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ARTIGO ARTICLE 569

Integração, exclusão e solidariedade no debate


contemporâneo sobre as políticas sociais

Integration, exclusion, and solidarity


in the current social policy debate

Rosana Magalhães 1

1 Departamento de Ciências Abstract The current global trend involving transformation of work and the crisis in large gov-
Sociais, Escola Nacional
ernment economic development and intervention projects in the market are raising new chal-
de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz. lenges for social policies to combat poverty. This study reconstitutes and analyzes the tensions,
Rua Leopoldo Bulhões 1480, paradoxes, and main consequences of this process, focusing on problems concerned with com-
Rio de Janeiro, RJ
bining solidarity strategies and public welfare systems.
21041-210, Brasil.
rosana@ensp.fiocruz.br Key words Poverty; Public Policy; Public Assistance

Resumo A tendência hoje global de transformação do mundo do trabalho articulada à crise


dos grandes projetos de desenvolvimento econômico e de intervenção do Estado no mercado, tem
trazido novos desafios para as políticas sociais contra a pobreza. O objetivo deste artigo é recons-
tituir e analisar, parcialmente, tensões, paradoxos e alguns dos principais desdobramentos deste
processo, dando especial ênfase aos dilemas ligados à perspectiva de fazer interpenetrar estraté-
gias solidárias e esquemas públicos de proteção social.
Palavras-chave Pobreza; Política Social; Assistência Pública

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“Nossa época é tudo menos um ponto final ou cer nada em troca. Neste sentido, ultrapassan-
culminância, pouco importando quantas der- do a dimensão puramente econômica, o pro-
rocadas parciais, como em períodos de transi- cesso de pauperização da população tornará
ção estruturalmente semelhantes, possam ocor- evidente a crise das formas de inserção social.
rer. Neste aspecto, também ela abunda em ten- Situações de equilíbrio entre condições de tra-
sões não superadas, em processos inconclusos de balho e redes de proteção social são dissolvidas
integração, cuja duração e curso exato não são e as medidas centradas em uma “política social
previsíveis” (Norbert Elias, 1993:273) sem Estado” e em um “sistema de regulações
A estratégia, hegemônica até meados do sé- morais”, pouco a pouco, mostram-se ineficazes
culo XIX, de corrigir os efeitos perversos da no- frente aos novos estados de privação.
va sociedade salarial sem uma intervenção sig- Assim, ainda que uma vasta rede de corpo-
nificativa do Estado na economia, ou ainda, na rações, sociedades de ajuda mútua e associa-
garantia de benefícios sociais, abre caminho ções de amparo à pobreza, estruturadas sob a
para profundas tensões políticas. Progressiva- lógica da adesão facultativa, tenham sido cria-
mente, as formas habituais de equacionar a se- das ao final do século XVIII e século XIX, como
paração entre o indivíduo vítima de infortúnio por exemplo as chamadas friendly societies na
– o bom indigente – e o preguiçoso ou malan- Inglaterra, a manutenção de mecanismos con-
dro, tornam-se intensamente problemáticas. tratuais de cotização como principal forma de
Os dispositivos contratuais, os mecanismos do financiamento e controle das ações, torna-se
mercado e as iniciativas de seguridade social uma solução precária. Os baixos rendimentos e
experimentam, pouco a pouco, uma difícil con- a ampliação do espectro de carências sociais
vivência. As práticas filantrópicas, apesar de inviabiliza, progressivamente, a manutenção
representarem um passo fundamental para o do sistema de contribuições voluntárias. Como
reconhecimento da pobreza como um proble- aponta Rosanvallon (1995), desafiando as es-
ma coletivo, mostram-se frágeis frente às exi- peranças contidas no processo de industriali-
gências de integração social. zação, os trabalhadores, ou os indivíduos “in-
Na verdade, como analisa Castel (1995), a dependentes e previdentes” vêem-se, efetiva-
história social do século XIX revelará a emer- mente, destituídos das condições mínimas de
gência de uma problemática radicalmente no- sobrevivência. Este processo, como sinaliza o
va: a despeito do progresso e da riqueza alcan- autor, trará uma profunda perplexidade ao pen-
çados com a dinâmica de produção capitalista samento liberal: “Se o indigente é um indiví-
industrial, surge uma “vulnerabilidade de mas- duo, o pauperismo é um fato social massivo, do-
sa”. A incerteza, a precariedade e as novas for- minante na classe operária : ele representa a che-
mas de instabilidade social continuam a cres- gada de um novo tipo de situação social, a do
cer pari passu ao processo de industrialização. proletariado. Situação social esta que não pode
Ou seja, desafiando o “otimismo liberal”, uma ser tratada através da lógica simples da assis-
grande parcela da população é continuamente tência, mas que impõe o redimensionamento
lançada na indigência. A “questão social” emer- dos próprios fundamentos da organização da
ge, assim, revelando a miséria não como algo sociedade...” (Rosanvallon, 1995:22).
acidental mas como uma face da civilização O dilema da “obrigação à previdência”, ou
moderna industrial. seja, da introdução da obrigatoriedade na cap-
Desta forma, enquanto um fenômeno mul- tação das contribuições e, também, da seletivi-
tifacetado, o pauperismo do século XIX ilumina, dade na distribuição dos benefícios, torna-se
de maneira contundente, os problemas postos inescapável. Embora ferindo os princípios da
pela ruptura das formas de produção familiar, liberdade e da responsabilização individuais li-
pela precariedade das novas ocupações, pela gados ao ideário liberal, tais alternativas en-
baixa qualificação dos trabalhadores e pela des- tram na pauta das políticas de proteção aos po-
tituição relativa. No processo de emergência da bres. Com efeito, o final do século XIX testemu-
sociedade industrial, a aquisição de novos gos- nha uma verdadeira reviravolta em torno das
tos, desejos e necessidades e, ao mesmo tempo, ações contra pobreza e a vulnerabilidade so-
a incapacidade de satisfazê-las, criará parado- cial. O surgimento de interpretações não libe-
xalmente, situações de pobreza mais dramáticas rais desta problemática contribui para a emer-
em países como a Inglaterra do que em regiões gência de novos campos de interação entre as
menos desenvolvidas da Europa, como Portugal. noções de direito e dever e, também, de novas
Esta é a perspicaz observação de Tocquevil- racionalidades acerca das relações entre as
le (1985) sobre os paradoxos do progresso in- questões morais e sociais ligadas à pobreza.
dustrial que desmantela formas de organiza- Assim a despeito dos fracassos no que se re-
ção tradicionais e protetoras sem ainda ofere- fere à mudanças políticas efetivas o movimen-

