo de constituição é informal e também o
será o processo de dissolução. Por isso, a prova do
momento de constituição e extinção é tão difícil; por isso
suscita tantas dificuldades a sustentação do decurso de
dois anos, pedra angular no processo aquisitivo dos direitos
decorrentes da União, sobretudo por morte de um dos seus
membros (artigos 2º, 3º, 8º);
_ A União de Facto aceita-se entre pessoas do mesmo
sexo (artigos 1º, 7º). Os direitos, porém, sofrem aqui uma
compressão. Sucede que os unidos do mesmo sexo
não poderão adoptar (de novo, artigo 7º);

40
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

_ Os direitos que a Lei consagra são sobretudo de natureza


social e laboral: gozo de férias em conjunto, com
articulação dos correspectivos mapas para o efeito, direito
à casa de morada de família, finda a união, posto que prove 2009
o membro abandonado ou sobrevivo não possuir outro local
de residência e durante período que a lei determina, como
igualmente determina as condições do exercício do direito
(artigos 3º, 4º, 5º, 6º).
A Lei não apresenta um critério de determinação do grau de
proximidade entre os unidos, a sustentar a relevância e a
própria existência da União. O critério, em todo o caso,
decorre da ideia que percorre a Lei 6/2001, sobre as
Uniões Parafamiliares e bem assim, o espírito básico do
casamento. Trata-se de um projecto de vida em intimidade
e partilha material e espiritual, não de carácter fortuito
antes com foros de persistência. Não serão concebíveis,
naturalmente, uniões de facto sobrepostas, cumulativas,
por parte da ou das mesmas pessoas. O legislador dispensa
referências ao ponto restritivo, já que os princípios gerais
de Direito balizam esta proibição e a sustentam, aliás, do
mesmo passo.

Comparações entre os tipos de instituições


familiares

Mister se torna pois estabelecer comparação entre os


núcleos essenciais dos direitos e deveres consagrados para
as situações matrimoniais e as outras, a fim de poder
concluir acerca da afinidade essencial entre os agregados a
que aludimos e a lei contemplou. Afora diversidades
evidentes e bem vincadas, compete apurar acerca da
existência de um estro de comunicabilidade com que
sempre se considerou inerente à união entre duas pessoas
e que o casamento exprimia sem suscitar discussão.
Façamos então uma comparação das diferenças essenciais
entre casamento e uniões informais e procure-se um
tertium comparationis.
_ a mutação relativa à possibilidade de inclusão de uniões
entre pessoas do mesmo sexo, que irrompe na Lei 7/2001.
Antes não era apenas omissa, representava um caminho

41
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

claramente ao arrepio dos princípios sociais vigentes e


dominantes;
A diferença constitui ponto obrigatório de reflexão. Por um
lado, a possibilidade de miscigenação de duas formas de 2009
sexualidade paradigmaticamente distintas suscita a ideia
de que, diferentemente da opção legislativa de 77 e suas
antecessoras, se faz agora incursão num mundo de afectos
ou pelo menos de formas de intimidade em que a libido de
alguma forma se deixou esbater. Não terá pelo menos uma
presença dominante. Assim, o legislador permite um
modelo de convivência nos antípodas da sua manifestação
habitual, tal como acentua a precariedade das relações
íntimas entre duas pessoas.
O tipo de afecto que a lei agora reconhece não tem o
mesmo condicionamento biológico nem a raiz cultural antes
conhecida. A sua consideração numa mesma ordem de
padrão familiar, mesmo em sentido amplo, inicia um
processo de alteração do núcleo familiar. Por outro lado,
marcando pontos numa direcção de sentido inverso, a
proibição de adoptar já referenciada e imposta a casais com
esta fisionomia indicia a sua desconsideração como lugar
de integração de seres em processo de desenvolvimento,
identificação social.
Mas não é líquido que a ordem de argumentos do legislador
nesta sede proibitiva da adopção em tais casos seja um
argumento no sentido de afastar do enredo familiar os tipos
de instituições em questão.
Não se afigura argumento no sentido de irradiar do modelo
familiar as famílias homossexuais uma tal proibição.
Por um lado, o afastamento da adopção que a lei impõe
pode_ é argumento sustentável_ atender apenas ao
interesse dos menores; pode representar uma medida de
cautela, preventiva, face ao seu direito ao desenvolvimento
pessoal. Ou seja: na dúvida entre a perfeita sanidade
decorrente de uma situação assim e perigos eventuais para
a estruturação da personalidade, o legislador opta pela
prudência de uma solução “típica” e não entrega o menor a
um quadro familiar que duvida potencie malefícios, ainda
que subtis, à estruturação da criança, do jovem. Isto não
significará, contudo, a negação da intimidade da relação
em causa e muito menos, a sua homologia com as formas
de convívio amoroso ou afectivo tradicional. Também

42
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

marido e mulher poderão perder o exercício de


responsabilidades parentais sem que isso questione a
sobrevivência do casamento que celebraram.
Aliás: veremos que a procriação não é escopo do 2009
casamento. Nem em idade fértil, nem em qualquer outra
fase da vida…O legislador não rodeia o problema de eterna
carência de solução, relativo ao casamento de pessoas
idosas (um forte argumento esgrimido, veremos, pelos
homossexuais que clamam pela semelhança entre a sua
situação e esta outra).
_a vida em União de Facto configura-se juridicamente como
um alter ego da vida matrimonial. A celebração despe-se de
solenidade, prescinde de publicidade. Os órgãos públicos
não estão aqui presentes. E isto transforma o decurso de
dois anos, o prazo necessário, como vimos, para o seu
carácter legal protegido, uma verdadeira probatio diabólica.
É curiosamente a Lei sobre Medidas de Protecção de
Pessoas que Vivam em Economia Comum a que mais
se aproxima da explicitação do critério fundamentador.
Afirma a necessidade de “uma vivência em comum de
entreajuda e partilha de recursos” a criar o núcleo das duas
figuras que então irrompem.
É certo que nesta última situação da Lei nº 6, os membros
do agregado não têm uma relação afectiva do tipo indiciado
no caso das Uniões de Facto. Mas em todo o caso a
linguagem dos afectos nasce legislativamente, depois do
Livro da Família e fora do seu âmbito, aqui.

