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que o concebeu, e assim o confessa a nossa fé. Mas que parisse antes do parto: Antequam
veniret partus ejus -como se pode entender, senão supondo na mesma Senhora dois partos do
mesmo Filho, e supondo também que o primeiro parto foi sem dores, e o segundo com dores?
Assim foi, e assim o diz: quem? O nosso português Santo Antônio, que é bem preceda agora a
todos os outros doutores da Igreja, pois falamos na sua: Beatae Marie duplex fuit partus, unus
in carne, alius in spiritu. Partus carnis fuit virgineus, et omni gaudio plenus, quia peperit sine
dolore gaudium angelorum. Secundus partus fuit dolorosus, et omni amaritudine plenus, in
Filii ejus passione, cujus animam pertransivit gladius11: Sabeis por que faz menção Isaías de
dois partos da Virgem Beatíssima, e no primeiro nega as dores, e no segundo não? A razão é -
diz o Mestre Seráfico - porque este foi o modo e a diferença com que a Senhora pariu ao seu
bendito Filho, não uma, senão duas vezes: a primeira vez sem dores, antes com júbilos, e
quando entre cantares de anjos o pariu no presépio; a segunda vez com dores, e cheia de
amarguras, quando, trespassada da espada de Simeão, o tornou a parir ao pé da cruz. -Uma
vez nascido Cristo em Belém, e outra vez nascido em Jerusalém; uma vez nascido no
princípio da vida, e outra vez nascido no fim dela; uma vez trinta e três anos antes, e outra vez
trinta e três anos depois, que por isso o profeta, falando deste segundo parto, disse
advertidamente: Antequam veniret partus ejus - porque um parto depois do outro havia de
tardar em vir tantos anos.
522. E, posto que bastava por prova da minha proposta a autoridade de tão grande
intérprete das Escrituras, como Santo Antônio, a quem por essa causa chamaram os oráculos
de Roma Arca do Testamento, diga-nos o mesmo o evangelista S. João, com texto mais claro
que o de Isaías. No capítulo doze do seu Apocalipse viu S. João aquela mulher tão prodigiosa
como sabida, a quem vestia o Sol, calçava a lua, e coroavam as estrelas; e diz que, chegada a
hora do parto, foram não só grandes, mas terríveis as dores com que pariu um filho varão, o
qual havia de ser senhor do mundo e governador de todas as gentes: Cruciabatur ut pariat, et
peperit filium masculum, qui recturus erat omnes gentes12. - Esta mulher prodigiosa, em cujo
ornato se empenharam e despenderam todas as luzes do céu, era a Virgem Santíssima; o
Filho, senhor do mundo, e que havia de governar todas as gentes, era Cristo, governador do
universo e senhor dele. Mas, se o parto da mesma Virgem foi isento de toda a dor e moléstia,
que dores e que tormentos são estes com que agora S. João a viu parir, não outro, senão o
mesmo filho? A palavra cruciabatur, que é derivada da cruz, basta por comento de todo o
texto. O Filho era o mesmo, e a Mãe a mesma, mas o parto da Mãe e o nascimento do Filho
não era o mesmo, senão muito diverso. Era o segundo nascimento do Filho, em que, por modo
superior a toda a natureza, havia de nascer morrendo. E porque este segundo nascimento foi
entre dores, tormentos e afrontas, e com os braços pregados nos de uma cruz, por isso a
mesma cruz do nascimento do Filho foi também a cruz do parto da Mãe: Et cruciabatur ut
pariat.
523. Nasceu o Filho crucificado na sua cruz, e pariu-o a Mãe crucificada na cruz do
Filho, e se perguntarmos - que é o que só nos resta – por que o Filho no segundo nascimento
nasceu assim, e a Mãe o pariu do mesmo modo? A razão, como dizia ao princípio, não foi
outra senão porque Cristo no primeiro parto nasceu propriamente Cristo, e neste segundo
nasceu propriamente Jesus. Esta foi a diferença com que o anjo anteontem anunciou aos
pastores o nascimento do mesmo Cristo: Quia natus est vobis hodie Salvator, qui est Christus

11 D. Antonius de Padua.
12 Sofria tormentos por parir, e pariu um filho varão, que havia de reger todas as gentes (Apc. 12,2.5).
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(Lc. 2,11): Alegrai-vos, porque hoje nasceu o Salvador, que é Cristo. - Notai que não disse:
Qui est Salvator - assim como disse: Qui est Christus - porque o menino nascido já era Cristo,
mas ainda não era salvador. Havia de ser salvador, e, para ser salvador nascia; mas ainda o
não era. Cristo sim: Qui est Christus - porque já estava ungido na dignidade de Filho de Deus;
mas na de Jesus e de salvador ainda não, porque essa não a havia de receber no presépio,
senão na cruz: Factus obediens usque ad mortem crucis, ut in nomine Jesu omne genu
flectatur13. -E aqui é que propriamente nasceu Jesus, e não de outra Mãe, senão da mesma
Virgem Maria: Maria, de qua natus est Jesus.

§1V

O segundo nascimento de S. João. Propriedade e necessidade do sobrenome Cristo.


Porventura há outro Jesus, e nascido de Maria, que se não chame Cristo? João, o outro
Jesus. Enquanto Jesus e João eram o mesmo por amar, eram um só Jesus; enquanto João por
realidade era outro, eram dois Jesus. A amizade política e falsa de Alexandre Magno e
Efestião. Assim como Elias e Eliseu eram dois Elias, assim Jesus e João eram dois Jesus.

524.O segundo filho da mesma Virgem Maria, e nascido também no Calvário, e com
novo e segundo nascimento, foi São João. E que seria se disséssemos que também deste
nascimento se verifica o nosso texto? O em que agora reparo nas palavras de qua natus est
Jesus, qui vocatur Christus, é que este vocatur parece impróprio, e este Christus supérfluo. O
nome próprio do Filho de Deus, e Filho de Maria, é Jesus; este nome lhe foi posto no dia da
circuncisão, e assim o tinha revelado o anjo antes de ser concebido: Vocatum est nomen ejus
Jesus, quod vocatum est ab angelo prius quam in utero conciperetur14. Logo o vocatur,
aplicado, não ao nome Jesus, senão ao sobrenome Christus, parece impróprio; e o mesmo
sobrenome Christus também parece supérfluo, porque só seria necessário para distinguir um
Jesus de outro Jesus. Porventura há outro Jesus, e nascido de Maria, que se não chame Cristo?
Digo que sim. Há um Jesus Filho de Maria que se chama Cristo, e há outro Jesus, também
Filho de Maria, que se chama João. E por isso o evangelista, para distinguir um Jesus de outro
Jesus, e um filho de Maria de outro filho de Maria, não supérflua, senão necessariamente
acrescentou ao nome o sobrenome, e não só disse: Maria, da qual nasceu Jesus - senão: Maria,
da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.
525. Quando o mesmo Cristo estava na cruz, disse à sua Santíssima Mãe: Ecce filius
15
tuus ; estas palavras eram equívocas, e mais naturalmente se podiam entender do mesmo
Cristo, que as dizia, do que de outro por quem as dissesse. E como tirou o Senhor esta
equivocação? Tirou-a com os olhos e com a inclinação da cabeça, que só tinha livre, apon-
tando para João. Bem. Mas, porque não disse, este é outro filho que vos deixo em meu lugar,
senão este é o vosso filho: Ecce filius tuus? - Não há dúvida, responde Orígenes, que, falando
o Senhor por estes termos, quis significar declaradamente que ele e João não se distinguiam, e
que João não era outro filho da Senhora, senão o mesmo Jesus, que ela gerara e dela nascera.
Notai as palavras, que não podem ser mais próprias, e a razão, que não pode ser mais subida:
Nam si nullus est Mariae filius praeterquam Jesus, dixitque Jesus: Ecce filius tuus; perinde
est, ac sic dixisset: Hic est Jesus quem genuisti16. -Pois se Jesus e João eram dois, e tão
infinitamente diversos, Jesus o Senhor, e João o servo; Jesus o Mestre, e João o discípulo;
13 Feito obediente até à morte de cruz, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho (Flp. 2, 8).
14 Foi-lhe posto o nome de Jesus, como lhe tinha chamado o anjo, antes que fosse concebido no ventre de sua
Mãe (Lc. 2,21).
15 Eis aí teu filho (Jo. 19,26).
16 Orígen. Praefat. in EvangeI. Joan.
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Jesus o Criador; e João a criatura; Jesus o filho de Deus, e João o filho de Zebedeu, como era
ou como podia ser João, não outro filho, senão o mesmo filho, nem outro Jesus, senão o
mesmo Jesus que a Senhora gerara: Hic est Jesus quem genuisti? - S. Pedro Damião
reconhece aqui um mistério semelhante ao do Sacramento; mas eu, sem recorrer a milagre,
entendo que tudo isto se decifra e verifica com ser João o amado: Discipulus quem diligebat17.
-Era o amado? Logo era outro, e era o mesmo Jesus. Enquanto Jesus e João eram o mesmo
por amor, eram um só Jesus; e enquanto João por realidade era outro, eram dois Jesus.
526. Os filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade, qual naquele tempo era, ou
qual devia ser, disseram: Amicus est alter ego: O amigo é outro eu. - Logo, enquanto o amigo
é eu ego - eu e ele somos um; e enquanto ele é outro - alter - ele e eu somos dois, mas ambos
os mesmos, e isto é o que obrou sem milagre, por transformação recíproca, o amor de Jesus
em João. A mesma antigüidade nos dará o exemplo. Depois da famosa vitória de Alexandre
Magno contra el-rei Dario, foi trazida a rainha-mãe diante do mesmo Alexandre, a cujo lado
assistia seu grande privado Efestião. E como a rainha fizesse a reverência a Efestião, cuidando
que ele era o Magno, por ser mais avultado de estatura, e, avisada do seu erro, o quisesse
desculpar, acudiu Alexandre, como refere Cúrcio, com estas palavras: Non errasti mater;
namque et hic Alexander est: Não errastes, senhora, porque este também é Alexandre. - Assim
o disse o grande monarca, mais como discípulo de Aristóteles que como filho de Filipe. E se o
amor - que eu aqui tenho por político e falso - ou fazia ou fingia que Alexandre e Efestião
fossem dois Alexandres: Namque et hic Alexander est - o amor verdadeiro sobrenatural, da
parte de Cristo divino, e da parte de João mais que humano, por que não fariam que Jesus e
João fossem dois Jesus? Não há dúvida que naquele passo estavam dois Jesus no Calvário, um
na cruz, outro ao pé dela.
527. Quando Eliseu disse a Elias: Fiat in me duplex spiritus tuus18 -não me passa
persuadir que lhe pedisse dobrado espírito do que era o seu, porque seria demasiada presunção
de discípulo para mestre; o que quis dizer, foi que o espírito de Elias se dobrasse e
multiplicasse em ambos, e que Elias o levasse, pois se ia, e o deixasse a Eliseu, pois ficava. E
neste caso, se o espírito de Elias fosse com Elias e ficasse com Eliseu, Elias porventura seria
um só Elias? De nenhum modo - diz S. João Crisóstomo. - Dobrou-se o espírito de Elias, e
multiplicou-se em Eliseu, como ele tinha pedido; mas então não houve um só Elias, senão
dois Elias: Erat duplex Elias ille, et sursum Elias, et deorsum Elias19. - Arrebatou o carro de
fogo a Elias, e no mesmo tempo e no mesmo lugar, diz Crisóstomo, se viram então dois Elias,
um em cima, outro embaixo; um no ar, outra na terra; um no carro, outro ao pé dele: Et
sursum Elias, et deorsum Elias. - O mesmo se viu no nosso caso. O carro triunfal, em que o
Redentor do mundo triunfou da morte, do pecado e do inferno, foi a cruz; levantado nela o
Senhor, partia-se o Mestre, e ficava o discípulo: mas como? Como Elias e Eliseu. E assim
como Elias e Eliseu eram dois Elias; duplex Elias - assim Jesus e João eram dois Jesus; e
assim como lá um Elias se via em cima outro embaixo: Et sursum Elias et deorsum Elias -
assim cá também um Jesus estava em cima, outro Jesus embaixo, um no ar outro na terra, um
na cruz outro ao pé da cruz. E para que ninguém duvidasse que o milagre com que Jesus se
tinha dobrado e multiplicado em João era por virtude e transformação do amor, o mesmo João
advertidamente não se chamou aqui João, senão o amado: Cum vidisset Jesus matrem, et
discipulum stantem, quem diligebat20. - Sendo, pois, João, por transformação do amor, outro
Jesus, e Jesus e João dois Jesus, com razão acrescentou o evangelista ao nome de Jesus o

17 O discípulo que Jesus amava (Jo. 21,20).


18 Seja dobrado em mim o teu espírito (4 Rs. 2.9).
19 D. Chrys. Homil. e Elia.
20 Jesus, tendo visto a sua Mãe e ao discípulo que ele amava, o qual estava presente (Jo. 19,26).
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sobrenome de Cristo: Jesus qui vocatur Christus - para distinguir um Jesus de outro Jesus.
528. Nem basta por distinção o declarar que era Filho de Maria, e de Maria nascera:
Maria, de qua natus est - porque no mesmo lugar do Calvário, onde Cristo, enquanto Jesus,
nasceu segunda vez de sua Santíssima Mãe - como dissemos - também S. João, com segundo
nascimento, nasceu da mesma Senhora, sendo João desde aquele ponto filho de Maria: Ecce
filius tuus - e Maria, Mãe de João: Ecce Mater tua - e por isso, no mesmo tempo e no mesmo
lugar, Mãe de dois Jesus: um Jesus que se chama João, e outro Jesus que se chama Cristo: De
qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

§V

Os pretos, filhos nascidos a Maria entre as dores da cruz, escritos e matriculados nos
livros de Deus e nas Sagradas Escrituras com o título de filhos da Mãe do mesmo Deus.
Quando alcançaram os pretos esta dignidade de filhos da Mãe de Deus? Os etíopes, filhos de
Coré, no texto de Davi. O segundo nascimento de que falou Cristo a Nicodemos.