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to cartista na Inglaterra, por exemplo, não só novo amálgama entre direitos, deveres e justi-
irá colocar a pobreza no centro da atenção pú- ça social no âmbito do ideário liberal. Ainda
blica, como também, irá buscar redefinir o per- que de imediato, a velha categoria de “indigen-
fil das demandas populares. Como afirma Him- te meritório” permaneça orientando a seleção
melfarb (1988), a falta de direitos políticos com- de beneficiários, a perspectiva de responsabili-
partilhada pela maioria da população, para zação individual pelo bem-estar é transforma-
além das privações materiais, no ideário cartis- da. Nas palavras de Rosanvallon (1995), o novo
ta, irá definir a condição de pobre: “Os cartistas perfil da proteção social gestado ao final do sé-
tinham a tarefa de politizar os pobres, não para culo XIX e início do século XX, irá configurar
radicalizá-los e torná-los ativistas, nem tão “uma via para as políticas sociais que não ne-
pouco para torná-los uma força política reco- cessitará recorrer à uma problemática de natu-
nhecida, mas para outorgar-lhes as mais altas reza jurídica e moral e, permitirá aos liberais
qualidades dos seres humanos, as qualidades construir um sistema de seguridade capaz de
que os fazem verdadeira e plenamente huma- bloquear o espectro do socialismo” (Rosanval-
nos em um sentido clássico: animais políticos, lon, 1995:25).
gente nascida para ter cidadania” (Himmelfarb, A noção de risco, a qual irá fornecer uma
1988:313). “dimensão probabilística do social”, unifican-
Ao mesmo tempo, o surgimento de uma do os problemas da velhice, do desemprego e
doutrina solidarista ao final do século XIX e, da doença enquanto problemas que tendem a
conseqüentemente, a busca de novas regras de afetar os homens de uma forma previsível e
justiça social, terá profundo impacto no dese- controlável, expandirá a problemática do direi-
nho das políticas sociais. Tributária do debate to à assistência. Embora o direito ao bem-estar
sobre as novas formas de coesão social e vin- permaneça, até meados do século XX, princi-
culação comunitária que mobilizaram Auguste palmente voltado ao trabalhador sob risco, a
Comte e Pierre Leroux, a temática da solidarie- solidariedade, mesmo sob esta concepção con-
dade, irá favorecer a transformação das formas tratualista, irá tornar-se uma “referência in-
de intervenção pública em torno da miséria e contornável” e “fio condutor indispensável à
da destituição, traduzindo uma nova concep- construção e conceitualização das políticas so-
ção de pertencimento social. Assim, significan- ciais” (Chevallier, 1992:7).
do “uma certa representação do laço social”, o Assim, o pauperismo, bem como o surgi-
solidarismo irá provocar o surgimento de uma mento de novas matrizes ideológicas e atores
alternativa à regra de justiça liberal. sociais, transformam o paradigma da previ-
Como aponta Jacques Chevallier (1992), dência individual como principal mecanismo
ainda que seja mantida a perspectiva contra- de enfrentamento da miséria. Como analisa
tual, na doutrina solidarista o contrato de as- Castel (1995), o liberalismo utópico do século
sociação entre os indivíduos parte da idéia de XVIII, preocupado em retirar os obstáculos pos-
uma interdependência “natural” que, uma vez tos à liberdade, sofre, neste sentido, um impor-
rompida, põe em xeque a própria possibilida- tante deslocamento. Se antes, como ressalta o
de de manter um corpo social estável. Assim, autor, o alvo da luta dos liberais era a destrui-
embora o princípio de solidariedade, tal como ção das regulações sociais arcaicas e do antigo
formulado ao final do século XIX, implique em sistema de privilégios, ao final do século XIX a
que cada um deva arcar com os riscos da exis- questão a ser enfrentada será a do risco de dis-
tência é fundamental, por outro lado, a partici- solução do tecido social.
pação de todos na garantia do bem estar. O Es- Por outro lado, nesta trajetória, as interpre-
tado, neste aspecto, adquire um papel menos tações maximalistas da solidariedade em dire-
residual e acessório, tornando-se responsável ção à consolidação de um direito à assistência
pela materialização da solidariedade através de ligada à cidadania e não à condição de traba-
mecanismos e estratégias próprios de reparti- lhador, também serão traduzidas em novas
ção dos bens e serviços sociais. perspectivas para as políticas de combate à po-
Para Ewald (1996), as leis francesas regula- breza e à vulnerabilidade social. A engenharia
mentando a assistência médica gratuita aos in- de “indenização” montada a partir dos recur-
digentes (1893), a indenização por acidentes de sos advindos do trabalho será alvo de críticas e
trabalho (1898), a assistência aos idosos e invá- de oposições. Diferentes “arranjos de proteção
lidos (1905) e outras iniciativas no campo da social” serão criados em cada sociedade, a par-
proteção social, serão alguns importantes des- tir de configurações políticas, econômicas e
dobramentos da doutrina solidarista. Na Ingla- culturais determinadas. Assim, como no pro-
terra, a promulgação do Old Age Pensions Act cesso de irrupção do pauperismo no século
em 1908 também revela a emergência de um XIX, irão surgir novos limites e dilemas em re-

