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De acordo com o jurista português Otero, o homem está diante de uma situação que
representa uma ‘subversão da tradicional distinção entre pessoa e coisa’. Em tal
‘encruzilhada existencial’, o autor justifica o protagonismo médico e jurídico, embora
reconheça, por outro lado, o desconhecimento ou a falta de argumentos norteadores para
tratar o dilema posto.1
Por outro lado, como vimos anteriormente, a antropóloga francesa Héritier sugere
que as fórmulas de RA que nós chamamos ‘novas’ - doação de óvulos ou esperma e ventre
de aluguel - eram fórmulas que já existiam em outros tempos e em outras sociedades.
1
OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil constitucional da
bioética. Coimbra: Almedina, 1999, p. 14.
43
Inserida nesta lógica diferenciada para constituição das identidades entre segmentos
populares e a classe média está a hierarquização das mulheres entre aquelas que ‘não
2
A expressão ‘verdadeira família’ não pretende eleger, tão pouco estabelecer critérios para a determinação
daquilo que possa ser considerado uma família de verdade. Ao contrário, aponta para a dificuldade que se tem
em vislumbrar e reconhecer diferentes estilos de vida familiar, como o trabalho pretende demonstrar.
3
VARGAS, Eliane Portes. Op. Cit., p. 321
4
Na narrativa daquelas mulheres, a autora observou que o desejo de ter filhos está apoiado na idéia de
reprodução familiar e de continuidade de valores geracionais aprendidos. A continuidade dos laços se dá em
função da percepção/responsabilização das mulheres em função dos limites demarcados do seu papel na
família. Não é a conjugalidade por si, como ordinariamente se poderia crer, que estabelece o elo, o vínculo
que garantiria a estabilidade e a segurança jurídica nas relações.
5
O que diferencia estes dois universos, segundo Vargas, é o fato de que, nos segmentos nos quais o valor
indivíduo é prevalente, a construção das identidades ocorre antes por contraste do que por similaridade. Nas
camadas populares, ao contrário, a referência ao universo familiar se impõe, e sua relevância recai na
manutenção e continuidade dos laços com a família de origem.Cf. VARGAS, Eliane Portes. Op. Cit., p. 322.
45
podem’ e as que ‘não querem’ ter filhos. Existem mulheres que se vêem diante da
impossibilidade de gerar e reproduzir e outras que não tiveram seus filhos porque não
quiseram tê-los. Essa diferenciação conferiria uma certa legitimidade às mulheres
submetidas ao tratamento médico perante as demais que não têm filhos por assim o
desejarem, pois fica implícito que estas últimas não querem ter a ‘responsabilidade’ e o
‘compromisso’ com os cuidados necessários para a criação e educação de uma criança.6
6
Ibidem, p. 329.
46
As relações sociais e, como não poderia deixar de ser, as relações parentais se dão
em determinado contexto histórico. Observamos, ao passar dos anos, a contínua
transformação das práticas referentes ao comportamento humano. Estudos realizados nas
últimas três décadas atestam inequivocamente o processo de transformações socioculturais
porque passaram homens e mulheres.7
Tais mudanças tornam-se cada vez mais decisivas para a flexibilização da estrutura
familiar vigente. A maior participação das mulheres no mercado de trabalho, o movimento
feminista, o incremento dos métodos anticoncepcionais, possibilitando à mulher um
controle do próprio corpo e da sexualidade, iniciaram um processo de mudança na
sociedade, sobretudo, nas camadas mais abastadas da população.8
7
Nesse sentido, alguns trabalhos destacam as transformações estruturais na formação e desenvolvimento da
família: BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985; BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Novos contornos do direito da filiação: a dimensão
afetiva das relações parentais. Revista da Ajuris, Porto Alegre, a. XXVI, n. 78, p. 193-216, jun. 2000;
RAMIRES, Vera Regina. O exercício da paternidade hoje. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997.
8
RAMIRES, Vera Regina. Op. cit., p. 24.