529.O terceiro nascimento, de que também se verificam as mesmas palavras, é o dos


pretos, devotos da mesma Senhora, os quais também são seus filhos, e também nascidos entre
as dores da cruz. O profeta-rei, falando da Virgem Maria debaixo da metáfora de Jerusalém -
a que muitas vezes é comparada, porque ambas foram morada de Deus - diz assim: Homo et
homo natus est in ea, et ipse fundavit eam Altissimus (Sl.86,5): Nasceu nela o homem e mais
o homem: e quem a fundou, foi esse mesmo Altíssimo. - Estas segundas palavras declaram o
sentido das primeiras, e de umas e outras se se convence que o mesmo Deus que criou a Maria
é o homem que nasceu de Maria. Enquanto homem nasceu dela: Homo natus est in ea - e esse
mesmo, enquanto Deus, a criou a ela: Et ipse fundavit eam Altíssimus. - Assim o diz e prova
com evidência Santo Agostinho. Mas o profeta ainda diz mais, porque não só diz que nasceu
da Senhora esse homem, que enquanto Deus a criou, senão que nasceu dela o homem e mais o
homem: Homo et homo natus est in ea. - Se um destes homens nascidos de Maria é Deus, o
outro homem, também nascido de Maria, quem é? É todo o homem que tem a fé e
conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação e de qualquer cor que seja,
ainda que a cor seja tão diferente da dos outros homens, como é a dos pretos. Assim o diz o
mesmo texto, tão claramente que nomeia os mesmos pretos por sua própria nação e por seu
próprio nome: Memor ero Rahab et Babylonis, scientium me; ecce alienigenae, et Tyrus, et
populus Aethiopum, hi fuerunt illic21. - Nasceram da Mãe do Altíssimo, não só os da sua
nação, e naturais de Jerusalém, a que é comparada, senão também os estranhos e os gentios
-alienigenae. - E que gentios são estes? Rahab: os cananeus, que eram brancos; Tyrus: os
tírios, que eram mais brancos ainda, e sobre todos, e em maior número que todos: populus
Aethyopum: o povo dos etíopes, que são os pretos. De maneira que vós, os pretos, que tão
humilde figura fazeis no mundo e na estimação dos homens, por vosso próprio nome e por
vossa própria nação estais escritos e matriculados nos livros de Deus e nas Sagradas
Escrituras, e não com menos titulo nem com menos foro que de filhos da Mãe do mesmo
Deus: Et populus Aethiopum, hi fuerunt illic.
530. E posto que o texto é tão claro e literal que não admite dúvida, ouçamos o
comento de Santo Tomás, Arcebispo de Valença: Aethyopes non abjicit Virgo decora, sed
amplectitur ut parvulos, diligit ut filius. Sciant ergo ipsam matrem etenim quia Altissimi
mater est, Aethyopis matrem nominari non dedignatur. - O profeta pôs no último lugar os

21 Lembrar-me-ei de Raab e de Babilônia, que me conhecem; eis aqui os estrangeiros, e Tiro, e o povo dos
etíopes, estes estiveram ali (Sl. 86, 4).
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etíopes e os pretos, porque este é o lugar que lhes dá o mundo, e a baixa estimação com que
são tratados dos outros homens, filhos de Adão como eles. Porém, a Virgem Senhora, sendo
Mãe do Altíssimo, não os despreza, nem se despreza de os ter por filhos; antes, porque é mãe
do Altíssimo, por isso mesmo se preza de ser também sua Mãe: Etenim quia Altissimi mater
est, Aethyopis matrem nominari non dedignatur.
- Saibam, pois, os pretos, e não duvidem que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua: Sciant ergo
ipsam matrem - e saibam que com ser uma Senhora tão soberana, é Mãe tão amorosa, que,
assim pequenos como são, os ama e tem por filhos: Amplectitur ut parvulos, diligit ut filios.
Até aqui Santo Tomás.
531. E se me perguntarem os curiosos quando alcançaram os pretos esta dignidade de
filhos da Mãe de Deus, respondo que no monte Calvário e ao pé da cruz, no mesmo dia e no
mesmo lugar em que o mesmo Cristo, enquanto Jesus e enquanto Salvador, nasceu com
segundo nascimento da Virgem Maria: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. -
Este parece o ponto mais dificultoso desta terceira proposta. Mas assim o diz com propriedade
e circunstância admirável o mesmo texto de Davi. Porque os etíopes, que no corpo do salmo
se chamam nomeadamente filhos da Senhora, no título do mesmo salmo se chamam filhos de
Coré: ln finem filius Core pro arcanis. - Esta palavra pro arcanis nota e manda advertir que se
encerra aqui um grande mistério. E que mistério tem chamarem-se estes filhos da Virgem
Maria filhas também de Coré? Santo Agostinho, na exposição do mesmo salmo: Magni
sacramenti est, ut dicantur filii Core, quia Core interpretatur Calvaria. Ergo filii passionis
illius, filii redempti sanguine illius, filii crucis illius22: Coré, na língua hebréia, quer dizer
Calvário, e chamam-se filhos do Calvário, e filhos da paixão de Cristo, e filhos da sua cruz os
mesmos que neste texto se chamam nomeadamente filhos da Virgem Maria, porque, quando
no Calvário e ao pé da cruz nasceu da Virgem Maria, com segundo nascimento, seu
benditíssimo Filho, enquanto Jesus e Salvador do mundo, então nasceram também, com
segundo nascimento, da mesma Senhora todos os outros filhos das outras nações que o profeta
nomeia, e entre eles, com tão especial menção, os etíopes, que são os pretos:Et populus
Aethyopum, hi fuerunt illic. -De sorte que, assim como no Calvário e ao pé da cruz nasceu de
Maria com segundo nascimento Cristo, e assim como no Calvário e ao pé da cruz nasceu de
Maria com segundo nascimento S. João, assim ao pé da cruz nasceram também com segundo
nascimento da mesma Virgem Maria os pretos, verificando-se de todos os três nascimentos,
por diferente modo, o texto no nosso tema: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur
Christus.
532. Estou vendo que cuidam alguns que são isto encarecimentos e lisonjas daquelas
com que os pregadores costumam louvar os devotos nos dias da sua festa. Mas é tanto pelo
contrário, que tudo o que tenho dito é verdade certa e infalível, e não com menor certeza que
de fé católica. Os etíopes, de que fala o texto de Davi, não são todos os pretos universalmente,
porque muitos deles são gentios nas suas terras; mas fala somente daqueles de que eu também
falo, que são os que por mercê de Deus e de sua Santíssima Mãe, por meio da fé e
conhecimento de Cristo, e por virtude do batismo são cristãos. Assim o notou o mesmo
profeta no mesmo texto: Memor ero Rahab et Babylonis scientium me, et populus Aethyopum,
hi fuerunt illic (SI. 86, 4). - Naquele scientium me está a diferença de uns a outros. E por quê,
ou como? Porque todos os que têm a fé e conhecimento de Cristo, e são cristãos, são membros
de Cristo, e os que são membros de Cristo não podem deixar de ser filhos da mesma Mãe, de
que nasceu Cristo: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.
533. Que sejam verdadeiramente membros de Cristo, é proposição expressa de S.
Paulo, não menos que em três lugares. Deixo os dois, e só repito o do capítulo doze aos
22 August. in exposit. hujus Psalmi.
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Coríntios: Sicut enim corpus unum est, et membra habet multa, omnia autem membra
corporis, cum sint multa, unum tamen corpus sunt: ita et Christus. Etenim in uno Spiritu
omnes nos in unum corpus baptizati sumus23. - Assim como o corpo tem muitos membros, e,
sendo os membros muitos, o corpo é um só, assim - diz S. Paulo - sendo Cristo um, e os
cristãos muitos, de Cristo e dos cristãos se compõe um só corpo, porque todos os cristãos, por
virtude da fé e do batismo, são membros de Cristo. - E por que não cuidassem, os que são
fiéis e senhores, que os pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de inferior
condição, acrescenta o mesmo S. Paulo, que isto tanto se entende dos hebreus, que eram os
fiéis, como dos gentios, e tanto dos cativos e dos escravos, como dos livres e dos senhores:
Etenim omnes in unum corpus baptizati sumus, sive Judaei, sive gentiles, sive servi, sive
liberi24. - E como todos os cristãos, posto que fossem gentios e sejam escravos, pela fé e
batismo estão incorporados em Cristo, e são membros de Cristo, por isso a Virgem Maria,
Mãe de Cristo, é também Mãe sua, porque não seria Mãe de todo Cristo se não fosse Mãe de
todos seus membros. Excelentemente Guilhelmo Abade: In uno Salvatore omnium Jesu,
plurimos Maria peperit ad salutem. Eo ipso quod mater est capitis, multorum membrorum
mater est. Mater Christi Mater est membrorum Christi, quia caput et corpus unus est
Christus.
534. Não se poderá dizer com melhores palavras, nem mais próprias, mas eu quero
que no-lo diga com as suas, e nos feche todo este discurso da Escritura Sagrada. Quando
Nicodemos de mestre da lei se fez discípulo de Cristo, disse-lhe o Senhor três coisas notáveis.
A primeira, que para ele, Nicodemos, e qualquer outro se salvar, era necessário nascer de
novo: Nisi quis renatus fueri denuo, non potest videre regnum Dei25. - A segunda, que
ninguém sobe ao céu, senão quem desceu do céu: Nemo ascendit in caelum, nisi qui descendit
de caelo26: A terceira, que para isto se conseguir, havia de morrer em uma cruz o mesmo
Cristo: Oportet exaltari Filium hominis27. - Se o texto se fizera para o nosso caso, não pudera
vir mais medido com todas suas circunstâncias. Quanto à primeira, replicou Nicodemus,
dizendo: Quomodo potest homo nasci, cum sit senex? Numquid potest in ventrem matris suae
iterato introire et renasci (Jo. 3,4)? Como é possível que um homem velho, como eu sou, haja
de nascer de novo? Porventura há de tornar a entrar no ventre de sua mãe, para nascer outra
vez? - Pareceu-lhe ao doutor que esta instância era muito forte; mas o divino Mestre lhe
ensinou que este segundo e novo nascimento era por virtude do batismo, sem o qual ninguém
se pode salvar: Nisi quis renatus fuerit ex aqua, et Spiritu Sancto, non potest introire in
regnum Dei28. E quanto à mãe, de que haviam de tornar a nascer os que assim fossem
regenerados, acrescentou o mesmo Senhor que essa mãe era a mesma Virgem Maria, Mãe
sua. Isto querem dizer as segundas palavras de Cristo, posto que o não pareça, nem até agora
se tenha reparado nelas. Quando o Senhor disse que ninguém sobe ao céu senão quem desceu
do céu juntamente declarou que este que desceu do céu era o mesmo Cristo, filho da Virgem:
Nemo ascendit in caelum, nisi qui descendit de caelo, Filius hominis, qui est in caelo29. -Pois,
porque Cristo desceu do céu, por isso todos os que sobem ao céu desceram também do céu?

23 Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, ainda que sejam
muitos, são contudo um só corpo, assim também Cristo. Porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós,
para sermos um mesmo corpo (2 Cor. 12,12 s).
24 Porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós, para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus, ou
gentios, ou servos, ou livres (Ibid. 13).
25 Não pode ver o reino de Deus senão aquele que renascer de novo (Jó. 3, 3).
26 Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu (Ibid. 13).
27 Importa que seja levantado o Filho do homem (Ibid. 14).
28 Quem não renascer da água, e do Espírito Santo, não pode entrar no Reino de Deus(Ibid. 5)
29 Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu, a saber, o Filho do homem, que está no céu (Ibid. 13).
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Sim. Porque ninguém pode subir ao céu, senão incorporando-se com Cristo, como todos nos
incorporamos com ele, e nos fazemos membros do mesmo Cristo por meio da Fé e do
Batismo; donde se seguem duas coisas: a primeira, que assim como ele desceu do céu, assim
nós, por sermos membros seus, também descemos nele e com ele: Nemo ascendit in caelo nisi
qui descendit de caelo. - A segunda, que assim como ele desceu do céu, fazendo-se Filho da
Virgem Maria: Filius hominis, qui est in caelo - assim nós também ficamos sendo filhos da
mesma Virgem, porque somos membros verdadeiros do verdadeiro Filho que dela nasceu; e,
finalmente, porque este segundo e novo nascimento não foi o de Belém, senão o de Jerusalém,
nem o do presépio, senão o do Calvário, por isso conclui o Senhor que para este segundo
nascimento se conseguir, era necessário que ele morresse na cruz: Oportet exaltari Filium
hominis. - Vejam agora os pretos se por todos os títulos ou circunstâncias de etíopes, de
batizados, de nascidos com segundo nascimento, de nascidos no Calvário, e nascidas não de
outra Mãe, senão da mesma Mãe de Jesus, se verifica também deles, como membros de
Cristo, o nascimento com que o mesmo Cristo segunda vez nasceu dc Maria: Maria, de qua
natus est Jesus, qui vocatur Christus.

§VI

Unidos estes três nascimentos em um mesmo intento, todos e cada um deles se


ordenam a declarar e persuadir a devoção do Rosário, e do Rosário particularmente dos
pretos. Como se cumpriram as profecias de Davi em relação aos etíopes? Razões pelas quais
diz o texto sagrado que não morrerem e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e
pereceu seu pai foi um grande milagre. A eleição com que são tratados pela Virgem os pretos
do Brasil é milagre do Rosário. As duas coisas ou causas que concorreram para a bênção de
Jacó: o amor de Rebeca, e o cheiro de rosas e flores de seus vestidos. O cheiro e suavidade
dos sacrifícios antigos, e a fragrância dos mistérios do Rosário.