Aula nº 4

O problema da extensão dos efeitos jurídicos das


Uniões de Facto na doutrina actual

Introdução
Poderá afirmar-se que a nossa ordem social aceita as
regras legais em vigor em clima de identificação, sintonia
com o seu conteúdo. A discussão marca a diferença entre
aceitar ou não um regime mais denso para as formas de
união homossexual. Não se questiona de um modo geral
que produzam efeito as Uniões de Facto, assim como os
efeitos que produzem.

43
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Mais: os debates recentemente ocorridos no campo político,


social, jurídico, deixaram transparecer uma mensagem de
receptividade, por parte dos representantes das forças
partidárias com legitimidade conferida para o efeito, de 2009
propor legislação mais abrangente, mais ambiciosa neste
plano.
Chamo a depor, a título de exemplo, uma das grandes
diferenças. Verifica-se no plano sucessório. O unido de facto
sobrevivo não é sucessível, no sentido rigoroso da
expressão; e mesmo o seu entendimento enquanto
“legatário legítimo”, que mais adiante ponderaremos, a
propósito das relações entre os direitos da Família e
Sucessões, mais não consegue do que deixar transparecer
a enorme debilidade da sua situação após a morte do
companheiro.
Diferentemente do cônjuge, ele não surge como herdeiro.
Recebe coisa certa (um usufruto da casa de morada) e
datada. A expressão que procura dignificar a sua situação,
a adjectivação do legado como legítimo, colhe efeitos ao
arrepio desse seu propósito: há, de facto, voluntarismos
que se mostram contraproducentes e este é decerto um
deles. Legatário legítimo de segundo plano? E em termos
práticos; ganha-se alguma coisa com isso?
Já a integração deste unido de facto entre os sujeitos
elencados no artigo 496º do Código Civil se afigura, não só
mais fácil, como de uma justiça evidente.
Será este o segundo exemplo que se afigura oportuno
ponderar.
Aqui, em sede de indemnização por danos não patrimoniais
por morte da vítima, o direito cabe, em conjunto, ao
cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e a
vários outros parentes, seguindo uma lógica de
proximidade (linha recta; proximidade na linha colateral).
De fora está o unido de facto. Deveria ser assim? A
jurisprudência já abordou o problema. Creio que o sentido
da norma permite incluir aquele que viva em situação
idêntica à do cônjuge, integrando-o por extensão analógica
nesta cadeia do artigo 496º. Afinal, o ponto essencial que
aqui se contempla é o ressarcimento que o Direito
reconhece como direito, àqueles cuja proximidade advém
da relação familiar e sofrem a perda do ente perdido. Este

44
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

critério de justiça que chama a depor a afectividade não


terá como afastar o unido de facto sobrevivo.
Claro que uma interpretação estrita do texto da lei não iria
nunca por aí. Trata-se de um tema polémico, juridicamente. 2009
As premissas enunciadas são apenas um enunciado dos
tópicos da argumentação.
As situações referidas são paradigmáticas da dificuldade do
enquadramento legislativo do regime da União de Facto
perante outros institutos legais. Não pretendem, como se
frisou, esgotar o problema, mas demonstrar em todo o caso
que ele é hoje muito relevante, identificando alguns dos
seus pontos.

O pensamento da Igreja Católica sobre as Uniões de


Facto nos primeiríssimos anos do milénio
Coloco a questão porque ela corresponde a uma evolução
sensível verificada nos últimos anos. Com efeito, já neste
milénio a Igreja Católica verberou contra as Uniões de
Facto. Os textos de reflexão que se publicaram não se
dirigiam a legislações concretas. Visavam o problema em
termos ecuménicos e alertavam para os, em seu entender,
malefícios daí decorrentes.
Chamo-vos a atenção para duas objecções que são
importantes do ponto de vista da argumentação jurídica.
O primeiro respeita à filiação. Em nome dos direitos dos
filhos, menores, sustentou o pensamento católico que a
União de Facto redundaria numa violação da sua dignidade,
já que os privaria do processo de desenvolvimento no
âmbito da família socialmente legitimada pelo
reconhecimento social e capaz de se assumir como tal.
E mesmo aí onde o argumento não surge com este sentido
enfático, enunciam vozes de grande relevo argumentos em
prol da necessidade de dotar a família cujo processo de
constituição obedeceu a critérios formais. João Paulo II
escreveu páginas belíssimas e de grande valor teórico e
argumentativo sobre o ponto.
Creio que o argumento é “forçado”. Parece-me, com efeito,
que a dignidade humana e seu reconhecimento não
dependem de uma identificação do modelo social em que a
educação é conferida. Dependerá, sim, da circunstância de
ser tal educação conferida, num quadro social adequado,
que poderá assumir perfis variados. Trata-se de planos

45
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

diferentes, outorgar educação e enquadramento


institucional desta educação; reconhecimento do direito dos
menores a um ambiente que confira meios salutares de
desenvolvimento e identificação estrita desse meio com a 2009
família em sentido biológico.
Mas o argumento fulcral aventado desenvolve-se, creio,
noutra direcção. Trata-se da suspeita da consistência (pela
tendencial precariedade; pelo circunstancialismo muitas
vezes eivado de factores pontuais e que rapidamente
correm o risco de se diluir) das Uniões de Facto, por regra
comparativamente superior às fragilidades do casamento.
A realidade portuguesa mostra, em todo o caso, que opta
pela União de Facto um acervo importante de pessoas que
ultrapassou a idade fértil. Que nos casos em que isso não
acontece, a opção é sustentada em muitos casos por uma
decisão que se enquadra em termos de maturação e até
cultura que levam a presumir a reflexão, ponderação acima
de muitas outras situações. Enfim, que os casos de pobreza
e sobretudo miséria que nos antípodas destes, ditam
muitas Uniões de Facto, não veriam alteração nas
consequências sobre a educação dos filhos só através da
mediação do matrimónio.