47
Hoje, sabe-se que um pai e uma mãe substitutos podem satisfazer as necessidades
básicas de uma criança tanto quanto os pais biológicos. Isto significa, em outras palavras,
que é desejável para o desenvolvimento da criança a convivência com um indivíduo que
ofereça os referenciais do gênero feminino e outro, do gênero masculino, a fim de serem
fontes de identificação nos diferentes níveis do desenvolvimento infantil. Nesse sentido,
Brauner aponta a desnecessidade da determinação de uma descendência genética para o
estabelecimento de uma autêntica relação filial, uma vez que esta é percebida em relação à
subjetividade dos laços afetivos.
Entre a mãe e o Estado, que usurparam, cada qual a seu modo, o essencial das
funções paternas, Badinter15 questiona sobre o papel que estaria destinado ao pai. Por um
certo tempo, teve-se a impressão de que a qualidade paterna poderia ser medida mais pela
sua capacidade de sustentar a família do que por qualquer laço afetivo.
desenvolvimento do indivíduo, é possível compreender, então, que um pai ausente provoque na criança um
sério déficit em sua identidade. Em conseqüência, caso a criança não tenha oportunidade de experenciar o
contato com o gênero masculino, mesmo que não seja necessariamente seu pai biológico, provavelmente terá
dificuldades em assumir-se como homem ou como mulher. (ABERASTURY, Arminda; SALAS, Eduardo J.
A Paternidade – um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984, p. 68).
14
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado. Op. cit., p. 146.
15
Ibidem, p. 293.
49
16
O termo maternagem foi cunhado por D. W. Winicott para descrever os cuidados maternos dispensados ao
bebê e à criança. (NICK, Sergio Eduardo. Guarda compartilhada: um novo enfoque no cuidado aos filhos de
pais separados ou divorciados. In: BARRETO, Vicente (coord.). A nova família: problemas e perspectivas.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 136 – nota 3). Encontramos no dicionário a seguinte definição:
“Maternagem traduz a relação calorosa e amiga com a mãe ou com aquela que a substitui”. (FERREIRA,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed., Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1298). Na linguagem psicanalítica, o termo é utilizado para designar o
comportamento de proporcionar cuidados e atender às necessidades das crianças e está vinculado às figuras da
mãe e da mulher. (RAMIRES, Vera Regina. Op. cit., p. 100). Entretanto, para Badinter, ao contrário, a
“maternagem” não tem sexo. Constitui-se numa experiência pedagógica tanto para homens quanto para
mulheres. (BADINTER, Elizabeth. XY: Sobre a identidade masculina. Op. cit., p. 178). Estabelecer um
conceito de maternagem atrelado aos cuidados dedicados por figuras femininas significa limitar seu conteúdo,
engendrando, assim, mais uma forma de exclusão do homem sobre a possibilidade de se tornar, desde logo,
tão próximo e responsável por sua cria quanto a mulher. A linguagem utilizada nesse sentido torna-se um
forte argumento de consolidação da expressão de um pensamento dominante: mulheres maternam porque
assim sua constituição determina, não havendo espaço, portanto para tentativas e erros. Os pais poderão
melhor auxiliar quanto menos atrapalharem.
17
Embora saibamos que a anatomia não confere sentido aos gêneros, Nolasco constatou em sua pesquisa para
a dissertação de mestrado que os homens não conseguem ainda perceber ou compreender o significado das
diferenças individuais entre os sexos caso elas não estejam definidas biologicamente. (Identidade masculina:
um estudo sobre o homem de classe média. Departamento de Psicologia. PUC- RJ, 1988. Apud NOLASCO,
Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 25).
50
18
RAMIRES, Vera Regina. Op. cit., p. 50-51.
19
STRATHERN, Marilyn. Necessidade de pais, necessidade de mães. Revista Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, n. 2, 1995, p. 305-6.
51
Para Strathern, esses pedidos configuram uma afronta ao modelo da relação entre
intercurso sexual e concepção, o qual seria essencial para as idéias euro-americanas sobre
como se fazem os pais, sobre a parentalidade.
