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1 A Escritura Cindida: O Devir–animal 1
6 Um Devir-Imperceptível... 42
7 Referências 55
de matilha, sim, territoriais, mas não familiares. O que fazia Deleuze detestar
cães e gatos não era serem cães ou gatos, mas serem demasiado humanos. Um
cão de butique não serve para um devir-animal, justamente porque tudo o que
vemos são cães de butique. No entanto, Deleuze teve gatos em casa – que
só suportou por causa dos filhos. Ele se admirava de como as pessoas podiam
falar com seus animais. No fundo, era a humanização dos animais que Deleuze
odiava. A fala humana, o gracejo familiar, obliteravam uma potência qualquer
– e um animal despotenciado é tão odioso quanto o homem, justamente porque
é demasiado parecido com ele.
Um cão como Diógenes talvez servisse bem a Deleuze. Diógenes tinha um
devir-cão não-familiar. Era um cão vagabundo, sem raça, sem dono, provavel-
mente pulguento, comendo em público, servindo-se do prazer entre outros, à
vista de todos... Diógenes pisoteava as almofadas da sala de Platão, com seus
pés sujos de barro, e atalhado pelo dono da casa, dizia feliz: “Ah, Platão!, es-
tou a pisar seu orgulho”. Ou, então, talvez o cão andaluz fosse, quem sabe,
amável aos olhos de Deleuze: ao assistirmos ao filme de Dalí e Buñuel não
cessamos de perguntar “ora, mas que cão? Não há cão nenhum!”. Mas há
populações inteiras de formigas arrastando o piano, e todos se lembram da
navalha. A moça sentada na barbearia: um devir-mulher atinge um ponto de
indiscernibilidade, a visão vacila numa paisagem não-humana, o olho olha a
lua e devém: o barbeiro puxa a navalha e rasga o olho, e rasga a lua. Um gesto
erótico, e meio batailliano: o olho, a história do olho. Deleuze também não
gostava dos surrealistas; eles lhe pareciam grandes fraudes; mas esse filme não
busca significar, nem é discernível que haja efetivamente um sonho; é mais
um estado de embriaguez que dissolve as passagens: delira-se com a Figura,
e não com a representação: o olho que é a lua (devir-caosmos), a lua que é
o olho (um devir-molecular) – o olho tem quase o tamanho de uma molécula
perto da lua. O olho que é o olho da moça; o olho da moça que é a lua; o
olho da história de Battaille que é o olho, mas também o ovo, e também o cu.2
A brancura do olho, a brancura da lua, a bran-cu-ra. Um delírio é feito de
delirar as raças e a história universal, e não de papá-mamã.3 O agenciamento,
antes de tornar-se outra coisa, é mais ou menos este: o olho rasgado, a lua cor-
tada, o cu desflorado. Algo próximo do que acorria à homofonia de Battaille:
l’œil e l’œuf. Mas há, também, o procedimento esquizofrênico operado sobre
a linguagem – escavar na língua materna uma língua menor, estrangeira.4 Um
2
BATTAILLE, Georges. Story of the eye. Tradução de Joachin Neugroshal. Londres :
Penguin, 2001.
3
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I.
Tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.
4
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál
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A navalha de Gilles: Deleuze e a ruptura 3
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4 Murilo Duarte Costa Corrêa
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6 Murilo Duarte Costa Corrêa
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8 Murilo Duarte Costa Corrêa
Essa reversão vai exigir que a Idéia não seja mais modelo, mas assuma o
estatuto de diferencial. Com base no cálculo diferencial, Deleuze busca es-
tabelecer uma natureza da Idéia que seja independentemente das noções de
finito ou infinito – que seriam características da representação; assim, nem real
nem fictício, o diferencial exprime a natureza do problemático enquanto tal,
sua consistência objetiva, assim como sua autonomia subjetiva. Evita-se, as-
sim, que o elemento diferencial, problemático, caia na representação, pois é o
objeto da Idéia como universal, jogo da diferença como tal, que não se deixa
mediatizar pela representação nem subordinar-se à identidade no conceito.
As Idéias, diz Deleuze, são multiplicidades virtuais; constituem uma multi-
plicidade, uma variedade. Multiplicidade como substantivo significa um múlti-
plo que não precisa do Uno para formar um sistema. O verdadeiro substantivo,
diz Deleuze, é a multiplicidade. O Uno é apenas uma multiplicidade, e por isso
Deleuze rejeita as designações compostas por ambos os termos. Diferenças de
multiplicidades e diferenças nas multiplicidades substituem oposições gros-
seiras e esquemáticas. Só há diferença, variedade de multiplicidade, ao invés
da oposição: uno-múltiplo.
Entretanto, há condições para se falar de multiplicidade. É preciso que
seus elementos não tenham forma sensível, nem significação conceitual, nem,
por conseguinte, função assinalável. Sequer existência atual eles têm, e são in-
separáveis de um potencial ou de uma virtualidade. Assim, não implicam qual-
quer identidade preliminar. É preciso que esses elementos sejam determinados,
mas por relações recíprocas que não deixem subsistir qualquer independência.
Tais relações são ligações ideais, não-localizáveis. A multiplicidade interna
é o caráter da Idéia. Ainda, uma ligação múltipla ideal, relação diferencial,
deve atualizar-se em correlações espaciotemporais diversas, ao mesmo tempo
em que seus elementos encarnam-se atualmente em termos e formas variadas.
Assim, a Idéia define-se como estrutura: o tema complexo, a multiplicidade
interna, um “sistema de ligação múltipla não-localizável entre elementos difer-
enciais, que se encarna em correlações reais e em termos atuais”.25 Então, não
há qualquer dificuldade em conciliar gênese e estrutura. Basta compreender
que a gênese não vai de um termo atual a outro, mas do virtual à sua atu-
alização, da “estrutura” à sua encarnação, das condições e problemas à sua
solução, dos elementos diferenciais e de suas ligações ideais aos termos atuais
e às correlações reais diversas que, a cada momento, constituem a atualidade
do tempo.