535. Parece-me que tenho provado os três nascimentos que prometi. E, posto que
todos três sejam mui conformes às circunstâncias do tempo, o de Cristo, porque continuamos
a oitava do seu nascimento, o de S. João, porque estamos no seu próprio dia, e o dos pretos,
porque celebramos com eles a devoção da Virgem Santíssima, Mãe de Cristo, Mãe de S. João,
e Mãe sua, sobre estas três grandes propriedades temos ainda outras três muito mais próprias:
e quais são? Que unidos estes três nascimentos em um mesmo intento, todos e cada um deles
se ordenam a declarar e persuadir a devoção do Rosário, e do Rosário particularmente dos
pretos, e dos pretos em particular que trabalham neste e nos outros engenhos. Não são estas as
circunstâncias mais individuais do lugar, das pessoas, e da festa e devoção que celebramos?
Pois, todas elas nascem daqueles três nascimentos. O novo nascimento dos mesmos pretos,
como filhos da Mãe de Deus, lhes mostra a obrigação que têm de servir, venerar e invocar a
mesma Senhora com o seu Rosário. O novo nascimento de Cristo os persuade a que, sem
embargo do contínuo e grande trabalho em que estão ocupados, nem por isso se esqueçam da
soberana Mãe sua, e de lhe rezar o Rosário, ao menos parte, quando não possam todo. E,
finalmente, o novo nascimento de S. João lhes ensina quais são, entre os mistérios do Rosário,
os que mais pertencem ao seu estado, e com que devem aliviar, santificar e oferecer à Senhora
o seu mesmo trabalho. Este é o fim de quanto tenho dito e me resta dizer, e este também o
fruto de que mais se serve e agrada a Virgem do Rosário, e com que haverá por bem festejado
o seu dia. E porque agora falo mais particularmente com os pretos, agora lhes peço mais
particular atenção.
536. Começando, pois, pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto
135
nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter
dado conhecimento dc si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis
como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos
salveis. Fez Deus tanto caso de vós, e disto mesmo que vos digo, que mil anos antes de vir ao
mundo, o mandou escrever nos seus livros, que são as Escrituras Sagradas. - Virá tempo, diz
Davi, em que os etíopes - que sois vós - deixada a gentilidade e idolatria, se hão de ajoelhar
diante do verdadeiro Deus: Coram illo procident Aethyopes30 - e que farão assim ajoelhados?
Não baterão as palmas como costumam, mas, fazendo oração, levantarão as mãos ao mesmo
Deus: Aethyopia praeveniet manus ejus Deo31. - E quando se cumpriram estas duas profecias,
uma do Salmo setenta e um, e outra do salmo sessenta e sete? Cumpriram-se principalmente
depois que os portugueses conquistaram a Etiópia ocidental, e estão se cumprindo hoje, mais
e melhor que em nenhuma outra parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos
etíopes em tão inumerável número, todos com os joelhos em terra, e com as mãos levantadas
ao céu, crêem, confessam e adoram no Rosário da Senhora todos os mistérios da Encarnação,
Morte e Ressurreição do Criador e Redentor do mundo, como verdadeiro Filho de Deus e da
Virgem Maria. Assim como Deus na lei da natureza escolheu a Abraão, e na da escrita a
Moisés, e na da graça a Saulo, não pelas serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois
lhe haviam de fazer, assim a Mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade e esta
vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos
trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos pais, vos não perdêsseis; e cá, como
filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e
tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário.
537. Falando o texto sagrado dos filhos de Coré, que, como já dissemos, são os filhos
da Senhora nascidos no Calvário, diz que, perecendo seu pai, eles não pereceram, e que isto
foi um grande milagre: Factum est grande miraculum, ut, Core pereunte, filii illis non
perirent32. -Não perecerem nem morrerem os filhos quando perecem e morrem os pais é coisa
muito natural, antes é lei ordinária da mesma natureza, porque, se com os pais morrerem
juntamente os filhos, acabar-se-ia o mundo. Como diz logo o texto sagrado que não morrerem
e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e pereceu seu pai, não só foi milagre, senão um
grande milagre: Factum est grande miraculum? - Ouvi o caso todo, e logo vereis em que
consistiu o milagre e sua grandeza. Caminhando os filhos de Israel pelo deserto em demanda
da Terra de Promissão, rebelaram-se contra Deus três cabeças de grandes famílias, Datã,
Abiron e Coré, e querendo a divina justiça castigar exemplarmente a atrocidade deste delito,
abriu-se subitamente a terra, tragou vivos aos três delinqüentes, e em um momento todos três,
com portento nunca visto, foram sepultados no inferno. Houve porém neste caso uma
diferença ou exceção muito notável, e foi que com Datã e Abiron pereceram juntamente, e
foram também tragados da terra e sepultados no inferno seus filhos; mas os de Coré não, e
este é o que a Escritura chama grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core pe-
reunte, filii illius non perirent. - Abrir-se a terra não foi milagre? Sim, foi. Serem tragados
vivos os três delinqüentes, não foi outro milagre? Também. Irem todos em corpo e alma ao
inferno antes do dia do Juízo, não foi terceiro milagre? Sim, e muito mais estupendo. E,
contudo, o milagre que a Escritura Sagrada pondera e chama grande milagre não foi nenhum
destes, senão o perecer Coré e não perecerem seus filhos, porque o maior milagre e a mais
extraordinária mercê, que Deus pode fazer aos filhos de pais rebeldes ao mesmo Deus, é que
quando os pais se condenam, e vão ao inferno, eles não pereçam, e se salvem.

30 Diante dele se prostrarão os da Etiópia (SI. 71,9).


31 A Etiópia se adiantará para levantar as suas mãos a Deus (SI. 67, 32).
32 Sucedeu o grande milagre, que, perecendo Coré, não pereceram seus filhos (Num. 26, 10).
136
538. Oh! se a gente preta, tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil,
conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer
desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre? Dizei-me: vossos pais,
que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé nem
conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como credes e confessais, vão ao
inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E que, perecendo todos eles, e
sendo sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao céu?
Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina: Factum est grande
miraculum, ut Core pereunte filii illius non perirent. - Os filhos de Datã e Abiron pereceram
com seus pais, porque seguiram com eles a mesma rebelião e cegueira; e outro tanto vos
poderá suceder a vós. Pelo contrário, os filhos de Coré, perecendo ele, salvaram-se, porque
reconheceram, veneraram e obedeceram a Deus; e esta é a singular felicidade do vosso estado,
verdadeiramente milagroso.
539. Só resta mostrar-vos que este grande milagre, como dizia, é milagre do Rosário, e
que esta eleição e diferença tão notável a deveis à Virgem Santíssima, vossa Mãe, e por ser
Mãe vossa. Isac, filho de Abraão - de quem vossos antepassados tomaram por honra a divisa
da circuncisão, que ainda conservam, e do qual muitos de vós descendeis por via de Ismael,
meio-irmão do mesmo Isac - este Isac, digo, tinha dois filhos, um chamado Jacó, que levou a
bênção do céu, e outro chamado Esaú, que perdeu a mesma bênção. Tudo isto sucedeu em um
mesma dia, em que Esaú andava pelos matos armado de arco e frechas, como andam vossos
pais por essas brenhas da Etiópia; e, pelo contrário, Jacó estava em casa de seu pai e de sua
mãe, como vós hoje estais na casa de Deus e da Virgem Maria. E por que levou a bênção
Jacó, e a perdeu Esaú? Porque concorreram para a felicidade de Jacó duas coisas, ou duas
causas, que a Esaú faltaram ambas. A primeira foi porque Rebeca - que era o nome da mãe -
não amava a Esaú, senão a Jacó, e fez grandes diligências, e empregou toda a sua indústria em
que ele levasse a bênção. A segunda, porque, estando duvidoso o pai se lhe daria a bênção ou
não, sentiu que os vestidos de Jacó lhe cheiravam a rosas e flores, e tanto que sentiu este
cheiro e esta fragrância logo lhe deitou a bênção. Assim o nota expressamente o texto:
Statimque ut sensit vestimentorum illius fragrantiam, benedicens illi, ait: Ecce odor filii mei,
sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus. Det tibi Deus de rore caeli, etc.33 - Uma e outra
circunstância, assim da parte da mãe como do pai, foram admiráveis, e por isso misteriosas.
Da parte da mãe que, sendo Jacó e Esaú irmãos, amasse com tanta diferença a Jacó; e da parte
do pai que um acidente que parecia tão leve, como o cheiro das flores, lhe tirasse toda a
dúvida, e fosse o última motivo de lhe dar a bênção. Mas assim havia de ser, para que o
mistério se cumprisse com toda a propriedade nas figuras e ações que o representavam. Isac
significava a Deus, Rebeca a Virgem Mãe, Jacó os seus filhos escolhidos, que sois vós, e Esaú
os reprovados, que são os que, sendo do vosso mesmo sangue e da vossa mesma cor, não
alcançaram a bênção que vós alcançastes. Para que entendais que toda esta graça do céu a
deveis referir a duas causas: a primeira, ao amor e piedade da Virgem Santíssima, vossa Mãe;
a segunda, à devoção do seu Rosário, que é o cheiro das rosas e flores, que tanto enlevam e
agradam a Deus.
540. Dos sacrifícios antigos, quando Deus os aceitava, diz a Sagrada Escritura que lhe
agradava muito o cheiro e suavidade deles: Odoratus est Dominus odorem suavitatis34 - E a
razão era porque naqueles sacrifícios se representavam os mistérios da vida e da morte de seu
benditíssimo Filho. E como na devoção do Rosário se contém a memória e consideração dos

33 Logo que ressentiu a fragrância de seus vestidos, abençoando-o disse; - Eis o cheiro de meu filho, bem como o
cheiro de um campo cheio que o Senhor abençoou. Deus te dê do orvalho do céu, etc. (Gên. 27,27s).
34 Percebeu o olfato do Senhor um suave cheiro (Gên. 8,21).
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mesmos mistérios, este é o cheiro e fragrância que tanto nele agrada, e tão aceito é a Deus.
Em vós, antes de serdes cristãos, somente era futuro este cheiro das flores do Rosário, que
hoje é presente, como também eram futuros naquele tempo os mistérios de Cristo; mas, assim
como o merecimento destes mistérios antes de serem, somente porque haviam de ser davam
eficácia àqueles sacrifícios, assim a vossa devoção do Rosário futura, e quando ainda não era,
só porque Deus e sua Mãe a anteviram, com a aceitação e agrado que dela recebem, vos
preferiram e antepuseram aos demais das vossas nações, e vos tiveram por dignos da bênção
que hoje gozais, tanto maior e melhor que a de Jacó quanto vai da terra ao céu. Para que todos
conheçais o motivo principal da vossa felicidade, e a obrigação em que ela vos tem posto de
não faltar a Deus e a sua Santíssima Mãe com este quotidiano tributo da vossa devoção.

§VII

A escusa do trabalho contínuo e multiplicado. Qual o fim e intento de Davi em


compor e dar por título a três de seus salmos Pro torcularibus? Que coisa é ser escravo em
engenho do Brasil? A inteira e perfeita semelhança entre o trabalho no engenho e a Paixão
de Cristo. Por que razão os salmos que Davi compôs para os que trabalham nos engenhos
foram somente três. O exemplar que nos deitou Cristo nas três breves orações que rezou na
cruz.

541. Estou vendo, porém, que o vosso contínuo trabalho e exercício pode parecer ou
servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que estais trabalhando de dia e de
noite em um engenho, e que as tarefas multiplicadas umas sobre outras - que talvez entram e
se penetram com os dias santos - vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário. Mas
aqui entra o novo nascimento de Cristo, segunda vez nascido no Calvário, para com seu
divino exemplo e imitação refutar a fraqueza desta vossa desculpa, e vos ensinar como no
meio do maior trabalho vos não haveis de esquecer da devoção de sua Mãe, pois o é também
vossa, oferecendo-lhe ao menos alguma parte, quando comodamente não possa ser toda. Davi
- aquele santo rei, que também teve netos na Etiópia, filhos de seu filho Salomão e da rainha
Sabá - entre os salmos que compôs, foram três particulares, aos quais deu por título Pro
torcularibus, que em frase do Brasil quer dizer, para os engenhos. Este nome torcularia,
universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se espreme e
tira o sumo dos frutos, como em Europa o vinho e o azeite, que lá se chamam lagares; e
porque estes, em que no Brasil se faz o mesmo às canas doces, e se espreme, coze e endurece
o sumo delas, têm maior e mais engenhosa fábrica se chamaram vulgarmente engenhos. Se
perguntarmos, pois, qual foi o fim e intento de Davi em compor e intitular aqueles salmos
nomeadamente para estas oficinas, respondem os doutores hebreus, e com eles Paulo
Burgense, que o intento que teve o santo rei, e fez se praticasse em todo o povo de Israel, foi
que os trabalhadores das mesmas oficinas ajuntassem o trabalho com a oração, e em lugar de
outros cantares, com que se costumavam aliviar, cantassem hinos e salmos; e, pois, recolhiam
e aproveitavam os frutos da terra, não fossem eles estéreis, e louvassem ao Criador que os dá.
Notável exemplo por certo, e de suma edificação, que entre os grandes negócios e governo da
monarquia tivesse um rei estes cuidados! E que confusão, pelo contrário, será para os que se
chamam senhores de engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se adquirem
com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus escravos, e das almas daqueles
miseráveis corpos, tiverem tão pouco cuidado, que não tratem de que louvem e sirvam a
Deus, mas nem ainda de que o conheçam?
542. Tornando aos salmos compostos para os engenhos - que depois veremos por que
138
foram três - declara Davi no título do último quem sejam os operários destas trabalhosas
oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro torcularibus fillis Core (SI. 83, 1). - Segundo a
propriedade da história, já dissemos que os filhos de Coré são os pretos, filhos da Virgem
Santíssima, e devotos do seu Rosário. Segundo a significação do nome, porque Coré na língua
hebraica significa Calvário, diz Hugo Cardeal que são os imitadores da Cruz e Paixão de
Cristo crucificado: Filiis Core, id est, imitatoribus in loco Calvariae crucifixi. - Não se pudera
nem melhor nem mais altamente descrever que coisa é ser escravo em um engenho do Brasil.
Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo que o
vosso em um destes engenhos. O fortunati nimium sua si bona norint! Bem-aventurados vós,
se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e, com a conformidade e imitação de tão alta
e divina semelhança, aproveitar e santificar o trabalho!
543. Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado:Imitatoribus Christi
crucifixi - porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na
sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um
engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão:
uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel.
A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as
vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós
famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os
açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for
acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. Só lhe faltava a cruz para a
inteira e perfeita semelhança o nome de engenho: mas este mesmo lhe deu Cristo, não com
outro, senão com o próprio vocábulo. Torcular se chama o vosso engenho, ou a vossa cruz, e
a de Cristo, por boca do mesmo Cristo, se chamou também torcular: Torcular calcavi solus35.
- Em todas as invenções e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que
mais parecido fosse com o seu que o vosso. A propriedade e energia desta comparação é
porque no instrumento da cruz, e na oficina de toda a Paixão, assim como nas outras em que
se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo o sangue da humanidade sagrada: Eo
quod sanguis ejus ibi fuit expressus, sicut sanguis uvae in torculari- diz Lirano - et hoc in
spineae coronae impositione, in flagellatione, in pedum, et manuum confiscione, et in lateris
apertione. - E se então se queixava o Senhor de padecer só: Torcular calcovi solus - e de não
haver nenhum dos gentios que o acompanhasse em suas penas: Et de gentibus non est vir
mecum36 - vede vós quanto estimará agora que os que ontem foram gentios, conformando-se
com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação tão boa companhia!
544. Mas, para que esta primeira parte da imitação dos trabalhos da cruz o seja
também nos afetos - que é a segunda e principal - assim como no meio dos seus trabalhos e
tormentos se não esqueceu o Senhor de sua piedosíssima Mãe, encomendando-a ao discípulo
amado, assim vos não haveis vós de esquecer da mesma Senhora, encomendando-vos muito
particularmente na sua memória, e oferecendo-lhe a vossa. Depois de Cristo na cruz dar o
reino do céu ao Bom Ladrão, então falou com sua Mãe, e parece que este, e não aquele, havia
de ser o seu primeiro cuidado; mas seguiu o Senhor esta ordem, diz Santo Ambrósio, para
mostrar, segundo as mesmas leis da natureza, que mais fazia em ter da própria Mãe esta
lembrança que em dar a um estranho o reino: Pluris putans quad pietatis officia dividebat,
quam quod regnum caeleste donabat. - Ao ladrão deu Cristo menos do que lhe pediu, e à Mãe
deu muito mais do que tinha dado ao ladrão, porque o ladrão pediu-lhe a memória, e deu-lhe o
reino, e à Mãe deu-lhe muito mais que o reino, porque lhe deu a memória. Esta memória

