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LIELSON ZENI

DA PROSA PARA OS QUADRINHOS:


“O PREÇO”, DE NEIL GAIMAN

CURITIBA
2008
LIELSON ZENI

DA PROSA PARA OS QUADRINHOS:


“O PREÇO”, DE NEIL GAIMAN

Monografia apresentada como trabalho final


para a obtenção dos créditos da disciplina
Orientação Monográfica II do curso de Letras –
Português: Bacharelado em Estudos Literários
da Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luci Collin

CURITIBA
2008
ÍNDICE

INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 4
1. CONCEITOS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS __________________________ 7
2. EMBASAMENTO TEÓRICO____________________________________________ 10
2.1. A teoria barthesiana ______________________________________________________ 10
3. ANÁLISE ____________________________________________________________ 14
3.1. Análise do conto _________________________________________________________ 14
3.1.1. Enredo _____________________________________________________________________ 14
3.1.2. Espaço _____________________________________________________________________ 14
3.1.3. Tempo _____________________________________________________________________ 15
3.1.4. Personagens _________________________________________________________________ 16
3.1.5. Narrador ____________________________________________________________________ 17
3.1.6. Intertextualidades e símbolos ____________________________________________________ 17
3.1.7. Imagens ____________________________________________________________________ 19
3.1.7.1. O Diabo ________________________________________________________________ 19
3.1.7.2. Gato Preto ______________________________________________________________ 20
3.1.7.3. O ambiente, a casa e os arredores ____________________________________________ 21
3.1.8. Divisão em cenas _____________________________________________________________ 23
3.2. Análise da história em quadrinhos __________________________________________ 25
3.2.1. Enredo _____________________________________________________________________ 26
3.2.2. Espaço _____________________________________________________________________ 26
3.2.3. Tempo _____________________________________________________________________ 26
3.2.4. Personagens _________________________________________________________________ 27
3.2.5. Narrador ____________________________________________________________________ 27
3.2.6. Intertextualidades e símbolos ____________________________________________________ 28
3.2.7. Imagens ____________________________________________________________________ 28
3.2.8. Divisão em cenas _____________________________________________________________ 29
3.3. Análise comparativa ______________________________________________________ 30
CONCLUSÃO __________________________________________________________ 32
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______________________________________ 34
ANEXO 1 ______________________________________________________________ 36
ANEXO 2 ______________________________________________________________ 38
INTRODUÇÃO

A intenção desta pesquisa é investigar de que modo o meio utilizado influencia a


mensagem artística transmitida, mais especificamente a narrativa. O que muda em uma
história pensada para ser publicada em livro caso seja adaptada para áudio, por exemplo?
Para isso, vou analisar obras com explícita intenção narrativa, pois oferecem
claramente uma história para ser estudada. Na tentativa de entender os resultados de meios
artísticos diferentes sobre uma mensagem com alto grau de semelhança, penso ser
adequado um estudo interartes ou, pontualmente, um estudo sobre adaptação.
Em busca desse grau de semelhança, com intenção de tornar a proposta mais
coerente, usarei de uma mesma história, apresentada em dois meios diferentes. Duas obras
que compartilham a história e difiram em relação ao meio de apresentação. Com isso reúno
elementos suficientes para a análise de uma adaptação: pelo menos dois meios diferentes,
expressando uma história similar, e, nesse caso, interessados em manter uma proximidade
significativa.
O movimento dessa adaptação se deu de um texto em prosa ficcional – um conto –
para uma história em quadrinhos. Esse tipo de análise já desenvolvi em outra
circunstância1, quando estudei adaptações em quadrinhos das obras de Franz Kafka2.
Na pesquisa atual, analiso o conto “O preço”, do livro Fumaças & Espelhos (1998),
escrito por Neil Gaiman3 e sua posterior adaptação para o formato de história em
quadrinhos, em 2004, com roteiro do próprio Gaiman e desenhos de Michael Zulli4. Ou
seja, temos a adaptação para outro meio feita pelo próprio autor do conto dito original.
Diante de uma mesma história, recriada pelo mesmo autor, acredito sobrar espaço
para que se salientem as peculiaridades de cada meio.
A pesquisa deste trabalho é orientada para encontrar e, se necessário, adaptar
categorias teóricas que permitam comparar adequadamente as duas obras.

1
Em dissertação intitulada A metamorfose da linguagem: análise de Kafka em quadrinhos, defendida em 31
de outubro de 2007, no Programa de Pós-graduação em Letras da UFPR.
2
No caso de minha dissertação, adaptações de Peter Kuper, intituladas Desista! e outras histórias e A
metamorfose.
3
Chamado a partir desse ponto apenas de Gaiman.
4
Artista plástico norte-americano que habitualmente trabalha com quadrinhos. Inclusive, desenhou outras
histórias roteirizadas por Neil Gaiman.

4
Cabe aqui uma observação: mesmo que a história em quadrinhos exista como
adaptação do conto preexistente, o interesse é de que modo ela se realiza como história em
quadrinhos. A tentativa é avaliar cada obra em relação a seu próprio meio e não como uma
produção menor e dependente daquilo que se diz o “original”, ou seja, não será posto em
questão a “fidelidade da adaptação” ou quanto reproduz de elementos da obra primeira.
Os procedimentos para a análise foram selecionados a partir da avaliação de como
os elementos da história se relacionam com o meio usado para apresentar a história,
buscando determinar relações estáveis, mas não categorias fixas.
Seguindo esse tipo de abordagem, aponto pelo menos duas possibilidades de
trabalho:
1) pensar a adaptação como uma leitura da obra primeira. O que as escolhas do
adaptador carrega da leitura que fez da obra fonte. Pensar as razões dessas escolhas pode
produzir uma análise bastante consistente da obra de origem;
2) pensar na adaptação como uma obra independente, avaliada pelo seu valor como
produção única. Por esse viés, o importante é quão bem realizada é a obra adaptada. Porém,
o fato de ela ser uma adaptação não pode ser relegado, pois faz parte dos princípios de sua
concepção.
No caso de “O preço” o autor da obra-fonte é também o responsável pela adaptação,
pois o responsável pelo desenvolvimento da história, no caso das HQs (histórias em
quadrinhos), é o roteirista. A relação de semelhança entre o conto e a história em quadrinho
se dá pela narrativa, pois esta tem a intenção de é narrar a mesma história que aquele – ou o
mais próximo possível disso.
Portanto, se faz necessário uma teoria de base que discuta a narrativa e o modo que
ela se adapta a outros meios. Pensando nisso, proponho como a base teórica o texto de
Roland Barthes, Análise estrutural da narrativa. A opção por ele se explica pela forma que
Barthes define narrativa:

[...] (ela) pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou
móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na
lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia,
na pantomima, na pintura [...], no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers,
na conversação. (BARTHES, 1972, p. 18)

5
O pressuposto de Barthes é que a narrativa está presente onde existir linguagem,
seja ela verbal ou não, que é uma proposta bastante útil para este trabalho. Sua teoria é tão
ligada à base do que é narrativo, e por conta disso tão abrangente, que podemos pensar em
algo narrativo independente do meio utilizado. A relação entre o que se conta e o como se
conta é secundária, mas não desprezível. É interesse desta pesquisa entender um pouco
mais sobre esse trânsito de linguagens.
A narrativa-base é mantida, o que se altera é a relação do enredo com a linguagem,
ou seja, sua enunciação. Essa enunciação usa dos artifícios possíveis do meio que a
enuncia. Portanto, uma história em quadrinhos e um conto com mesmo enredo terão suas
enunciações necessariamente diferentes. E quanto essas enunciações diferentes são capazes
de transmitir a mesma história ou algo muito próximo a isso? Essa é a questão que norteia
esta pesquisa.

6
1. CONCEITOS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Para definir histórias em quadrinhos, não basta usar do senso comum e dizer que são
desenhos acompanhados de palavras, pois nem sempre temos desenhos e palavras ao
mesmo tempo em um quadrinho. Além do que, propor a definição como o encontro entre o
aspecto pictórico e o verbal, nos permite incluir nessa mesma definição as histórias
ilustradas, quadros com legenda, catálogos de arte e até mesmo filmes legendados.
Para uma problematização maior, podemos pensar em que medida as letras – o que
venho chamando de verbal – não são também aspectos visuais, pictóricos, já que são
apresentadas visualmente, ou seja, elas impressionam a recepção visual do espectador.
Tentando evitar esse tipo de indefinição entre a imagem pictórica e a imagem
verbal, proponho o entendimento desses elementos do seguinte modo: o elemento verbal da
história seria a representação da produção verbal e o elemento pictórico como
representação do visual. No primeiro caso, o verbal representará as vozes dos narradores e
personagens, e no segundo caso, como representação daquilo que é visto, visualizado, ou
melhor, percebido5.
Porém, nada impede que o discurso narrativo seja apresentado com imagens ou que
as palavras sejam graficamente trabalhadas, contendo uma carga de sentido além do seu
significado verbal. Então, de que forma podemos entender qual a função que esses
elementos ocupam nas histórias em quadrinhos? E, até mesmo, se eles ocupam posições
diferentes?
O discurso pictórico se filia à arte do desenho e pintura, e o discurso verbal à arte da
prosa e poesia. Isso nos é bastante claro. Como essas duas artes têm provado, qualquer
coisa pode ser dita/mostrada por qualquer uma delas, com diferentes graus de impacto e
diferentes intenções autorais.
Partindo desse conceito de que lidamos com elementos diferentes, o verbal e o
pictórico, precisamos entender como eles agem um em relação ao outro: competem,
complementam-se, reforçam-se, anulam-se? Acredito que a resposta seja: justapõem-se.

5
É importante entender que essas categorias não são estanques ou absolutas e servem às tentativas de
elucidação do conceito de história em quadrinhos.