As mulheres que desejam ter um filho com auxílio da RA, sem ter experimentado
nem desejado experimentar uma relação sexual, aparentemente excluem exatamente o que a
criança necessita, ou seja, a presença do pai. Isso envolve algumas comparações entre os
papéis atribuíveis a homens e mulheres.
contemporâneas um pai jamais terá certeza que o filho de sua mulher é também seu – isso
tem de ser posto à prova.22
Ocorre que o significado simbólico do ato sexual nos remete para a idéia de
compromisso de um casal e aponta para um ideal. Com a noção de ideal estamos
vinculados à necessidade de manutenção deste, a fim de que seja protegido e mantido o
sistema social. Contudo, na união de um casal, em termos de seu compromisso mútuo,
também há diferentes níveis de comprometimento: o ideal é acima de tudo expresso no
se o doador não pode ser o pai legal e o próprio marido não quer assumir este papel, então teremos um filho
‘sem pai’, na hipótese de a mulher realizar a fertilização sem autorização do marido. Isso não quer dizer que
tal circunstância é a mais comum ou desejável. Entretanto, nos faz refletir sobre a maneira pela qual se
delineiam as demandas por pais e mães. O pai seria dispensável, ao passo que, ainda que um óvulo tenha sido
obtido por doação, um filho não pode nascer sem uma mãe. Cf. STRATHERN, Marilyn. Op. Cit., p. 311.
22
O número de ações investigatórias e negatórias de paternidade pode demonstrar tal assertiva.
53
desejo da mulher de ter um filho por meio de uma relação sexual. O sexo é tido como um
símbolo de relacionamento.
23
STRATHERN, Marilyn. Op. Cit., p. 314-6.
24
Dentro das relações estabelecidas pelo casamento ou pela família, nas sociedades ocidentais, o intercurso
sexual simboliza a união dos parceiros e o amor de um pelo outro. Mas o intercurso sexual também existe fora
desses relacionamentos: o sexo pode ser instrumento de poder e dominação; evoca prazer e satisfação
individual; pode ser comercializado (prostituição); pode ser usurpado (estupro). Através desses exemplos
pode-se perceber que o sexo contém tanto a dimensão relacional quanto a individual, quando se torna objeto
de satisfação.
54
Nesse sentido, concordamos com Salem quando esta afirma que a maternidade e a
paternidade, as regras de filiação e os sistemas de parentesco são, em qualquer sociedade,
convenções sociais. Em outras palavras, a definição desses atributos passa necessariamente
por critérios arbitrários estabelecidos pelos grupos.25
Todavia, devemos concordar que ser pai e ser mãe é uma experiência que vai além
do fato biológico ‘natural’. Adquire o estatuto de uma experiência psicológica, social, que
pode ou não acontecer, independentemente do fator biológico da fecundação e gestação.26
25
Assim, o parentesco, muito antes de ser ‘natural’, é um ‘sistema cultural’. Dessa forma, a representação
ocidental sobre família e parentesco está apoiada nos conceitos de laços sangüíneos e, mais recentemente,
genéticos. Esses operadores simbólicos, representados como fundadores da ordem da natureza, são
concebidos como vetores físico-morais: ‘sangue’ ou ‘genes’ são encarados como substâncias que determinam
não só o corpo, mas também o caráter. Assim, a categoria ‘parente’ indica uma pessoa relacionada à outra por
uma substância ‘natural’ e, em virtude disso, elas são pensadas como partilhando uma identidade comum de
caráter, além de temperamento e hábitos similares. Os códigos de conduta, portanto, entre consangüíneos são
ditados pela ordem da natureza, que se impõe aos homens e escapa ao seu arbítrio. Os vínculos fundados em
uma substância natural estão, ademais, investidos de um valor maior relativamente aos geridos apenas pela
ordem da lei (ou da cultura). O modo como representamos ‘natureza’ e ‘cultura’ e os termos correlatos
referem-se a diferentes níveis de atributos. Assim, imputamos à ‘natureza’ as qualidades de inelutabilidade,
invariância e imutabilidade essenciais; esse domínio é tido como primordial e anterior aos constructos
humanos. Dessa forma, as relações genealogicamente dadas, identificadas como ‘fatos objetivos da natureza’,
são pensadas como as verdadeiras relações de parentesco: elas são eternas, independem da volição humana e,
por isso, são mais fortes e permanentes. Cf. SALEM, Tania. O princípio do anonimato na inseminaçao
artificial com doador (IAD): das tensões entre natureza e cultura. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 1, p. 33-67, 1995.