O caminho das Uniões de Facto: entre a expansão e a


cristalização/retracção
Porém, irradiar o argumentário aqui expendido não significa
esvaziar as Uniões de Facto de um fundamento ético e
social sólido. Diferentemente, trata-se de, através de um
breve excurso pela sua evolução, descortinar em que
medida devem ser analisadas enquanto contributos para a
coesão familiar na sociedade. Em que medida uma sua
consideração axiológica sustentada no enquadramento que
lhe proporciona a doutrina mais conforme à consideração e
defesa dos Direitos Humanos, aos princípios sociais em que
a ordem essencialmente se escora, permitirão, não apenas
a sua sobrevivência enquanto plano familiar, mas, ainda
além disso, o seu eventual desenvolvimento enquanto
fontes de efeitos jurídicos novos. Estes novos efeitos
dependerão da estabilidade da instituição, da sua aceitação
geral, do grau de consenso que se logre gerar a seu
respeito.

46
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Ora, sabemos a que ponto é mérito do legislador


contemporâneo traduzir a mensagem positiva das Uniões
de Facto sociais. Acrescentaria: foi, antes, mérito da
fisionomia com que estas se estabeleceram impor-se 2009
normativamente com veemência.
A lei falava, pejorativamente como dissemos, de
concubinato. Hoje a expressão evita-se sempre que envolva
calúnia. O critério de avaliação modificou-se e considera-se
“errado”, ao arrepio de bons costumes é o uso de
expressões que revelem essa hostilidade deslocada.
Mas é preciso ir mais longe e ver em que medida um núcleo
de boas práticas, bons princípios, esteja contribuindo para o
incremento jurídico das Uniões de Facto.

O problema nas soluções jurídicas mais debatidas


acerca dos deveres pessoais. O regime jurídico e as
suas pistas

Tomamos alguns pontos de reflexão a partir do seu regime


jurídico. Há aspectos deste regime que já foram apontados.
Sistematizamos agora outros cuja importância é evidente.
Trata-se dos deveres pessoais. A lei não desenvolve aqui,
contrariamente ao que vemos acontecer em sede de
Casamento, direitos e obrigações de feição pessoal
obrigando as partes envolvidas. À primeira vista, decorre da
interpretação sistemática do diploma que o objectivo terá
sido irradiar tais deveres: de lealdade, coabitação,
assistência…
Mas a conclusão seria precipitada.
Desde logo, porque o legislador antecipa ponto de vista
adverso, ao afirmar que a cessação da coabitação porá
termos à União de Facto. Mas o problema fundamental
situa-se em relação aos outros deveres pessoais. Terão
eles, pergunta-se, densidade equivalente à que exibem no
Casamento?
Vejamos o dever de assistência, uma vez que a lei parece
clarificar aqui o seu critério.
Há um dever de assistência na União de Facto que justifica
o gozo em comum de férias, a entre - ajuda legalmente
favorecida pelas leis laborais quando é necessário
acompanhamento na saúde pelo unido de facto. Apenas
estas regras demonstrariam a força vinculativa do dever de

47
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

assistência que inspira a lei, por muito frágil que a sua


garantia se revele.
É certo que esta injunção não se imporá nos mesmos
termos a todos os deveres pessoais. O dever de lealdade é 2009
um dever que dificilmente concebemos excluível na UF; em
todo o caso admitirá uma densidade menor: não é
garantido que tenha de a possuir nos termos por regra
identificados para o casamento. Resta, porém, saber se a
actual legislação matrimonial, após a integração dos
fundamentos e procedimentos que rodeiam o Divórcio,
continua a ir no mesmo caminho. O encurtamento dos
prazos de vigência de instituições traz consigo uma
correspectiva fase de assumida turbulência, que aqui
ocorrerá naquele prazo confinado de dois anos, findo o qual
se pode requerer o termo da sociedade conjugal. Pergunta-
se, então, como aceitar uma apodíctica “lealdade”
prolongada e estável, se a lei permite mutações tão
profundas no espaço de dois anos?
Há uma pré-compreensão da lei actual a favorecer, creio_
terminando este nosso breve ensaio de colocação do
problema _o alargamento dos direitos que as Uniões de
Facto conglobam. Foi em nome da sua dignificação e do
reforço de garantias sociais que o legislador ousou avançar.
Creio que esta realidade é argumento correcto no sentido
da conclusão de que a enumeração continente destas
normas, o artigo 3º, estará muito longe de ser uma norma
fechada. Vejo-a como norma abrangedora de uma
enumeração exemplificativa dos direitos dos unidos de
facto. Em todo o caso, não perdendo o horizonte da
diversidade que separa este diploma e o do Matrimónio.
É uma manifestação de tibieza, este arrimo argumentativo?
Acredito que possa ser interpretado assim. Mas considero
que em boa hermenêutica, não deve.
Há, na raiz da União de Facto, várias espécies de opções de
vida, sabemo-lo. Alguns unidos de facto não têm a cultura
da institucionalização dos laços afectivos na esfera pública.
Outros optam por uma fase experimental. Enfim, há casais
que não prendem a experiência do casamento e por razões
que relevam das suas opções de vida, com as quais não
temos o direito de lidar. Um segundo, terceiro (primeiro,
mesmo) casamento pode trazer problemas financeiros,
sucessórios, mas também no plano do convívio familiar

48
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

quotidiano. Por opção não casam estas pessoas, o que é


obviamente respeitável. Mas sendo assim, ocorre perguntar
com que legitimidade impor, portas dentro das uniões mais
lassas que voluntariamente constituam, um modelo 2009
decalcado do modelo matrimonial. É certo que no plano
jurídico o modelo matrimonial constitui um quadro rector.
Mas um quadro rector não deverá confundir-se com um
leque de soluções de equiparação. No núcleo fundamental
das relações pessoais compreende-se que a relação
conjugal tenha pressupostos mais fortes. Dir-se-á mesmo:
representaria um contra-senso admitir que os não tivesse.
Pois a diferença das opções faz presumir uma concomitante
diferença de consequências e seria um erro deturpar esta
cautela interpretativa, no cadinho de uma equiparação
precipitada e por isso, grosseira.