7
Penso em justaposição aqui no sentido eisensteiniano do termo: “[...] dois pedaços
de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma
nova qualidade, que surge da justaposição. Esta não é, de modo algum, uma característica
peculiar do cinema, mas um fenômeno encontrado sempre que lidamos com a justaposição
de dois fatos, dois fenômenos, dois objetos.” (EISENSTEIN, 2002, p. 14, grifo do autor).
A definição para história em quadrinhos, de acordo com Scott McCloud, é:
“Imagens pictóricas e outras justapostas, em seqüência deliberada, destinadas a transmitir
informações e/ou a produzir uma resposta no espectador” (McCLOUD, 1995, p. 9).
Em sua definição, McCloud não pensa a idéia dos signos verbais explicitamente,
porém separa as imagens pictóricas de todas as demais, permitindo esse tipo de análise de
minha parte. Considero que essa definição caberia também ao cinema. Porém, a partir dela,
já podemos descartar os livros ilustrados, catálogos de arte e quadros legendados nos quais
pensávamos acima. O fato de elas serem deliberadamente justapostas, ou seja, pensadas,
estudadas para que funcionem ao mesmo tempo em relação de complementaridade, nos
deixa diante de uma arte de essência mista e seqüencial. Assim como o cinema. De acordo
com Moacy Cirne, um dos pioneiros no estudo das histórias em quadrinhos no Brasil, as
aproximações e diferenças entre os dois meios é esta:

Cinema e quadrinhos – artes essencialmente narrativas [...] são formações semióticas como o
são outros discursos artísticos e/ou literários. Nos dois há uma primeira aproximação semiótica:
a imagem. Mesmo que no cinema a imagem fotografada esteja em movimento, através do
processo mecânico provocado pela projeção de 24 fotogramas por segundo, e nos quadrinhos,
veiculadas pela mídia impressa, a imagem desenhada seja “congelada” [...] (CIRNE, 2000, p.
134).

As semelhanças entre os dois meios são de essência de funcionamento: meios


mistos (verbal e pictórico), narrativos, fortemente calcados no apelo visual. Porém, poucos
confundiriam uma história em quadrinhos com um filme. Diferenças significativas estão
nos modos de recepção.
Os quadrinhos se destinam a um receptor e se portam mal diante de uma platéia ou
de uma sala de recepção. Nesse sentido, as HQS são bastante intimistas, pois não se dão
facilmente a leituras públicas. Como ler uma imagem? O hipotético leitor da HQ para um
grande público, além de enunciar o conteúdo verbal, deveria dar conta de apresentar
também o conteúdo pictórico, sem o qual o entendimento pode ser prejudicado. Como

8
explicar uma imagem? Como recuperar o impacto da apreensão simultânea de diversos
elementos?
O cinema pode se expressar audiovisualmente, enquanto resta aos quadrinhos
somente o ‘visualmente’. Há, nesse aspecto visual, uma enorme diferença no movimento de
cada um desses meios: o cinema se mostra pelo movimento percebido, pela ilusão óptica
dos fotogramas se movendo mais rapidamente que a capacidade de captação do olho
humano; as HQs criam o movimento imaginado, pois entre um quadro e o outro, existe a
mudança dos acontecimentos e a transição entre eles acontece na imaginação do seu leitor.
Avaliando a definição de Cirne, percebe-se que ela não comporta o cinema.

Quadrinhos são uma narrativa gráfico-visual, impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes
que agenciam imagens rabiscadas, desenhadas e/ou pintadas. O lugar significante do corte – que
chamaremos de corte gráfico – será sempre o lugar de um corte espácio-temporal, a ser
preenchido pelo imaginário do leitor. Eis aqui sua especificidade: o espaço de uma narrativa
gráfica que se alimenta de cortes igualmente gráficos (CIRNE, 2000, p. 23).

Cirne (2000, p. 174) ainda complementa sua definição ao acrescentar a importância


da “[...] precisa articulação entre o dito (as imagens) e o não-dito (as elipses provocadas
pelos cortes), aí se dá o lugar semiótico das ‘historietas seqüenciadas’” na execução da HQ.
Acrescentaria a essa definição a “justaposição deliberada” de McCloud. Ou aquilo
que Umberto Eco chamou se sintaxe dos quadrinhos – e que Eisenstein chamaria de
montagem –, ou seja, sua organização do conteúdo em nome da comunicação e da estética.

A relação entre os sucessivos enquadramentos mostra a existência de uma sintaxe específica,


melhor ainda, de uma série de leis de montagem. Dissemos ‘leis da montagem’, mas o apelo ao
cinema não nos pode fazer esquecer de que a história em quadrinhos não tende a resolver uma
série de enquadramentos imóveis num fluxo contínuo, como no filme, mas realiza uma espécie
de continuidade ideal através de uma fatual descontinuidade. A história em quadrinhos quebra o
continuum em poucos elementos essenciais. O leitor, a seguir, solda esses elementos na
imaginação e os vê como continuum – esse é um dado mais que evidente, e nós próprios, ao
analisarmos a nossa página, fomos levados a resolver uma série de momentos estáticos numa
cadeia dinâmica. (ECO, 1970, p. 147, grifos do autor)

Então, pode-se dizer que a história em quadrinhos é essencialmente essa


justaposição não-casual entre os elementos pictóricos e verbais, com um propósito estético.
Em caso de narrativas em quadrinhos, o movimento das ações acontece no entrequadro, na
sarjeta6, na montagem e distribuição espacial dos quadros.

6
Sarjeta é uma das denominações possíveis para o espaço entre um quadrinho e outro.

9
2. EMBASAMENTO TEÓRICO

O principal fundamento teórico para este trabalho será o texto de Roland Barthes
Análise estrutural da narrativa, adicionado, quando necessário, de teoria das histórias em
quadrinhos – Scott McCloud e Will Eisner – para lidar com as peculiaridades do meio.

2.1. A teoria barthesiana

O ensaio de Barthes serve à proposta interartes deste trabalho, pois entende a arte de
contar uma história como algo essencialmente humano e que existe um modelo comum de
narrativa: “Este modelo está implicado em todo discurso (parole) sobre a mais particular, a
mais histórica das formas narrativas.” (BARTHES, 1972, p. 20).
A Análise estrutural da narrativa, como já dá a entender pelo nome, é de uma fase
estruturalista dos estudos do teórico francês. Barthes acreditava que ou pensamos que a
narrativa é filha do caos, gestada pelo gênio criador, ou que ela tem uma estrutura acessível
a análise. E ele pregou a segunda opção.
Barthes considerava imprescindível uma ciência-modelo, que serviria de apoio para
desenvolver seus trabalhos de análise da estrutura narrativa. Ele elegeu a lingüística como
essa ciência-base, por entender a narrativa do seguinte modo: “Estruturalmente, a narrativa
participa da frase, sem poder jamais se reduzir a uma soma de frases: a narrativa é uma
grande frase, como toda frase constatativa, é de certa maneira o esboço de uma pequena
narrativa.” (BARTHES, 1972, p. 24).
Assim como a lingüística estruturalista faz com a linguagem, Barthes propôs a idéia
de níveis hierarquizados para a análise da narrativa. Do mesmo modo que a lingüística pode
descrever uma frase em níveis (nível fonético, fonológico, morfológico, semântico,
gramatical, contextual), cada nível com suas unidades mínimas, a análise da narrativa
também descreve em níveis hierárquicos. Por exemplo, “... um fonema, embora
perfeitamente descritível, em si, não quer dizer nada; só participa da significação (sens)
integrado em uma palavra; e a própria palavra deve-se integrar numa frase.” (BARTHES,
1972, p. 24). Ou seja, a significação só surge nas relações entre os diferentes níveis.

10
Pensando nisso, Barthes usou dois tipos de relações: integrativas (estabelecidas
entre um nível e outro) e as distribucionais (estabelecidas no mesmo nível). “Para conduzir
uma análise estrutural, é necessário pois em primeiro lugar distinguir muitas instâncias de
descrição e colocar estas instâncias numa perspectiva hierárquica (integratória).”
(BARTHES, 1972, p. 24).
Independente do número de níveis proposto em uma análise, Barthes disse que

...não se pode duvidar de que a narrativa seja uma hierarquia de instâncias. Compreender uma
narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é também reconhecer nela “estágios”,
projetar encadeamentos horizontais do “fio” narrativo sobre um eixo implicitamente vertical; ler
(escutar) uma narrativa não é somente passar de uma palavra à outra, é também passar de um
nível a outro. (BARTHES, 1972, p. 25)

O texto cria três níveis descritivos para a narrativa: nível das funções, nível das
ações e o nível da narração. Os três níveis estão ligados progressivamente: “uma função
não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e a própria ação recebe sua
significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu próprio
código.” (BARTHES, 1972, p. 27).
A primeira atitude para trabalhar com essa teoria é estabelecer o critério da unidade
mínima. Qual deve ser a menor unidade? No caso da narrativa, Barthes afirmou que o
critério, seja ele qual for, deve balizar-se na significação.
Barthes divide essas unidades em duas categorias: as funções (agem em nível
integrativo) e os índices (nível distribucional). Aquelas apontam para ações relacionadas (a
ação de pôr a chave na fechadura tem como correspondência a ação de abri-la), enquanto
estes indicam significados diretos, não operações de complementação.
Ou seja, “[...] a unidade remete então, não a um ato complementar e conseqüente,
mas a um conceito mais ou menos difuso, necessário entretanto ao sentido da história:
índices caracteriais concernentes aos personagens, informações relativas à sua identidade,
notações das “atmosferas”, etc.; a relação da unidade e de seu correlato não é mais então
distribucional , mas integrativa [...]” (BARTHES, 1972, p. 29-30, grifo meu).
Uma função é toda a ação em uma narrativa que é termo de uma relação, ou seja,
um momento significativo do desenvolvimento narrativo do texto. As funções são
subdivididas em duas outras categorias: cardinais (ou núcleos) e catálises. As funções
cardinais são “[...] verdadeiras articulações da narrativa (ou de um fragmento da

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narrativa)”, ou seja, são os pontos de abertura e fechamento de ações; enquanto as catálises
“[...] não fazem mais do que ‘preencher’ o espaço narrativo que separa as funções-
articulações [...]” (BARTHES, 1972, p. 31), servem, por exemplo, para acelerar ou
diminuir o andamento narrativo.
Ao opor catálises e funções cardinais (núcleos), tem-se que

As funções cardinais são momentos de risco da narrativa; entre estes pontos de alternativa, entre
estes ‘dispatchers’, as catálises dispõem zonas de segurança, de repousos, de luxos; estes luxos
não são entretanto inúteis: do ponto de vista da história, é necessário repeti-lo, a catálise pode
ter uma funcionalidade fraca, mas não absolutamente nula [...] Digamos que não se pode
suprimir um núcleo sem alterar a história, mas que não se pode suprimir uma catálise sem
alterar o discurso. (BARTHES, 1972, p. 32)

As catálises reúnem-se ao redor do núcleo. O núcleo determina de que modo será


uma conseqüência do núcleo anterior e de que modo poderá se ligar ao núcleo seguinte,
enquanto as catálises exercem sua função de dar ritmo à narrativa e apresentar o estilo do
escritor, por exemplo. Ou seja

Por definição, as catálises estão sempre ligadas e subordinadas a um núcleo, sem a necessidade
do contrário. As funções cardinais, por sua vez, abrigam-se umas às outras. E estas são mais
importantes que aquelas na narrativa, pois as expansões ao redor do núcleo são suprimíveis para
o andamento da história, enquanto o próprio núcleo não o é, já que o núcleo é elemento que
guarda o momento de abertura para a narrativa. Quanto aos índices, todos eles combinam-se
livremente, sejam eles informantes ou não.