26
RAMIRES, Vera Regina. Op. Cit., p. 103.
55
Entretanto, este é apenas mais um elemento que não pode ser entendido somente em
uma perspectiva, tal qual o ordenamento jurídico faz. A norma e os operadores de justiça,
de uma maneira geral, trabalham com um ideal de família, afastando-se da realidade, uma
vez que não contemplam a diversidade do cotidiano das relações entre os sujeitos que se
organizam das mais variadas formas. Observa-se que o sistema jurídico opera a partir de
esquemas morais apoiados sobre um determinado comportamento considerado adequado e
compartilhável por todos os membros de uma sociedade.
O ordenamento jurídico, por conseguinte, apresenta alguns modelos, mas não deve
fechar-se em si mesmo. O Estado deveria, tão-somente, sustentar a possibilidade desses
arranjos familiares e não interferir na liberdade e autonomia do sujeito.
27
Trata-se de uma tentativa de conciliação de um conceito técnico-jurídico com elementos da psicanálise. O
elemento descendência, para tanto, não é o preponderante, uma vez que registramos a possibilidade de
formação de outras formas de vínculos afetivos. As funções paterna e materna são decorrentes de uma relação
de desejo, muito maior que a simples contingência dada pelo ‘natural’, pelo biológico.
56
Não existe lei que garanta um modelo ideal, mas a lei deveria garantir a
possibilidade de uma construção do modelo que satisfaça a cada família, em sua estrutura
particular. A norma constitui-se em uma padronização daquilo que é consensuado e
pactuado pelos membros de uma sociedade. Nesse sentido, é elaborada a partir de uma
escolha política que se pretende legítima para tornar-se hegemônica. Diante do pluralismo
de formações familiares, o ordenamento jurídico optou por uma cláusula geral o suficiente
para contemplar a diversidade de relações estáveis, as quais também podemos reputar o
conceito/representação de família: a entidade familiar.
Tal condição, por sua vez, é expressa pelo direito de constituir família e pela reserva
da intimidade da vida privada e familiar, os quais estariam tutelados pela Constituição
portuguesa no que se refere às práticas sexuais. Diante dessa premissa, assevera que o
Direito não pode furtar-se a realizar o recorte dos ‘imperativos axiológico-constitucionais
estruturantes’, uma vez que não lhe cabe simplesmente adotar uma conduta de simples
ratificação ou execução normativa de tudo o que tem sido feito, notadamente em relação às
‘práticas irrefletidas’ que surgem em nossa sociedade. Pelo contrário, deve agir, segundo
postulados constitucionais, “como produtor de uma vigorosa reelaboração dos direitos
fundamentais da pessoa, da família e da sociedade”.28
28
OTERO, Paulo. Op. Cit., p. 28.
57
Nessa questão em particular, por não haver normatização ainda e por estar
envolvida uma cara instituição social, a família, observa-se mais claramente o poder ou
legitimidade conferida a alguns atores para dizer o que é o justo ou o correto, especialmente
por dizerem respeito a questões sobre sexualidade, moralidades e família.
A partir desse material procedeu-se a uma análise das decisões, de acordo com os
objetivos do trabalho. Tal análise permitiu revelar alguns dados interessantes.
sindicato. A categoria de busca ‘reprodução’, por sua vez, estava relacionada tanto aos
direitos autorais de imagens quanto às tecnologias médicas de assistência à concepção. Esse
problema foi resolvido através da inserção de uma outra palavra tornando a categoria uma
expressão.