35 Eu calquei o lagar sozinho (Is. 63,3).


36 E das gentes não se acha homem algum comigo (Ibid.).
139
haveis de oferecer à Senhora em meio dos vossos trabalhos, à imitação de seu Filho, e não
duvideis ou cuideis que lhe seja menos aceita a vossa, antes, em certo modo, mais. Porquê?
Porque nas Ave-Marias do vosso Rosário a fazeis com palavras de maior consolação do que
as que lhe disse o mesmo Filho, conformando-se com o estado presente. O Filho chamou-lhe
mulher, e vós chamar-lhe-eis a bendita entre todas as mulheres: o Filho não lhe deu nome de
mãe, e vós a invocareis cento e cinqüenta vezes com o nome de Santa Maria, Mãe de Deus.
Oh! quão adoçada ficará a dureza, e quão enobrecida a vileza dos vossos trabalhos na
harmonia destas vozes do céu, e quão preciosas serão diante de Deus as vossas penas e
aflições, se juntamente lhas oferecerdes em união das que a Virgem Mãe sua padeceu ao pé da
cruz!
545. E por que a continuação do vosso mesmo trabalho vos não pareça bastante escusa
para faltardes com vossas orações a esta pensão de cada dia, adverti que se o vosso Rosário
consta de três partes estando Cristo vivo na Cruz somente três horas, nessas três horas orou
três vezes. Pois, se Cristo ora três vezes em três horas, sendo tão insofríveis os trabalhos da
sua cruz, vós, por grandes que sejam os vossos, por que não orareis três vezes em vinte e
quatro horas? Dir-me-eis que as orações que fez Cristo na cruz foram muito breves. Mas nisso
mesmo vos quis dar exemplo, e vos deixou uma grande consolação. Para que quando, ou
apertados do tempo, ou oprimidos do trabalho não puderdes rezar o Rosário inteiro, não
falteis ao menos em rezar parte, consolando-vos com saber que nem por isso as vossas
orações abreviadas serão menos aceitas a Deus e à sua Mãe, assim como o foram as de Cristo
a seu Eterno Pai.
546. Agora acabareis de entender por que razão os salmos que Davi compôs para os
que trabalham nos engenhos foram somente três. Lede-os, ou leiam-nos por vós os que os
entendem, e acharão que só três se intitulam Pro torcularibus. E por que três, nem mais nem
menos? Porque em três partes, nem mais nem menos, dividiu Davi o seu Saltério, e a Senhora
o seu Rosário. O que hoje chamamos Rosário, antes que as Ave-Marias se convertessem
milagrosamente em rosas, chamava-se o Saltério da Virgem, porque assim como o Saltério
era composto de cento e cinqüenta salmos, assim o Rosário se compõe de cento e cinqüenta
saudações angélicas. Que fez pois Davi, como rei pio e como profeta? Como rei pio, que
atendia ao bem presente do seu reino, vendo que os trabalhadores dos lagares não podiam
rezar o Saltério inteiro, e tão comprido como é, recopilou e abreviou o mesmo Saltério, e
reduziu as três partes, de que é composto, aos três salmos que intitulou Pro torcularibus. E
como profeta que via os tempos futuros, e o Rosário que havia de compor a Mãe do que se
havia de chamar Filho de Davi, à imitação do seu Saltério, introduziu no mesmo Saltério, já
abreviado e reduzido a três salmos, os três mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos em que
está repartido o Rosário. Assim foi, e assim se vê claramente nos mesmos três salmos. Porque
o primeiro - que é o salmo oito - tendo por expositor a São Paulo, contém os mistérios da
Encarnação e infância do Salvador: Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem37. - O
segundo - que é o salmo oitenta - contém os mistérios da Cruz e da Redenção, representados
na do Egito: Ego sum Dominus Deus tuus, qui eduxi te de terra Aegypti 38. E o terceiro -que é
o salmo oitenta e três - contém os mistérios da Glória e da Ascensão: Beatus vir cujus est
auxilium abs te, ascensiones in corde suo disposuit in valle lachrymarum39.
547. Assim, pois, como os trabalhadores hebreus - que eram os fiéis daquele tempo -
no exercício dos seus lagares meditavam e cantavam o Saltério de Davi recopilado naqueles

37 Tu fizeste sair da boca dos infantes e dos que mamam um louvor perfeito (SI. 8,1).
38 Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito (Sl.80,11).
39 Bem-aventurado o varão que de ti espera socorro, que dispôs elevações no seu coração neste vale de lágrimas
(SI. 83,6).
140
três salmos, porque não podiam todo, ao mesmo modo vós, quando não possais rezar todo o
Rosário da Senhora, ao menos com parte das três partes em que ele se divide haveis de aliviar
e santificar o peso do vosso trabalho na memória e louvores dos seus mistérios. E este foi
finalmente o exemplo e exemplar que vos deixou Cristo nas três breves orações da sua Cruz.
Porque, se bem advertirdes, em todas três, pela mesma ordem do Rosário, se contêm os
mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos. Os gloriosos, na terceira, em que encomendou sua
alma nas mãos do Padre, partindo-se deste mundo para a glória: Pater, in manus tuas
commendo spiritum meum40. - Os dolorosos, na segunda, em que amorosamente queixoso
publicou a altas vozes o excesso das suas dores: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti
me41? E os gozosos, rogando pelos mesmos que o estavam pregando na Cruz, e alegando que
não sabiam o que faziam: Non enim sciunt quid faciunt42 - porque eles o crucificavam para o
atormentarem, e ele se gozava muito de que o crucificassem, como declarou São Paulo:
Proposito sibi gaudio, sustinuit crucem43.

§VIII

Entre todos os mistérios do Rosário devem os pretos ser mais particularmente devotos
dos que são mais próprios de seu estado, que são os mistérios dolorosos. Os mistérios
próprios do Discípulo amado. O primeiro preto cristão que houve no mundo nasceu para a fé
de Cristo debaixo do signo de sua Paixão. A tese e discreta definição de quem chamou a um
engenho de açúcar doce inferno. O que promete Davi aos pretos do engenho. A perfeição do
Rosário que se reza no céu depende das vozes dos pretos. Os mistérios mais próprios dos
senhores: os gozosos.

548. Resta o último e excelente documento de São João, também nova e segunda vez
nascido ao pé da cruz: e qual é este documento? Que entre todos os mistérios do Rosário
haveis de ser mais particularmente devotos dos que são mais próprios do vosso estado, da
vossa vida e da vossa fortuna, que são os mistérios dolorosos. A todos os mistérios dolorosos
- e não assim aos outros - se achou presente São João. Assistiu ao do Horto com os dois
discípulos; assistiu ao dos açoites com a Virgem Santíssima no Pretório de Pilatos; assistiu do
mesmo modo e no mesmo lugar à coroação de espinhos; seguiu ao Senhor com a Cruz às
costas até ao Monte Calvário; e no mesmo Calvário se não apartou do seu lado até expirar e
ser levado à sepultura. Estes foram os mistérios próprios do Discípulo amado, que, como a
dor se mede pelo amor, a ele competiam mais os dolorosos. Estes foram os seus, e estes
devem ser os vossos, e não só por devoção ou eleição, nem só por condição e semelhança da
vossa cruz, mas por direito hereditário, desde o primeiro etíope ou preto que conheceu a
Cristo e se batizou. É caso muito digno de que o saibais.
549. Apareceu um anjo a São Felipe diácono, e disse-lhe que se fosse pôr na estrada
de Gaza. Posto na estrada, tornou-lhe a aparecer, e disse-lhe que se chegasse a uma carroça
que por ali passava. Chegou, e viu que ia na carroça um homem preto - que era criado da
rainha de Etiópia - e ouviu que ia lendo pelo profeta Isaías. O lugar em que estava era aquele
famoso texto do capítulo cinqüenta e três, em que o profeta descreve mais claramente que
nenhum outro a Morte, Paixão e Paciência de Cristo: Tanquam ovis ad occisionem ductus est:
et sicut agnus coram tondente se, sine voce, sic non aperuit os suum, etc 44. - Perguntou-lhe o
40 Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito (Lc. 23,46)
41 Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste (Mt. 27,46)?
42 Porque não sabem o que fazem (Lc. 23,34).
43 Havendo-lhe sido proposto gozo, sofreu a cruz (Hebr. 12,2).
44 Como ovelha foi levado ao matadouro, e como cordeiro mudo diante do que o tosquia, assim ele
141
diácono se entendia o que estava lendo, e como respondesse que não, e lhe pedisse que lho
declarasse, foi tal a declaração que, chegando depois ambos a um rio, o etíope pediu ao santo
que o batizasse. E este foi o primeiro gentio depois de Cornélio Romano, e o primeiro preto
cristão que houve no mundo. Tudo nesta história, que é dos Atos dos Apóstolos, referida por
São Lucas, são mistérios. Mistério foi o primeiro aviso do anjo ao santo diácono, e mistério o
segundo; mistério que um gentio fosse lendo pela Sagrada Escritura, e mistério que
caminhando a fosse lendo; mistério que o profeta que lia fosse Isaías, e mistério sobre todos
misterioso que o lugar fosse da Paixão e Paciência de Cristo, porque, para dar ocasião ao
diácono de pregar a fé a um gentio, bastava que fosse qualquer outro. Pois, porque ordenou
Deus que fosse sinaladamente aquele lugar, em que se descrevia a sua paixão e os tormentos
com que havia de ser maltratado, e a paciência, sujeição e silêncio com que os havia de
suportar? Sem dúvida porque neste primeiro etíope tão antecipadamente convertido se
representavam todos os homens da sua cor e da sua nação que depois se converteram. Assim o
dizem São Jerônimo e Santo Agostinho, e aprovam com texto de Davi: Aethiopia praeveniet
manus ejus Deo45. E como a natureza gerou os pretos da mesma cor da sua fortuna: Infelix
genus hominum, et ad servitutem natum46 - quis Deus que nascessem à fé debaixo do signo da
sua Paixão e que ela, assim como lhes havia de ser o exemplo para a paciência, lhes fosse
também o alívio para o trabalho. Enfim, que de todos os mistérios da Vida, Morte e
Ressurreição de Cristo, os que pertencem por condição aos pretos, e como por herança, são os
dolorosos.
550. Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais exercitar, acompanhando
a Cristo neles, como fez São João na sua Cruz. Mas, assim como entre todos os mistérios do
Rosário estes são os que mais propriamente pertencem aos pretos, assim entre todos os pretos
os que mais particularmente os devem imitar e meditar são os que servem e trabalham nos
engenhos, pela semelhança e rigor do mesmo trabalho. Encarecendo o mesmo Redentor o
muito que padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas
dores às penas do inferno: Dolores inferni circumdederunt me47. - E que coisa há na confusão
deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais
quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de
quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno. E, verdadeiramente, quem vir na
escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que
estão saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o
incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que
soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as
caldeiras, ou lagos ferventes, com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando
escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover
para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite,
trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de
descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia,
não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de
inferno. Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e
meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em
harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos.
551. Grande texto de Davi. Estava vendo Davi essas mesmas fornalhas do inferno e

não abriu a sua boca, etc. (At. 8.32; Is. 53,7).