A narrativa institui uma ‘confusão’ entre consecução e conseqüência, o tempo e a lógica. “[...] a
temporalidade não é mais do que uma classe estrutural da narrativa (do discurso), tudo como se
na língua, o tempo não existisse a não ser sob a forma de sistema [...]” (BARTHES, 1972, p.
37). Ou seja, o tempo como organizador ‘não existe’ do ponto de vista da narrativa, só existe
funcionalmente, como um elemento.

A narrativa se organiza a partir da substituição de uma função pela sua seguinte, formando um
pequeno bloco de acontecimentos denominado por Barthes de seqüência. (ZENI, 2007, p. 21-
22).

De seqüência em seqüência, forma-se a narrativa. A significação desse


encadeamento narrativo acontecerá com a integração ao nível seguinte, o nível das ações.
Todas as ações abertas e fechadas em cada uma das seqüências serão entendidas a partir da
ação dos personagens, pois “... os personagens (por qualquer nome que lhes chame:
dramatis personae ou actantes) formam um plano de descrição necessário, fora do qual as
“pequenas ações” narradas deixam de ser inteligíveis...” (BARTHES, 1972, p. 43).

12
E esses personagens, por sua vez, só serão significantes quando integrados ao nível
seguinte: “...os personagens, como unidades do nível acional, só encontram sua
significação (sua inteligibilidade) se são integrados ao terceiro nível da descrição, que
chamamos aqui nível de narração (por oposição às Funções e às Ações).” (BARTHES,
1972, p. 46).
E o que é o nível da narração? É o nível ocupado pelos signos da narratividade,
pelas “... “formas do discurso” (que são de fato signos de narratividade): classificação dos
modos de intervenção do autor, (...) codificação dos começos e fins de narrativas, definição
dos diferentes estilos de representação (...), estudo de “pontos de vista”, etc. (...) É
necessário acrescentar evidentemente a escritura no seu conjunto, pois seu papel não é o de
“transmitir” a narrativa, mas de mostrá-la.” (BARTHES, 1972, p. 52).
Portanto, nesse último nível todas as ações dos actantes, que dão significação às
seqüências de ação do nível anterior a si, serão inteligíveis quando apreendidas sob
perspectiva narrativa. É possível significar num nível que extrapole esse terceiro, saia do
“...objeto-narrativa, isto é, salvo transgredir a regra da imanência que a fundamenta. A
narração não pode com efeito receber sua significação do mundo que a usa, acima do nível
narracional, começa o mundo, isto é, outros sistemas (sociais, econômicos, ideológicos),
cujos termos não são mais apenas as narrativas, mas elementos de uma outra substância
(fatos históricos, determinações, comportamentos, etc.)” (BARTHES, 1972, p. 52).
Entendo essa postura de Barthes como se dissesse: fora dos elementos constitutivos
do texto, as determinações sócio-históricas e contextualizantes variarão de lugar, época e
leitor, não sendo possíveis de se apreender a partir da narrativa.

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3. ANÁLISE

Aqui tratarei de analisar cada uma das histórias: o conto em prosa e a história em
quadrinhos. Avaliarei alguns elementos em um e outro meio e, sempre que possível,
procurarei o mesmo elemento em cada um deles. Após a análise à parte de cada um,
coloco-os em comparação.

3.1. Análise do conto

Para uma análise pormenorizada do conto, divido minha busca em alguns elementos
que considero importantes dentro dessa narrativa. Apresento cada um deles, sempre
relacionado-os com elementos próprios do texto e exemplificando com passagens.

3.1.1. Enredo

Família que mora no campo que habitualmente recolhe e "adota" os gatos que
aparecem. Surge então um gato preto bastante ferido na varanda da casa. Tratam o animal.
Todas as manhãs, o felino está machucado, como se tivesse se envolvido em luta durante a
noite. O narrador da história, que é o marido e pai dos filhos, leva o gato ao porão por
alguns dias. Nesses dias em que o felino está no porão, tudo dá errado para a família.
O gato volta para a varanda e amanhece novamente ferido. O narrador monta guarda
à noite para descobrir o que acontece com o animal. Munido de binóculos infravermelhos, o
narrador vê um vulto que toma pela figura do Diabo. Assim, ele conclui que o gato protege
a casa de ataques do Diabo. O narrador acompanha o gato preto lutar, vencer e expulsar a
criatura.
O conto se encerra com o relato de como o gato está cada dia mais ferido e o
narrador se perguntando que poderá ser feito quando o gato não suportar mais o combate.

3.1.2. Espaço

A história acontece em uma casa no campo, que é o lar da família do narrador. Eles
preferem morar afastados alguns quilômetros da cidade. Pela descrição das cenas, é

14
possível saber que é uma área rural com muita vegetação e pouco povoada por seres
humanos7.
Essa ambientação8 que estabelece a família em um lugar distante é significativa para
a história, pois mantém os personagens afastados de qualquer ajuda além da do gato. A
idéia de “largada à própria sorte” é bastante usual em histórias de suspense e terror, tanto
no cinema (filmes como Evil dead, O grito e Gabinete do Dr. Caligari) como na literatura
(por exemplo, O gato preto – E. A. Poe –, O iluminado – Stephen King – e A ponte do
Troll – Neil Gaiman).
O encontro com o Diabo, clímax do conto, acontece durante a noite. A noite, outro
elemento bastante comum de narrativas de terror e suspense dada a sua pouca claridade,
portanto, mistério e expectativa.
A idéia de um exterior desconhecido e assustador é reforçada pela vegetação que
cerca a moradia. O combate com o Diabo acontece entre a varanda e o espaço livre até a
mata, onde não é mais a casa propriamente, mas bastante próximo a sua entrada. O gato é
uma espécie de guardião da entrada da casa.
A casa como ambiente seguro e de refúgio é posto em perigo pelas tentativas de
invasão da figura reconhecida pelo narrador como o Diabo.

3.1.3. Tempo

A narrativa compreende aproximadamente um mês de eventos: “E há o gato preto,


que não tem outro nome além de Gato Preto e que apareceu há quase um mês.” (GAIMAN,
2006, p. 52). O narrador conta a história como passado e a encerra no presente: “Isso foi há
uma semana.” (GAIMAN, 2006, p. 57, grifo meu). Em seguida, assume a preocupação do
que acontecerá dali por diante. Essa escolha técnica do escritor mantém um final aberto e
apavorante, e mantém o leitor em suspense, sem resolver definitivamente o problema.
A longa espera na noite em que o narrador conta ter visto o Diabo em confronto
com o Gato Preto, faz com que o narrador admita estar sonolento: “Eu lutava para me

7
Para uma descrição pormenorizada do espaço, ver 3.1.7.3.
8
“(...) Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a
provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos nossa
experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor,
impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. ” (LINS, 1976, p.77).

15
manter acordado, sentindo muito a falta de cigarros e café, meus dois vícios esquecidos.
Qualquer um deles teria mantido meus olhos abertos.” (GAIMAN, 2006, p. 55). Fato
essencial para que, com visão através das lentes infravermelhas, o leitor não tenha a certeza
de que o narrador efetivamente tenha visto o Diabo e não alguma outra coisa.

3.1.4. Personagens

O conto “O preço” tem três personagens principais: o narrador, o Gato Preto e o


Diabo. Considero-os personagens principais pois são os maiores responsáveis pelo
desenvolvimento das ações, cabendo a cada um deles papéis bem definidos.
O narrador-personagem é a testemunha. Ele encontra o gato na sua varanda e, como
é habitual em sua família, acolhe-o. Quando percebe que o animal está ferido, leva-o ao
veterinário e trata dele. Quando os ferimentos não cessam, decide investigar que tipo de
animal poderia causar os ferimentos no gato. Porém, o narrador não é um personagem
passivo, que simplesmente observa. Toma algumas atitudes e reflete sobre os
acontecimentos.
O Gato Preto é o guardião, o protetor. O próprio autor do conto afirma que sua
intenção era criar uma história que unisse as idéias ‘gato’ e ‘anjo protetor’9. E é
basicamente isso que o gato faz: protege a casa dos ataques do Diabo. Acredito que cabe ao
gato o papel de protagonista da história.
O Diabo é claramente o antagonista da trama, quem cria a situação problema que
deve ser resolvida. A vítima dele é a família do narrador, enquanto o Gato Preto seria o
adversário. Sabe-se que o causador dos ferimentos do Gato Preto é o Diabo somente no
final do conto.
Os demais personagens cumprem funções menores para se criar o detalhamento da
história, são pormenores para a verossimilhança do texto. São eles: esposa do narrador,
filho, filha e bebê (sem gênero identificado), os outros quatro gatos, um amigo do filho,
dois empresários da BBC.

9
Ver 3.1.6.

16
3.1.5. Narrador

A narração fica a cargo do personagem principal. É uma voz de primeira pessoa,


com um personagem ativo e diretamente envolvido na trama. A narração é feita com tempo
verbal passado, contando algo já acontecido e se encerra no presente. Por exemplo: “E há o
gato preto, que não tem outro nome além de Gato Preto e que apareceu há quase um mês.”
(GAIMAN, 2006, p. 52, grifo meu) e “Na manhã seguinte, havia novos e profundos cortes
nos seus flancos e chumaços de pêlo preto de gato...” (GAIMAN, 2006, p. 53, grifo meu). E
quanto ao final no tempo presente, “Pergunto a mim mesmo o que fizemos para merecer o
Gato Preto...” (GAIMAN, 2006, p. 57, grifo meu).
O narrador é um observador de toda a ação. Ele tenta descobrir o que acontece de
estranho na casa e, com ele, o leitor vai aos poucos descobrindo algumas das razões e
motivos do enredo. Toda a ação de combate entre o Gato Preto e o Diabo é vista através das
lentas infravermelhas de um binóculo, o que, aliado ao cansaço e a sonolência decorrente
da espera, não garante ao leitor que o narrador tenha de fato visto o Diabo.