Outro dado a ser destacado é que os sites utilizam diferentes critérios de busca. Não
há uma uniformidade nos mecanismos de busca entre os tribunais. Dessa maneira, toda
pesquisa jurisprudencial brasileira, na Internet, perde em coesão.
Ressalta-se que neste tipo de instrumento de coleta de dados haverá uma certa
margem de erro. Ocorre que, seja pela forma como as ementas são selecionadas e
disponibilizadas pelos tribunais, seja pelas próprias categorias de busca eleitas, há que se
relativizar os resultados, pois decorrem de escolhas efetuadas pela pesquisadora e pelo
próprio objeto da pesquisa - o discurso jurídico, expressão de um fenômeno dinâmico
permeado por marcas subjetivas.
última análise, constitui um elemento básico para o acesso à justiça. Neste sentido, os dados
coletados não devem ser tomados como representativos da totalidade do fenômeno jurídico.
Ao contrário, faz-se necessário tomá-los com certa cautela, uma vez que não representam a
realidade objetiva dos casos que são julgados em primeira e segunda instâncias do sistema
judiciário brasileiro. Podemos, todavia, afirmar que os dados disponibilizados constroem
uma determinada representação da realidade do fenômeno jurídico, a qual torna-se sua
principal expressão acessível.
30
É a palavra que assegura a incorporação do filho tanto para os mortos quanto para os vivos: “é a palavra que
faz a filiação, é a palavra que a retira”, como dizem os Samo de Burkina Fasso. (HÉRITIER, Françoise. Op.
Cit., p. 106).
61
Alinhado aos argumentos de reconhecimento público da filiação, seja ela dada pelo
biológico – ainda que publicamente a relação filial tenha sido estabelecida pelo afeto e
convivência -, seja dada pela palavra - nestes casos a busca é pelo laço genético ou de
sangue -, vê-se que, de uma maneira geral, o Poder Judiciário brasileiro oscila entre a
fronteira da ordem da natureza e da ordem da cultura. É no espaço das discussões sobre o
reconhecimento de paternidade, primordialmente, que se observa ora o privilégio da
verdade biológica, marcadamente limitada à ordem da natureza, ora o da verdade
socioafetiva, circunscrita à ordem cultural.
31
Ver LUNA, Naara Lúcia de Albuquerque. Maternidade desnaturada: uma análise da barriga de aluguel e da
doação de óvulos. Cadernos Pagu, Campinas, n.19, p. 233-278, 2002.
63
Neste caso, não está em discussão o reconhecimento de um pai, uma vez que este já
existe. Assim, podemos observar que o que está em pauta são valores e escolhas morais
sobre o que é representativo e legítimo esperar de pais e filhos.
No primeiro caso, D. Eunice cumpriu e desempenhou o papel que lhe era esperado:
acolheu e cuidou dos filhos naturais de seu marido. A mãe biológica não figura naquele
cenário, pois o lugar do pai estava assegurado e a mãe afetiva a substituíra com todos os
méritos, conforme os elogios tecidos pelo desembargador relator.
65
Embora nos dois casos tenhamos as duas figuras parentais - respectivamente, mãe
afetiva e pai biológico, mãe e pai adotivos -, observamos uma demanda por uma
completude, uma necessidade de preenchimento de espaços não alocados, sejam da ordem
do afeto, da consangüinidade, do jurídico.
32
Salem observa um expressivo hiato entre o acelerado avanço das tecnologias reprodutivas e a capacidade da
sociedade de digerir e lidar jurídica e eticamente com os novos desafios. Da mesma forma, as intenções de
legislar e impor limites são, muitas vezes, contestadas com o argumento de que elas constituem uma invasão à
privacidade e ao ‘direito de procriação’ de casais e/ou indivíduos, bem como uma afronta à liberdade de
pesquisa. Cf. SALEM, Tania. Op. Cit.
66
Resta-nos indagar de onde provém tal evidência. Freud dizia, em seu texto O
Estranho, que aquilo que nos parece estranho porta, em seu bojo, algo de familiar.35
33
Artigo 226, §4º, da CF - “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes.”