Aula nº 5

Fontes Constitucionais: preliminares


E analisada a Família enquanto objecto do Curso,
revertemos à matéria das suas fontes.
Segundo parte muito expressiva da doutrina, pegamos
agora e só agora nos primeiros tijolos da casa. Pois a
Constituição é a cúspide do sistema e cumpre olhá-lo a
partir dessa localização cimeira.
Não fazemos aqui a opção dominante em muita doutrina
jusfamiliar. Penso, a título de exemplo, na apresentação
que muitos estudos alemães fazem: é a matéria do
enquadramento constitucional que apresenta aí foros de
primazia, é dela que se parte para o subsequente estudo de
outras matérias, como o Casamento, a Filiação.
Mas a realidade que examinam é outra e tem, neste ponto,
divergências que me parecem importantes. A Constituição
Alemã é uma norma fundamental da Democracia, tal como
a nossa Constituição de 76. Porém, o lastro jurídico familiar
não tem, nesse Direito, as características que vemos
congregar na ordem jurídica portuguesa. Não se verifica o
mesmo quadro de articulação entre o casamento civil e as
regras canónicas a que sempre, ao longo dos séculos
(pensando tão só na identificação do país, no dealbar da
Monarquia) marcou a ordem jurídica matrimonial. Esta

49
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

articulação exprimiu significações, consequências jurídicas


diferentes, no tempo da sua vigência. Mas existe em linha
de continuidade; uma continuidade à luz da qual é
compreensível a incorporação de elementos que 2009
influenciarão, quer a instituição Matrimónio, quer a
interpretação de algumas das normas ora colocadas em
vigor, sem que isso distorça um processo hermenêutico
escorreito.
Relembramos, pois, em jeito de síntese, porém, que a favor
de uma consideração simultânea, às vezes dialéctica, dos
conceitos de Família/Casamento depõe, entre nós, a
especificidade da história dogmática. A Constituição de 76
rompe com o regime ditatorial e suas manifestações e
nesse sentido, aduzimos, é uma 1ª Constituição Histórica
da Democracia. Mas muitas instituições de antanho
marcam ainda o seu significado: porque se lhes sobrepôs
um sentido que perdurou além daquele de natureza
política; porque se deixam permear da realidade cultural do
país.
Estão neste caso todos os conceitos em que a identificação
entre sentido social, religioso e jurídico se manifestavam
em pontos fulcrais. O casamento português é um
representante dilecto desta estirpe.
É certo que sempre, ou quase (direi: sempre, após a
entrada em vigor do Código de Seabra) tenderam
casamento católico e civil (laico) para a separação, mas
num quadro social de convergência em que o primado
jurídico do casamento católico se faz sentir com toda a
pujança. É igualmente certo que a Constituição esbate este
quadro, tal como impõe uma recriação das normas
matrimoniais no plano de uma identificação laica que trará
consigo a articulação com novos direitos e seu
cumprimento (dignidade de todos os seres humanos;
igualdade perante a lei; emancipação dos menores
enquanto personagens dentro, também, do quadro
familiar).
Porém, apesar deste influxo do gume que sulca a
importância dos Direitos Humanos, permanece uma raiz na
pré-compreensão do instituto, impeditiva de um olhar
jurídico isento e mais, correcto, sobre o casamento, fora
desta sua articulação social de antanho.

50
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

E por isso só agora a ela vamos. Assumindo, naturalmente,


a incumbência de retirar todas as consequências que a
fonte constitucional impõe.
A compreensão dos modos de incidência do Direito 2009
Canónico sobre o Casamento supõe o enquadramento deste
enquanto instituição jurídica complexa e caracterizada por
um regime jurídico cujos meandros se impõe descortinar.

Os pressupostos da celebração

Assim, diremos que o contrato de casamento não é apenas


solene, é igualmente submetido a um regime normativo
muito denso que adapta as suas possibilidades de aplicação
de acordo com vários circunstancialismos. Não só a forma
de celebração impõe mecanismos próprios, como é certo
estar vedado em muitas circunstâncias a possibilidade de
casar. Há assim impedimentos absolutos, ou seja, que se
impõem sempre e face a todas as outras pessoas, como
impedimentos relativos, que advêm de relações
particulares entre algumas dessas pessoas.
Concretizando: a demência, a menoridade abaixo dos
dezasseis anos, são impedimentos absolutos. Está em
causa, como fundamento da recusa legal, um aspecto
inerente à personalidade do eventual nubente, aspecto
esse que o legislador identifica como inultrapassável em
todos os seres humanos e face a todos os seres humanos.
Casar abaixo dos 16 anos foi possibilidade abertas às
raparigas, em nome de alegada maturidade; mas contra os
meios de evolução da sua educação em todos os sentidos,
da sua preparação social e profissional. Era uma espécie de
transferência de tutelas, a patriarcal e a marital, ou, mais
problemática ainda, a inserção abrupta num meio familiar
novo, sob a influência de um triângulo “suspeito” nas
configurações e consequências: marido sogro e sogra.
Mais complexa será a possibilidade que a lei igualmente
veda de admitir o casamento de seres humanos com
perturbação mental, ainda que, segundo a lei, que pede
aqui de empréstimo a expressão do Direito Canónico,
“durante um intervalo lúcido”.
A lei do Estado não permite ir por aí. O casamento de
portadores de anomalia psíquica não esmorece em
gravidade pela circunstância de ocorrer durante estes