3.1.6. Intertextualidades e símbolos

Existem pelo menos dois títulos que são imediatamente invocados por esse conto: o
Paraíso perdido, poema épico de John Milton, citado diretamente na descrição do Diabo; e
o outro é O gato preto, de Edgar Allan Poe, este mais por analogia.
O gato do conto de Gaiman também é preto, tem um de seus olhos furados, é levado
para o porão e é obrigado a enfrentar o diabólico. O texto ‘Some strangeness in the
proportion: the exquisite Beauties of Edgar Allan Poe’ confirma que Gaiman conhece a
obra do autor norte-americano, incluindo, o conto O gato preto.
Quanto à Milton, sua obra é citada para negar determinada descrição do Diabo: “Eu
nunca tinha visto o Diabo antes e, apesar de ter escrito sobre ele no passado, se me
pressionassem, teria confessado que não acreditava nele, a não ser como figura imaginária,
trágica e miltoniana. A figura que vinha pela entrada da garagem não era o Lúcifer de
Milton. Era o Diabo.” (GAIMAN, 2006, p. 55, grifo meu).

17
Pensando simbolicamente, um dos elementos mais evidentes neste conto é o gato,
animal relacionado ao lado místico e à proteção. Intenção desse símbolo é confirmada pelo
autor na introdução do Fumaça & espelhos:

Minha agente literária, Srta. Marrilee Heifetz, de Nova Iorque, é uma das pessoas mais serenas
do mundo e, se bem me lembro, apenas uma vez sugeriu que eu deveria escrever um livro
específico. Isso foi há algum tempo. “Olha”, disse ela, “anjos estão em alta hoje em dia e as
pessoas sempre gostaram de livros sobre gatos, então pensei ‘não seria legal se alguém fizesse
um livro sobre um gato que fosse um gato ou um anjo que fosse um gato ou algo assim?”.

Concordei que era uma idéia comercial excelente e que pensaria a respeito. Infelizmente,
quando, por fim, tinha acabado de pensar sobre essa história, livros sobre anjos eram uma coisa
de dois anos atrás. Mesmo assim a idéia estava incutida e um dia escrevi o conto. (GAIMAN,
2006, p. 25)

Outro símbolo dessa história é o próprio Diabo, relacionado diretamente ao mal e às


ações malsucedidas. De acordo com o dicionário de símbolos, “O Diabo simboliza todas as
forças que perturbam, inspiram cuidados, enfraquecem a consciência e fazem-na voltar para
o indeterminado e para o ambivalente: centro da noite, por oposição a Deus, centro de
luz.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 337, grifo dos autores).
Existe também a idéia de usar lentes para ver além, no caso, lentes infravermelhas
para ver à noite. Somente com as lentes especiais é possível vencer o bloqueio à visão que
representa a falta de luz. “Eu experimentei o binóculo olhando as trevas (...) era como se a
noite fosse algum tipo de pesadelo, uma sopa inundada de vida (...) Então, tirei o binóculo
dos meus olhos e observei os ricos negros e azuis da noite, vazia, pacífica e calma.”
(GAIMAN, 2006, p. 54)
A noite, como o período de escuridão e mistério, quando as coisas ocultas
acontecem. Somente à noite e com as lentes infravermelhas é possível enxergar a enorme
quantidade de insetos que vive na vegetação próxima à casa. “Eu experimentei o binóculo
olhando as trevas, aprendendo a focar, a ver o mundo em tons de verde. Fiquei horrorizado
pela quantidade de insetos que pude enxergar infestando o ar noturno: era como se a noite
fosse algum tipo de pesadelo, uma sopa inundada de vida.” (GAIMAN, 2006, p. 54)
O porão aqui serve como uma espécie de abrigo. É lá onde o narrador guarda
objetos que manuseia raramente, que usa para proteção do Gato Preto durante seu período
de recuperação. De acordo com Gaston Bachelard, “(...) No porão também encontraremos
utilidades, sem dúvida. Enumerando suas comodidades, nós a racionalizamos. Mas ele é a

18
princípio o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando
com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas.”(2005, p. 86).
Desses símbolos e do enredo, podemos encontrar alguns dos temas principais do
texto, como a idéia de proteção, de guardião, a idéia de um refúgio para recuperação
(porão), a força destruidora do mal (encarnado como Diabo), a idéia da espera e da
observação para encontrar a verdade (o narrador sentado com binóculos infravermelhos).
Ainda temos as marcas dos errantes, como dito no começo do texto, em seu
primeiro parágrafo. Uma espécie de comunicação cifrada, que todos os viandantes
conhecem e que servem para indicar qual o tipo de atitude das pessoas do local marcado
para com eles: “Andarilhos e vagabundos têm marcas que fazem nos mourões, árvores e
portas para informar aos da sua laia um pouco sobre as pessoas que vivem nas casa e
fazendas por onde passam em suas viagens.” (GAIMAN, 2006, p. 51). É com esse trecho
que a história se inicia. Que tipo de expectativa se cria nessa comparação entre gatos e
vagabundos? O símbolo do errante e do espírito livre, avesso a ordens, pode muito bem ser
representado tanto pelo homem que se recusa a ter uma residência fixa, quanto pelo gato,
animal dos mais independentes entre aqueles domesticados pelo homem.

3.1.7. Imagens

Selecionei alguns dos elementos imagéticos centrais do texto, com suas descrições.
Entre os diversos elementos do texto optei pelas descrições do Diabo, do Gato Preto e do
espaço onde acontece a ação narrativa, dada sua grande ocorrência no texto.

3.1.7.1. O Diabo

O Diabo, que não era a figura miltoniana, ou seja, a imagem popularizada do


demônio com chifres, pés de bode e rabo pontudo, mas sim várias outras:
“A figura esvoaçava e se transformava enquanto andava pela entrada da casa. Num
momento, era escura, com a forma de um touro, ou de um minotauro; noutro, era
esbelta e feminina e, logo em seguida, era um gato, enorme, um gato selvagem
cinza-esverdeado, coberto de cicatrizes, com a cara contorcida de ódio.” (GAIMAN,
2006, p. 55);

19
“Agora, o Diabo era uma mulher. (...) seus olhos lançaram fogo vermelho sobre
mim...” (GAIMAN, 2006, p. 56);

“O Diabo se torceu e se retorceu e agora era um tipo de criatura como um chacal de


cara chata, cabeça enorme e pescoço de touro, algo entre uma hiena e um dingo.
Havia larvas se contorcendo em seu pêlo sarnento.” (idem);

“... vi algo voar para longe – um abutre, talvez, ou uma águia –, além das árvores, e
sumir.” (ibidem).

3.1.7.2. Gato Preto

O Gato Preto e sua degradação diante dos ferimentos impostos pelos combates
noturnos contra o Diabo:
“Parecia muito bem alimentado para ser um gato de rua; velho e vistoso demais para
ter sido abandonado. Lembrava uma pequena pantera e se movia como um
fragmento da noite.” (GAIMAN, 2006, p. 52);

“... estava à espreita na nossa varanda em ruínas: oito ou nove anos – num bom
palpite – macho, olhos amarelo-esverdeados, muito amistoso, imperturbável.”
(idem);

“Estava, entretanto, quase irreconhecível. Pedaços de pêlo tinham caído e havia


arranhões fundos na sua pele cinza. A ponta de uma orelha tinha sido decepada a
mordidas. Havia um talho debaixo de um olho e um pedaço do lábio tinha sido
arrancado. Ele parecia fraco e extenuado.” (ibidem);

“Os arranhões pioravam a cada noite – certa madrugada, ele apareceu com a ilharga
mordida; na seguinte, foi sua barriga, lanhada, com marcas de garra, que sangrava
quando tocada.” (ibidem);

20
“À primeira vista, parecia fraco demais para se alimentar sozinho: um corte debaixo
do olho tinha-o deixado quase caolho e o animal mancava e se reclinava fracamente,
o pus amarelo vertendo do corte no seu lábio.” (GAIMAN, 2006, p. 53);

“Na manhã seguinte, havia novos e profundos cortes nos seus flancos e chumaços
de pêlo preto de gato – seu pêlo – cobriam as tábuas da varanda.” (idem);

“E havia algo muito humano na sua enorme cara leonina: seu largo nariz negro, seus
olhos amarelo esverdeados, sua boca amável, mas cheia de presas (de onde ainda
pingava pus cor de âmbar do lábio inferior direito).” (GAIMAN, 2006, p. 54);

“Nesses dias, o Gato Preto não andava mais como uma pantera; em vez disso,
tropeçava e balançava como um marinheiro que desembarcara recentemente.”
(GAIMAN, 2006, p. 55-56);

“Ele já perdeu o uso da pata dianteira esquerda e seu olho direito não abre mais.”
(GAIMAN, 2006, p. 56).