Deleuze também define as Idéias como complexos de coexistência. Mas a
25
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição, p. 261.
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Como quisera Éric Alliez,37 a filosofia de Gilles Deleuze não deixa de ser
uma filosofia virtual; mas é apenas porque persiste o intempestivo, o destempo
da terceira síntese do tempo, a síntese do futuro, e a atualização – que é ainda
virtual, não-atualizado em vias de atualizar-se – que se pode falar de um pro-
cedimento de ruptura que atravessa a filosofia deleuziana fazendo proliferar
problemas e produzir realidades com consistências virtual e atual. A indis-
cernibilidade é um campo misto, mas o misto não é apenas mistura: faz uma
cisão que difere em direção ao novo. Com isso, mesmo Foucault parece con-
sentir ao entrever na reversão deleuziana do platonismo uma espécie de divisão
que, tomada de Platão, se aprofunda.38 A ruptura é o espaço do novo, é o es-
paço paradoxal, a condição do puro devir: onde Alice cresce, o que também
significa que fica menor.39
Na ruptura, que é também o esquecimento entre-dois que funda o ser se-
gundo uma disjunção inclusiva e o violenta a pensar, o pensamento se libera da
representação para tornar possível a ontologia. Num pensamento a que nada
falta, que é um espaço aberto e livre, nomádico, errático, a questão passa a ser
a que Deleuze retira de Spinoza: de que imanência se enche o pensamento, ou
o desejo? Como povoar os espaços? Tal é a questão da liberdade e do devir;
o devir que, na forma da repetição que se repete diferentemente, no eterno re-
torno que afunda o negativo e afirma o simulacro, converte-se em uma forma de
liberdade e de invenção de modos de vida, bem como uma maneira de resistir
ao presente. Eis o objeto de uma política nômade, de um devir-imperceptível,
e de um pensamento que combate a transcendência na imanência.
A partir da ruptura, constitui-se uma paisagem sem homem, uma luz mais
pura, uma pura visão. Uma melodia, ou um sopro, que brota da palavra cin-
dida, encantou Deus antes de assassiná-lo. Se já não há a imagem de Deus, a
que o homem se assemelhava, e se não sobrevive sequer a velha imagem do
pensamento, sobrevém a liberdade do devir: um deserto, uma paisagem sem
sujeito – e, entretanto, a afirmação de uma pura positividade. Essa liberdade
é uma arte política que distribui a diferença em um espaço errático e já pode
produzir novos modos de existência.
37
ALLIEZ, Éric. Deleuze: filosofia virtual. São Paulo: Editora 34, 2000.
38
“ En tout cas, voici Deleuze. Son “ platonisme renversé ” consiste à se deplacer dans la
série platonicienne et à y faire appairaître un point remarquable : la division ”. FOUCAULT,
Michel. Theatrum philosphicum. In : Dits et écrits I. (1954-1975). Édition établie sous la
drection de Daniel Defert et de Fraçois Ewald avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris
: Quarto / Gallimard, 2001, p. 945.
39
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido, p. 01. “Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance,
que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos”.
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sujeito que tem o desejo como a posse de um objeto menor. É claro que há um
sujeito não fixo, hecceidade, produzido pela máquina desejante segundo uma
produção imanente entranhada num desejo sem falta.
Parece cômodo contentar-se com um desejo que, desde o Banquete platô-
nico, diz-se: é falta, pobre dele! Desejo pequenino, pequenino objeto – se-
gurando um espelhinho entre as mãos para enxergar a falta também no outro.
Mais pregnante e perturbador pode ser afirmar um desejo sem falta, um de-
sejo excessivo, um transbordamento, que não se confunde com o gozo psi-
canalítico; eis o desejo que Deleuze e Guattari, reencontrando um platonismo
no Édipo, tentarão libertar da representação. Contudo, não basta afirmar que
não há falta no desejo, que ele não precisa apelar a um motor externo, que ele é
todo si, jogando-se em si e contra si, cavando um “para além de si” num devir
que, longe de ultrapassá-lo, apenas o restitui a si mesmo diferentemente.44
É necessário libertar o desejo da representação, mas só se pode fazê-lo se
compreendermos a verdadeira natureza do inconsciente: maquínica, produtiva,
não-representativa nem significativa. Assim, da intersecção do pensamento
com o desejo, um inconsciente maquínico surge como elemento de transição.
É ele que, em primeiro lugar, se deve desenredar da imagem do Édipo. Se
ainda for preciso dizer alguma coisa, basta fazer como Artaud: “Eu, Antonin
Artaud, sou o meu filho, o meu pai, a minha mãe, e eu”.45 A psicanálise teria,
ela mesma, também sua metafísica cristalizada na imagem do Édipo.
Reunidos, Guattari e Deleuze desejam denunciar o uso ilegítimo das sínte-
ses do inconsciente feito pela psicanálise edipiana, de modo a encontrar “(...)
44
O desejo deleuziano dispõe de algo como uma causa imanente, cujo conceito Deleuze
extrai de Spinoza, por oposição à causa imanativa, e que pode ser assim disposto em linhas
gerais: (1) a causa imanente é algo que não sai de si; (2) uma causa é dita imanente quando
o efeito é, ele mesmo, imanado na causa, ao invés de emanar dela; (3) o efeito encontra-se
na causa imanente, mas já como numa outra coisa, e nela persevera; (4) do ponto de vista da
imanência, a distinção de essências já não exclui nem negativiza, mas implica uma igualdade
do Ser, na medida em que é o mesmo ser que resta em si na causa, mas também na qual o
efeito permanece como em uma outra coisa; (5) a imanência implica uma pura ontologia, uma
teoria do ser em que o Uno não passaria da propriedade da substância e disso que é; (6) a
imanência em estado puro exige um Ser unívoco que forma uma Natureza, e que consiste em
formas positivas, comuns à causa como ao efeito; (7) a causa, portanto, embora se encontre
em uma posição de superioridade, não condiz com um princípio que estivesse para além das
formas que se encontram, elas mesmas, presentes no efeito, na medida em que o que a causa dá
ao efeito não lhe é nunca superior. Assim, a imanência opõe-se a toda teologia negativa, a todo
método analógico, e a toda concepção hierárquica do mundo. Na imanência, diz Deleuze, tudo
é afirmação. Cf., a respeito, DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression. Paris :
Les Éditions de Minuit, 1968, p. 155-156.