45 A Etiópia se adiantará para levantar as suas mãos a Deus (SI. 67,32).
46 Infeliz gente, nascida para a servidão (Mafeu).
47 Dores de inferno me cercaram (SI. 17,6).
142
essas mesmas caldeiras ferventes, e, profetizando literalmente dos que viu atados a elas,
escreveu aquelas dificultosas palavras: Si dormiatis inter medios cleros, pennae columbae
deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri48. Cleros quer dizer lebetes, ou, como
verte com maior propriedade Vatablo: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque plena
fulligine. - Diz, pois, o profeta: - Se passardes as noites entre as caldeiras, e entre esses
grandes vasos fuliginosos, e tisnados com e fumo e labaredas das fornalhas, que haveis de
fazer, ou que vos há de suceder? - Agora entra o dificultoso das palavras: Pennae columbae
deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri. -Penas e asas de pomba, prateadas por
uma parte e douradas por outra. - E que tem que ver a pomba com o triste escravo e negro
etíope, que entre todas as aves só é parecido ao corvo? Que tem que ver a prata e o ouro com
o cobre da caldeira e o ferro da corrente a que está atado? Que tem que ver a liberdade de uma
ave com penas e asas para voar com a prisão do que se não pode bolir dali por meses e anos, e
talvez por toda a vida? Aqui vereis quais são os poderes e transformações que obra o Rosário
nos que oram e meditam os mistérios dolorosos.
552. A pomba na Sagrada Escritura, como consta de infinitos lugares, não só é
símbolo da oração e meditação absolutamente, senão dos que oram e meditam em casos
dolorosos; por isso el-rei Ezequias nas suas dores dizia: Meditabor ut columba49. - E a razão
desta propriedade, e semelhança é porque a pomba com os seus arrulhos não canta como as
outras aves, mas geme. Quer dizer pois o profeta, e diz admiravelmente, falando convosco na
mais miserável circunstância deste inferno da terra: Si dormiatis inter medias caldarias,
vasaque plena fulligine - se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras
com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar
um passo, nem por isso vos desconsoleis e desanimeis: orai e meditai os mistérios dolorosos,
acompanhando a Cristo neles, como São João, e nessa triste servidão de miserável escravo
tereis o que eu desejava sendo rei, quando dizia: Quis dabit mihi pennas sicut columbae, et
volabo, et requiescam (SI. 54, 7): Oh! quem me dera asas como de pomba para voar e
descansar? - E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio desta miséria: Pennae
columbae deargentatae, et posteriora ejus in pallore ouri - porque é tal a virtude dos
mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam gemendo como
pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o
trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em anjos.
553. Dizei-me que coisa é um anjo? Os anjos não são outra coisa senão homens com
asas, e esta figura não lha deram os pintores, senão o mesmo Deus, que assim os mostrou a
Isaías e assim os mandou esculpir no Templo. Pois, essas são as asas prateadas e douradas
com que desse vosso inferno vos viu Davi voar ao céu para cantar o Rosário no mesmo coro
com os anjos. Nem vos meta em desconfiança a vossa cor nem as vossas fornalhas, porque na
fornalha de Babilônia, onde o mestre da capela era Filho de Deus, no mesmo coro meteu as
noites com os dias: Benedicite, noctes et dies, Domino50. Antes vos digo - e notai muito isto
para vossa consolação - que se no céu não entraram vossas vozes com as dos anjos o Rosário
que lá se canta não seria perfeito. Consta de muitas revelações e visões de santos que os anjos
no céu também rezam ou cantam o Rosário, por sinal que ao nome de Maria fazem uma
profunda inclinação, e ao nome de Jesus se ajoelham todos; e digo que, entrando vós no
mesmo coro, será o Rosário dos anjos mais perfeito do que é sem vós, porque a perfeição do
48 Na versão clássica do Pe. Antônio Vieira de Figueiredo: - Se dormirdes entre o meio das sortes (herdades)
sereis como as penas das pombas, argentadas, e os remates do lombo dela em amarelidão de ouro (Sl.67, 14). –
Segundo a nova tradução latina dos Salmos, o sentido é este: Enquanto descansáveis no meio dos redis, as asas
das pombas brilhavam como prata, e as suas penas com a amarelidão do ouro.
49 Gemerei como a pomba (Is. 38,14).
50 Noites e dias, bendizei o Senhor (Dan. 3,71).
143
Rosário consiste em se conformar quem o reza com os mistérios que nele meditam, gozando-
se com os gozosos, doendo-se com os dolorosos e gloriando-se com os gloriosos. E posto que
os anjos nos gozosos se podem gozar, e nos gloriosos se podem gloriar, nos dolorosos não se
podem doer, porque o seu estado é incapaz de dor. Isto, porém, que eles não podem fazer no
céu, fazeis vós na terra, se no meio dos trabalhos que padeceis, vos doeis mais das penas de
Cristo que das vossas. Assim que do Rosário dos anjos, e do vosso, ou repartidos em dois
coros, ou unidos em um só, se inteira a perfeição, ou se aperfeiçoa a harmonia dos mistérios
do Rosário.
554. Os dolorosos - ouçam-me agora todos - os dolorosos são os que vos pertencem a
vós, como os gozosos aos que, devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores.
Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles
gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não
há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois
como as abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis, apes51. - O mesmo
passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel sim, mas não para si. E, posto que os
que o logram é com tão diferente fortuna da vossa, se vós, porém, vos souberdes aproveitar
dela, e conformá-la com o exemplo e paciência de Cristo, eu vos prometo primeiramente que
esses mesmos trabalhos vos sejam muito doces, como foram ao mesmo Senhor: Dulce
lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera - e que depois - que é o que só importa - assim
como agora, imitando a São João, sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua
cruz, assim o sereis nos gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão. Não é promessa minha,
senão de São Paulo, e texto expresso de fé: Haeredes quidem Dei, cohaeredes outem Christi:
si tamen compatimur ut et conglorificemur52. - Assim como Deus vos fez herdeiros de suas
penas, assim o sereis também de suas glórias, com condição, porém, que não só padeçais o
que padeceis, senão que padeçais com o mesmo Senhor, que isso quer dizer com patimur. Não
basta só padecer, mas é necessário padecer com Cristo, como São João.
555. Oh! como quisera e fora justo que também vossos senhores consideraram bem
aquela conseqüência: Si tamen compatimur ut et conglorificemur. - Todos querem ir à glória e
ser glorificados com Cristo, mas não querem padecer nem ter parte na cruz com Cristo. Não é
isto o que nos ensinou a Senhora do Rosário na ordem e disposição do mesmo Rosário.
Depois dos mistérios gozosos pôs os dolorosos, e depois dos dolorosos os gloriosos. Por quê?
Porque os gostos desta vida têm por conseqüência as penas, e as penas, pelo contrário, as
glórias. E se esta é a ordem que Deus guardou com seu Filho e com sua Mãe, vejam os demais
o que fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas do que vós aos
seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai, pois, ao Filho e à Mãe de Deus, e
acompanhai-os com São João nos seus mistérios dolorosos, como próprios da vossa condição
e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e gloriosa na outra. No céu cantareis os
mistérios gozosos e gloriosos com os anjos, e lá vos gloriareis de ter suprido com grande
merecimento o que eles não podem, no contínuo exercício dos dolorosos.

§IX

Peroração: assim como a Senhora se gloria de ser Mãe de Cristo, e, depois dele, de
ser Mãe de São João, assim também se gloria de ser Mãe de todos os pretos seus devotos.

51 Assim vós, abelhas. produzis o mel, porém não para vós (Virgil.).
52 Herdeiros verdadeiramente de Deus, e co-herdeiros de Cristo, se é que todavia nós padecemos com ele, para
que sejamos também com ele glorificados (Rom. 8, 17).
144
556. Estes são, devotos do Rosário, os três motivos que nascem dos três nascimentos
que vistes, os quais, se forem tão bem exercitados, como são bem nascidos, nem podeis
desejar maior honra nos vossos desprezos, nem maior alívio nos vossos trabalhos, nem maior
dita e ventura na vossa fortuna. A mesma Mãe do Filho de Deus e de São João é Mãe vossa.
E, pois, estes três filhos já nascidos lhe nasceram segunda vez ao pé da cruz, não falteis na
vossa, posto que tão pesada, nem à imitação de tão honrados irmãos, nem às obrigações de tão
soberana Mãe. Para que assim como a Senhora se gloria de ser Mãe de São João, assim tenha
também muito de que se gloriar em ser Mãe de todos os pretos, tão particularmente seus
devotos. Desta maneira se multiplicou por vários modos o segundo nascimento de seu
unigênito Filho, e desta maneira se verifica em eterno louvor de seu Santíssimo Nome, que o
mesmo Jesus que se chama Cristo, não só uma, senão três vezes nasceu de Maria: Maria, de
qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

SERMÃO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO


COM O SANTÍSSIMO SACRAMENTO EXPOSTO

No Sábado da infra Octavam Corporis Christi, e na hora em que todas as tardes se


reza o Rosário na Igreja do Colégio da Companhia de Jesus do Maranhão, e nos sábados se
conta um exemplo da mesma devoção, ano de 1654.

Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis1.

§1

O Livro dos Cantares, descrição metafórica do corpo místico da Igreja Católica. A


original significação da palavra liliis. O trigo do Sacramento circundado pelo círculo do
Rosário. Argumento do presente sermão: que conveniência ou proporção tem o Rosário com
o Sacramento, e que utilidades poderão conseguir os que unirem entre si estas duas grandes
devoções.

204. Naquele misterioso livro, chamado vulgarmente dos Cantares, descreve Salomão,
em alto e metafórico estilo, o corpo místico da Igreja Católica. E, discorrendo particularmente
por todos os membros e partes de que se compõe, com louvor da formosura e declaração do
ofício de cada um, chega finalmente àquela oficina universal, onde se recebe o alimento, e,
convertido em sangue, se reparte por todo o corpo, e diz que o ventre da Igreja é semelhante a
um monte de trigo, cercado ou valado de rosas: Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis.
- Este é o próprio e natural sentido do texto que propus, no qual posto que a palavra liliis
parece que soa e quer dizer lírios, entendida, porém, como se deve entender na sua original
significação, é certo que significa rosas. Assim o prova larga e eruditamente, em tratado
particular desta matéria, Túcio Lucense, e se confirma de outros dois lugares do mesmo livro.
O primeiro, no capítulo quinto, onde a Esposa santa, descrevendo as feições do seu Esposo, e
encarecendo sua gentileza, diz: Labia ejus lilia2. - E claro está que lhe não havia de louvar o
engraçado da boca por ter os beiços brancos como lírios, senão encarnados como rosas, em
correspondência do que o mesmo Esposo tinha louvado nos seus: Sicut vitta coccinea labia
1 O teu ventre é como um monte de trigo cercado de açucenas - ou rosas - como traduz Vieira (Cânt. 7,2).
2 Os seus lábios são uns lírios (Cânt. 5,13).
145
tua3. O segundo lugar ainda é mais expresso no capítulo segundo: Sicut lilium inter spinas4.
-E a flor que nasce entre espinhas, quem pode duvidar que é a rosa, e não o lírio? Assim o
comenta no mesmo verso a lição e exposição caldaica, dizendo: Comparata sum rosae, quae
inter spinas germinat5. - Quanto mais que o nosso mesmo texto o significa bem claramente,
porque, havendo de servir estas flores de cercado ou valado ao trigo: Vallatus liliis - mal o
podia defender a sebe dos lírios, que são flores inocentes e desarmadas. As rosas, pelo
contrário, sim, as quais, como nasceram para rainhas das flores, desde logo lhes deu a
natureza os espinhos, como por archeiros e guardas da majestade, por onde disse Boécio:
Armat spina rosam6. - E assim como esta as guarda e defende a elas, podia também cercar e
defender o trigo.
205. Suposta esta propriedade, em que só podia haver alguma dúvida, ninguém duvida
que o trigo no ventre da Igreja é o diviníssimo Sacramento do Altar, do qual ela
sobrenaturalmente se alimenta, como de pão de vida, e por meio do qual comunica os
espíritos vitais e os reparte a todos os membros de seu corpo, que são os fiéis católicos, dos
quais tinha dito muito antes o profeta Oséias: Vivent tritico7. - Nem também se pode duvidar
que as rosas que cercam o trigo sejam as do Rosário, pois os mesmos Rosários que trazemos
nas mãos fazem um círculo perfeito, e os mistérios de que o Rosário se compõe, outro círculo.
Assim o notou o profeta Davi, quando disse: A summo caelo egressio ejus, et occursus ejus
usque ad summum ejus8. - Começa o Rosário no céu, donde saiu o Filho de Deus pelo
mistério da Encarnação, e, dando volta por toda a sua vida e morte, torna a acabar no mesmo
céu pelo mistério de sua gloriosa Ascensão, fazendo circularmente um novo e maravilhoso
zodíaco, de melhores constelações e mais formosas figuras das que visita e alumia o Sol na
volta que dá ao mundo. E porque a Virgem, Senhora nossa, foi a autora e inventora deste
misterioso círculo -em cujos mistérios todos teve tanta parte - por isso diz e se gloria de ser
ela a que com seus passos andou e aperfeiçoou o mesmo círculo: Gyrum caeli circuivi sola9.
206. Sendo, pois, o trigo do nosso texto o Santíssimo Sacramento, e as rosas que o
cercam o santíssimo Rosário, muita razão terá a devoção de todos os que com tanta piedade se
ajuntam aqui nesta hora ao rezar ou cantar a coros; muita razão, digo, terá de querer ouvir e
saber que conveniência ou proporção tem o Rosário com o Sacramento, e que utilidades
poderão conseguir os que unirem entre si estas duas grandes devoções, a de freqüentar o
Sacramento e a de rezar o Rosário. Para eu o poder declarar com o proveito de nossas almas,
que desejo e espero, no diviníssimo Sacramento temos a fonte da graça, e na Senhora do
Rosário a melhor intercessora. Ave Maria.

§II

As almas que não se aproveitam do Sacramento são como as sete vacas magras do
sonho de Faraó, pastando nas margens verdes do Rio Nilo. A falta de digestão dos que assim
comungam. Razões filosóficas e teológicas por que Cristo, depois da Ressurreição, comia
como se não comera. Mistério da comparação quase imprópria de Salomão. O Rosário,
remédio eficaz para a cura de nossa debilidade.

3 Os teus lábios são como uma fita de escarlate (Cânt. 4,3).


4 Bem como é a açucena entre os espinhos (Cânt. 2,2).
5 Fui comparada à rosa, que nasce entre espinhos.
6 Os espinhos defendem a rosa (Boécio).
7 Viverão de trigo (Os. 14,8).
8 A sua saída é desde uma extremidade do céu, e corre até à outra extremidade dele (SI. 18,7).
9 Eu só fiz todo o giro do céu (Eclo. 24,8).
146
Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis (Cânt. 7,2).