3.1.7.3. O ambiente, a casa e os arredores

“Nós moramos no campo, longe da cidade, na distância exata para que seus
moradores abandonem seus gatos perto de nós.” (GAIMAN, 2006, p. 51);

“No momento, a população felina da minha casa é a seguinte: Hermione e Vagem


(...) que vivem no meu escritório do sótão; Floco de Neve (...); Bola de Pêlo (...) que
um dia descobri filhote minúsculo, na garagem (...) E há o gato preto...” (GAIMAN,
2006, p. 51-52);

“...estava à espreita na nossa varanda em ruínas...” (GAIMAN, 2006, p. 52)

21
“...levei-o ao porão para que se recuperasse ao lado da fornalha e de uma pilha de
caixas.” (idem);

“E minha esposa, voltando para casa numa noite, atropelou um veado que surgiu na
frente do carro.” (GAIMAN, 2006, p. 53);

“... coloquei o aparelho [o binóculo] de volta na sua caixa, onde continua quieto, no
meu escritório, ao lado da caixa de cabos do computador e de bugigangas
esquecidas.” (GAIMAN, 2006, p. 54);

“... levei uma cadeira para o quarto de vestir, que é apenas um pouco maior que um
guarda-roupas, do qual se avista a varanda...” (idem);

“Fiquei horrorizado pela quantia de insetos que pude enxergar infestando o ar


noturno (...) tirei o binóculo dos meus olhos e observei os ricos negros e azuis da
noite, vazia, pacífica e calma.” (ibidem);

“... um uivo vindo do jardim (...) decepcionei-me ao ver que era apenas Floco de
Neve, a gata branca, riscando o jardim como uma mancha de luz branco-
esverdeada. Ela desapareceu na mata à esquerda da casa e não voltou mais.”
(GAIMAN, 2006, p. 55);

“... comecei a rastrear as proximidades com o binóculo, procurando um guaxinim,


um cão ou um gambá feroz. E havia, realmente, alguma coisa indo pela entrada da
garagem em direção à casa.” (idem);

“Há degraus para subir na minha varanda. Quatro degraus brancos de madeira que
precisam de uma demão de tinta.” (ibidem);

“Então um ronco baixo – da estrada que passava em frente de casa, à distância, um


caminhão movia-se pesadamente pela madrugada, com seus faróis flamejantes
ardendo radiantes pelo binóculo, como sóis verdes. Tirei as lentes dos olhos e vi
apenas a escuridão; depois o tranqüilo amarelo dos faróis e, então, o vermelho das

22
luzes traseiras enquanto o caminhão desaparecia de novo no nada.” (GAIMAN,
2006, p. 56);

“... coloquei-o [o gato] na sua cesta e subi até meu quarto para dormir.” (idem).

3.1.8. Divisão em cenas

Proponho uma divisão do texto em cenas, atentando-me para a existência de, pelo
menos, dois tipos de movimentos narrativos em “O preço”: um que descreve ações e outro
que trata de reflexões do narrador. Estes serão chamados de ‘índices’ ou ‘ações indiciais’ e
aqueles de ‘funções’, levando em conta a nomenclatura das unidades propostas por
Barthes.10 Por vezes encontram-se ambos entrelaçados, mas existem situações em que um
deles predomina sobre o outro. Nesse caso, a cena será classificada de acordo com o
elemento dominante.

CENA TRECHO PÁGINA TIPO OBSERVAÇÃO


1 “Andarilhos e Primeiro parágrafo, página 51 Índice Dedicada à idéia de marcas de viandantes, que seria
vagabundos (...) pulgas também utilizada pelos gatos. Um toque de humor,
e abandonados?” que prepara a cena seguinte.
2 “Nós os acolhemos, Segundo, terceiro e quarto Índice Cena baseada em ações costumeiras da família. Os
(...) menos de três.” parágrafos e parte inicial do procedimentos com os gatos encontrados perto da
quinto parágrafo, página 51 casa e presença de três a oito gatos
permanentemente com a família. Indica qual a
atitude esperada da família com relação ao Gato
Preto.
3 “No momento, (...) a Parte final do quinto parágrafo, Índice Listagem, caracterização e breve histórico dos
seu empregado.” página 51 e primeiro e segundo gatos que habitam a casa no momento que o
parágrafos da página 52 narrador conta a história, com destaque para o Gato
Preto. Sugere o comportamento um tanto diferente
do Gato Preto em comparação com os demais
gatos.
4 “Viajei por algumas Terceiro e quarto parágrafos da Função O Gato Preto é encontrado ferido na varando
(...) com presas página 52 quando o narrador retorna de viagem. O animal é
e índice
levado ao veterinário para tratamento. O narrador
afiadas?” se pergunta que tipo de animal feriu o gato. O
índice do mistério é reforçado e posto em ação.
Essa cena abre a possibilidade dos cuidados com o
Gato preto no porão.
5 “Os arranhões Quinto e sexto parágrafos, página Função O Gato Preto é levado para o Porão da casa por três
pioravam (...) forte 52 e primeiro e segundo, página ou quatro dias, para ser protegido dos ataques
53 noturnos e se recuperar. O narrador cuida do gato.
mau cheiro.” A permanência do gato no porão permite que todos
os problemas aconteçam na próxima cena, pois
saberemos adiante que o gato defendia a casa dos
ataques do Diabo.

23
6 “Os quatro dias (...) Terceiro parágrafo, página 53 Função Vários incidentes ruins que acontecem ao narrador
corte na sobrancelha.” e sua família. Um anticlímax com as boas situações
que aconteceram à frente, quando o Gato Preto
voltar à varanda e à defesa da casa.
7 “No quarto dia, (...) Quarto, quinto, sexto e sétimo Função O Gato Preto impaciente é retirado do porão e volta
uma armadilha, parágrafos, página 53 e primeiro e índice
à varanda. Novamente á tacado à noite. O narrador
parágrafo, página 54
talvez.” e sua família tiveram a maior parte de seus
problemas anteriores solucionados. O narrador
pensa em proteger o Gato Preto no porão
novamente, mas muda de idéia, resolve descobrir
qual tipo de animal tem atacado constantemente o
gato. Aqui é tomada a decisão que leva o narrador
ao quarto de vestir com binóculos infravermelhos
na cena 9.
8 “Minha família Segundo parágrafo, página 54 Índice O narrador se lembra de presentes que ganhou no
costuma (...) de natal, especialmente um binóculo para ver no
bugigangas escuro e quais as conseqüências de usá-lo com luz.
esquecidas.”
Apresenta de série de objetos estranhos que o
narrador costuma ganhar de presente de natal,
como que justificando o modo de que ele encontrou
um incomum binóculo para ver à noite.
9 “Talvez, pensei eu (...) Terceiro parágrafo, página 54 Função O narrador leva uma cadeira e o binóculo para o
ao Gato Preto.” e índice quarto de vestir para poder observar a varanda, dando
continuidade a seu plano da sétima cena. O índice
aqui trata de fortalecer a escuridão noturna e a pouca
visibilidade. A cena claramente prepara a visão do
adversário ainda desconhecido do Gato Preto.
10 “O gato, disse (...) luz Quarto e quinto parágrafos, Função O narrador acaricia o gato, apaga luz e entra no quarto
da varanda.” página 54
e índice de vestir para vigiar a varanda. Pensa em como o Gato
Preto está ferido e como ele tem trejeitos humanos.
Novamente, o gato é posto em uma condição
particular, no caso, humanizado. O narrador está á
postos para sua vigília.
11 “Sentei-me na minha Sexto, sétimo e oitavo Função A espera do narrador que admite sonolência, testa o
(...) me acordou parágrafos, página 54 e parte do
e índice binóculo, espantado com a quantidade de insetos à
primeiro parágrafo, página 55
totalmente.” noite, e se diz despertado por um uivo no jardim. A
força da noite e o desconhecido natural que cerca a
casa e o modo que isso espanta o narrador. A
preparação para incerteza da visão na cena 13.
12 “Desajeitado, levei o Final do primeiro parágrafo, Função O narrador descobre que o uivo que ouviu é de
(...) não voltou mais.” página 55 Floco de Neve, gata que vê correr e desaparecer na
mata. Anticlímax para a cena seguinte.
10
13 “EuVer 2.1. quase (...) Segundo, terceiro, quarto quinto
estava Função O narrador descobre a verdadeira causa do uivo, o
contorcida de ódio.” e sexto parágrafos, página 55
e índice Diabo. Espantado e horrorizado, descreve o que vê.
24
O desconhecido e o amedrontador são indicados
aqui, a descoberta do adversário noturno do gato.
14 “Há degraus para (...) Sétimo e oitavo parágrafos, Função O Diabo tenta entrar na casa, mudando de forma
isso em silêncio.” página 55 e os cinco primeiros
e índice constantemente. O Gato Preto se interpõe e o
parágrafos da página 56
impede. O Diabo vê o narrador. O gato e o Diabo
lutam. O índice é a tentativa do Diabo invadir a
casa e a vida de seus habitantes. Outra batalha
acontece entre o Gato Preto e o Diabo – a primeira
vista pelo narrador.
15 “Então um ronco (...) a Sexto parágrafo e parte do Função Um caminhão passa pela estrada próxima, cegando
ser visto.” sétimo, página 56
momentaneamente o narrador, que via tudo pelos
binóculos amplificadores de luminosidade. Quando
volta a ver, tudo está em silêncio e não se vê mais o
Diabo. Função de suspense. Uma demora para
saber o resultado do combate.
16 “Apenas o Gato (...) Restante do sétimo parágrafo e Função O gato machucado na varanda olha para cima e o
nos meus jeans.” oitavo parágrafo, página 56
narrador vê uma pássaro que não consegue definir
muito bem. Ele põe o Gato Preto no cesto para que
ele durma. O narrador percebe, na manhã seguinte,
que há sangue em suas roupas. Prepara a cena
seguinte, na qual o gato aparece cada vez mais
debilitado.
17 “Isso foi há (...) tem Nono parágrafo, página 56 até o Índice O narrador situa a ação temporalmente no passado,
para dar.” final da página 57
descreve o estado do Gato Preto e se pergunta
quem enviou o gato e o porquê. Pensa também
quanto mais o gato resistirá, admitindo-se
amedrontado. A ação continuará após o final da
narrativa, mantendo o desfecho em aberto. Não há
a derrota definitiva do Diabo.

3.2. Análise da história em quadrinhos

Por se tratar de uma adaptação, com o mesmo enredo, muitos dos dados coincidem.
Quando esse for caso, será indicado dentro de cada sub-tópico onde procurar aquela
informação, evitando assim a sua repetição.

25
3.2.1. Enredo

O enredo da história em quadrinhos pode ser descrito exatamente do mesmo modo


que no texto em prosa, portanto veja 3.1.1.