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lação ao formato das ações contra a miséria e No entanto, para além do impacto das trans-
aos critérios para a determinação dos benefí- formações econômicas, a emergência de uma
cios sociais. nova formulação em torno das idéias de cida-
Neste sentido, o século XX irá se deparar, dania e direitos sociais teve papel decisivo na
tanto com o desafio de construir sistemas re- construção do Estado-previdência. O consenso
distributivos capazes de impedir o crescimento em torno das relações entre proteção e direitos
das desigualdades, em um contexto de generali- do cidadão, expressas no conjunto de reformas
zação do mercado, como também com os riscos sociais ocorrido na Inglaterra após a II Guerra
de desagregação da solidariedade social. O pro- Mundial, alcança a maioria dos países social-
blema da restauração de vínculos sociais, dos la- democratas. A clássica formulação de Marshall,
ços de interdependência e da solidariedade en- feita em 1949 (Marshall, 1967), acerca do com-
tre os indivíduos que marca o percurso da mo- ponente social da cidadania, sintetiza a nova
dernidade, neste aspecto, permanecerá atual. perspectiva assumida pelas políticas públicas.
A tensão histórica entre a afirmação do direito
natural, instituinte da visão moderna da socie-
As políticas públicas contra a pobreza dade composta por indivíduos livres e iguais e,
no século XX: o direito à proteção o direito positivo, ou seja, o acesso à represen-
tação política e à igualdade social é, portanto,
Como vimos anteriormente, uma vez desloca- equacionada através de um novo pacto. Um
do o eixo da intervenção pública contra a po- amplo espectro de ações públicas são assim im-
breza da noção de responsabilidade individual plementadas, rompendo as fronteiras da aten-
para uma um tipo de solidariedade contratual ção pública restrita e estigmatizante da New
baseada na idéia de risco, tanto a participação Poor Law, em direção ao desenvolvimento de
dos indivíduos como a intervenção do Estado iniciativas mais amplas e voltadas à melhoria
são transformadas. Aos poucos, a solidarieda- das condições de habitação, saúde, ocupação e
de inicialmente horizontal representada, por bem estar em geral.
exemplo, pela assistência aos desempregados e Cabe aqui ressaltar, porém, que apesar de
aposentados a partir da contribuição dos tra- uma certa “vocação universalista” o welfare
balhadores ativos, amplia-se em direção à no- state assumirá diferentes contornos em cada
va lógica da solidariedade “nacional”. Ou seja contexto social. Sem representar um sistema
as relações lineares entre a cotização e o acesso neutro de repartição dos riscos e infortúnios da
aos benefícios são desdobrados em novas for- vida, o desenvolvimento das redes de proteção
mas de financiamento aos quais, em última social na segunda metade deste século irá de-
análise, levam o sistema de proteção social a pender de como o problema da pobreza e da
formatos menos residuais e mais universalistas. vulnerabilidade social será processado em cada
Como analisa Kornis (1994:37), “a desvincu- arena política. Nas palavras de Bobbio (1992:77),
lação dos benefícios face aos salários, o estabe- “o campo dos direitos do homem – ou, mais pre-
lecimento de um sistema financeiro repartitivo cisamente, das normas que declaram, reconhe-
e não cumulativo e, também, a contribuição cem, definem, atribuem direitos ao homem –
compulsória e universal baseada nos salários e aparece, certamente, como aquele onde é maior a
nos tributos”, possibilita a expansão das políti- defasagem entre a posição de norma e sua efetiva
cas sociais. Sem dúvida, a introdução dos dis- aplicação. E essa defasagem é ainda mais inten-
positivos macroeconômicos preconizados pelo sa precisamente no campo dos direitos sociais”.
ideário Keynesiano em vários países capitalis- Como aponta Baldwin (1990), embora os
tas industriais europeus, possibilitaram a ga- países mais industrializados e com história de
rantia, não só da mobilidade da força de traba- fortes movimentos operários apresentem uma
lho, como também da estabilidade da produ- tendência maior à construção de estruturas de
ção e dos níveis de consumo da população. bem estar, muitas vezes não é possível estabe-
Ao mesmo tempo, através de bases não ne- lecer, de maneira linear e uniforme, correla-
cessariamente contributivas, os benefícios so- ções deste tipo. Para o autor, a dificuldade da
ciais foram generalizados de tal forma que a “abordagem trabalhista operária” será, neste
assistência seletiva tradicional, em várias so- sentido, formular uma explicação consistente
ciedades européias, pôde ser rompida em dire- sobre o crescimento do welfare state em nações
ção à construção dos chamados welfare states. com pouca presença política da social-demo-
Neste sentido, o investimento na educação da cracia ou, ainda, sobre a extrema variação nos
população, na ampliação do consumo e na com- perfis de proteção pública em países com se-
pensação de riscos ligados ao trabalho deixou melhantes níveis de mobilização dos trabalha-
de ser regido pela lógica bilateral do mercado. dores. Assim em geral, embora a classe operá-