207. Maravilhosa foi a visão que teve em sonhos Faraó, rei do Egito, quando viu
aquelas catorze vacas, sete das quais eram fortes, corpulentas e pingues, e as outras sete
fracas, secas e macilentas. E o que muito acrescentava a razão da maravilha, e ainda do temor
que concebeu o rei, foi que todas pastavam nos mesmos campos e ribeiras do Rio Nilo, e
essas não secas, mas verdes: Et pascebantur in ipsa amnis ripa in locis virentibus10. - O Nilo
da Igreja Católica é a graça divina. Esta graça, como o mesmo Nilo, se divide em sete canais,
que são os sete sacramentos, por meio dos quais, como por sete bocas, se comunica a nossas
almas. O Sacramento, porém, entre as demais que particularmente as sustenta, é o Santíssimo
Sacramento do Altar, verdadeiro corpo e verdadeiro sangue de Cristo, que temos presente. E
que grande admiração, fiéis, que grande admiração, que grande confusão, e que grande temor
nos deve causar olhar para as almas que se sustentam daquele pasto divino, e ver a notável
diferença delas? Não falo das que chegassem à Comunhão em consciência de pecado, porque
não quero supor tão horrendo e atroz sacrilégio; falo só das almas cristãs - que as outras não
merecem este nome - e das que a seu parecer comungam cristãmente. Quantos leigos
comungam muitas vezes, quantos sacerdotes celebramos todos os dias, e onde estão aqueles
efeitos de Cristo se transformar em nós e nós em Cristo: In me manet, et ego in illo11? -
Grande bem do mundo seria, e grande glória da Igreja, se de cada catorze almas que chegam
ao Sacramento, fossem sete as que se aproveitassem do pasto, e se luzisse nelas; mas todas,
pela maior parte, cheias de imperfeições e misérias, todas fracas, todas secas, todas
macilentas, e ainda, e como diz o texto, tais que faz asco olhar para elas: Foedae confec-
taeque macie12.
208. Ora, eu buscando a causa desta diferença tão notável, e qual possa ser o defeito
ou impedimento porque se não logram, e luzem em nós os efeitos deste soberano manjar, acho
que, sem consciência de pecado, a causa não pode ser outra, senão a falta de digestão.
Comemos a Cristo no Sacramento, mas não o digerimos. Cristo, Senhor nosso, disse que o seu
santíssimo corpo no Sacramento é verdadeira comida: Caro mea vere est cibus (Jo. 6,56).- E
por quê? Não só porque foi instituído para alimento de nossas almas, senão também porque
no modo de as alimentar tem as mesmas propriedades do mantimento corporal; e o
mantimento corporal, que se come, e não se digere, por mais substancial e esquisito que seja,
não faz nutrição, nem se converte em substância. Lá diz o aforismo vulgar da medicina: Non
quod ingeritur, sed quod digeritur: que o que alimenta, nutre, oumenta e dá forças e vigor ao
vivente, não é o comer que ele toma na boca e recebe dentro em si, senão o que digere. - No
mesmo corpo Santíssimo de Cristo, Senhor nosso, temos o exemplo.
209. Depois de ressuscitado o Senhor para prova de que era o mesmo, e que
verdadeiramente estava vivo, comeu muitas vezes com seus discípulos. Comeu com eles no
mesmo dia da Ressurreição, como diz S. Lucas (Lc. 24,43). Comeu com eles na praia do mar
de Tiberíades, como diz São João (Jo. 21,9). Comeu com eles outras muitas vezes em
Galiléia, de que faz menção São Pedro (At. 10, 41). E, finalmente, comeu com eles no último
dia, em que se despediu e subiu ao céu, como se lê nos Atos dos Apóstolos: Et convescens,
praecepit eis ab Ierosolymis ne discederent13. Daqui se infere, ou parece se pode inferir, que
Cristo, Senhor nosso, tem hoje no céu mais carne e mais sangue do que tinha quando
ressuscitou, e, por conseqüência, que no Santíssimo Sacramento recebemos também mais

10 Pastavam na mesma ribanceira do rio, nuns lugares cheios de erva (Gên. 41,3).
11 Esse fica em mim, e eu nele (Jo. 6,57).
12 Desfiguradas e consumidas de magreza (Gên. 41,3).
13 E comendo com eles, lhes ordenou que não saíssem de Jerusalém (At. 1,4).
147
carne e mais sangue daquele que o Senhor consagrou na Ceia. Assim o ensinou Durando 14,
mas falsa, e erroneamente, porque a humanidade sagrada de Cristo nenhuma coisa cresceu
nem diminuiu da substância ou quantidade corporal que tinha antes de morrer e depois de
ressuscitar, mas sempre conservou a mesma inteireza perfeitíssima da idade natural a que
tinha chegado. Pois, se Cristo depois de ressuscitado comeu, e comeu tantas vezes, e o comer
primeiro se converte em sangue, e depois em carne, como não cresceu nem se aumentou a
carne e o sangue da sagrada humanidade, nem a substância corporal do mesmo Cristo recebeu
nutrimento ou acrescentamento algum? A razão é, como ensina a verdadeira teologia com
Santo Tomás15, por que, ainda que Cristo comia depois de ressuscitado e glorioso, não digeria
o que comia. Para haver nutrição é necessário que haja digestão; e para haver digestão e
nutrição é necessário que o corpo seja alterável e passível. E como o corpo ressuscitado e
glorioso de Cristo era impassível e inalterável, por isso, ainda que comia, não digeria o comer,
nem se nutria com ele.
210. Esta é a razão filosófica e teológica por que Cristo naquele estado comia como se
não comera. E o mesmo sucede a nossas almas. Assim como a corpo de Cristo ressuscitado
comia os nossos manjares, e não se nutria nem aumentava com eles, porque os não digeria,
assim nós comemos o corpo do mesmo Cristo, e não se logram em nossas almas os efeitos de
tão soberana comida, porque a não digerimos. Não sem mistério se compara o divino
Sacramento no nosso texto a trigo em monte, e não na eira, senão no ventre: Venter tuus sicut
acervus tritici. - E qual é o mistério desta que parece impropriedade? O mistério é porque
muitas vezes, depois de entrar aquele divino pão no interior de nossas almas, está tão longe de
se digerir, como se ainda estivera em trigo. E por isso mesmo está em monte: sicut acervus -
porque uma comunhão sobre outra comunhão feitas deste modo, fazem monte, mas não fazem
nutrição. A nutrição é aquela que reparte por todas as veias e membros do corpo a substância
e virtude do que se come. - E o mesmo faz aquele soberano manjar - diz São Pedro Damião -
quando se recebe, não só no peito do corpo, senão no estômago da alma, e nele se digere: Hae
epulae, et mentis nos trae stomachum suaviter replent, et ad praebendas vires per omnium se
venarum poror effundunt16: Este soberano manjar é néctar do céu - diz o santo - não só se
recebe com grande suavidade no estômago da alma, mas dali se difunde por todas as veias, e
reparte e comunica a todos os membros do nosso corpo a virtude e virtudes do corpo, e
membros de Cristo, que, na substância e realidade do que comemos, se encerra. - Nos olhos
do que assim comunga aparece logo a modéstia dos olhos de Cristo; na língua, o silêncio, e
moderação das palavras de Cristo; no coração, os afetos do coração de Cristo; nos pés, a
compostura e madureza dos passos de Cristo; nas mãos a inocência, a mansidão e a caridade
das ações de Cristo; e, finalmente, em todo o homem que comeu a Cristo. E qual é a razão,
cristãos, por que muitos de nós, depois de comungarmos uma e muitas vezes, se não vêm os
mesmos efeitos, senão outros, tão diversos e totalmente contrários? A razão é, como dizia,
porque comemos no Sacramento a Cristo, mas não o digerimos: Ingeritur, sed non digeritur.
211. Suposta, pois, esta falta de digestão, com que a maior providência de Cristo em
prover de tão sobrenatural mantimento a República de sua Igreja, por culpa e negligência
nossa, se tem feito inútil, ou quase inútil, como o mesmo Senhor se queixava por boca de
Davi, quando disse: Quae utilitas in sanguine meo, dum descendo in corruptionem17? - E,
suposto que pela mesma falta se vêem as nossas almas tão macilentas e desmedradas, e sem
aquela nutrição e aumentos de espírito, que lhe prometeu Isaías, quando nos exortava a comer

14 Durandus in 4 dist. II. q. 4 ex censura Suarii.


15 Suar. Disp. 47, sect 5.
16 Petr. Dom. opusc. 12, c. 33.
17 Que proveito há no meu sangue, se desço à corrupção (Sl.29,10)?
148
no divino Sacramento toda a substância do sumo bem: Comedite bonum, et delectabitur in
crassitudine anima vestra18 - haverá quem dê algum remédio eficaz à nossa debilidade e
fraqueza, com que suprir esta falta de digestão tão importante? E assim como da parte de
Cristo temos sempre pronta o Maná de seu santíssimo corpo para o comer, tenhamos também
da nossa parte a força e vigor necessário para o digerir?
212. Bendito seja, e para sempre bendita, a gloriosíssima Mãe de Deus, que assim
como deu a seu Filho a carne e sangue, de que compôs esta soberana iguaria, assim também,
compadecida de nossa fraqueza, nos proveu de um remédio tão fácil como eficaz para a
inteira e perfeita digestão dela. Esta é, devotos da Virgem Santíssima, a devoção a que tantas
vezes vos tenho exortado neste dia seu, esta a que hoje mais particularmente vos venha
inculcar em nome da mesma Senhora, e esta, finalmente, a proporção e conveniência
admirável que têm entre si o Santíssimo Sacramento e o santíssimo Rosário. Sabeis que faz a
devoção do Rosário junta com a comunhão do Sacramento? Faz que se digira em uma tudo o
que se come na outra, porque o mesma Cristo, que no Sacramento se come, no Rosário se
digere. Isto é o que vos quero provar e persuadir hoje.

§III

O Sacramento, Rosário indigesto; o Rosário, Sacramento digerido. Propriedade do


termo acervus. Um panegírico a Maria Santíssima, autora e inventora do Rosário, nos versos
de Virgílio. Digerir e distinguir os coisas é obra de ânimo verdadeiramente divino. A notável
e singular proposição de São Zeno Veronese: Este é o nosso Deus, o qual se digeriu em
Deus. - Razão interior da diferença de fé entre hebreus e cristãos: enquanto Deus se deu
indigesto, não o puderam digerir os homens; porém, depois que se deu digesto, logo o
digeriram. Por que partiu o Senhor no Sacramento o pão que não era pão.

213. Digo, pois, primeiramente, que o Sacramento é o Rosário indigesto, e o Rosário é


o Sacramento digerido. O Sacramento é o Rosário indigesto, porque no Sacramento estão
todos os mistérios da Redenção reduzidas a um só mistério; e o Rosário é o Sacramento
digerido, porque no Rosário está o mesmo mistério da Redenção dividido e estendido em
quinze mistérios. No Sacramento está o Rosário indigesto, porque o corpo de Cristo, que ali
está realmente, está vivo, está morto e está ressuscitado, sem distinção; e no Rosário está o
Sacramento digerido, porque enquanto Cristo vivo, está a sua vida distinta em cinco mistérios,
que são os gozosos; enquanto morto, está a sua morte distinta em outras cinco mistérios, que
são os dolorosos; e enquanto ressuscitado, está a sua ressurreição distinta em outros cinco,
que são os gloriosos. E esta é a razão por que o mesmo Sacramento, quando se consagra e
oferece a Deus no sacrossanto Sacrifício do Altar, umas vezes se chama mistério e outras
mistérios. Mistério, porque indigesto, e sem distinção é um só mistério; mistérios, porque
digesto, e distintamente considerado, é e encerra em si muitos mistérios.
214. E por que não faça dúvida ou estranheza dizer que no Sacramento está Cristo
indigesto, essa é a propriedade e energia maravilhosa com que o nosso mesmo texto chamou
ao Sacramento acervo: Sicut acervus tritici. - Acervo propriíssimamente quer dizer coisa
indigesta. E porque esta propriedade consiste na significação natural da palavra, ouçamos a
um dos melhores autores da mesma língua, o qual, com entusiasmo poético, não só parece que
declarou o mistério do nosso texto, mas sobre o significado dele fez juntamente um panegírico
a Maria Santíssima, enquanto autora e inventora do Rosário. Os versos são estes:
18 Comei do bom alimento, e a vossa alma se deleitará com o suco nutritivo dele (Is. 55,2).
149

Non digesta pati, nec acervo condita rerum,


Sed manifesta notis certa disponere sede
Singula, divini est animi19.