3.2.2. Espaço

Para o espaço representado na história em quadrinhos – e é esse que está em estudo,


e não o espaço da página – houve dois tipos de representação: a representação verbal e a
representação pictórica.
O texto da HQ, embora não ipsis literis, é o mesmo do conto. Creio que tal
diferença se deu por conta do trabalho de tradutores diferentes para cada uma das
publicações11. Portanto, todas as descrições de espaço do conto em prosa12 estão presentes
na história em quadrinhos.
Pela possibilidade pictórica, pode-se observar mais detalhadamente o ambiente ao
redor da casa, a varanda, a própria casa, sua parte interna, o escritório do narrador, o porão.
As cores bem vivas na representação do espaço diurno dão um tom leve e tranqüilo para o
ambiente onde a ação se desenvolve. Na parte noturna da narrativa, as cores mais soturnas e
maior presença de sombras criam uma ambientação mais misteriosa. A representação do
ambiente na presença do Diabo é mais clara, ainda que se desenvolva à noite, com cores
esverdeadas e amareladas, com luz irradiando do Diabo.

3.2.3. Tempo

Na história em quadrinhos, como no texto em prosa, o tempo narrativo também


transcorre em aproximadamente um mês13. O movimento de tempo verbal na voz do
narrador aqui também pode ser percebido: está no último quadrinho da última página da
história, no primeiro recordatório 14 acima, à esquerda.

11
Os textos foram analisados a partir de sua tradução para o português, nas edições que constam nas
referências bibliográficas.
12
Ver 3.1.7.3.
13
Ver 3.1.3.
14
Recordatório é o nome que se dá ao texto em um quadrinho, demarcado normalmente por uma caixa, e que
não esteja em um balão de fala ou não seja uma onomatopéia visual.

26
Esse recurso de apresentação de texto nas histórias em quadrinhos, normalmente
marcam reflexões dos personagens sobre eventos ocorridos; uma voz narrativa externa e
não-identificada que situa espaço-temporalmente os fatos, retoma eventos anteriores, e
explica o que não poderia ser compreendido somente pelas imagens. Com o uso de
recordatórios e não de balões, por exemplo, a caracterização de uma narração de
lembranças é apoiada pela enunciação típica dos quadrinhos para isso. É a aproximação
entre as representações textuais de narrador e personagem.

3.2.4. Personagens

O que foi dito sobre os personagens em 3.1.4. também é válido aqui. Acrescente-se,
porém, que na história em quadrinhos podemos ver a caracterização do personagem. Não
há uma descrição física do narrador no conto em prosa.
Como as HQs são um meio eminentemente visual, dificilmente a imagem do
narrador, que participa de tantas ações na trama, poderia ter permanecido oculta. Os três
personagens principais são representados: o Gato Preto, o Diabo 15 e o narrador.
O narrador é apresentado como um homem branco, de óculos, cavanhaque, trajando
roupas informais, cabelo curto, olhos verdes. A filha é mostrada em um único quadro como
uma menina branca, ruiva, de tranças. Já a esposa do narrador, também desenhada somente
em um quadro, é uma mulher branca, cabelo castanho na altura dos ombros.
Os demais gatos que vivem na casa correspondem à descrição que se tem deles no
conto em prosa.

3.2.5. Narrador

O que foi observado para o narrador em 3.1.5. também vale para este capítulo. A
descrição física que existe na história em quadrinhos é uma das diferenças entre os dois
meios. Todo o texto verbal, com diferenças pequenas – talvez por conta de duas traduções
diferentes para cada uma das publicações – está presente na HQ.

15
Ver 3.2.7.

27
É mostrado aquilo que o narrador vê. Nenhum outro ponto de vista diferente é
acrescido ao do narrador-personagem. Pode-se dizer que todas as cenas de combate entre o
Gato Preto e o Diabo são vistas do mesmo ângulo do narrador. Essa escolha permite a
manutenção da dúvida se o narrador de fato viu tudo o que diz ter visto, pois os olhos do
leitor são postos com os olhos do personagem que narra toda a ação. Porém, nem tudo que
é apresentado ao leitor tem a mesma visão que o narrador, variando os ângulos
enquadramentos. Seria mais acertado dizer que o “narrador visual” estará sempre com o
narrador, mas não necessariamente terá sua visão.
Em um meio como a HQ temos duas instâncias narrativas, pelo menos: a voz
narrativa que se personifica por meio do texto verbal, e é bastante próxima da idéia de
narrador que temos nas obras em prosa; a outra é mais próxima do cinema, pois escolhe
qual parte da história, com qual o enquadramento, de qual ângulo, com quais cores e entre
quais imagens será apresentada ao leitor. Essa segunda instância narrativa será responsável
pela montagem das imagens e pela ordenação do espaço físico da página, pela montagem
no sentido eisensteiniano do termo.
Esse “narrador visual” – na falta de uma nomenclatura melhor – opta por manter o
suspense na condução da história, deixa o ritmo ser ditado pelo “narrador verbal”
apresentando aquilo que ele fala.

3.2.6. Intertextualidades e símbolos

Todos os símbolos apresentados em 3.1.6. como elementos do conto são


reencontrados na história em quadrinhos.
Os elementos intertextuais – as obras de John Milton e de Edgar Allan Poe –
sobrevivem na HQ, valendo os mesmos comentários feitos no capítulo 3.1.6.

3.2.7. Imagens

A representação do Gato Preto e do Diabo, correspondem a uma representação


possível a partir da descrição feita no conto em prosa. Percebe-se, portanto, a preocupação
de Gaiman em manter as mesmas imagens que imaginou anteriormente.

28
3.2.8. Divisão em cenas

Proponho também uma divisão em cenas da história em quadrinhos. Usarei o


mesmo critério de cenas índice e cenas função, apresentado em 3.1.8.

CENA TRECHO PÁGINA TIPO OBSERVAÇÃO


1 “Vagabundos e Página11 Índice Sobre os gatos que são abandonados e aparecem
andarilhos (...) durante em grande quantidade na casa da família do
o ano?” narrador.
2 “Nós deixamos eles Página 12 e página 13, primeiro Índice O que a família faz com os gatos que aparecem lá e
(...) ou para sempre.” quadrinho como os animais continuam a viver lá.
3 “A maior parte (...) Página 13, segundo quadrinho a Índice Pensamento do narrador sobre por que os gatos
quase um mês.” página 14 aparecem tanto na casa dele e apresentação dos
cinco gatos que vivem lá. Ao final desta cena vê-se
o título da HQ.
4 “No princípio, (...) Páginas 15, 16 e os cinco Função Como o Gato Preto chegou até a casa e pouco de
com dentes afiados?” primeiros quadrinhos da 17 suas características. Seus ferimentos são
e índice
descobertos e ele é levado ao veterinário e tratado
5 “Cada noite ele (...) Restante da página 17 e toda a Função O gato é levado para o porão para ser protegido de
cheirava muito mal.” página 18 ataques noturnos. O felino está bastante machucado
e recebe cuidados médicos do narrador.
6 “Os quatro dias (...) Página 19 e primeiro quadrinho Função Várias incidentes ruins acontecem com o narrador e
resto do dia.” da 20 sua família nos quatro dias que o Gato Preto fica no
porão. No quarto dia ele mia pedindo para retornar
à varanda. Dorme a tarde toda lá.
7 “Na manhã seguinte Página 20 (o segundo Função As coisas melhoram para o narrador e sua família.
(...) armadilha para recordatório do primeiro O gato voltar a mostrar-se ferido. O narrador
ele.” quadrinho) até o primeiro resolve descobrir o que tem atacado o animal.
quadrinho da página 21
8 “Nos meus Página 21 Índice e O narrador lembra-se de ter ganhado um binóculos
aniversários (...) o função para enxergar à noite. Leva uma cadeira ao closet,
Gato Preto.” despede-se do gato enquanto pensa que tipo de
animal estaria atacando o Gato Preto.
9 “Assim que ele (...) na Página 22 Índice e Reflexão sobre o gato e preparação do narrador
escuridão.” função para a vigília noturna.
10 “Tentei olhar o (...) me Página 23, primeiro ao quarto Função Teste de binóculo, surpresa com a quantidade de
deixado desperto.” quadrinho e índice vida que há a noite e depois, sonolência causada
pela espera.
11 “Mas antes que (...) Página 23, quarto quadrinho – Função O narrador é acordado com um uivo, que descobre
Era o Diabo.” segundo recordatório até o final ser de um dos outros gatos da casa. Pensando no
da página 24. que poderia ter assustado o animal, vê o Diabo.
12 “Eu nunca tinha (...) Página 25 e 26, primeiro Índice e O narrador vê o Diabo se transformar e se
quando ele gritou.” quadrinho função aproximar da entrada de sua casa.
13 “E então ouvi (...) eu Página 26 e 27, com exceção do Função O Gato Preto não permite a entrada do Diabo, que
tinha certeza.” último quadrinho. vê o narrador escondido no closet.

29
14 “Os seus olhos (...) Página 27, último quadrinho até Função Combate entre o Gato Preto e o Diabo na frente da
isso em silêncio.” página 28, oitavo quadrinho varanda da casa.
15 “E depois um (...) Página 28, os dois últimos Função Os faróis de um caminhão que passa na estrada, o
árvores e sumiu.” quadrinhos e página 29 que impede o narrador de enxergar
temporariamente, quando volta a ver o gato está
sentado olhando para cima, para uma figura que
voa para longe.
16 “Eu fui até (...) na Página 30, os três primeiros Função O narrador recolhe o gato ferido e o acaricia.
manhã seguinte.” quadrinhos
17 “Faz uma semana (...) Página 30, terceiro quadrinho, Índice A narração chega ao presente. O narrador se
tem para dar.” último recordatório e quarto pergunta por quanto mais tempo o Gato Preto, cada
quadrinho. vez mais debilitado, ainda suportará o combate.