45
Apud DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia
I, p. 20.
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“levar o simulacro até o ponto em que ele deixa de ser uma imagem de im-
agem para encontrar as figuras abstratas, os fluxos-esquizes que ele oculta”.52
Seria, então, necessário substituir o sujeito privado castrado por agentes cole-
tivos que remetem para arranjos maquínicos. Ainda uma última reversão: do
teatro da representação à produção desejante; do inconsciente teatralizado ao
inconsciente maquínico.
Liberação de fluxos nunca quis dizer por si só “produção desejante”.53 A
produção desejante, que continua a ser o limite exterior, o limite absoluto, se
faz através da conexão das máquinas, de suas disjunções inclusivas, de fluxos
e cortes, e operam maquinicamente. Os sujeitos são igualmente produzidos,
mas apenas como restos ao lado das máquinas. Há, ainda, entre essas oper-
ações, uma ética das máquinas, que aparece ao se substituir um inconsciente
expressivo por um inconsciente maquínico: “As máquinas desejantes (...) não
representam nada, não significam nada, não querem dizer nada e são exacta-
mente o que se faz delas, aquilo que se faz com elas, o que elas fazem de si
mesmas”.54
O uso da máquina é uma pragmática – esquizoanalítica – ou uma política
na invenção de modos de vida e de pensamento que não sejam para o capital;
tal uso supõe, também, uma ética, a implicação em uma certa maneira de oper-
arem, a maneira pela qual uma máquina não pode operar senão sendo máquina
de outra, sendo máquina de máquina – provendo o fluxo e fazendo funcionar
o corte. Máquina é máquina de máquina, não nos esqueçamos; assim como
o desejo é produtivo, e produz real.55 A passagem da produção social capi-
talista à produção esquizofrênica só pode dar-se no devir que é, precisamente,
o devir da realidade.56 Não é precisamente uma nova ética que Deleuze e
Guattari procuram quando afundam a psicanálise como disciplina interpreta-
tiva e passam a perguntar não “o que isso quer dizer?”, mas “como é que isso
funciona”? É a mesma ética que pergunta: “E quanto a você? Que são suas
máquinas desejantes?”.57
52
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I, p.
283.
53
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I, p.
351.
54
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I, p.
300.
55
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I, p.
11.
56
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I, p.
39.
57
DELEUZE, Gilles. E quanto a você? Que são suas máquinas desejantes? Tradução
de Fabien Lins. In: A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). Edição
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Uma máquina, diz Deleuze, não passa de um sistema de cortes que operam
variações, funcionando em relação com uma hylê, um fluxo material contínuo.
Aí, a ruptura também faz ética, pois uma máquina só pode cortar supondo uma
outra máquina que suponha um fluxo: “(...) qualquer máquina é corte de fluxo
em relação àquela com que está conectada, e é fluxo ou produção de fluxos em
relação à que está conectada com ela. Esta é a lei da produção de produção”.58
Dos cortes-fluxos brota o desejo no limite das conexões transversais.
Há, ainda, um substrato sobre o qual as máquinas se instalam: o corpo sem
órgãos. Da mesma maneira que se há de açoitar os próprios inatismos numa
violência que engendra o pensar, há todo um trabalho, uma experiência a se
fazer no corpo sem órgãos – num corpo sem órgãos em que não há eu, mas um
si como instância preliminar, si a-subjetivo como suporte de uma causa ima-
nente. Não é em outro sentido que Deleuze e Guattari dirão que o corpo sem
órgãos é o campo de imanência do desejo como produção. Eis o spatium em
que interferem um pensamento nômade, uma política errática e uma paisagem
de deserto, inumana.
O corpo sem órgãos funciona como um limite imanente, e não faz supor
uma interpretação, mas uma experiência, assim como não se interpreta o pen-
samento, ou a imanência, e só podemos ter experiências deles. Se ao desejo
nada falta, o corpo sem órgãos tampouco indica que lhe faltam órgãos – o que
ele dispensa são as organizações. Assim, o corpo sem órgãos constitui o campo
de imanência do desejo, onde o desejo constitui processo de produção.
Se, como vimos, o desejo constitui uma espécie de causa imanente, cujos
efeitos são “imanados” na própria causa, nenhuma falta vem tornar o desejo
oco – e por isso somos capazes de desejarmos nosso próprio aniquilamento.59
Fascismos podem, muito desejosamente, organizar e estratificar o corpo sem
órgãos, da forma como um desejo liberador pode vir povoá-lo e correr sobre
ele, traçando as linhas de fuga.
Essa instância preliminar, esse campo de imanência do desejo, engendra
também uma ética de si – na medida em que não entendemos si como o atributo
de um sujeito, mas confundido com essa instância impessoal e preliminar que
é o corpo sem órgãos, e que pode ser povoado por um devir-sujeito, como por
um devir-animal ou imperceptível.60
preparada por David Lapoujade. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 308.
58
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I, p.
40.
59
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume
3, p. 28.
60
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume
4, p. 111-113.