Quer dizer: não consentir que as coisas grandes estejam indigestas, nem escondidas ou
amontoadas na confusão de um acervo, mas descobri-las e manifestá-las com diferença e
distinção de nomes, e pôr cada uma delas em seu próprio lugar, tal obra como esta é de ânimo
verdadeiramente divino. - Duas particularidades notáveis contém esta judiciosa sentença. A
primeira, que as coisas postas em acervo estão indigestas: Non digesta pati, nec acervo
condita rerum. - E por isso eu digo que Cristo no Sacramento está indigesto, porque os
mistérios da sua vida, morte e ressurreição, que ali se contêm, não estão repartidos e digestos,
senão juntos indistintamente, e acumulados, como diz o texto, em um acervo: Sicut acervus
tritici.
215. A segunda particularidade é que distinguir e repartir esse mesmo acervo, e digerir
essas coisas indigestas, e pôr cada uma em seu próprio lugar, com notas ou nomes certos que
as demonstrem, é obra de ânimo divino: Sed manifesta notis certa disponere sede singula,
divini est animi. - E isto é o que fez a Virgem, Senhora nossa, na maravilhosa arquitetura do
seu Rosário, dispondo e ordenando os mistérios da mesma vida, morte e ressurreição de seu
Filho, e distinguindo a diferença deles com as notas e nomes diversos de gozosos, dolorosos e
gloriosos, e pondo uns no primeiro, outros no segundo, outros no terceiro lugar, assim como
sucederam e se foram continuando, e todos em número e correspondência igual, para maior
harmonia de toda a fábrica.
216. Agora vede como digerir deste modo o indigesto é obra verdadeiramente de
ânimo divino: Divini est animi. - A primeira obra da divindade, ou a primeira obra divina em
que Deus mostrou sua sabedoria e onipotência foi a criação do universo20. E como criou Deus
este mundo? Primeiro o criou todo, mas indigesto, e depois o digeriu e foi distinguindo por
partes, até que ficou consumado e perfeito. Primeiro o criou todo e indigesto, porque primeiro
criou de nada aquela matéria universal, de que depois foram eduzidas e geradas entre o céu e
a terra todas as criaturas corpóreas, a qual matéria, bem que de algum modo já informada,
porque ainda estava confusa e indistinta, mais por fama que por fé, chamaram os antigos rude
e indigesta: Rudis indigestaque moles21. - E depois digeriu Deus este mesmo todo, porque,
dividido em várias partes, e ordenada e ornada cada uma delas com o lugar e perfeição, que
naturalmente lhe convinha, então ficou o mesmo universo, não só tão formoso e admirável
como o vemos, mas tão útil e necessário à conservação do gênero humano, como
experimentamos e gozamos. A mesma luz criada desde seu princípio em um globo informe e
indigesto, também a digeriu Deus depois, repartida em Sol, Lua e estrelas; e a mesma vida,
que com nome de espírito se movia escuramente sobre os abismos, também a digeriu em três
vidas, vegetativa nas plantas, sensitiva nos animais, racional no homem. E, posto que nesta
vida e nesta luz, primeira indigesta e depois digerida, em três partes se nos oferecia uma boa e
duplicada semelhança para o que dizíamos de Cristo no Sacramento, que é o pão de vida e a
luz dos homens: In ipso vita erat, et vita erat lux hominum22 - para mostrar a divindade desta
obra, ou o divino do ânimo de Maria - divini est animi - ainda havemos de subir mais alto.
217. São Zeno Veronense23 falando de Deus, não fora de si, como criador, mas dentro
19 Virgil. Aesth.
20 Ita Aug. lib de Gen. ad lit.
21 Ovid. Metamorph.
22 Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens (Jo. 1.4).
23 Zeno Veron. lib. 5, Serm. 5.
150
de si mesmo, como incriado, disse uma proposição singular e muito notável, cuja inteligência
tem fatigado variamente os doutores modernos, e, posto que estes lhe tenham dado muitos
sentidos, ainda se deseja o próprio e verdadeiro. A proposição é esta: Hic est Deus noster, qui
se digessit in Deum24: Este é o nosso Deus, o qual se digeriu em Deus. - Se Deus se digeriu a
si mesmo, e digeriu em Deus, logo havemos de supor e considerar a Deus já indigesto, já
digesto: indigesto antes de se digerir, e digesto depois que se digeriu. Mas que digestão e
indigestão é ou pode ser esta, que caiba e se ache em Deus, e em Deus, não fora da sua
divindade, senão dentro, nem em tempo, senão ab aeterno? Eu acho que o santo padre na
proposição falou como tão teólogo, na frase como tão eloqüente, e na metáfora, como quem
nos quis declarar com ela o que expressamente ensina a fé, e o entendimento não alcança,
senão escuramente. Não cremos todos que Deus é trino e uno? Sim. Pois enquanto uno está
Deus indigesto, e enquanto trino, digesto. Enquanto uno está indigesto, porque com ser Deus
uma essência imensa e infinita, é um ato puríssimo e simplicíssimo, sem divisão ou distinção
alguma; e enquanto trino está digesto, porque esse mesmo ato puríssimo e simplicíssimo, sem
perder nada da sua unidade, se distingue realmente em três pessoas, tão opostas entre si que
nem a primeira é a segunda, nem a segunda é a terceira, nem a terceira é a primeira ou a
segunda. E quando fez Deus de si e em si mesmo esta digestão, ou como a fez? Quando ab
aeterno, e sem princípio nem antecedência, o Padre gerou o Filho, e o Padre e o Filho
produziram o Espírito Santo; e, multiplicado Deus por este modo inefável em três pessoas
distintas, o mesmo Deus, que estava indigesto e indistinto na unidade divina, ficou digesto e
distinto na multiplicação da Trindade.
218. Nesta forma se verifica metaforicamente, mas com excelente propriedade, que
Deus se digeriu em Deus: Deus noster se digessit in Deum - porque se digessit in Deum
Patrem, se digessit in Deum Filium, se digessit in Deum Spiritum Sanctum. - E se Deus se
digeriu a si mesmo, distinguindo a sua divindade, e multiplicando a sua unidade em três
pessoas por que não faria a Mãe de Deus outra obra semelhante em Cristo sacramentado,
digerindo os mistérios de sua humanidade, na ardem e divisão de outras três partes distintas?
Santo Ambrósio, comentando o nosso texto, diz que o trigo e as rosas ambas foram partos da
Virgem Santíssima: In Virginis utero simul acervus tritici et lilii floris gratia germinabat,
quoniam et granum tritici generabat et lilium25. - Ao trigo deu a Senhora, como Mãe, a
matéria, e às rosas, também como Mãe, a forma. Ao trigo deu a matéria, porque deu a Cristo a
carne e sangue de que instituiu o Sacramento; e às rosas deu a forma, porque dos mistérios da
vida, morte e ressurreição do mesmo Cristo formou e distinguiu o Rosário. Isso quer dizer
vallatus liliis - porque os valos não só se fizeram para cercar, senão também para dividir e
distinguir. Formou a Senhora um valo de rosas entre os mistérios gozosos e dolorosos, formou
outro valo entre os dolorosos e gloriosos, e distintos e divididos assim, ficaram de tal modo
digestos, que nós também os pudéssemos digerir nesta unidade e trindade humana, assim
como se experimentou na divina.
219. Deus não só se digeriu ab aeterno, senão também em tempo, segundo a menor ou
maior distinção e clareza, com que se deu a conhecer aos homens. Na lei velha só revelou
Deus expressamente ao povo de Israel a sua unidade, segundo aquele texto do Deuteronômio:
Audi, Israel, Dominus Deus noster Dominus unus est26. - E diga ao povo; porque Abrão,
Moisés, Davi, e os outros patriarcas e profetas também tiveram conhecimento e fé explícita do
mistério da Trindade, porque conheceram a Encarnação do Filho de Deus por obra do Espírito
Santo, a qual se não podia conhecer sem se conhecerem também as três divinas pessoas.

24 Celada, Escobar, et alii.


25 Ambros. de Instit. Virg. cap. 4.
26 Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor (Dt. 6,4).
151
Porém, na lei da graça e ao povo cristão de tal maneira lhe revelou Deus o mesmo mistério da
Trindade, e com tal clareza e distinção, que esse é o primeiro princípio de nossa fé, tão
comum e vulgar a todos, que desde o batismo, em que começamos a ser cristãos, o
confessamos: Baptizantes eos in nomine Patris, et Flii, et Spiritus Sancti27. - Suposta esta
diferença, caso é digno de grande admiração e reparo, que o povo de Israel, enquanto durou
aquela lei, nunca jamais se aquietasse, nem estivesse firme na fé da unidade de Deus,
idolatrando sempre, e crendo em muitos deuses, e que o povo cristão, pelo contrário, sem
retroceder nem vacilar, esteja firmíssimo na fé da unidade e Trindade do mesmo Deus, crendo
juntamente que em Deus há três pessoas, cada uma delas Deus, e que esse Deus é um só, e
não três deuses. Conhecer que Deus é um só é coisa tão clara, que até os filósofos gentios o
alcançaram e demonstraram; pelo contrário, crer que o mesmo Deus, sendo um em essência,
seja juntamente trino em pessoas, é coisa tão superior a todo o entendimento criado que, ainda
que haja razões para persuadir que não repugna, nenhuma há, nem pode haver; que convença,
nem demonstre, que assim é, nem como é. Pois, se o povo cristão crê tão pronta e
constantemente - o que é tão sobrenatural e dificultoso, como o povo hebreu não cria nem se
quietava com o que era tão natural e tão fácil? A razão interior desta diferença, sendo uns e
outros homens racionais, e uns e outros com lume de fé, ninguém haverá que a dê cabalmente,
porque é reservada só a Deus; mas o que a nós nos ensina e demonstra a evidência
experimental, é que enquanto Deus se deu indigesto, não o puderam digerir os homens;
porém, depois que se deu digesto, logo o digeriram. Já vimos que Deus enquanto uno era
indigesto, e enquanto trino digesto. E enquanto Deus se deu assim indigesto àquele povo, era
tão dificultoso de digerir; que mais facilmente digeriam paus, e pedras, quais eram os deuses
por que deixavam ao verdadeiro Deus. Porém, depois que se deu digesto, nas três pessoas da
Santíssima Trindade, de tal maneira o abraçam e digerem, e convertem na própria substância
as almas cristãs, que antes perderão mil vezes a vida que duvidar da verdade deste altíssimo
mistério, quanto mais negá-lo.
220. Na fé do divino Sacramento, por mercê de Deus, nenhum de nós duvida; mas
quanto aos efeitos da nutrição espiritual, para que foi instituído, a mesma diferença que se
experimentou em Deus se experimenta igualmente em Cristo, ou indigesto ou digerido. Ouvi
uma sentença de São Jerônimo, milagrosa a este intento. Naquele famoso milagre dos cinco
pães fez Cristo, Senhor nosso, um como ensaio do que depois havia de fazer na consagração
de seu corpo: do primeiro diz São Mateus: Benedixit, et fregit, et dedit discipulis panes28. E
do segundo, o mesmo São Mateus: Accepit panem, et benedixit, ac fregit, deditque
discipulis29. – Que o Senhor no primeiro caso partisse o pão, assim era necessário, porque
partido se havia de multiplicar e repartir à multidão de tanta gente; mas Cristo no Sacramento
não se parte: Non confractus, non divisus, integer accipitur30 pois por que partiu aqui o
Senhor o que já não era pão, assim como lá partiu o pão? Porque, ainda que Cristo no
Sacramento se não parte, para nós o havermos de digerir, e ele nos haver de alimentar,
convém e é necessário que, do modo que pode ser, o dividamos em parte, e, sendo um só
mistério, o repartamos em muitos mistérios. Esquisitamente São Jerônimo: In frusta
discerpitur, et ejus in medium mysteria proferuntur, ut quod integrum non alebat, divisum in
partes alat31. - Quando Cristo partiu o pão consagrado não se partiu a si mesmo, porque se
não parte nem pode partir no Sacramento; mas o que partiu e dividiu em várias partes foram
os mistérios que naquele mistério estão ocultos e encerrados, querendo que saíssem à luz, e
27 Batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo (Mt. 28,19).
28 Abençoou e partiu os pães, e os deu aos discípulos (Mt. 14, 19).
29 Tomou o pão, e o benzeu, e partiu-o, e deu-o a seus discípulos (Mt. 26,25).
30 Não é recebido partido ou dividido, mas inteiro.
31 D. Hieron. in c. 14 Matt.
152
nos fossem manifestos: In frusta discerpitur, et mysteria in medium proferuntur. - E isto a que
fim, ou para quê? Aqui está o milagroso do pensamento: Ut quod integrum non alebat,
divisum in partes alat: Para que o mesmo Cristo, que inteiro e indigesto não alimentava,
partido e digesto nos mesmos mistérios, alimente e faça a nutrição para que foi instituído. -
Não dissera mais nem melhor o doutor máximo, se já em seu tempo houvera o Rosário e
falara dele. E isto foi o que finalmente fez a Virgem Santíssima, manifestando o que estava
oculto, dividindo o que estava inteiro, e digerindo o que estava indigesto em Cristo
Sacramentado, e distinguindo com as rosas do seu Rosário o trigo que estava em monte no
Sacramento: Sicut acervus tritici vallatus liliis.

§1V

Como se faz esta soberana digestão, e como ajuntar o Rosário ao Sacramento para
nutrição e aumento espiritual de nossas almas. Se Cristo chama ao Sacramento pão em
muitos lugares do Evangelho, por que nosso texto o compara ao trigo? O novo e nunca
imaginado manjar do corpo e sangue de Cristo, e a contribuição de nossas almas. A
verdadeira substância do Rosário e a fábrica da nutrição, segundo Aristóteles e Galeno. A
memória, estômago da alma, primeira potência que Cristo nos encomendou quando instituiu
o Sacramento. O que obra a memória com a simples apreensão dos mistérios. A função do
entendimento. O pão que não farta nem satisfaz, se se não come com os olhos abertos. Os
efeitos na vontade. A digestão, a concocção e a união, de que fala S. Bernardo.

221- Temos visto em comum como o Sacramento é o Rosário indigesto, e o Rosário o


Sacramento digerido , e que assim como por meio do Sacramento comemos a Cristo, por meio
do Rosário o digerimos. Resta agora ver como se faz esta soberana digestão, e como nós
havemos de ajuntar o Rosário ao Sacramento, para que por meio dela recebam nossas almas a
nutrição e aumento espiritual, para que o mesmo Sacramento e o mesmo Rosário foram
instituídos. Coisa notável, e não assaz ponderada, é que entendendo-se o nosso texto de Cristo
sacramentado- como além do já alegado S. Ambrósio, Santo Ildefonso, Ricardo, Honório,
Guilhelmo, Alano, e outros, sentem hoje comumente todos os expositores modernos - coisa
muito notável é, digo, que o mesmo Sacramento neste lugar se compare a trigo, e não a pão:
Sicut acervus tritici. - Cristo, Senhor nosso, consagrou seu corpo debaixo de espécies de pão,
e por isso lhe chama pão em muitos lugares do Evangelho; pois, por que razão no nosso texto,
em que se nos representa cercado de rosas, se não compara também a pão, senão a trigo?
Porque, assim como o trigo, antes de chegar a ser pão, depende de muitas diligências, que se
hão de obrar e fazer nele, porque se há de moer, amassar, e cozer, assim, para que as nossas
almas recebam do divino Sacramento aquela perfeita nutrição e aumento de virtudes, que o
mesmo Senhor deseja, e de que elas estão tão faltas, como vimos, e por isso fracas e
macilentas, não basta só que Cristo tenha feito para nós este soberano alimento, mas é
necessário também que nós o façamos. Não vos admire a proposição, porque é certa, e dela
ficareis entendendo um lugar dificultoso do Evangelho, que pode ser não tenhais entendido
nem ouvido.
222. No capítulo sexto de São João, tratando Cristo, Senhor nosso, largamente do
novo e nunca imaginado manjar que havia de compor de seu corpo e sangue, para sustento de
nossas almas, exortando-nos ao caso que dele havíamos de fazer, diz assim: Operamini non
cibum, qui perit, sed qui permanet in vitam aeternam, quem Filius hominis dabit vobis32.