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ria seja o grupo mais interessado na consolida- Neste aspecto, as análises economicistas
ção do Estado-previdência, a análise das dife- calcadas na relação entre custo e benefício, ou
rentes experiências de política social mostrará ainda, as interpretações presas à idéia de uma
uma maior pluralidade em torno dos atores re- “natureza humana essencial” capaz de definir
levantes no âmbito do processo redistributivo. os rumos das políticas sociais, são ambas in-
Ao mesmo tempo, o próprio significado da consistentes. Na maioria das vezes, as reações
cidadania é, muitas vezes, desdobrado e tradu- em torno das políticas voltadas à pobreza de-
zido a partir das crenças, valores e paradigmas pendem das preferências valorativas dos indi-
compartilhados nas relações sociais. Nos Esta- víduos e também, da própria capacidade da in-
dos Unidos, por exemplo, as reformas sociais tervenção pública transformar direta ou indi-
ligadas à questão da miséria e da pobreza, em retamente estas preferências. Com isso, o pro-
geral, tendem a não ultrapassar o conteúdo cesso de construção de políticas voltadas à po-
moral da noção de “pobre meritório” ou unde- breza e à vulnerabilidade social é extremamen-
serving poor. Neste aspecto, a responsabiliza- te dinâmico. Como indica Hirschman (1984:10)
ção individual quanto à pobreza e a preocupa- “os mesmos valores que servem bem a uma so-
ção em classificar os pobres atravessa a estru- ciedade em uma fase – a crença no valor supre-
tura institucional de bem estar, resgatando, por- mo da individualidade, a insistência na reali-
tanto, um discurso moralizante sobre os po- zação e na responsabilidade individuais – po-
bres. Como analisa Katz (1989), mesmo o cres- derão ser um obstáculo mais tarde, quando um
cimento dos níveis de destituição e miséria em ethos comunitário e solidário se fizer necessário”.
diversos períodos da história social e econômi- Neste sentido, é correto afirmar que o pós-
ca americana, não abalaram a definição mora- guerra tende a deslanchar um movimento pro-
lizante da pobreza. A Grande Depressão de 1929 fundo de renovação das iniciativas no campo
e os altos níveis de desemprego que marcaram o das políticas sociais. Os direitos sociais, de acor-
período, neste sentido, tiveram pouco impacto do com os valores compartilhados em cada cul-
na visão da ajuda pública como algo pejorativo. tura, tornam-se um tema privilegiado na agen-
A demanda por benefícios públicos para da estatal. Ou seja, emerge um novo compro-
minorar os efeitos da pobreza e da fragilidade misso político em torno do bem estar e o com-
social, em geral, tende a repercutir nesta socie- ponente social da cidadania articula-se às di-
dade como um sinal de fracasso individual. É o mensões civil e política, produzindo um argu-
que assinala Katz (1989:86): “Com efeito, os po- mento a favor de sistemas de proteção social
bres evocam duas imagens distintas entre os mais abrangentes. Sem dúvida, como aponta
americanos bem sucedidos. Quando eles tor- Bodstein (1995) este processo está ligado à tra-
nam-se visivelmente patéticos, eles são os ho- jetória de fortalecimento democrático e am-
meless; quando eles parecem ameaçadores, eles pliação do espaço público, onde surgem novas
tornam-se os underclass. Embora estes grupos identidades políticas e sujeitos sociais capazes
se sobreponham, o discurso público implicita- de propor alternativas no tratamento da ques-
mente classifica-os a partir do grau de respon- tão social.
sabilidade por sua situação. Na medida em que No entanto, este percurso não será homo-
eles permanecem suplicando ajuda e não mili- gêneo, consensual ou linear. Se a pactação de
tando politicamente, sendo objeto de caridade um novo projeto de bem estar é favorável a for-
menos que sujeitos de protesto, os homeless tor- matos universalizantes, isto não significa dizer
nam-se the new deserving poor”. que valores, interesses e perspectivas divergen-
Os esforços para garantir o acesso à políti- tes são anulados. Na verdade, o acordo em tor-
cas de bem estar enquanto exercício de um di- no das concepções de bem estar, das estraté-
reito social, reduzindo o estigma e impondo gias redistributivas ou das modalidades de ação
novas perspectivas legais para os pobres na so- pública contra a miséria será permanentemen-
ciedade americana estão, desta forma, presos à te redefinido ao longo do tempo.
possibilidade de uma nova descrição cultural. Sob este aspecto, os processos de globaliza-
Sem dúvida, outros aspectos são de extrema re- ção econômica e de transformação do mundo
levância para a caracterização do perfil de soli- do trabalho, iniciados nos anos 70, e que cul-
dariedade social que orienta as redes de prote- minam nos anos 80 e 90, provocam a necessi-
ção social nos Estados Unidos. No entanto, tal dade de mudanças nas orientações relativas
aproximação extrapola o objetivo do debate aos padrões de financiamento e gestão do Es-
aqui desenvolvido. Na verdade, a idéia é reter tado. A ruptura da estabilidade e da “soberania
uma imagem menos instrumental e racionali- econômica” de um número cada vez maior de
zada dos inúmeros desdobramentos do Esta- estados nacionais desdobra-se numa perda
do-previdência no século XX. importante de autonomia na condução das po-