51
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

intervalos. Nem razões eugénicas, nem o diagnóstico do


doente permitem sustentar em confiança e segurança
acrescidas uma tal relação. Por isso, não a aceita a lei.
Mas há impedimentos de outro tipo, que se tornam de 2009
ponderação mais apelativa pela relação social que têm
inerente. Refiro os impedimentos relativos, aqueles que não
arredam o matrimónio de todas as suas possibilidades de
celebração, mas apenas, daquelas possibilidades que
envolvam determinadas pessoas
A poderá casar. É maior de 16 anos, imputável. No entanto,
jamais celebrará, segundo a lei, casamento com seus pais,
avós, ou quaisquer outros ascendentes ou descendentes na
linha recta. Como está impedido de casar com os irmãos
(colaterais no 2º grau) e, em princípio, com sobrinho ou tio
(colateral no 3º grau).
Parece clara a opção: intervêm a moral social, as razões
eugénicas no sentido desta proibição. E, no entanto, resta-
nos uma reflexão a este respeito. Imaginemos, quer o
parentesco na linha recta que em dada situação se verifica
não é socialmente reconhecido, e muito menos o foi alguma
vez pelos nubentes, que sempre viveram apartados do
convívio respectivo, não tendo qualquer conhecimento da
real situação jurídica que os entrelaça. Quid Juris?
A lei não excepciona tais casos. Eça de Queirós, (também)
aqui, manteria a sua actualidade: Carlos Eduardo e Maria
Eduarda da Maia não poderiam encontrar paliativos legais
para o seu relacionamento amoroso, pois a inocência não
lhes retirava a qualidade familiar e as implicações jurídicas
decorrentes.
Razões para um discurso legal justificador? Moral social,
receio de operar derrogações que possam desvirtuar a
linearidade de uma regra cuja existência contém a
plasmagem de um princípio e inerente, um aviso a que o
legislador não permite concessões.
E a relação entre tios e sobrinhos? A verificação estatística
mostra a que ponto se revela parcimoniosa na lei
portuguesa. Estes casamentos, raros, não parecem
esconjurar, na desmotivação legislativa, o aspecto
eugénico. Mas muito dificilmente seriam concebíveis fora
do âmbito de uma família alargada.
Temos, pois, um acervo de fundamentos da invalidade
matrimonial que mostra não ser esta uma sede em que a

52
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

lei portuguesa vinca um modelo de autonomia face às


demais. Inversamente, o modelo é comum, dilui-se, nos
seus principais traços, dos modelos que encontramos em
outros países da União Europeia, de Língua Latina na 2009
América.
O problema estará então em saber que elementos destas
regras são submetíveis à consideração dos nossos
tribunais, ou antes, totalmente devolvidas aos tribunais
eclesiásticos.
A Constituição refere que a lei civil é o lugar de acolhimento
das normas de constituição, dissolução e efeitos do
casamento. Parece que a porta se abre ao Direito Canónico
através de uma subtileza argumentativa. Pois que o
processo preliminar de constituição e as suas
consequências seriam um alliud que se arreda deste critério
de submissão.
Mas será assim? As condições de validade marcam a
fisionomia jurídica de qualquer negócio jurídico. O processo
de reconhecimento da sua eventual validade é crucial neste
plano. Não vejo como sustentar que os efeitos da
constituição do casamento devam separar-se dos restantes
efeitos da relação matrimonial.
No entanto, dois aspectos são chamados a depor agora, em
sede de outorga ou não do juízo da oportunidade de um
critério inválido aos tribunais judiciais.
Em primeiro lugar. Os critérios fundantes desta validade
são homogéneos. Assim acontece na ordem jurídica
portuguesa desde o século XIX, vigorava o Código de
Seabra. Já aludimos a este ponto, sobre o qual convém
tornar. Será a lei ordinária a influenciar o Direito Canónico
neste ponto, cristalizando um fenómeno de diálogo entre o
braço civil e o braço eclesiástico em que este não deixava
por isso, sabemo-lo, de deter a parte mais importante.
Ora, esta influência permeia o Direito da Igreja, permite que
venha imbuir-se, neste ponto, de uma afinidade laica. Não
haverá razões, muito tempo depois da aplicação inicial do
critério, para suspeitar da identidade essencial que exibe
face ao direito português.

53
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

54
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

55
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

56
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

6ª e 7ªAulas
Fontes Constitucionais do Direito da Família (continuação)
Do casamento civil e católico no Código de Seabra à República

Recordam as personagens que a marcaram no Direito das Mulheres, 2009


ou melhor, na perseguição do sonho por esse Direito que não
chegaram a conhecer: Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete,
Carolina Beatriz Angelino, mais recentemente, Elina Guimarães. E
Isabel Telo de Magalhães Collaço.
A República, a Lei do Divórcio, os “desencantos”
Imaginamos e acertamos se pensarmos as mais antigas do grupo,
que viveram a implantação da República, rejubilar com o divórcio
católico. Ele é decretado em 1910, num intuito que foi apresentado
como significativo passo de aproximação aos direitos das mulheres,
ao reconhecimento da sua cidadania.
Sucede, porém, que se esse foi alguma vez o objectivo do Divórcio,
ficou por aí. Não se reconheceram consequentemente o direito de
voto das mulheres, nem muitos outros. No fim da vida, Ana de Castro
Osório proferia palavras amargas contra o movimento político
republicano, em que tanto acreditara.
Concluímos, pois, que da Lei do Divórcio fica na sociedade portuguesa
a expressão de um arrimo de hostilidade para com a Igreja. A
sociedade, essa continuou casando catolicamente por vezes às
escondidas, sendo difícil vislumbrar as cifras reais do casamento
católico nestes anos que duram até 1940.
Concordata com a Santa Sé, 1940
Mas é aí que, com a Concordata celebrada com a Santa Sé, o Estado
Novo depõe o regime republicano e altera a situação.
_ O primeiro ponto em causa na ordem de considerações é o divórcio
católico, agora proibido. Compreende-se que é e será a questão
fulcral neste contraponto entre as diferentes aplicações dos direitos
católico e laico e as hierarquias que exprimem ante a sociedade.
Proibindo o divórcio católico, num país católico onde a própria
tradição favorece a opção matrimonial, faz-se sentir a força real de
um sistema normativo. Neste caso, o da Igreja. Essa proibição
acontece.
_ Em outras matérias, semelhantes, aliás, às que entrevimos ao
tempo do Código de Seabra, manifesta-se a importância do
casamento civil. O regime de invalidades continua a merecer a
aceitação da Igreja, como acontece com o regime de impedimentos.
_ Desta vez, porém, a reacção da sociedade portuguesa faz-se sentir
com outro fulgor. Pelos anos 50 proliferam separações, seguidas de
uniões de facto no seio das quais nascem filhos “fora do casamento”,
“ilegítimos”, nos termos da Constituição e da lei. A situação atinge
aqui e além o povo, os mais humildes, mas impende fortemente
sobre uma classe que, não abdicando do seu catolicismo, milita os
princípios de uma nova Igreja. Exprime-se o clima do Concílio
Vaticano II. A sociedade portuguesa inconforma-se.
A literatura vai por aí. Luís de Stau Monteiro escreve um livro que
incomoda. Outros se seguem.