34
LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit., p. 354-5. Em outra obra, o mesmo autor expressa sua preocupação
com a ‘questão das mães solteiras’: “Se a mulher, ou melhor, se a nova condição feminina sempre pregou a
igualdade de direitos e obrigações (o que, atualmente, é princípio largamente assegurado pela Constituição),
se a transformação dos modelos familiares encontra na coabitação e na maternidade isolada suas mais
contundentes expressões, [...] então o aspecto voluntário da decisão (ter um filho) não deve se limitar à mera
concepção, mas, coerentemente, deve acompanhar os efeitos posteriores ao nascimento, fazendo com que o
mesmo voluntarismo e desenvoltura, presentes na decisão unilateral, persistam na guarda e educação do filho
desejado”. (LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e mães
solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997,
p. 57) Vale a pena destacar, em posição diametralmente oposta, o editorial de Lopes, da Sociedade Brasileira
de Reprodução Humana. Ele pergunta se o ato reprodutivo continua sendo uma exclusividade do casal ou uma
realidade acessível à mulher? A fim de justificar sua posição de não restrição ao acesso aos mecanismos de
procriação medicamente assistida, Lopes afirma que o guia sobre a doação de gametas da Sociedade
Americana de Medicina Reprodutiva menciona que uma das indicações para inseminação com sêmen doado
seria a mulher solteira. Ademais, traz o argumento de que a figura paterna pode ser concretizada pelo pai
psicológico que poderia ser o avô, o tio ou até mesmo um amigo da mãe. Por fim, completa: “Seguramente,
crianças filhas de saudáveis mães solteiras podem crescer de modo mais harmônico do que em ambientes
onde mães e pais civilmente constituídos vivem em regime de desafeto e truculência”. (LOPES, Joaquim
Roberto C. O direito à reprodução. Disponível em: <http://www. sbrh.med.br/ boletins/bol03mar-
abril/bl010301.htm> Acesso em 12/06/03).
35
FREUD, S. O estranho. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XVII, p. 237-269, 1976.
67
O legislador constituinte, por sua vez, reconheceu, como já havia sido mencionado,
a composição dos outros arranjos familiares, sejam eles nucleares, monoparentais ou
reconstituídos. Como bem assegura Carbonera, “a verdade social não se ateve à verdade
jurídica e os fatos afrontaram e transformaram o Direito”.36
36
CARBONERA, Silvana M. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson
(Coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 290.
68
despercebida -, reconhecem, todavia, a família como uma instituição básica das sociedades
contemporâneas.
Considerando que o sujeito tenha pleno conhecimento de que deseja ter um ou mais
filhos e, ainda, de que não pode tê-los pelos procedimentos tradicionais, poderá, com base
na racionalidade deliberativa, optar pela dissociação entre relação sexual, procriação e
paternidade/maternidade? É possível desafiar de tal forma a naturalização do fenômeno da
reprodução humana? Neste ponto, recorre-se, uma vez mais, ao aporte da teoria rawlsiana.
O modo de vida escolhido não importa, desde que esteja de acordo com os
princípios de justiça, que estão definidos independentemente. As características arbitrárias
69
dos planos de vida não afetam esses princípios, nem o modo como deve ser ordenada a
estrutura básica de uma sociedade.
Rawls afirma que “num regime democrático o interesse legítimo do governo é que a
lei e as políticas públicas sustentem e regulamentem, de maneira ordenada, as instituições
necessárias para reproduzir a sociedade política ao longo do tempo. Estas geralmente
incluem a família (numa forma que seja justa), arranjos para criar e educar os filhos, e
instituições de saúde pública. [...] Dado esse interesse, o governo pareceria não ter nenhum
interesse na forma particular de vida familiar ou das relações entre os sexos, exceto na
medida em que essa forma ou essas relações afetem de algum modo a reprodução ordenada
da sociedade ao longo do tempo. Assim, apelos à monogamia como tal ou contra o
casamento de indivíduos do mesmo sexo como sendo do interesse legítimo do governo pela
família refletiriam doutrinas religiosas ou abrangentes. Conseqüentemente, esse interesse
pareceria inadequadamente especificado’.37
37
RAWLS, J. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 193-4.