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líticas sociais. Ao mesmo tempo, a idéia de que de situações de precariedade e fragilidade so-
a generalização da ação pública contra a po- ciais advindas do surgimento de novas desi-
breza alimenta uma conduta de vida “hedonis- gualdades e riscos.
ta e parasita” (Offe, 1984) é reinscrita no debate Por um lado, como aponta Castel (1995) o
acerca da crise dos Estados de Bem Estar. desemprego estrutural ou de “longa duração”
Em última análise, o ideal do pleno empre- causa um forte desequilíbrio entre os trabalha-
go, o “paradigma previdenciário” em que os dores e os beneficiários da proteção pública.
problemas sociais são remetidos à perspectiva De outro lado, para além do fim do pleno em-
controlável do risco, e mesmo a idéia de direito prego e da crise de financiamento da segurida-
social, perdem força frente aos impasses vivi- de social, há um deslocamento em torno do
dos pelas sociedades industriais contemporâ- papel do trabalho como principal agente de in-
neas. Desse modo, uma profunda crise social, tegração social. Fenômenos tais como a deses-
política e econômica começa a abalar os alicer- tabilização das classes trabalhadoras e assala-
ces das ações públicas contra a pobreza cons- riadas em geral, precarização das formas de
truídos nos anos 50. Uma nova paisagem social ocupação e alternância entre atividade e não-
combinando transformações tecnológicas e a atividade, são combinados ao aparecimento de
emergência de novas formas de privação com- grupos “não-integráveis” ao processo produti-
binadas às antigas, impõe, assim, uma revisão vo. Assim, a imagem da pobreza como uma si-
dos argumentos e esquemas explicativos liga- tuação residual é transformada e multiplicam-
dos ao tema das políticas sociais. Assim, se nos se diferentes processos de desqualificação so-
anos 50, como salienta Dahrendorf (1992), a cial, impossíveis de serem compreendidos à luz
batalha por desvincular o status cívico, político de uma abordagem economicista e estanque.
e social da posição econômica parece equacio- Ao mesmo tempo, o welfare state, tido co-
nada, criando-se um patamar comum de prer- mo principal condutor do progresso e respon-
rogativas enquanto base para o acesso ao bem sável pela coesão social, torna-se incapaz de
estar, na maioria das democracias modernas recriar laços de solidariedade. As “formas bu-
após os anos 70, este arranjo começa a se tor- rocratizadas e impessoais” de gestão, presas à
nar insatisfatório. uma lógica distinta da que preside a vida co-
munitária ou a participação em redes de socia-
bilidade mais amplas, aos poucos perde sua
Os limites do Estado-previdência capacidade de resolução frente aos novos dile-
frente à “nova questão social” mas sociais. Ou seja, embora a proteção social
e uma nova concepção de solidariedade te-
Até os anos 70, pode-se dizer que o Estado de nham sido construídas concomitantemente, a
Bem Estar nas sociedades desenvolvidas, dá maneira como esta “seguridade” foi implemen-
uma resposta satisfatória às questões da vulne- tada contribuiu para a redução do engajamen-
rabilidade social e da destituição. Em um hori- to dos indivíduos nas ações públicas.
zonte moldado pala perspectiva do pleno em- A redistribuição “automatizada” de benefí-
prego e crescimento econômico, a “técnica pre- cios sociais criou, desta forma, um coletivo abs-
videnciária” voltada a abrandar os riscos de de- trato, onde os grupos sociais foram “destituí-
gradação social e pobreza advindos da doença, dos de suas responsabilidades” em relação ao
da velhice e da perda temporária da remunera- destino de seus membros. A interdependência
ção salarial, manifesta uma razoável eficácia. A que caracteriza a vida social, neste aspecto, foi
“socialização dos riscos” e os mecanismos de sendo progressivamente neutralizada ou mes-
redistribuição mostram-se, assim, estratégias mo desfeita, como aponta Himmelfarb (1995:
capazes de solucionar o conflito em torno da 245): “Após realizar uma grandiosa tentativa de
integração social e o drama da miséria. objetivar o problema da pobreza, vê-lo como
No entanto, pouco a pouco, transformações produto de forças econômicas e sociais impes-
no processo produtivo e uma “rarefação dos soais e concretizado o esforço de distinguir as
empregos”, sobretudo os de baixa qualificação, políticas sociais como esferas desmercantiliza-
produzem um amplo contingente de desem- das, nós descobrimos que estas políticas põem
pregados e novos dilemas para a intervenção em perigo tanto a moral como o bem estar ma-
pública. Sem pretender realizar uma análise terial de seus beneficiários. Na política social
exaustiva deste processo, é importante sinali- ‘desmoralizada’, ou seja, separada de qualquer
zar que a forma de solidariedade baseada, prin- critério moral, contrapartida ou expectativa,
cipalmente, na relação entre contribuição e nós desmoralizamos tanto os indivíduos que re-
prestação de serviços ou acesso a benefícios, cebem a assistência como a sociedade como um
deixa de ser capaz de contornar a diversidade todo”.

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INTEGRAÇÃO, EXCLUSÃO E SOLIDARIEDADE 575