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hecimento de que apenas o novo deve nascer, dando, assim, um fim ao Juízo de
Deus que com a organização, a subjetivação, a significação, tudo o que pôde
fazer foi diferir a culpa infinitamente,67 nos pecados da carne ou na extensão
de um divã.
Contudo, é necessário guardar algo do organismo, o mínimo de organismo,
para que ele se recomponha; “pequenas provisões de significância e de inter-
pretação (...) e pequenas rações de subjetividade”.68 Deleuze nunca propagou
a proscrição da subjetivação, embora denunciasse o sujeito. O fim que Ar-
taud e Nietzsche, ou mesmo Kafka, desejam dar ao Juízo de Deus implica a
invenção de novos modos de vida, de uma nova justiça que reconhece o dire-
ito de devir o novo – o que não se pode fazer senão produtivamente, traçando
corajosamente a linha de fuga que nos faz escapar de nós mesmos, do sujeito
que somos, que nos tornamos, para cair no si, no corpo sem órgãos inatribuível
a um sujeito, mas em que a possibilidade da subjetivação, como da sujeição, e
da invenção de novos modos de vida, de uma estética da existência, se desen-
rola.69 Trata-se de reconhecer apenas o direito do que deve nascer, como diria
Nietzsche.70
Deleuze e Guattari advertem: não se deve fazer como os corpos que de-
sesatrificam grosseiramente – isso implicaria algo pior que permanecer su-
jeitado: nos faria precipitar-nos em uma queda suicida ou demente. É a lima
fina da prudência que deve intervir em uma ética-política de povoamento do
corpo sem órgãos. Há uma ética e uma política sem sujeito, sem sujeição, com
o mínimo de poder e o máximo de potência. É uma ética e uma política que
são virtuais, virtuosas e potentes: virtu deixa de significar qualquer coisa, e
passa a ser uma prática, um procedimento, uma techné e uma arte que dire-
ciona o acontecimento ético-político do novo que desorganiza e vai arrebentar
no corpo como a onda no mar não arrebenta duas vezes da mesma forma nem
com a mesma força.
Persiste, ou insiste, todo um diagrama para o corpo sem órgãos; corpo
antes obturado, estratificado, mas agora restituído à imanência, à sua atividade
maquinadora: “conectar, conjugar, continuar”.71 Abre-se mão do programa –
ainda demasiado subjetivo e significante – pelo diagrama do corpo sem órgãos,
67
DELEUZE, Gilles. Para dar um fim ao juízo. In: Crítica e clínica, p. 144.
68
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume
3, p. 23.
69
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor, p.93-94.
70
Cf. NIETZSCHE, Friedrich Wilhlem. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e
desvantagem da história para a vida.
71
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume
3, p. 24.
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balho, é preciso que haja captura por um aparelho de Estado, uma semioti-
zação da atividade pela escrita – e aí uma certa relação da ferramenta com o
signo. Isso nos mostra aquilo que Nietzsche já havia ensinado: em um mundo
de fluxos descodificados, de nada adianta tentar sobrecodificá-los; devemos é
pegar na cauda no movimento do fluxo e tentar atribuir-lhe alguma velocidade
diferencial.
A partir de Clausewitz, Deleuze-Guattari interessam-se pela distinção en-
tre guerras reais e guerra como Idéia pura.86 A Idéia de guerra nada tem a
ver com a eliminação abstrata do adversário, mas, sim, a máquina de guerra
que justamente não tem a guerra por objeto, e que só entretém com a guerra
uma relação sintética, potencial ou suplementária. Em segundo lugar, mesmo
na pureza de seu conceito, a máquina de guerra nômade efetua necessaria-
mente sua relação sintética com a guerra como suplemento, descoberto e de-
senvolvido contra a forma-Estado que se trata de destruir. Contudo, no mo-
mento em que o aparelho de Estado se apropria da máquina de guerra, ele a
subordina a fins políticos e lhe dá por objeto a guerra.
Os fatores que fazem da guerra de Estado a uma guerra total estão estreita-
mente ligados ao capitalismo: trata-se do investimento do capital constante em
material, indústria, e economia de guerra, e do investimento variável em pop-
ulação física e moral. A guerra total não é só uma guerra de aniquilamento,
mas surge quando o aniquilamento toma por “centro” o exército inimigo, o
Estado inimigo, e também a população inteira e sua economia. Esse duplo
investimento, que só pode dar-se nas condições prévias da guerra limitada,
mostra o caráter irresistível da tendência capitalista de desenvolver a guerra to-
tal. Hoje, encontramo-nos diante da máquina de guerra mundial, pós-fascista
– precisamente aquela que faz a paz do Terror ou da Sobrevivência.87
Eis o que inaugura os tempos de morte que Giorgio Agamben tão bem
parece ter descrito: tempo em que nos tornamos virtualmente matáveis.88 Mas
Deleuze é quem consegue enxergar um duplo na morte. Sua navalha corta a
morte de uma ponta à outra, e assim como não é possível ver na catatonia um
puro negativo, tampouco a morte se reduz à sua dimensão de destituição do
vivente. Nela, há algo que lança no mundo um extra-ser, um invisível, um
sopro de vida, tirado do fundo do ser. Não o momento em que eu morro, mas
o momento em que se morre como puro acontecimento.
86
O que Deleuze, mais tarde, irá nomear combate por oposição às guerras “reais”. Cf.
DELEUZE, Gilles. Para dar um fim a juízo. In: Crítica e clínica, p. 149.
87
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume
5, p. 109.
88
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 121.
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34 Murilo Duarte Costa Corrêa
Ao pintar o grito, por exemplo, Bacon não dá cores a um som, mas coloca
o grito sonoro em relação com as forças que o suscitam. A pintura faz o grito
visível, a boca que grita em relação com as forças. Trata-se de pintar mais o
grito, a detecção de uma força invisível, que o horror, a figuração do horrível.