57
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

O Acto Adicional, 1975


_ Vimos que o 25 de Abril descomprime este plano de desfasamento
entre o poder novo e a Igreja na sua expressão de 1940. Entra em
vigor, em 1975, o Acto Adicional à Concordata e repõe a possibilidade
de decretamento do divórcio pelos tribunais portugueses. 2009
Esta nova situação reveste uma particular importância, porque não é
apenas a alteração que o Acto Adicional à Concordata produz que
vem trazer problemas intrincados à inesgotável teia de relações
complexas entre as leis da Igreja e do Estado. Com efeito, a entrada
em vigor da Constituição da República de 1976 vem impor, no artigo
36º.2, a submissão ao legislador laico das matérias relativas ao
processo de constituição, efeitos e dissolução do casamento por
divórcio. E, se a questão da dissolução surgira entretanto resolvida, o
mesmo não corre a benefício de várias outras. Sabe-se que o Código
Canónico contém a figura do casamento rato e não consumado, cujo
efeito não passa pela invalidade mas pela dissolução. Tudo está em
saber qual a atitude do Estado português: aplicar automaticamente a
norma, aceitar o acrisolamento do seu regime no universo do direito
matrimonial da Igreja, ou antes impor a voz do direito português,
rejeitando assim uma tal aplicação e consequente reconhecimento.
Sabe-se que a matéria logo dividiu a doutrina.
_ Os argumentos mais relevantes aduzidos em favor da autonomia da
Igreja e da sua capacidade para impor as suas normas adveio dos
autores próximos da tese segundo a qual a importância da Igreja na
sociedade portuguesa não decorre apenas da Constituição, mas de
uma tradição ancestral e de um peso secular condicionadores e
fundamentadores a um tempo de um regime específico face a outras
entidades estaduais, e fundamentadoras de um regime que seria de
clara preponderância nessa hierarquia necessariamente merecedora
de reconhecimento.
_ Noutro sentido, ouvem-se também vozes. E agora não há
legitimidade para sobrepor, ante a clareza do texto do artigo 36º e
sobretudo, ante a importância reconhecida à Santa Sé, configurada
entre os Estados com quem tem relações o Estado português,
nenhum elemento que traduza supremacia sua face aos demais
estados com os quais Portugal se relaciona. Sendo assim, não se
aplicariam na ordem jurídica portuguesa decisões que não passassem
pelo crivo da lei nacional.
A Concordata 2004
O tema não perde actualidade e está na raiz da Concordata 2004 que
vem a ser celebrada.
A Concordata 2004 marca no ponto que nos importa, a realidade
jurídica matrimonial, um marco decisivo. É certo que não foi a ordem
jurídica portuguesa alterada durante tempo algo longo após a sua
entrada em vigor. No entanto, se dúvidas subsistiam acerca do
influxo do direito nacional sobre o da Santa Sé, estas dissipam-se
agora.
Reconhece-se que, pelo menos doravante, será a entidade
portuguesa legitimamente envolvida a curar dos problemas relativos

58
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

a todas as invalidades matrimoniais, mesmo todas as católicas, posto


que se pretenda que produzam efeitos na ordem jurídica portuguesa.
A compreensão deste aspecto atinge-se estabelecendo a comparação
com o regime que esteve em vigor até à Concordata e que aliás a
procedeu. 2009
De acordo com esse, a matéria relativa a certas invalidades
matrimoniais era de competência reservada dos tribunais
eclesiásticos. As decisões subiam, de acordo com os procedimentos,
até à cúspide, ao Tribunal Apostólico, posto o que seriam reenviadas
por este a um tribunal civil português. Aqui, a função que competia ao
nosso aplicador era muito parcimoniosa. Deveria, segundo a lei,
limitar-se à transcrição da decisão proferida, à sua divulgação.
Este, em síntese, o regime que desenvolveremos infra.
Este regime, profundo gerador de assimetria entre a função
jurisdicional da Santa Sé e do Estado português, não só passava uma
certidão de menoridade a este último. Era a própria função do
Tribunal, órgão de soberania, que surgia desvirtuada. Um tribunal
julga, decide. Não tem nenhuma afinidade com a sua missão de
soberania transformá-lo numa entidade de registo de sentenças
provindas de outros tribunais. O reconhecimento na ordem jurídica
portuguesa de qualquer decisão da Santa Sé, posto que assente nos
critérios que muitos autores sempre sufragaram, compatibiliza-se
com uma manifestação prévia ao processo. Mas nunca se
compreenderá que os tribunais da nossa ordem jurídica desvirtuam
as funções que constitucionalmente lhes competem.
Compreende-se portanto a inflexão legislativa. Que ocorre cinco anos
depois, em todo o caso, o que bem dá conta da resistência à
mudança neste particular. Agora, o processo de dispensa passa pelos
tribunais portugueses, sede da sua apreciação, para que valham na
ordem jurídica nacional.
A lei, utilizando o sistema em presença, adopta como ponto de
ancoragem a qualidade estadual da Santa Sé. Porque esta é um
Estado se justifica que tenha a sua produção normativa o regime
próprio dos tratados internacionais. Aliás, isso mesmo acontece, na
nova versão do artigo 1626º.
Dir-se-á que o problema não é discutido no terreno
constitucional. Aliás, não surge a menor referência a tal respeito.
Em bom rigor, é o momento pactício que firma a Concordata 2004
que vem pôr cobro à querela, aceitando a Santa Sé uma tramitação
diferente, com sinergias cometidas ao Estado português, na matéria
em questão.
O Artigo 1626º e as suas duas versões
Procurando sistematizar a matéria em apreço nesta sede, elencaria:
_ Um regime que atribui à Igreja a apreciação de invalidades do
casamento e bem assim, de um fundamento que exorbita tais
invalidades, pondo fim à sociedade conjugal sem ser por divórcio ou
morte: o casamento rato e não consumado, assim decretado Pela
Santa Sé. Este regime, que colocava toda a margem de apreciação e
decisão no foro religioso, determinava para o Estado português uma