O advento do “paradigma” da exclusão Diferentemente do contexto do pauperis-


mo no século XIX, segundo Castel (1995), os
Na tentativa de compreender as singularidades pobres e destituídos, hoje, não podem mais ser
das situações de incerteza e precariedade so- considerados segmentos explorados ou mes-
cial contemporâneas, muitos autores têm re- mo marginais. Apesar dos novos grupos de des-
cuperado a noção de exclusão, cara ao pensa- tituídos viverem a impossibilidade de organi-
mento social influenciado pela Antropologia zar um lugar estável na estrutura de emprego
Estrututural, tal como sugere Zaluar (1997). O dominante e, também, nos modos de vincula-
termo ganha maior penetração nas Ciências So- ção comunitária tal qual os vagabundos e “pau-
ciais, a partir do livro de René Lenoir, Les Exclus, pers”, as experiências de vulnerabilidade social
publicado em 1974. Preocupado em caracteri- perderam um sentido comum. Ou seja, a ex-
zar os grupos “inadaptados” socialmente, Le- pulsão do emprego, a precariedade da prote-
noir (1974) busca discutir no contexto das so- ção pública e o isolamento social, adquirem
ciedades industriais e urbanizadas contempo- uma inteligibilidade distinta da vivida antes do
râneas a situação dos indivíduos que, em virtu- surgimento dos Estados de Bem Estar e, tam-
de de alguma enfermidade física ou mental, fal- bém, da perspectiva de plena estabilidade e
ta de formação adequada ou determinado com- crescimento econômico do pós-guerra. Por ou-
portamento, são incapazes de suprir suas ne- tro lado, transformam-se as relações entre Es-
cessidades, tornando-se mesmo um perigo pa- tado e cidadania. Na verdade, atravessados por
ra si mesmos e para o restante da coletividade. forças contraditórias como a explosão de múl-
Para Paugam (1996), o principal mérito do tiplas identidades, as quais tendem a reforçar
livro, escrito segundo ele, não por um grande solidariedades particulares e, por movimentos
teórico mas por um autor sensível às questões de integração e relações de interdependência,
sociais, é o de suscitar e ampliar um debate. os sentimentos de pertencimento à nação e a
Diferentemente da visão “individualizante” da própria natureza da construção política do ci-
pobreza e exageradamente otimista do desen- dadão, sofrem metamorfoses. Principalmente
volvimenro econômico e social, a abordagem na Europa Ocidental, o grande número de imi-
de Lenoir leva a uma reflexão sobre os conflitos grantes, trazidos no bojo do movimento de for-
ligados à experiência de vida nas sociedades mação de uma “rede global de circulação de
industriais modernas. A urbanização desorde- mão-de-obra” (Wacquant,1994:19), vivendo sob
nada, os vários tipos de segregação social, a condições de trabalho informais e, muitas ve-
violência generalizada, a desigualdade econô- zes, degradantes, revigora o debate acerca dos
mica e a inadaptação escolar e profissional, dilemas do processo de integração social.
tornam-se, assim, elementos chave para o en- O fenômeno de dissolução da nação tradi-
tendimento do fenômeno da exclusão. No en- cional produz, assim, novas interrogações acer-
tanto, a dificuldade em avançar na caracteriza- ca das questões da cidadania e do welfare state.
ção dos diferentes processos e trajetórias de Como analisa Schnapper (1996), ainda que as
desqualificação social, ou ainda a presença de sociedades plurais, no âmbito do projeto de-
um certo determinismo em torno da questão mocrático moderno, busquem garantir a igual-
da “adaptação social”, irão limitar o alcance dade política a todos os cidadãos e a igualdade
heurístico desta abordagem. cívica a todos os seus membros (estrangeiros
Assim o termo irá reaparecer no debate so- ou não), surgem, permanentemente, tensões
bre pobreza somente após os anos 80. Em par- relativas à questão do pertencimento a uma
te, isto se deve ao aumento do desemprego e ao mesma “comunidade de destino”. Assim, são
surgimento de um quadro complexo, não redu- exigidas novas formas de articular o domínio
tível, por exemplo, aos processos de expropria- do político, do jurídico e também das diferen-
ção da classe trabalhadora ou à segregação es- tes referências culturais para além do modelo
pacial. O sucesso da idéia de exclusão após os de cidadania definido apenas pela relação do
anos 80, está relacionado a um quadro de rup- indivíduo com o Estado-nação.
tura dos laços sociais combinado ao enfraque- Desta forma, a idéia de exclusão torna-se
cimento das formas de coesão e solidariedade quase um lugar-comum nas análises sobre os
habituais. O crescimento do isolamento social, problemas sociais contemporâneos. Para al-
a deterioração das formas de convivência, o guns autores, esta generalização e, mesmo, ba-
fracasso das iniciativas de participação coleti- nalização do uso da noção de exclusão é res-
va e, sobretudo, a incerteza generalizada fren- ponsável por um tratamento inadequado das
te aos rumos das políticas sociais, constróem, múltiplas dimensões da chamada “nova ques-
desta forma, um terreno fértil para a emergên- tão social”. A tendência a omitir tanto a dinâ-
cia de um verdadeiro “paradigma” da exclusão. mica como a heterogeneidade das situações vi-