3.3. Análise comparativa

Na comparação entre os dados das análises entre as duas obras, percebe-se que os
personagens de ambas são os mesmos, embora eu acredite que os personagens secundários
têm papéis ainda menores na história em quadrinhos. O enredo é o mesmo, portanto as
ações narrativas só poderão acontecer na enunciação de cada um dos meios.
O espaço ficcional nas duas obras é bastante semelhante, embora nos quadrinhos as
descrições (visuais) sejam em maior número que no conto. A questão do andamento da
narração no passado com seu progresso em um fechamento no presente é recurso em ambas
as obras, porque esse é um dos elementos-chave para o impacto causado pelo enredo.
Somente no final descobrimos que o problema apresentado é uma ação contínua e não-
acabada.
Quando ao narrador, as duas obras apresentam narrador personagem observador em
primeira pessoa, com a HQ, reproduzido todo o texto que está no conto em prosa. Isso,
entretanto, não garante a adaptação uma similaridade de narrador com sua obra-fonte.
Como o meio de adaptação é a história em quadrinhos, a narrativa também é
conduzida pictoricamente. Por exemplo, a luta do Gato Preto com o Diabo, com ações a
mais que no conto em prosa, que servem para valorizar o combate visualmente. Como há
essa narrativa visual, como se uma câmera acompanhasse a narração feita pelo narrador, na
HQ pode-se pensar em, no limite, diminuição da figura como narrador e aumento de sua
participação como personagem. De acordo com essa hipótese, o narrador da história não
teria sua voz verbalizada pelo personagem, mas teria a representação pictórica. A voz que

30
conta ao leitor seria o personagem que viveu aquilo. Qual seria o efeito para a significação
dessa hipótese?
Acredito que o efeito de ficcionalização aumenta, pois vejo um decréscimo na
verossimilhança. Quem conta aquilo ao leitor não é mais a pessoa que viveu, mas alguém
que apresenta o relato dessa testemunha. A obra em prosa é também ficcional, mas a
mescla de narrador e personagem, no seu caso específico, é indissociável, pois a voz que dá
todas as informações ao leitor é a do personagem que afirma ter vivido aquilo.
Importante deixar claro que essa hipótese não pretende diminuir ou engrandecer
qualquer uma das obras analisadas, mas de fato explorar alguns de seus limites nessa
aproximação de meios diferentes.
Quanto à representação dos personagens na história em quadrinhos, já foi
comentado que o narrador personagem16 não é descrito no conto, mas é na HQ. O Gato
Preto é destacado em relação aos demais e a progressão de seus ferimentos é perceptível, de
modo similar ao conto. O Diabo é apresentado cercado por grande quantidade de luz
esverdeada.
Creio que a justificativa para essa escolha foi deixar mais impressionante a figura do
antagonista, pondo-o ao centro da luz, e a cor verde é recuperação dos índices verdes
usados na descrição da visão noturna do narrador.
O número de cenas a partir dos critérios propostos foi a mesma (dezessete) nas duas
obras, variando, por vezes, os pontos de começo e final de cada uma delas. Ambas têm a
cena dezessete e as três primeiras como indiciais. Também se repete a seqüência quatorze e
quinze como cenas funcionais.
A história em quadrinhos apresenta quatro cenas indiciais, oito funcionais e cinco
cenas mistas; o conto em prosa tem cinco cenas indiciais, cinco funcionais e sete que
mesclam essas duas. Portanto, a quantidade de momentos decisivos – funções – para a
narrativa é bastante parecido nas duas obras.

16
Ver 3.2.5.

31
CONCLUSÃO

Após a leitura, análise e comparação das duas obras, com base na teoria barthesiana,
percebo que a tendência, no caso analisado, foi a manutenção dos momentos-chave do
desenvolvimento narrativo, ou seja, as funções foram em grande parte mantidas. Isso revela
a intenção do autor da adaptação de apresentar uma história bastante similar àquela do
conto. As funções são fortemente ligadas ao enredo.
Já os índices variam em boa quantidade entre uma obra e outra. Afirmação que não
surpreende muito, pois os índices são ligados ao enunciado, ou seja, ao modo como se
conta a história. Essa maneira de contar a história obrigatoriamente é diferente, pois os
meios que a enunciam são diferentes entre si.
Parece-me que a idéia de Barthes que a narrativa pode ser compartilhada por
qualquer meio, neste estudo, se provou verdadeira. O que foi alterado foi o enunciado dessa
narrativa. E esta alteração de enunciado carrega consigo diferenças na recepção por parte
dos leitores, afinal, cada meio usa de um determinado recurso para impressionar o leitor de
determinada forma.
Por exemplo, quando o narrador avista o Diabo pela primeira vez no conto,
percebemos o trecho ser construído aos poucos, a revelação está no final do parágrafo, com
a frase “Era o Diabo.” (GAIMAN, 2006, p.55), recurso para valorizar a força do Diabo e
causar impacto no leitor, com uma frase direta e pouco descritiva. O símbolo ‘diabo’ é
bastante significativo para grande parte dos possíveis leitores desse conto, não descrevê-lo
nesse momento é permitir que ele seja exatamente aquilo que o leitor teme. Esse mesmo
trecho na HQ é enunciado de outro modo. Dada a forte característica visual do meio, o
impacto com a figura é conseguido com um recurso oposto ao da prosa: invés de esconder,
o Diabo é apresentado em página inteira, cores destacadas em relação ao ambiente noturno
e muita luz.
Os enunciados são alterados na tentativa de manter o efeito desejado.
Cada meio, por sua própria natureza, tem recursos próprios e ao mesmo tempo abre
mão de outros. Em adaptações, se houver intenção da proximidade com a obra fonte, a
substituição de um recurso por outro é guiada pela similaridade na recepção. Essa

32
necessidade de diálogo estético pode fazer com que alterações no enredo sejam
imprescindíveis para uma adequada similaridade entre a adaptação e sua obra de origem.
Caso a intenção não seja de manter similaridades com a obra dita “original”,
depende da intenção do adaptador. Qual característica da obra fonte ele pretende manter em
sua adaptação?
Em “O preço”, podemos afirmar que há a intenção de Gaiman em contar a mesma
história, porém usando um outro meio. Essa atitude obriga-o a usar de outros enunciados e
estratégias de criação para manutenção do enredo e de situações da história como suspense,
tensão, apreensão, surpresa.

33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise Estrutural da
Narrativa: Pesquisas semiológicas. Tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis:
Vozes, 1972. P.18–58.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: Mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1982.
CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e Sociedade.
São Paulo, n. 2, 1997.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970.
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Trad: Teresa Otoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. Tradução: Luis Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
______. Narrativas gráficas. Tradução: Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir
Livraria, 2005.
GAIMAN, Neil. Smoke & mirrors. New York: Avon Books, 2005.
_____. Fumaças & espelhos. Tradução: Cláudio Blanc. São Paulo: Via Lettera, 2006.
_____. Some Strangeness in the Proportion: The Exquisite Beauties of Edgar Allan Poe.
Disponível em:
<http://www.neilgaiman.com/p/Cool_Stuff/Essays/Essays_By_Neil/Some_Strangeness_in_
the_Proportion:_The_Exquisite_Beauties_of_Edgar_Allan_Poe>. Acesso em: 29 de maio
de 2008.
GAIMAN, Neil, ZULLI, Michael. Criaturas da noite. Tradução: Adriana Falcão. Rio de
Janeiro, 2005.
GREIMAS, A. J. Os atuantes, os atores e as figuras. In: Semiótica narrativa e textual.
Tradução: Leyla Perrone Moisés, Jesus Antônio Durigan e Edward Lopes. São Paulo:
Cultrix, 1977.
LINS, Osman. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. Tradução: Hélcio de Carvalho e Marisa
Nascimento Sole. São Paulo: Makron books, 2005.
______. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2005.
______. Desenhando quadrinhos. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron
Books, 2008.
TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: Análise Estrutural da
Narrativa: Pesquisas semiológicas. Tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis:
Vozes, 1971. P.211–256.
ZENI, Lielson. A metamorfose da linguagem: análise de Kafka em quadrinhos. Curitiba,
2007, dissertação de mestrado, UFPR.
ANEXO 1

BIOGRAFIA DE NEIL GAIMAN

Neil Gaiman nasceu em 1960, em Portchester, Inglaterra. Seus primeiros trabalhos


de escritor foram jornalísticos, como uma biografia da banda pop Duran Duran. Ainda na
Inglaterra escreveu histórias em quadrinhos do personagem Miracleman, da editora Eclipse
Comics e três álbuns autorais com Dave McKean: Violent Cases, The tragical comedy or
the comical tragedy of Mr. Punch e Signal to noise. Posteriormente, contratado pela editora
norte-americana DC Comics escreveu Orquídea Negra, Livros da Magia e Sandman.
Foi com Sandman que Gaiman conseguiu seu status de um dos maiores roteiristas
de quadrinhos de todo mundo. Ele recebeu mais de 40 prêmios por sua produção em
quadrinhos – grande parte deles pela série Sandman.
Depois dela, Gaiman continuou a escrever quadrinhos, porém passou também a
trabalhar em dois outros meios: os roteiros para cinema e a prosa ficcional. Veja uma lista
de algumas de suas produções mais recentes:

- Concepção e roteiro da minissérie televisiva Neverwhere e posterior publicação de um


romance com mesmo título (1997)
- Livro infantil O dia que confundi meu pai com dois peixinhos dourados (1997)
- Coletânea de contos Fumaças& Espelhos (1998)
- Concepção e roteiro do romance ilustrado Stardust (1999)
- Roteiro da história em quadrinhos Sandman – Caçadores de sonhos (1999)
- Romance Deuses americanos (2001)
- Romance infanto-juvenil Coraline (2002)
- Roteiro e direção de um filme de curta-metragem A short film about John Bolton (2002,
lançado em DVD em 2006)
- Livro infantil ilustrado Lobos nas paredes (2003)
- Roteiro da história em quadrinhos Sandman – Noites sem fim (2003)
- Roteiro da história em quadrinhos 1602 (2004)
- roteiro da história em quadrinhos Criaturas da noite, adaptação de dois de seus contos
(2004)
- roteiro do filme Máscara da ilusão (2005)
- roteiro do filme Beowolf (2005, lançado em 2007)
- Romance Filhos de Anansi (2005)
- Coletânea de contos e poemas Fragile Things(2006)
- Roteiro do filme Stardust, adaptação de seu próprio livro (lançado em 2007)
- Roteiro da animação Coraline, adaptação de seu próprio livro (a ser lançada em 2008).