Uma boca aberta como um abismo de sombra em relação com forças invisíveis,
que são apenas as forças do futuro.
Ainda é Bacon quem diz que se trata de renunciar à violência do es-
petáculo pela violência da sensação. Eis um ponto em que Deleuze entrevê
uma declaração de fé na vida, um ponto de vitalidade extraordinário. O horror
não basta para nos fazer sair do figurativo; parece necessário seguir em direção
a uma Figura sem horror:
Quando o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do in-
visível, ele apenas lhes dá a sua visibilidade. É nessa visibilidade que o corpo
luta ativamente, afirma uma possibilidade de triunfar que não possuía enquanto
essas forças permaneciam invisíveis no interior de um espetáculo que nos pri-
vava de nossas forças e nos desviava. É como se agora um combate se tornasse
possível. A luta com a sombra é a única luta real. Quando a sensação visual
confronta a força invisível que a condiciona, libera uma força que pode vencer
esta força, ou então pode fazer dela uma amiga. A vida grita para a morte,
mas a morte não é mais esse demasiado-visível que nos faz desfalecer, ela é
essa força invisível que a vida detecta, desentoca e faz ver, ao gritar. É do
ponto de vista da vida que a morte é julgada, e não o inverso, no qual nos
comprazíamos.107
Morrer não é assim tão horrível quando se morre. É Deleuze quem nos
mostra, finalmente, uma morte despida de horror, uma morte como aconteci-
mento, o ponto em que a vida envolve a morte, e se abraça nela para fazê-la
voltar-se contra si, desprendendo, assim, da morte, uma réstia, uma potência:
a intensidade zero, a vitalidade inorgânica que se relança sobre o corpo sem
órgãos, a vida tornada um ponto de vista sobre a morte, destituindo a morte do
poder de julgar a vida ou de decretar sua inanição permanente.
Há, pois, um duplo da morte negativa que a vida é capaz de atravessar em
uma velocidade absoluta: a morte como o abismo que a vida ultrapassa para
cair de novo sobre o corpo sem órgãos, na intensidade = 0 que reconduz à
produção desejante.
Se o que morre é o organismo, há, para aquém dele, uma vida que não pára
de murmurar e de ressoar sobre o corpo sem órgãos, uma potência inorgânica
positiva, que não se confunde com a morte, mas faz dela uma experiência
de retorno à intensidade zero. A morte como acontecimento é positiva na
107
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação, p. 67-68.
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A navalha de Gilles: Deleuze e a ruptura 35
medida em que nos mostra que o corpo sem órgãos, o continuum da vida,
esteve sempre lá como um pequeno rio intenso correndo sob as montanhas,
cortando a paisagem. A morte nos levará consigo um dia, mas não sem deixar
livres os corpos sem órgãos, não sem deixar um corpo inteiramente vivo, e no
entanto inorgânico, que sobreviveu a nós, pois é o que resta quando tudo foi
retirado; é a réstia de vida que a morte nunca poderá colher em sua sombra.
Da mesma forma, a vida pode ser imanência, potência e beatitude comple-
tas.108 Só a esse preço tem-se uma chance contra a morte e contra o poder.
É por não se contentar com a centelha de vida de Riderhood que Deleuze en-
contra a vida do bebê como vida indefinida – precisamente porque, se a vida
torna-se um ponto de avaliação sobre a morte, e nessa medida se relança da
positividade do acontecimento como a mais singular realidade que da morte
pôde se desprender, “Il ne faudrait pas contenir une vie dans le simple moment
ou la vie individuelle afronte l’universelle mort”.109
A morte, como os sujeitos e os objetos, não passa das atualizações de uma
vida... é sobre uma vida... que eles se atualizam, ela é o que os carrega, ela
os abraça e se faz povoar deles; a morte também pode ser uma atualização
na imanência absoluta da vida; sua universalidade arrasta consigo o sujeito;
a negatividade, nesse ponto, o traga consigo, mas só retorna o acontecimento
da morte como positividade pura e afirmativa de uma vida... que continua por
todos os lados distribuindo-se em singularidades. A morte retorna, mas apenas
diferentemente, como potência da vida inorgância, como a intensidade = 0 do
corpo sem órgãos.
Sujeitos e objetos são transformações que, um dia, devirão transformações
mortas. Mas os indefinidos de uma vida são sobrevivências, virtualidades,
potências completas, não-separadas daquilo que elas podem. Pertencentes a
um plano de imanência ou a um campo transcendental, os indefinidos per-
dem toda a indeterminação, embora não encarnem sujeitos nem empirismos
objetivos. A respeito deles, diz Deleuze, há uma determinação na imanência
ou uma determinabilidade transcendental que não apela ao transcendente, mas
que é imanência absoluta, singularidade, acontecimento.
É o que Deleuze diz : “Une vie ne contient que des virtuelles. Elle est fait
de virtualités, événenments, singularités. Ce qu’on appelle virtuel n’est pas
qualque chose qui manque de réalité, mais qui s’engage dans une processus
d’actualisation en suivant le plan qui lui donne sa réalité propre”.110 Minha
108
DELEUZE, Gilles. L’immanence: une vie..., p. 360.
109
DELEUZE, Gilles. L’immanence: une vie..., p. 362.
110
DELEUZE, Gilles. L’immanence: une vie..., p. 363.
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36 Murilo Duarte Costa Corrêa
vida, como minha ferida, existia antes de mim; como virtual que se atualiza, a
ferida se encarna em mim ou sobre minha pele.
Há, pois, não um duplo da morte, mas múltiplos duplos da morte: a morte
como acontecimento, a morte envolvida pela própria vida, a morte que se fez
abraçar e voltar contra si pela própria vida, a vida que se lança do aconteci-
mento da morte... Todos eles apontam para uma vida..., para um campo tran-
scendental povoado de virtualidades impessoais, singulares, pré-individuais e
pré-reflexivas, para um pensamento inassenhorável por um sujeito, para um
campo preliminar chamado si, em que os sujeitos, eu e os outros, se desenro-
lam.