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vidas pelos grupos desfavorecidos, acaba per- lidade. Assim, se não podemos falar de exclu-
dendo de vista universos específicos e singula- são como um estado absoluto – “exclusion de
res. A autonomização das situações de precarie- quoi?” – existe uma dialética de exclusão e in-
dade e a configuração de sociedades duais, po- clusão: “Toda organização social, qualquer que
larizadas entre incluídos e excluídos, são mar- seja o seu nível – da família à empresa ou à na-
cos teórico-metodológicos impróprios para ca- ção – implica, por definição, a inclusão de uns e
racterizar a questão social contemporânea. a exclusão de outros. O que importa estudar não
Assim, para além do lugar ocupado na divi- é tanto a exclusão em si, mas as suas formas es-
são social do trabalho, importa pensar também pecíficas, derivadas de processos de exclusão e
a participação dos indivíduos em redes de so- inclusão” (Schnapper,1996:23).
ciabilidade e sistemas de proteção social. Nes- Deste ponto de vista, é possível empreen-
te aspecto, faz-se necessário um approach que der uma análise acerca das populações fragili-
permita perceber a existência tanto de posi- zadas, que apresentam maiores chances de
ções intermediárias, quanto de trajetórias al- ruptura dos vínculos profissionais, familiares e
ternadas de integração e exclusão. Desta for- relacionais, sem omitir os elementos de ligação
ma, como sugere Castel (1995), o conceito de e também de afastamento entre as diferentes
desafiliação, ao invés de exclusão, permite uma trajetórias. Sem dúvida, os elos que garantem a
leitura multidimensional e dinâmica das novas inscrição dos indivíduos nas redes de sociabili-
formas de instabilidade social. Se as situações dade, tais como a família, o trabalho ou as insti-
de precariedade não se resumem à posições tuições de proteção social, apresentam interde-
extremas e estanques e, por outro lado, os ex- pendências. Mas como ressalta Paugam (1996),
cluídos não são uma categoria social específi- no estudo dos processos de desqualificação so-
ca, é importante buscar conceitos e noções ca- cial contemporâneos, a questão central é ana-
pazes de situar os desafios da sociedade con- lisar o perfil das desigualdades como algo em
temporânea em outros termos. permanente movimento. Ainda que, concreta-
Nesta perspectiva crítica Diddier (1996), mente, existam segmentos populacionais que
afirma que o vocabulário da exclusão, pode di- tendam a acumular incapacidades, perdas e
ficultar a identificação dos sujeitos e agentes fracassos e, de outro lado, grupos privilegiados
responsáveis pelas situações de precariedade e e com acesso ilimitado a bens e serviços so-
fragilidade sociais. As desigualdades são perce- ciais, é possível perceber também, indetermi-
bidas de forma monolítica, e as trajetórias di- nação e imprevisibilidade no acompanhamen-
versas em que os indivíduos transitam da inte- to longitudinal dos percursos individuais.
gração à acumulação de fracassos e demandas Neste sentido, se a exclusão implica em uma
insatisfeitas, são relegadas a segundo plano. revisão das políticas sociais em direção à ga-
Com isso, as origens e causas da exclusão são rantia de emprego, escola, segurança pública,
insuficientemente exploradas. Ao mesmo tem- condições de saúde e habitação satisfatórias
po, a idéia de exclusão que divide o mundo em em um contexto de crise da sociedade salarial,
dois estados, inviabiliza a investigação das re- também revigora a necessidade de criar e man-
lações e dos elos de ligação existentes entre os ter mecanismos de integração social singula-
grupos sociais: “Não há um mundo de pessoas res. Além disso, o reconhecimento de uma plu-
felizes e outro de miseráveis (....) a exclusão ca- ralidade de situações de precariedade no bojo
racteriza estes dois mundos como espaços, mas do “horizonte social da exclusão”, traz para a
os sujeitos que ocupam estes espaços não são agenda das instituições de proteção social o de-
qualificados, a sua presença em cada um destes safio de elaborar novos compromissos e pactos
domínios parece acidental” (Diddier, 1996:26). que envolvam, para além das estratégias de
Apesar destas considerações porém, mes- descentralização de decisões, a construção de
mo dentre os autores que ressaltam os proble- parcerias e relações mais estreitas com associa-
mas ligados ao “paradigma da exclusão”, há um ções civis e comunitárias. Beneficiários, profis-
certo consenso em relação à necessidade de ex- sionais, e voluntários tendem a assumir, assim
plorar também suas potencialidades. Na verda- novos papéis.
de, o debate em torno da exclusão, recupera a Na nova concepção de solidariedade o que
interrogação sociológica, que acompanhou as está em jogo é a participação em uma proble-
obras de Comte, Durkheim e Weber, acerca de mática que a todos diz respeito. Sem uma opo-
como manter os laços sociais nas sociedades sição ao Estado, mas buscando uma participa-
fundadas sob o princípio da soberania indivi- ção capaz de criar laços efetivos de solidarie-
dual. Neste aspecto, se existem riscos, há tam- dade que a ação estatal foi incapaz de manter,
bém a possibilidade de construir uma reflexão a perspectiva é possibilitar novas formas de or-
crítica consistente sobre a crise social da atua- ganização e exercício de pressão política em

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direção à ampliação de investimentos sociais. de situações, valores e demandas, embora o Es-