59
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

incumbência diminuta: transcrição, accionamento dos mecanismos de


produção de tais efeitos.
_ Este regime plasma-se no artigo 1626º até este ano (2009) e por
sua causa ergueram-se vozes de discordância face à sua adequação
constitucional. 2009
_ Com a Concordata 2004 e mais precisamente em decorrência do
artigo 16º da mesma, a ideia legitimadora pela própria Santa Sé de
um seu confinamento nesta sede faz-se ouvir. E será a Concordata,
ela própria, a verberar a actuação dos tribunais nacionais em
matérias que cabem no âmbito de aplicação da sua soberania.
_ Mas hão-se, como dissemos, passar alguns anos (2004-2009) até
que o Estado legisle.
Razões? Não as avento aqui. Olhámos a matéria no sentido de
compreender o Casamento face à Constituição. Afinal, esta mudança
coloca ainda um problema constitucional _ equipara o Direito que se
aplica aos casamentos religiosos aos tratados internacionais. Ou seja:
permite-se olhar a Santa Sé como um Estado entre os outros!
_ Mas não deixemos de reparar que foi a Santa Sé a permitir esta
nova tramitação dos casamentos na Concordata 2004, artigo 16º. Ou
seja. Diferentemente do que acontecera no passado, é agora o
Estado da Santa Sé que antecipa um problema da comunidade
a que aspira aplicar-se e aceita uma resolução. Vemos, decerto,
uma atitude notável no modo de lidar com o problema: não se impôs
um regime ao Estado português, católico mas que ao mesmo tempo
não abdica de certas regras suas. Vemos harmonização, respeito por
valores básicos nacionais. Uma atitude comunicativa que marca em
crescendo as grandes instituições que sabem da vantagem enorme
em favorecer o contacto, a tolerância. A Igreja dá aqui um exemplo
de grande impacto à comunidade internacional.
Ao exarar a jovem norma do artigo 1626º, o Estado português insiste
em terminologia que, vincando a desconformidade entre a lei em
vigor e o preceito já aceite, outorgado pela Santa Sé em 2004, nem
por isso abdica de sublinhar a manifestação de soberania que a lei
doravante conterá.
Com efeito, os pressupostos da nova norma são, de acordo com o
Decreto – Lei 100/2009, assentes na desconformidade que ora se
regista entre a Concordata e a situação em vigor.
Em abono do carácter pacífico que grassa na sociedade portuguesa
sobre a matéria cita os tribunais: vêm-se estes recusando a dar
seguimento ao processo de revisão de sentenças estrangeiras.
_ Enfim, assume a lei o papel activo dos tribunais portugueses, a
requerimento dos interessados;
_ Altera igualmente o Código do Registo Civil (artigo 7º.3), impondo
que as decisões averbadas aos assentos sejam aquelas que tenham
passado o crivo do processo de tramitação;
_ Admite, por último, a possibilidade de a Igreja se assumir como
parte requisitante ao Tribunal civil a notificação das partes, peritos,
de diligências de probatório ou outras, sendo as margens de
indeferimento do pedido muito parcimoniosas.
(estamos, claro, analisando o artigo 1626º na versão em vigor).

60
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

_ E, afinal, que casos são estes de que estamos falando, a que se


virão a aplicar estas regras?
1. Os casos de nulidades do casamento católico, uma invalidade
que a ordem jurídica portuguesa não congrega. Mas recebe, em
contrapartida, inexistência, anulabilidade. Já, como se referiu, 2009
por igual o casamento rato e não consumado corresponde a
uma realidade qualificada pela Igreja e desconhecida pela
ordem jurídica portuguesa.

2. Um pouco à frente (de seguida) apresentarei o elenco das


invalidades do nosso Direito, para que vejamos o universo
semelhante, no Direito português, a este aqui em causa. O
mesmo acontecerá sobre casamento rato e não consumado,
muito importante para os católicos, porque permite pôr fim ao
casamento católico sem a qualificação de divórcio atribuída à
situação e mesmo, sem o seu enquadramento portas dentro
das invalidades, uma vez que existe uma discrepância óbvia
entre a figura e estas últimas.

3. A diferença, pois, entre o tratamento jurídico do casamento nulo


e rato mas não consumado consiste no seguinte. Antes da Lei
100/2009, a Igreja apreciava o processo, o qual subia à sua
cúspide e depois, era devolvido ao Tribunal da Relação mais
próximo, que ficaria incumbido de proceder à sua transcrição. A
actuação dos tribunais portugueses era passiva, neste domínio.

4. Hoje, não há como fugir à regra de que o juiz nacional é juiz da


oportunidade da norma, da sua aplicação ao caso configurado.
E, se porventura se opuser, ela não terá como ganhar voz
activa pelo processo.

Mantém-se, no plano dos princípios, a questão: cedeu a Santa Sé em


razão da especificidade do caso ou foi mais longe do que isto?
Diria que foi mais longe, mas no sentido já apontado: a vinda ao
encontro do reconhecimento de uma verdadeira “margem de
apreciação” pelos entes internacionais da realidade dos Estados com
que estabelecem relações. É uma decisão casuística? Porventura. É,
acima de tudo, uma solução geradora de consenso dentro de uma
lógica que não violou princípios fundamentais, de parte a parte. É
uma decisão moderna, no plano jurídico.
O sentido normativo da decisão concordatária e da decisão do
Estado Português; Síntese do regime apresentado.
Ocorre, a quem enfrenta este tema em Direito da Família, questionar
do interesse em tanto escrúpulo de desenvolvimento da interpretação
destas normas. Porquê, afinal?
Peçamos ajuda a quem de Direito. A própria lei.

61
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

De acordo com a Concordata, em nome dela, consideravam-se à


margem de qualquer juízo de oportunidade laica as decisões em
razão de nulidade do Casamento. Ora, sendo que a nossa ordem
jurídica, de entre o acervo de casamentos inválidos, os não
contempla, conclui-se facilmente que a Igreja chamava a si a 2009
apreciação de casos ditados pela sua normatividade específica.
Depois, surge a categoria do “casamento rato e não consumado”.
Trata-se de uma modalidade de termo do Casamento, mas muito
específica. Vejamos:
_ Prevista nos Cânones 1142 e 1697 do Código de Direito Canónico;
_ Dispensa pedida ou por ambos os cônjuges,
Ou
Só por um deles mesmo contra a vontade do outro, para obter a
dissolução do casamento;
E este casamento foi validamente celebrado.
Porém, é um casamento por regra não consumado.
O ponto está em que a não consumação comporta excepções.
Incompatibilidade de caracteres, separação durante vários anos;
delito muito grave que um tenha cometido; e por diante.
Perguntar-se-á: não é mais ágil o divórcio?
É-o juridicamente, mas não tem o mesmo efeito no seio da
comunidade dos crentes. Daqui, a opção de muitos católicos por esta
figura.