38
Ibidem, p. 207, nota 60. Da mesma forma, ver: Rawls, J. Justiça como eqüidade. Op. Cit., p. 231, nota 42.
70
Dessa forma, podemos afirmar que, na concepção rawlsiana, o bem de uma pessoa é
determinado a partir de seu plano racional de vida. A instância final para ordenar as
conflitantes reivindicações das pessoas não é a concepção individual de bem, mas a
concepção de justiça. E a conseqüência disso é que os princípios de justiça possuem
preferência em relação ao plano racional individual.
O legislador, portanto, tem por missão reproduzir os valores sociais partilhados pela
sociedade que representa. O que se quer responder é como - entre muitos valores
contraditórios e discordantes entre si sobre o que é uma ‘verdadeira’ família ou o que é
correto e desejável para homens e mulheres, solteiros ou em situações de conjugalidade
hetero ou homossexual - devem ser os valores contemplados pela lei?
Para além das especificidades do tema, acredita-se que a leitura e a interpretação dos
princípios constitucionais possibilitam uma intensa atividade criativa, indispensável para
39
RAWLS, J. Justiça como eqüidade. Op. Cit., p. 320-1.
71
garantir a efetiva proteção à dignidade e aos direitos fundamentais dos indivíduos, inseridos
nas variadas formações familiares.
Nesse sentido, concordamos com Novaes e Salem, quando estas refere que a
legitimidade das relações de parentesco construídas por meio das tecnologias reprodutivas
pressupõe sua semelhança e proximidade com as relações biológicas ou genéticas dadas, o
que constitui uma afirmação de ordem natural (natureza) como ordem moral por
excelência.40
Esse tensionamento entre a ordem do natural e a ordem do cultural está presente nas
decisões analisadas, como vimos, bem como na delimitação jurídico-normativa para a
regulação das práticas em RA. Ocorre que, não havendo um campo normativo explícito no
qual possam ser respondidos os questionamentos ético-jurídicos com relação às tecnologias
reprodutivas, a literatura sobre o tema tende a buscar e construir argumentos e proposições
que possam responder à necessidade de subsumir os fatos do desenvolvimento
tecnocientífico em reprodução humana a uma norma, seja moral ou legal, correspondente.
Nessa tentativa, inserem-se os chamados ‘direitos reprodutivos’, os quais, salvo melhor
interpretação, estão aptos a indicar os contornos de um quadro jurídico-normativo para o
acesso às tecnologias reprodutivas.
40
NOVAES, Simone; SALEM, Tania. Recontextualizando o embrião. Revista Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, v. 3, n. 1, p. 65-88, 1995.
72
41
COOK, Rebecca J. Estimulando a efetivação dos direitos reprodutivos. In: BUGLIONE, S. (org.).
Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 13-60.
42
Universal porque a condição de pessoa é o requisito necessário e suficiente para a dignidade humana e a
titularidade de direitos. Indivisível porque a garantia de direitos civis e políticos é condição para a observância
dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Ver PIOVESAN, Flávia. Os direitos reprodutivos
como direitos humanos. In: BUGLIONE, S. (org.). Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. Porto
Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 61-92.
43
PIOVESAN, Flávia. Os direitos reprodutivos como direitos humanos. p. 68. Segundo Brauner, o
surgimento dos direitos sexuais e reprodutivos foi fruto da contribuição dos movimentos feministas mundiais
que introduziram a discussão dos padrões socioculturais vigentes em relação à vida sexual e à reprodução
humana. (BRAUNER, Maria Claudia C. Direitos Sexuais e Reprodutivos: uma abordagem a partir dos
Direitos Humanos. Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS, 1999, p. 228).