Uma morte que é como o grito que Bacon desejava pintar – uma força in-
visível e sem horror – tem muito a ensinar-nos sobre a vida; é apenas em seu
ponto extremo que a morte é beatitude, potência completa, pura positividade,
que se pode dizer, na morte, que “a vida continua” – mas sem que isso sig-
nifique um consolo, mas um trabalho do pensamento, da ética, da política e
de uma vida... que, porque continua por fazer, não pode renunciar a um em-
pirismo transcendental. A vida pode ser uma obra da morte, desde que a morte
seja, também ela, uma filha do Acontecimento.
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A navalha de Gilles: Deleuze e a ruptura 37
liso enseja e merece um trabalho criador, povoador, uma política e uma ética
que estão relacionadas com aquilo de que falamos a respeito do corpo sem
órgãos. O procedimento de ruptura, o procedimento masoquista: povoar com
intensidades, pois o corpo sem órgãos é a intensidade = 0, o corpo catatônico,
e açoitar as intensidades para que elas circulem; nem esvaziar rápido demais,
nem desorganizar demais, tampouco conjurar, de um só golpe, o organismo,
mas instalar-se nos estratos, e experimentar os fluxos que convêm para traçar
uma linha de fuga utilizando, como arma livre, a fina lima da prudência: a
ruptura sutil e artefatual.
Estar no corpo sem órgãos pode significar uma queda fascista, cancerosa,
drogada ou suicida, mas apenas se não agirmos com arte, se não agirmos com
prudência, se não entendermos que virtu “imana” como virtude, virtualidade
e potência. É por isso que há o plano de imanência, que designa um plano e,
com ele, toda uma potência de corte e seleção.
Deleuze diz que um campo transcendental, enquanto não há consciência,
é o plano de imanência, na medida em que a relação do campo transcendental
com a consciência é apenas de direito.112 Deleuze define um campo transcen-
dental primeiro rompendo com a tradição anterior, e dizendo que, por não ser
remetido a um sujeito ou a um objeto preliminares, ele seria distinto da ex-
periência, a qual só pode fornecer uma representação empírica. Em oposição
àquilo que seriam dados imediatos, temos um campo transcendental que se
define positivamente como “pur courant de conscience a-subjectif, conscience
pré-réflexive impersonnelle, dureé qualitative de la conscience sans moi”.113
Um empirismo transcendental diferiria, igualmente, de um empirismo sim-
ples, uma vez que a sensação não passaria de um corte na corrente da consciên-
cia absoluta; antes, tomadas duas sensações próximas, um campo transcenden-
tal seria a passagem de uma a outra como devir, como aumento ou diminuição
de potência, isto é, de quantidade virtual. Henri Bergson dizia que a duração,
por oposição ao número espacializado, é uma multiplicidade qualitativa (não-
quantitativa), contínua (não-descontínua), heterogênea (não-homogênea) e in-
tensa (não-extensa). Com tais características, a duração não poderia, em si
mesma, ser divisível; ou, poderia: mas sua partição implicaria que tal multipli-
cidade deviesse outra; isto é, ao fazer um corte na continuidade heterogênea
que é a duração, já estaríamos diante de outra multiplicidade.114
Com campo transcendental, ao menos enquanto identificado com o plano
de imanência, Deleuze também quer designar um espaço de criação sem su-
112
DELEUZE, Gilles. L’immanence: une vie..., p. 359.
113
DELEUZE, Gilles. L’immanence: une vie..., p. 359.
114
DELEUZE, Gilles. Le bergsonisme, p. 36.
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cia,119 e perceba-se que idéia, como o que designa uma multiplicidade virtual,
já sugere uma certa intuição da noção. Sugere, em primeiro plano, a impossi-
bilidade de um conceito de plano de imanência, na medida em que se trata do
pré-filosófico, ou do não-filosófico.
A idéia de plano de imanência está dispersa por todas as camadas que
compõem O que é a filosofia?, de Deleuze e Guattari, embora se concentre,
efetivamente, no capítulo estudado por Prado Júnior. O plano de imanência
não é um conceito, nem o conceito dos conceitos.120 Sabe-se que a filosofia é
definida como um construtivismo que opera segundo duas tarefas que diferem
entre si: criar um conceito e traçar um plano. Em Mil Platôs, existe um modelo
marítimo do espaço liso, ocupado por acontecimentos, por hecceidades, espaço
intensivo (spatium sem extensão).121
Os conceitos são como vagas múltiplas que se erguem e abaixam, e o plano
envolve esses movimentos como a vaga única que as enrola e desenrola. Há
os conceitos como acontecimentos, hecceidades, e o plano como seu hori-
zonte, meio indivisível em que os conceitos se distribuem sem romper sua
integridade.
O plano de imanência supõe uma partição um tanto severa entre o dire-
ito e o fato: o que concerne ao pensamento de direito nada tem a ver com
os acidentes que podem remeter às opiniões históricas ou ao cérebro; con-
templações, reflexões, comunicações: tudo isso são opiniões, não filosofia. O
plano de imanência, como a imagem do pensamento, o mapa por que é possível
orientar-se no pensamento, só retém o que ele pode reivindicar de direito.
O conceito não corta o plano de imanência, mas opera, mesmo assim, por
seus elementos, um novo corte em relação aos demais elementos.122 Se o plano
de imanência só retém aquilo que é de direito, e não os fatos, os acidentes,
o corte é feito, de direito, no nível do plano: o plano é seletivo, e só pode
selecionar efetuando uma ruptura.