Essa participação é, neste aspecto, caracteriza- tado seja ainda um elemento chave para a defi-
da pela descentralização e pela independência nição de políticas de reinserção social, é fun-
em relação ao Estado, embora dirigida a ele e damental fazer interagir as dimensões pública
com ele em permanente contato. e privada ou os espaços societários e estatais,
permanentemente. “O ressurgimento do tema
da solidariedade combina-se a uma inflexão de
Novos critérios e compromissos seu conteúdo. A concepção ligada à cobertura de
para as políticas públicas: redefinindo riscos sociais é transformada (...). A noção de in-
a cidadania e a solidariedade serção, no lugar do direito a um benefício, passa
a traduzir uma idéia ativa de solidariedade”
Para Rosanvallon (1995), frente à pobreza atual, (Chevallier,1992:132).
a concepção tradicional de direitos sociais tor- Assim, ainda que as questões da pobreza e
na-se inoperante. Em um contexto de desem- da exclusão apresentem-se de forma diferen-
prego crescente e intensa diferenciação das ciada em países que não passaram por este pro-
trajetórias sociais, a perspectiva de interven- cesso de construção da cidadania ou de crise
ção do Estado através da distribuição mecâni- das políticas sociais, muitas lições podem ser
ca de benefícios aos portadores de “direito” ou, aprendidas. Se nos Estados Unidos, a visão do
ainda, de indenização nos casos de “disfunções pobre merecedor e o conteúdo moralizante da
passageiras”, como a doença ou o desemprego proteção social persistem, os problemas liga-
de curta duração, perde eficácia. Desta forma, dos à ruptura do tecido social e a necessidade
uma nova visão da proteção social, não restrita de resgatar a dimensão substantiva da solida-
a uma “técnica de seguridade” mas, ao contrá- riedade, também adquirem maior relevância.
rio, ligada a uma versão ampliada do modo de Da mesma forma, se no Brasil, as intervenções
produção da solidariedade social, constitui-se estatais no combate à pobreza caracterizam-se
a saída para enfrentar os problemas sociais pela timidez, precariedade e intermitência e,
contemporâneos. Em outras palavras, o enga- por outro lado, não estão assegurados os direi-
jamento pessoal dos beneficiários, a combina- tos sociais básicos à população pobre, a tarefa
ção entre indenização e inserção social e a pos- de reconstituir um perfil de convivência menos
sibilidade de articular direito e contrato na con- ameaçado é fundamental.
dução das políticas contra a pobreza – incor- Ou seja, em países como o Brasil, onde, além
porando, assim, a idéia de contrapartida – tor- do impacto do desemprego estrutural, há de-
nam-se exigências incontornáveis. sagregação dos mecanismos de integração, in-
Polemizando com a visão clássica de Rawls tensas desigualdades sociais e erosão dos ins-
(1997), Rosanvallon reitera a importância de trumentos necessários ao enraizamento da ci-
incorporar as diferenças e heterogeneidades dadania participativa, a busca de novas formas
das condições de privação na definição de po- de intervenção pública também é crucial. No
líticas de bem estar. Contra a burocratização e bojo de um padrão de relações e oportunida-
a perspectiva tecnicista da seguridade, Rosan- des sociais complexo, onde grandes segmentos
vallon propõe novas formas de ação que insti- da população vivem experiências dramáticas
tuam um “dever individual face a pessoas parti- de penúria material e privação simbólica e, ao
culares” (Rosanvallon, 1995:60). Novas alianças mesmo tempo, a ação do Estado é, muitas ve-
visando o combate à exclusão, a mobilização zes, corrupta, inócua e incapaz de garantir a
de todos e engajamento de cada um, entram eqüidade, o debate acerca da construção de al-
em cena. A solidariedade que, como vimos an- ternativas solidárias de convivência cívica mos-
teriormente, marca a emergência das redes de tra-se extremamente oportuno. No vazio do Es-
proteção pública sofre, neste sentido, um des- tado e sem a experiência de ter os direitos so-
locamento importante. ciais mais básicos assegurados à população
Para Donzelot (1995), a redução dos gran- pobre, novas formas de solidariedade tentam
des antagonismos ideológicos, a crise de repre- reconstituir o tecido social ameaçado pelo es-
sentação e o declínio da militância vão levar a garçamento e fragmentação. Na verdade, nossa
uma reflexão menos polarizada acerca das ten- “questão social” embora não reflita perdas no
dências de desafiliação das categorias sociais. processo de integração como nos países cen-
Sem significar a perda da dimensão política, o trais, revela um processo que continua incom-
equacionamento da questão social hoje impõe, pleto e ameaçado de interrupção.
assim, o encontro de novas mediações e canais As exigências de justiça confrontam-se, as-
institucionais de negociação. Em contextos so- sim, com uma experiência de cidadania que
ciais de extrema complexidade e diversidade apresenta múltiplas combinações e arranjos

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possíveis. Privilégios e particularismos afloram sido abrigadas sob o guarda-chuva da idéia de


em uma realidade de profundas carências so- “promoção à saúde”. Obviamente, trata-se de
ciais. A falta de um entendimento público e um tema amplo e inovador, ainda que, muitas
compartilhado das regras que orientam a re- vezes, reatualize antigas proposições. Desta
distribuição dos benefícios sociais cria, perma- forma, a discussão avança tecendo acordos
nentemente, padrões precários de sociabilida- mas também enfatizando resistências, dúvidas
de e noções frouxas de igualdade. Neste cená- e superposicões. No campo das políticas volta-
rio, porém, tanto o receituário liberal voltado à das à geração de emprego e renda, a ressonân-
garantia da eficácia econômica a despeito do cia da noção de capital social, as tentativas de
acirramento das desigualdades sociais, como o implementação de redes produtivas ampliadas
paradigma de intervenção estatal que orienta a e novas alianças entre mercado, estado e socie-
defesa dos direitos adquiridos, não conseguem dade revelam, igualmente, intensas metamor-
forjar novas saídas. Cada vez mais, as questões foses. Na área de educação pública, é proposto
da pobreza e da miséria em nossa sociedade, um novo “ambiente pedagógico”, capaz de va-
impõem uma nova atuação do Estado e a des- lorizar a autonomia e a ampliação das capaci-
coberta de respostas locais e flexíveis capazes, dades dos indivíduos – the capability set nos
sobretudo, de articular múltiplos atores sociais termos de Sen (1992). Pode-se dizer que, im-
e diferentes parcerias. pregnado de disputas, conflitos e dificuldades,
Neste sentido, o debate em torno de proje- emerge um campo de possibilidades (Schutz,
tos locais de desenvolvimento capazes de aglu- 1979) que pressupõe ferramentas novas e refe-
tinar experiências participativas e promover a rências criativas a projetos de saúde pública,
intersetorialidade, ganha centralidade. Nesta redistribuição dos benefícios sociais e bem es-
direção, no campo da saúde, experiências au- tar. O maior desafio está, assim, em evitar o
to-organizativas, institucionais e de organiza- descomprometimento e assim, criar novas for-
ções não governamentais, sinalizam um movi- mas de responsabilização social e engajamen-
mento complexo de redefinição de práticas e to na luta contra a exclusão e a pobreza con-
perspectivas. Tais experiências, em geral, têm temporâneas.

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