73
Outra característica que deve ser ressaltada é que os direitos relativos à saúde
reprodutiva e sexual podem ser protegidos por meio de vários direitos humanos específicos
e legalmente estabelecidos. Assim, os direitos de uma maneira geral e os direitos
reprodutivos, especificamente, interagem entre si, pois cada um depende em maior ou
menor medida da observância dos demais. Trata-se da interdependência entre os direitos.50
Na Constituição Federal brasileira não temos um direito subjetivo que nos remeta
explicitamente a um direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Depreendemos tal
expressão através da atividade interpretativa sobre os princípios constitucionais e princípios
50
COOK, Rebecca J. Op. Cit., p. 25.
51
Ibidem, p. 25-6.
52
.Da mesma forma, Tepedino explica que “a categoria dos direitos de personalidade constitui-se em
construção recente, fruto de elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX.
Compreendem-se sob a denominação de direitos de personalidade os direitos atinentes à tutela da pessoa
humana. Observou-se que o ser humano, como pessoa, manifesta dois interesses fundamentais: como
indivíduo, o interesse a uma livre existência; como partícipe do consórcio humano, o interesse ao livre
desenvolvimento da ‘vida em relações’ ”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 25).
76
gerais de direito.53 Não pode ser outro o sentido que se deve atribuir, por exemplo, aos
princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme os artigos 1 e 3 ,
notadamente ao referirem que o Estado brasileiro tem como um de seus fundamentos a
dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a
promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. Além disso, no capítulo que trata dos direitos e deveres
individuais e coletivos, o caput do artigo 5 assegura a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade e à igualdade nesta ordem. Nesse mesmo sentido parece ser a interpretação de
Ludwig: “No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, não existe previsão expressa ao
direito de livre desenvolvimento da personalidade, diferentemente da Lei Fundamental
alemã de 1949.54 Por aqui, trata-se de princípio implícito, cuja vigência é deduzida a partir
do princípio da dignidade humana (art. 1 , III) como dos valores fundamentais expressos no
caput do artigo 5 (vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade)”.
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Conforme Brauner, a interpretação sistemática das normas constitucionais pode fundamentar os direitos
sexuais e reprodutivos. Sobre interpretação sistemática, vale destacar o que nos ensina Freitas: “uma
interpretação sistemática deve ter em conta que todas as frações do sistema jurídico estão em conexão com a
inteireza do seu espírito, disto resultando que qualquer exegese comete, direita ou indiretamente, uma
aplicação de princípios gerais, de normas e de valores constituintes da totalidade do sistema jurídico”. Cf.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2002, p. 53.
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Artigo 2, 1. Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, desde que não violem os
direitos de outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.
55
LUDWIG, Marcos de Campos. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade na Alemanha e
possibilidades de sua aplicação no direito privado brasileiro. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução
do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 265-305.
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Entretanto, tal garantia de proteção desses direitos pelos Estados está relacionada à
própria concepção de Estado. Em outras palavras, depende da concepção de Estado as
pessoas serem tratadas como sujeitos de direitos ou como objetos.
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A Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, estabelece políticas para a implementação de serviços de
planejamento familiar e o acesso aos meios preventivos e educacionais para a regulação da fecundidade e
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
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De acordo com Brauner, considera-se que o respeito e a garantia do livre exercício dos direitos sexuais e
reprodutivos é o caminho necessário para manter-se o bem-estar, onde a sociedade e a família possam prover
seus indivíduos das condições indispensáveis ao bom desenvolvimento físico, mental, intelectual e moral. A
concretização desses direitos asseguraria a oportunidade de que todos os filhos fossem concebidos e gerados a
partir do desejo, do projeto parental dos pais e, deste modo, a existência de políticas efetivas ofereceria as
condições para que a paternidade e a maternidade responsáveis fossem exercidas, de forma livre por todos
aqueles que decidem trazer à vida um novo ser. (BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direitos Sexuais e
Reprodutivos: uma abordagem a partir dos Direitos Humanos. Op. Cit., p. 210).
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MOTA PINTO, Paulo. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Op. Cit.