Ora, até hoje, ela transitava, como se disse, pelos tribunais


eclesiásticos. Subia à cúspide; e só mais tarde, após a decisão
derradeira, intra-eclesiástica, era devolvida aos tribunais civis para
que a tornassem operacional.
Foi este o sistema que mudou com a novel lei, o Decreto-Lei
100/2009. Os tribunais portugueses têm voz activa, poder decisório
na matéria.
Se bem atentarmos, decorre do artigo 16º.1 da Concordata 2004 que
“As decisões relativas às nulidades e à dispensa pontifícia do
casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas
competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior,
produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após
revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo
competente tribunal do Estado…”
Ou seja. A paridade entre o texto do artigo 16º e o regime ora em
vigor é muito evidente.
Concluindo e observando: o requerimento pode ser apresentado
apenas à instância religiosa. Produzirá efeitos junto da Santa Sé, a
decisão proferida. Porém, a produção de efeitos em Portugal está
dependente da segunda solicitação, junto das autoridades judiciais
portuguesas.
EXCURSO: INEXISTÊNCIA; INVALIDADES MATRIMONIAIS
Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos
às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de

62
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português,


uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento
religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos
tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se 2009
tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de
problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no
Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os
casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os
casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.

Casamento: Inexistência, Invalidades


Não me parece viável a compreensão do regime de invalidades de
formas de Casamento, designadamente de Casamento Católico,
afloradas pela CRP e resolvidas pela lei civil em vários momentos,
sem estarmos na posse de uma noção geral acerca das invalidades
que perpassam o Casamento segundo a lei em vigor.
Por isso voltamos ao tema, com abordagem tópica mas que
permita guiar o seu acompanhamento.
Remeto para a lei e para a doutrina citada o regime pontual, vertido
ao longo dos preceitos do Código Civil, para esta matéria. Chamando,
naturalmente, a atenção para o prazo internupcial exigido, quando
este se impõe, bem como a sua justificação.
Vejamos primeiro os casamentos inexistentes (artigo 1628º).
Serão aqueles que tenham sido celebrados perante alguém que não
tenha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de
casamento urgente;
O casamento urgente não homologado;
O Casamento que foi celebrado entre pessoas que não manifestara a
vontade nesse sentido.
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui
aflorado nos seus tópicos mais salientes.
O casamento inexistente não produz efeitos
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade Cfr.
Artigo 1631º).
Será anulável o Casamento contraído com impedimento dirimente;
Celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de
vontade ou com vontade viciada por erro ou coacção;
Sem a presença de testemunhas, nos casos em que a lei as exija.
[cumpre analisar com cuidado os artigos 1624º e seguintes, relativos
a situações que configuram falta ou vícios da vontade]

HIPÓTESES A RESOLVER

Casamentos cuja invalidade decorre de falta de vontade de


celebrar matrimónio:
Caso 1

63
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem
em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora
ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X,
que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na
liderança da sua vida: Eulália, precisamente.
2009

Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a


expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria
a primeira; mas não quer cair na lama e casa.

Como se qualificará a situação? [veremos o problema de novo


quando da análise do Casamento]

Caso 2

E se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando,


concluísse que a actual situação económica do futuro marido e
a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro
apetecido?

Idem, nota anterior

Caso 3

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe


que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime
organizado, militância terrorista…

Releva este erro para efeito de invalidação?

Ibidem, primeiras hipóteses.

Casamentos em que se verificam Impedientes (artigo 1604º):


a especificidade.

64
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles


parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda
cultural.
Caso 2009
Se Teresa resolve casar com Urbano, sendo que se trata de sobrinha
e tio, o casamento não está fora do horizonte jurídico.
Porém, em que termos? E que sucederá, caso não sejam promovidas
antes as providências necessárias?
[A lei separa as situações em que a impossibilidade de casar incide
sobre certas pessoas daquele casos que afinal estão na linha jurídica
das invalidades negociais em termos amplos. Não estando ainda no
âmbito da análise dogmática do Casamento, chama-se a atenção
para a sistematização da Lei, que reflecte esta preocupação].

REVISÃO DE MATÉRIA

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível

E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar


àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso
nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do
Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do
grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de
facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida
que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de
parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos
vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se
submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto,
meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem
Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como
tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido
conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se
pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a
união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu
compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram.
Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da
situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não
manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus
efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de
indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com

65
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a


existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada
momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o
modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito 2009
da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de
facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes
“Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a
bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma
interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um
cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados,
em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa
do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste
unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o
argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos
morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do
ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança
jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros
adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do
que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a
expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de
parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e
do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou
privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão
perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o
cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens.
Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração
de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de
legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem
legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica
para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.
Direito da Família na Constituição (continuação)
Chama-se a depor, agora, o papel que a Constituição comete à
protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida,
É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge
aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações
familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de
haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a
ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação.
Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de
gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo
evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico
desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva,
a perpassar toda a sequência procriativa.

66
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo


desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a
origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do
“factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia
temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela 2009
dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de
desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da
álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo
suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares
que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos
ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e
afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta
reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um
direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à
maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que
antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E
posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra,
convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as
nossas mundivisões, padrões…
Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e
encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei,
ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a
constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a
um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema
cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma
mais forte consciência social das obrigações para com as crianças
corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no
direito criminal perante os menores.
Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio,
que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem
tão breve e remissiva.

67
APONTAMENTOS DE AULAS DE DIREITO DE FAMILIA

2009

68

Das könnte Ihnen auch gefallen