E o que pertence, quid iuris, ao pensamento? Deleuze e Guattari dizem
que é o movimento absoluto, movimento do infinito, que não remete a coor-
denadas espaciotemporais. Eis o traço distintivo da criação filosófica. A intu-
ição filosófica pode estar fundada se for considerada como o envolvimento dos
movimentos infinitos do pensamento que percorrem um plano de imanência
119
PRADO JÚNIOR, Bento. A idéia de “plano de imanência”. In: Deleuze: uma vida
filosófica, p. 307-322.
120
DELEUZE, Gilles ; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia ?, p. 51.
121
DELEUZE, Gilles ; GUATTARI, Félix. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Volume
5, p. 183.
122
DELEUZE, Gilles ; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia ?, p. 29-30.
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sem cessar.123
De todo modo, o construtivismo deleuziano demanda duas operações dis-
tintas: criar um conceito e erigir um plano. A filosofia começaria com o
conceito, e o plano de imanência, sob essa perspectiva, é pressuposto, é pré-
filosófico – o que o conceito começa, dizem Deleuze e Guattari, o plano in-
staura. Por ser pré-filosófico, o plano de imanência demanda uma experimen-
tação tateante que tem de recorrer a meios da ordem do sono, de processos
patológicos, de experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso.
O caos não é uma desorganização absoluta, mas partículas em velocidades
absolutas, infinitas, segundo as quais inexistem indeterminações. A filosofia,
sendo problemática, deve adquirir uma consistência: conjurar o caos, que des-
faz no infinito toda consciência, sem perder a dimensão do infinito. Assim, o
plano de imanência “é como um corte do caos e age como um crivo”.124 Rup-
tura e seleção, corte do caos para impedir que o pensamento caia no sem-fundo
– é dessa forma que o plano apela a uma criação de conceitos que venham
povoá-lo.
O plano de imanência é também o que se esquiva de toda teologia, de todos
os ídolos. Depois de ter sido confundida com o Uno, numa imanência a Algo,
por platônicos e neoplatônicos, após ter sido definida por Kant como campo de
consciência atribuída a uma consciência pura subjetiva (transcendental) e, mais
tarde, com Husserl, ter se tornado imanente a uma subjetividade Transcenden-
tal, é com Sartre que a imanência retoma seus direitos, com a suposição de
um campo transcendental impessoal. É apenas quando a imanência não é mais
imanente a outra coisa senão a si mesma que se pode falar de plano de imanên-
cia, e de um empirismo radical. Tal plano não apresenta senão acontecimentos,
mundos possíveis enquanto conceitos, e outrem, como expressões de mundos
possíveis e personagens conceituais.
Supõe-se uma multiplicidade de planos de imanência. Em princípio, não
haveria “o plano de imanência”, sob pena de recair no caos que se desejava
conjurar. Assim, é certo que o plano pode operar a seleção, mas a seleção varia
de um plano para outro.125 Se não há “o plano de imanência”, então, aparente-
mente, teríamos apenas duas alternativas: a transcendência, as ilusões dos uni-
versais, a ilusão do eterno ou da discursividade, ou o caos. Contudo, logo a
alternativa se rompe. É quando Deleuze e Guattari falam do plano “melhor”,
como aquele que não precisasse reinstaurar uma imanência a Algo=X, em que
123
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, p. 56-57.
124
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, p. 60.
125
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, p. 68.
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A navalha de Gilles: Deleuze e a ruptura 41
Por ter criado o plano mais perfeito, Spinoza tornou-se, pelo livro V da
Ethica, um filósofo infinito, pois fez possível e pensou o mais puro, o “melhor”
plano de imanência – aquele que não se dá ao transcendente, nem o propicia;
que inspira menos ilusões, maus sentimentos e percepções errôneas. Por isso,
Deleuze e Guattari dizem que Spinoza é o príncipe dos filósofos.
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6 Um Devir-Imperceptível...
A vida nua não é uma pura vida animal, mas é o que engendra um sujeito,
um modo subjetivo coextensivo a uma forma de controle e a uma estratégia
de sujeição contemporâneas. O conceito de vida nua de Agamben é bastante
complexo. Não é uma pura vida animal, mas é o que inicia com a captura da
zoé que constitui a bíos. Pode ser, também, a forma de vida que se atualiza
quando é o suporte animal do humano que é capturado, separado e submetido
ao poder de morte, constituindo o conteúdo originário do poder soberano.132
130
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, p. 262.
131
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?, p. 263.
132
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 91. Ainda,
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica, p. 14.
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Aqui, aparece uma cisão muito particular entre Agamben e Deleuze, mas
que conduz, por linhas divergentes, à mesma ontologia de fundo. Agamben vê
na inseparabilidade entre vida e forma de vida a potência da invenção de novas
possibilidades de vida incapturáveis.139 Conceitua, assim, forma-di-vita, uti-
lizando os travessões para deixar marcada essa indissociabilidade ontológico-
política entre uma vida e suas possibilidades de invenção de formas de viver
que põem em jogo a vida mesma do vivente.140 Deleuze, porém, afirma toda a
potência de uma vida... como pura virtualidade, como imanência absoluta.141
A compreensão que Agamben faz da imanência dessa vida é spinozista,
como fica claro em seu belíssimo L’immanenza assoluta, e não há qualquer
problema em compreender isso. Contudo, o que passa despercebido é qual o
estatuto de uma vida...; de que forma Deleuze pode afirmar essa vida imanente
apenas a si mesma? Qual o conteúdo ontológico e metafísico de uma vida, que
ora Deleuze diz ser coincidente com o conceito de campo transcendental sem
consciência, sem sujeito e sem objeto, ora Deleuze afirma ser pura potência,
pura virtualidade, ou então “essência singular: uma vida...”?
Em uma vida... deleuziana há uma potência ontológica e metafísica. Nesse
conceito, como no conceito de plano de imanência sem consciência e de campo
transcendental a-subjetivo, fica clara a influência de Henri Bergson na formu-
lação de grande parte da metafísica deleuziana.