Informações da página oficial do artista: <http:www.neilgaiman.com> . Acesso em 03 de


maio de 2008.
ANEXO 2
The Price
by Neil Gaiman

Tramps and vagabonds have marks they make on gateposts and trees and doors, letting
others of their kind know a little about the people who live at the houses and farms they pass on
their travels. I think cats must leave similar signs; how else to explain the cats who turn up at our
door through the year, hungry and flea-ridden and abandoned?
We take them in. We get rid of the fleas and the ticks, feed them and take them to the vet.
We pay for them to get their shots, and, indignity upon indignity, we have them neutered or spayed.
And they stay with us, for a few months, or for a year, or for ever.
Most of them arrive in summer. We live in the country, just the right distance out of town
for the city-dwellers to abandon their cats near us.
We never seem to have more than eight cats, rarely have less than three. The cat population
of my house is currently as follows: Hermione and Pod, tabby and black respectively, the mad
sisters who live in my attic office, and do not mingle; Princess, the blue-eyed long-haired white cat,
who lived wild in the woods for years before she gave up her wild ways for soft sofas and beds;
and, last but largest, Furball, Princess's cushion-like calico long-haired daughter, orange and black
and white, whom I discovered as a tiny kitten in our garage one day, strangled and almost dead, her
head poked through an old badminton net, and who surprised us all by not dying but instead
growing up to be the best-natured cat I have ever encountered.
And then there is the black cat. Who has no other name than the Black Cat, and who turned
up almost a month ago. We did not realise he was going to be living here at first: he looked too
well-fed to be a stray, too old and jaunty to have been abandoned. He looked like a small panther,
and he moved like a patch of night.
One day, in the summer, he was lurking about our ramshackle porch: eight or nine years
old, at a guess, male, greenish-yellow of eye, very friendly, quite unperturbable. I assumed he
belonged to a neighbouring farmer or household.
I went away for a few weeks, to finish writing a book, and when I came home he was still on our
porch, living in an old cat- bed one of the children had found for him. He was, however, almost
unrecognisable. Patches of fur had gone, and there were deep scratches on his grey skin. The tip of
one ear was chewed away. There was a gash beneath one eye, a slice gone from one lip. He looked
tired and thin.
We took the Black Cat to the vet, where we got him some antibiotics, which we fed him
each night, along with soft cat food.
We wondered who he was fighting. Princess, our white, beautiful, near-feral queen?
Raccoons? A rat-tailed, fanged possum?
Each night the scratches would be worse -- one night his side would be chewed-up; the
next, it would be his underbelly, raked with claw marks and bloody to the touch.
When it got to that point, I took him down to the basement to recover, beside the furnace
and the piles of boxes. He was surprisingly heavy, the Black Cat, and I picked him up and carried
him down there, with a cat-basket, and a litter bin, and some food and water. I closed the door
behind me. I had to wash the blood from my hands, when I left the basement.
He stayed down there for four days. At first he seemed too weak to feed himself: a cut
beneath one eye had rendered him almost one-eyed, and he limped and lolled weakly, thick yellow
pus oozing from the cut in his lip.
I went down there every morning and every night, and I fed him, and gave him antibiotics,
which I mixed with his canned food, and I dabbed at the worst of the cuts, and spoke to him. He had
diarrhoea, and, although I changed his litter daily, the basement stank evilly.
The four days that the Black Cat lived in the basement were a bad four days in my house:
the baby slipped in the bath, and banged her head, and might have drowned; I learned that a project
I had set my heart on -- adapting Hope Mirrlees' novel Lud in the Mist for the BBC -- was no longer
going to happen, and I realised that I did not have the energy to begin again from scratch, pitching it
to other networks, or to other media; my daughter left for Summer Camp, and immediately began to
send home a plethora of heart-tearing letters and cards, five or six each day, imploring us to take her
away; my son had some kind of fight with his best friend, to the point that they were no longer on
speaking terms; and returning home one night, my wife hit a deer, who ran out in front of the car.
The deer was killed, the car was left undriveable, and my wife sustained a small cut over one eye.
By the fourth day, the cat was prowling the basement, walking haltingly but impatiently
between the stacks of books and comics, the boxes of mail and cassettes, of pictures and of gifts and
of stuff. He mewed at me to let him out and, reluctantly, I did so.
He went back onto the porch, and slept there for the rest of the day.
The next morning there were deep, new gashes in his flanks, and clumps of black cat-hair -- his --
covered the wooden boards of the porch.
Letters arrived that day from my daughter, telling us that Camp was going better, and she
thought she could survive a few days; my son and his friend sorted out their problem, although what
the argument was about -- trading cards, computer games, Star Wars or A Girl -- I would never
learn. The BBC Executive who had vetoed Lud in the Mist was discovered to have been taking
bribes (well, 'questionable loans') from an independent production company, and was sent home on
permanent leave: his successor, I was delighted to learn, when she faxed me, was the woman who
had initially proposed the project to me before leaving the BBC.
I thought about returning the Black Cat to the basement, but decided against it. Instead, I
resolved to try and discover what kind of animal was coming to our house each night, and from
there to formulate a plan of action -- to trap it, perhaps.
For birthdays and at Christmas my family gives me gadgets and gizmos, pricy toys which
excite my fancy but, ultimately, rarely leave their boxes. There is a food dehydrator and an electric
carving knife, a bread-making machine, and, last year's present, a pair of see-in-the-dark binoculars.
On Christmas Day I had put the batteries into the binoculars, and had walked about the basement in
the dark, too impatient even to wait until nightfall, stalking a flock of imaginary Starlings. (You
were warned not to turn it on in the light: that would have damaged the binoculars, and quite
possibly your eyes as well.) Afterwards I had put the device back into its box, and it sat there still,
in my office, beside the box of computer cables and forgotten bits and pieces.
Perhaps, I thought, if the creature, dog or cat or raccoon or what-have-you, were to see me
sitting on the porch, it would not come, so I took a chair into the box-and-coat-room, little larger
than a closet, which overlooks the porch, and, when everyone in the house was asleep, I went out
onto the porch, and bade the Black Cat goodnight.
That cat, my wife had said, when he first arrived, is a person. And there was something very
person-like in his huge, leonine face: his broad black nose, his greenish-yellow eyes, his fanged but
amiable mouth (still leaking amber pus from the right lower lip).
I stroked his head, and scratched him beneath the chin, and wished him well. Then I went
inside, and turned off the light on the porch.
I sat on my chair, in the darkness inside the house, with the see-in-the-dark binoculars on my lap. I
had switched the binoculars on, and a trickle of greenish light came from the eyepieces.
Time passed, in the darkness.
I experimented with looking at the darkness with the binoculars, learning to focus, to see
the world in shades of green. I found myself horrified by the number of swarming insects I could
see in the night air: it was as if the night world were some kind of nightmarish soup, swimming with
life. Then I lowered the binoculars from my eyes, and stared out at the rich blacks and blues of the
night, empty and peaceful and calm.
Time passed. I struggled to keep awake, found myself profoundly missing cigarettes and
coffee, my two lost addictions. Either of them would have kept my eyes open. But before I had
tumbled too far into the world of sleep and dreams a yowl from the garden jerked me fully awake. I
fumbled the binoculars to my eyes, and was disappointed to see that it was merely Princess, the
white cat, streaking across the front garden like a patch of greenish-white light. She vanished into
the woodland to the left of the house, and was gone.
I was about to settle myself back down, when it occurred to me to wonder what exactly had
startled Princess so, and I began scanning the middle distance with the binoculars, looking for a
huge raccoon, a dog, or a vicious possum. And there was indeed something coming down the
driveway, towards the house. I could see it through the binoculars, clear as day.
It was the Devil.
I had never seen the Devil before, and, although I had written about him in the past, if
pressed would have confessed that I had no belief in him, other than as an imaginary figure, tragic
and Miltonion. The figure coming up the driveway was not Milton's Lucifer. It was the Devil.
My heart began to pound in my chest, to pound so hard that it hurt. I hoped it could not see
me, that, in a dark house, behind window-glass, I was hidden.
The figure flickered and changed as it walked up the drive. One moment it was dark, bull-like,
minotaurish, the next it was slim and female, and the next it was a cat itself, a scarred, huge grey-
green wildcat, its face contorted with hate.
There are steps that lead up to my porch, four white wooden steps in need of a coat of paint
(I knew they were white, although they were, like everything else, green through my binoculars). At
the bottom of the steps, the Devil stopped, and called out something that I could not understand,
three, perhaps four words in a whining, howling language that must have been old and forgotten
when Babylon was young; and, although I did not understand the words, I felt the hairs raise on the
back of my head as it called.
And then I heard, muffled through the glass, but still audible, a low growl, a challenge, and,
slowly, unsteadily, a black figure walked down the steps of the house, away from me, toward the
Devil. These days the Black Cat no longer moved like a panther, instead he stumbled and rocked,
like a sailor only recently returned to land.
The Devil was a woman, now. She said something soothing and gentle to the cat, in a tongue that
sounded like French, and reached out a hand to him. He sank his teeth into her arm, and her lip
curled, and she spat at him.
The woman glanced up at me, then, and if I had doubted that she was the Devil before, I
was certain of it now: the woman's eyes flashed red fire at me; but you can see no red through the
night-vision binoculars, only shades of a green. And the Devil saw me, through the window. It saw
me. I am in no doubt about that at all.
The Devil twisted and writhed, and now it was some kind of jackal, a flat-faced, huge-
headed, bull-necked creature, halfway between a hyena and a dingo. There were maggots squirming
in its mangy fur, and it began to walk up the steps.
The Black Cat leapt upon it, and in seconds they became a rolling, writhing thing, moving
faster than my eyes could follow.
All this in silence.
And then a low roar -- down the country road at the bottom of our drive, in the distance,
lumbered a late-night truck, its blazing headlights burning bright as green suns through the
binoculars. I lowered them from my eyes, and saw only darkness, and the gentle yellow of
headlights, and then the red of rear lights as it vanished off again into the nowhere at all.
When I raised the binoculars once more there was nothing to be seen. Only the Black Cat,
on the steps, staring up into the air. I trained the binoculars up, and saw something flying away - - a
vulture, perhaps, or an eagle -- and then it flew beyond the trees and was gone.
I went out onto the porch, and picked up the Black Cat, and stroked him, and said kind,
soothing things to him. He mewled piteously when I first approached him, but, after a while, he
went to sleep on my lap, and I put him into his basket, and went upstairs to my bed, to sleep myself.
There was dried blood on my tee shirt and jeans, the following morning.
That was a week ago.
The thing that comes to my house does not come every night. But it comes most nights: we
know it by the wounds on the cat, and the pain I can see in those leonine eyes. He has lost the use of
his front left paw, and his right eye has closed for good.
I wonder what we did to deserve the Black Cat. I wonder who sent him. And, selfish and
scared, I wonder how much more he has to give.

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