Em Deleuze, assim como o conceito tradicional de imanência perde o sen-
tido – pois em sua filosofia já é outra coisa, muito mais próxima da univocidade
do ser e muito menos conceitual porque ligada à não-filosofia, ao absoluto
como a dimensão que, justamente por não poder ser pensada, anima todo o
pensamento –, o conceito tradicional de metafísica está mais próximo desse
absoluto do ser do que de uma essência com a qual o ser viria assemelhar-se;
há apenas afirmação das multiplicidades, do múltiplo potenciado ao estatuto de
substantivo; por essa razão, Deleuze escreve: “Essência singular, uma vida...”.
O essencial na singularidade, na multiplicidade do ser que se diz com uma só
voz na imanência: a diferença.
É apenas trazendo o conceito de vida de Henri Bergson para perto da
imanência spinozista, que podemos completar a formulação de Agamben e
ainda não publicado, “o que está posto em jogo ali é a tentativa de capturar a outra face da vida
nua, uma possível transformação da biopolítica em uma nova política”. AGAMBEN, Giorgio;
COSTA, Flávia. Entrevista com Giorgio Agamben, p. 131.
139
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica, p. 13-14.
140
“Una vita che non puó essere separata dalla sua forma, è una vita per la quale, nel suo
modo di vivere, ne va del vivere stesso e, nel suo vivere, ne va innanzitutto del suo modo di
vivere”. AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica, p. 13.
141
DELEUZE, Gilles. L’immanence: une vie..., p. 360.
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É preciso uma ruptura para aninhar-se entre, ruptura que funda o próprio
ser; ruptura no tempo da memória que funda o esquecimento, suspende o
tempo, forma pura e vazia, e lança o devir; devir entre-dois, que não pertine
aos dois, nem por seus modos, nem em seu tempo, mas que é também uma
possibilidade da imanência como ética filosófica que conjura a moral ao tornar
a potência uma avaliação que proscreve o ressentimento. Momento em que o
novo ainda não nasceu, mas as virtualidades cintilam como as estrelas saídas
do fundo da noite que, até então, um ou dois invisíveis focos de luz sobre nos-
sas cabeças obturavam. Pequeninas, elas cintilam, e fazem réstia, como uma
vida... Sua luz tem, no vazio, a velocidade absoluta do pensamento – e, assim,
apagados os pontos fixos, o plano de imanência esteve sempre ali: Physis e
Noûs.
Não se deixa de fazer crítica, ao fim do juízo, e com a morte de Deus. Se
um mundo com Deus é aquele em que tudo se tornou possível,175 é apenas
no aquém de Deus, entranhado nessa vida, banhado pelos simulacros mais
demoníacos e dessemelhantes, que a crítica – liberta vez por todas da opinião
– tornou-se possível, pois já não se funda em um sistema de valores que deviam
apelar ao eterno, ou ao pré-existente, mas, sim, em uma seleção que agora recai
sobre a potência.176 O plano de imanência mais puro faz a melhor crítica: só
deixa passar a diferença, entrega todo indiferenciado a seu próprio destino:
fazer o fagossomo de sua própria sombra.
Embora a filosofia de Deleuze não se resuma à ruptura, como uma arte e
uma arma nômade submetidas ao sistema da ação livre, a ruptura não deixa de
atravessar e rasgar toda a sua filosofia. Desde que Nietzsche dissera dionisica-
mente que se rasgou o véu de Maia, e que em tiras ele esvoaça, é isso em que
consiste a filosofia: criar conceitos e persuadir os homens a utilizá-los – só o
que pode ser criado tem potência para constituir uma verdade. A profanação
174
DELEUZE, Gilles. Conversações, p. 123.
175
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação, p. 18.
176
DELEUZE, Gilles. Platão, os gregos. In: Crítica e clínica, p. 155.
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de Agamben não quer dizer outra coisa – por trás do sagrado, permanece o que
foi retirado, mas agora é devolvido ao uso, a um livre uso.177 Profanar é uma
ação positiva e afirmativa que precisa se desfazer da teologia negativa, como
Zaratustra: o homem não se torna super-homem sem antes ter sido devolvido
à terra, à imanência da terra que lhe abraça.
Uma filosofia que faz subirem os simulacros inicia rasgando o firmamento
para fazer passar um pouco do caos. ou afastando um pouco do caos.al viver.ro
ta do pensamento - e mer, o novo fazer passar um pouco do caos um combate
contra Uma filosofia que é capaz de desentocar, do ponto extremo da morte,
como num encontro alegre, uma nova réstia de vida, sabe que ninguém pode
iludir-se sobre o negativo: o olho não é a lua, pois sua diferença os racha, e
pelo meio. Se puder haver um devir-caosmos do olho ou um devir-molecular
da lua, é porque a ruptura, como potência de não-relação com o Mesmo, como
linha de fuga, também constitui uma tensão de passagem, e no entretempo,
nem olho nem lua, mas uma atualização, um momento de indecidibilidade:
um novo, singular entre-dois que não lhes pertence.
Um novo é uma ruptura: arrisca, risca a linha de fuga, desliza sobre ela
numa velocidade absoluta; é a parte do acontecimento que sempre escapa ao
que acontece, assim como uma vida escapa da morte universal, e fura um poro
pelo qual vem, de novo, escorrer num murmúrio denso: “é-se”; dobrada sobre
si, como um olho que se olha por dentro, um giro; como um cometa que no
firmamento corre: um corte.
7 Referências
AGAMBEN, Giorgio. Elogio da profanação. In: Profanações. Tradução de
Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
ALLIEZ, Eric. Deleuze: filosofia virtual. São Paulo: Editora 34, 2000.
___________. (Org). Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34,
2000.
177
AGAMBEN, Giorgio. Elogio da profanação. In : Profanações, p. 66.
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