32 Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até à vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará
(Jo. 6,27).
153
Todos andais ocupados em buscar e fazer de comer para esta vida que se acaba; o que vos
aconselho é que façais o comer que eu vos hei de dar, o qual permanece por toda a vida
eterna. Este comer, que permanece por toda a vida eterna, que Cristo ainda não tinha dado,
mas havia de dar, é o Santíssimo Sacramento de que falava, e assim o entendem todos os
padres33. Pois, se este comer era o Santíssimo Sacramento, e Cristo é o que o fez, como diz
que o façamos nós? Operamini cibum quem Filius hominis dabit vobis? - A razão já está
dada, e é a que eu dizia. Porque, ainda que Cristo é o que fez este novo gênero de comer, que
é sustento da vida eterna, e da sua parte já está feito, para as nossas almas se nutrirem e
aumentarem com ele, quanto hão mister, é necessário da nossa parte que também nós o
façamos. Da parte de Cristo já está feito o que a Teologia chama ex opere operato; mas da
nossa parte é necessário que nós também façamos, o que é e se chama ex opere operantis:
Operamini cibum, qui non perit, sed permanet in vitam aeternam, quem Filius hominis dabit
vobis. - Assim como o comer corporal, por mais feito e bem preparado que esteja, não basta
que o homem o coma, se as potências interiores do mesmo homem, que são os instrumentos
da nutrição, não obrarem, da mesma maneira, para as nossas almas se nutrirem e cobrarem
forças, não basta que comunguem a Cristo no Sacramento, se os mesmos mistérios, que o
Senhor tem obrado, elas os não tornarem a obrar com todas suas potências. E isto é o que se
faz no Rosário.
223. Aristóteles e Galeno, descrevendo a fábrica da nutrição, para a qual formou a
natureza várias oficinas e instrumentos, reduzem toda a operação deles a três potências
principais, uma que recebendo retém, outra que alterando assemelha, outra que unindo
converte. E tudo isto abro o Rosário por meio das três potências de nossa alma nos mistérios
da vida, morte e paixão de Cristo, de que ele se compõe, e não só em todos, senão em cada
um. Com a potência da memória recebe e retém o mistério por meio da apreensão; com a
potência do entendimento altera-o e assemelha-o a si - ou a si a ele -por meio da meditação; e
com a potência da vontade converteu e uniu em si mesma por meio da imitação. Parecer-vos-á
porventura novo modo este de rezar o Rosário, e não é novo, nem modo, senão a verdadeira
substância dele, e o fim para que a Virgem, Senhora nossa, o ordenou e instituiu. Não instituiu
a Senhora o Rosário para o rezarmos só com a boca, e com tanta pressa como se passam as
contas, mas para ter na memória os mistérios, para os meditar e cuidar neles com grande
consideração, e para os tomar por exemplo, e os aplicarmos a nossas vidas.
224. Quanto à memória, esta foi a primeira que Cristo, Senhor nosso, nos encomendou
quando instituiu o Santíssimo Sacramento: Haec quotiescumque feceritis, in mei memoriam
facietis. - Não referem estas palavras os evangelistas, mas recebeu-as a Igreja, que as põe no
cânon da Missa, por tradição dos apóstolos que se acharam presentes; e São Paulo, que não
esteve presente, as escreveu depois, por revelação do mesmo Cristo: Hoc facite in meam
commemorationem34.- E por que fez menção o Senhor somente da memória? Porventura
porque excluiu as outras duas potências? Não, mas porque a memória é aquela em que se faz
a primeira decocção deste soberano manjar. Já São Pedro Damião nos disse que ele se recebe
com grande suavidade no estômago da nossa alma: Hae epulae mentis nostrae stomachum
suaviter replent35. - E qual é o estômago da alma? Santo Agostinho, excelente filósofo da
memória, no-lo ensinou, e já antes dele o tinha definido Platão: Memoria est animae
ventriculus: - O estômago da alma é a memória- porque assim como no estômago do corpo se
recebe e retém o comer corporal, e ali se faz a primeira decocção, assim esta potência é a
primeira que há de receber e recolher dentro em si o divino Sacramento, lembrando-se, não de

33 Chrys. Oug. Cyr. Alex. Euthym. Theophil. D. Thom. Bonavent. Rupert.


34 Fazei isto em memória de mim (1 Cor. 11, 24).
35 Petr. Dam. supra.
154
passagem, senão muito devagar - como se faz no corpo - e representando à alma quem é o que
está presente naquele mistério, e os mistérios altíssimos que nele se encerram. E porque os
acidentes sacramentais nos encobrem e ausentam dos olhos a presença de Cristo, a memória,
cuja propriedade é fazer presentes as coisas ausentes, no-lo há de fazer presente.
225. Por que cuidais que disse Cristo, Senhor nosso, que ele está em quem o come, e
quem o come está nele: Qui manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem, in me manet,
et ego in illo36? São Bernardino com singular pensamento, diz que não só significou o Senhor
nestas palavras o efeito da graça que nos comunica no Sacramento, senão o da memória que
nos pedia nele, porque o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com
eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam conosco. Lembrai-vos do amigo ausente, que
está em Portugal, e no mesmo ponto vós estais lá com ele, e ele está cá convosco, porque lá
vos levou a memória, e cá o tendes no pensamento. O mesmo faz a memória no divino
Sacramento, e em todos seus mistérios.
- Debemus Christum spiritualiter manducare - diz o santo - incarnationem videlicet,
conversationem, et ejus salutiferam passionem devote ruminando, sicut ipse nos docuit,
dicens: Qui manducat meam carnem, in me manet, et ego in illo 37. - De sorte que, estando nós
em Cristo, e Cristo em nós por memória, em todos os mistérios de sua Encarnação, Vida,
Morte e Ressurreição, estamos presentes com ele.
226. Se vos lembrais do mistério da Encarnação estais com Cristo em Nazaré; se do
mistério da Visitação, estais com Cristo nas montanhas de Judéia; se do mistério do
Nascimento, estais com Cristo no presépio de Belém; se do mistério da Apresentação, estais
com Cristo no Templo de Jerusalém; se do mistério do mesmo Senhor Menino perdido e
achado, estais com Cristo outra vez no mesmo Templo. Passando dos mistérios gozosos aos
dolorosos, se vos lembrais de Cristo orando e suando sangue, estais com ele no Horto de
Getsêmani; se de Cristo atado a uma coluna, e afrontado com açoites, estais com ele no
Pretório de Pilatos; se de Cristo vestido por escárnio de púrpura e coroado de espinhos, estais
com ele em outra parte do mesmo Pretório; se de Cristo com a cruz às costas, estais com ele
nas ruas de Jerusalém; se de Cristo crucificado e morto, estais com ele no Calvário.
Finalmente, chegando aos mistérios gloriosos, se vos lembrais de sua gloriosa Ressurreição,
estais com Cristo à porta do sepulcro, no caminho de Emaús e no cenáculo dos apóstolos; se
de sua admirável Ascensão, estais com Cristo no Monte Olivete, e sobre as nuvens; se da
vinda do Espírito Santo, com enchente de dons e graças, estais com Cristo à destra do Padre;
se da Assunção de sua Santíssima Mãe, estais com Cristo acompanhando seu triunfo na
entrada do céu; e se de sua Coroação e Exaltação, que é o último mistério, estais com Cristo
coroando-a por Rainha dos Anjos na glória, e por Senhora e advogada nossa neste desterro.
227. Isto é o que obra a memória só com a simples apreensão dos mistérios. E o
entendimento, que faz? Olha para eles com grande consideração meditando-os, e por meio
desta vista considerada e atenta se assemelha ao que vê, que é o efeito da segunda decocção.
Assim o diz e ensina S. Dionísio Areopagita: Aperiet enim, si communionem ejus cupimus, in
vitam ejus, quam in carne vixit, intueri, et similitudine sanctitatis ad habitum divinae virtutis
recurrere38. Notai a palavra intueri e a palavra similitudine, porque da vista com que o
entendimento na comunhão medita os mistérios de Cristo, nasce a semelhança com que,
alterando-se a alma, isto é, mudando-se em outra, os retrata em si, e se assemelha a eles. No
céu, diz São João que havemos de ser semelhantes a Deus, porque o havemos de ver assim
como é: Similes ei erimus, quoniam videbimus eum sicut est (Jo. 3,2). - De sorte que Deus

36 O que come a minha carne e bebe o meu sangue, esse fica em mim, e eu nele (Jo. 6,57).
37 Bernard. Tom. 2, Serm. 55.
38 Dion. Areopag. c. de Comun.
155
visto no céu é como um espelho às avessas, porque não é ele o que se há de fazer semelhante
a nós, senão nós os que havemos de ser semelhantes a ele. E isto que então há de ser, por meio
da visão beatífica e vista clara de Deus, isso mesmo é o que agora fazemos por meio da
meditação e vista escura do Sacramento. Oh! se víramos e consideráramos atentamente o que
debaixo daquele divino Pão se encerra, quão aumentadas e bem-nutridas haviam de andar as
nossas almas, que hoje se vêem tão desmedradas e desfalecidas!
228. Comemos com os olhos do entendimento e da consideração fechados, e por isso
se não luz nem logra o que comemos. Ouvi a Salomão: Aperi oculus tuos, et saturare panibus
(Prov. 20,13): Abri os olhos, e comei de tal modo o pão, que fiqueis abastado e satisfeito. - E
que pão é este que não farta, nem satisfaz, nem se logra se se não come com os olhos abertos?
Daqui infere São Jerônimo que este pão é o do Santíssimo Sacramento, e não o pão comum de
que nos sustentamos: Neque enim credendum est quod praecipitur vescentibus, ut ad
comedendum hunc panen, quo corpora nutriuntur, oculos aperire debeant. - Mas por esta
mesma razão parece que nos havia de mandar Deus que fechássemos os olhos, e não que os
abríssemos, porque o Sacramento do Altar é por antonomásia o mistério da fé, e a fé há de ser
cega, e crer a olhos fechados. Assim é. Mas por isso mesmo nos manda Deus que abramos os
olhos, porque se não há de contentar o nosso entendimento só com crer o que não vê naquele
mistério com os olhos fechados, mas com ver e considerar quito atentamente os mistérios que
nele se encerram, com os olhos abertos: Oportet namque - diz Eutímio - non simpliciter eo
intueri, sed aliud quidpiam imaginari, et interioribos oculis ea aspicere tanquam mysteria.
229 Assim vê com os olhos interiores a alma, e assim contempla e considera os
profundíssimos mistérios da Vida, Morte, e Ressurreição de Cristo, que naquele compêndio
de maravilhas, não tanta da onipotência, quanto da bondade divina estão pelo Sacramento
ocultos, e pelo Rosário manifestos. E que alma haverá tão esquecida de seu aproveitamento
espiritual, que, vendo naquele divino espelho umas imagens tão diferentes da sua, não
estranhe e aborreça a sua fealdade, e se procure assemelhar a elas: Vitam, quam in carne vixit,
intueri, et similitudine ad habitum divinae virtutis recurrere39?
230. Que alma haverá tão enferma ou queixosa da fragilidade da carne, que, à vista do
mistério da Encarnação, não conheça que se quiser, a pode fazer divina? Que alma tão
envelhecida no pecado que, vendo a Cristo ir santificar ao Batista, e livrá-lo antes de nascer
de um pecado que não leva ao inferno, se não queira emendar dos seus para o resto da vida,
que não sabe quanto há de durar? Que alma tão cobiçosa dos bens deste mundo que, à vista do
Criador dele na pobreza de um presépio, se não contente com a sua fortuna, ainda que lhe
pareça escassa? Que alma tão indevota e pouco inclinada à Igreja e culto divino, que vendo a
Cristo menino de quarenta dias presentado, e oferecido a Deus no Templo, se não venha
presentar e oferecer diante de seus altares muito freqüentemente? Que alma tão negligente em
ouvir a palavra de Deus que, vendo a Sabedoria eterna, não só ouvindo aos doutores, mas
perguntando-lhes como se não soubera, se não queira achar no lugar da doutrina onde o
mesmo Senhor foi achado? Que direi dos mistérios dolorosos? Que alma haverá tão pegada à
própria vontade que, vendo ao Filho Unigênito do Padre dizer-lhe uma e três vezes entre
suores de sangue: Não se faça a minha vontade, senão a vossa - não sacrifique ao mesmo
Padre e ao mesmo Filho a sua? Que alma tão escrupulosa nas matérias de honra que, venda ao
supremo Monarca do Universo atado a uma coluna, e publicamente açoitado, não tenha pejo
de tomar na boca a nome de afronta? Que alma tão vã e altiva de pensamentos que, vendo
aquela sacrossanta e tremenda cabeça que governa com um aceno o céu e a terra, trespassada
de espinhos, se atreva ainda a ser presumida?
231. Que alma tão imortificada, e inimiga de padecer que, vendo a seu Redentor com
39 Dion. Areopag. Supra.
156
uma cruz às costas para o salvar, e ajoelhado com o peso dela, recuse fazer alguma penitência
por sua salvação? Que alma tão livre em suas ações ou tão dissoluta em suas liberdades que,
vendo ao todo-poderoso com os pés e mãos pregados em um madeiro por seu amor, se não
deixe prender do mesmo amor, e se ate ao cravo de seus pés para nunca mais se soltar? E se
tais efeitos produz a consideração dos mistérios dolorosos, que naturalmente causam horror,
que fará a formosura e agrado dos gloriosos? Que alma haverá tão enganada dos feitiços desta
vida mortal, cheia de tantas misérias, que à vista de um Cristo ressuscitado e glorioso não
aspire à imortal? Que alma tão pesada e abraçada com a terra que, à vista do mesmo Senhor
subindo ao céu, não queira também voar e subir com ele? Que alma tão fria no espírito e tão
esquecida de que é alma que, à vista do fogo do Espírito Santo em chamas vivas, se não
acenda em desejo de seus divinos dons, e de crescer em sua graça? Que alma, enfim, tão
pusilânime e pouco generosa que, à vista do triunfo da Mãe de Deus no dia de sua
gloriosíssima Assunção, e da suprema coroa que recebeu à mão direita de seu Filho, em
prêmio dos trabalhos com que o serviu e acompanhou nesta vida, se não aliste na família da
mesma Senhora, ao menos com o foro de escravo, debaixo de uma obrigação tão leve como a
de rezar o seu Rosário para ser participante das mesmas glórias.
232. Desta maneira se assemelha a alma ao manjar que come, com a meditação atenta
de seus mistérios, e, estando já semelhante pela operação do entendimento, entra a terceira e
última, que é a da vontade, na qual se aperfeiçoa e consuma a nutrição, unindo-se o que
comunga e medita ao mesmo Cristo comido e meditado, e incorporando-se nele. Diga-nos isto
compendiosamente São Bernardino de Sena, porque do que fica declarado na primeira e
segunda decocção, se entende sem nova repetição esta última: Ex tali recogitatione consurgit
incorporatio, dum cogitans amorem Christi reficitur cui ex charitate conjungitur, eique magis
ac magis assimilatur et incorporatur. -Não podia concluir o santo, nem com mais
propriedade, nem com maior clareza o que digo. - Com a meditação do entendimento cresce -
diz ele - o amor na vontade - conforme o texto de Davi - Concaluit cor meum intra me, et in
meditatione mea exardescet ignis40 - e com este calor sobrenatural, que é o instrumento
imediato de todas as três digestões, se une o que comunga por caridade a Cristo, e quanto
mais se assemelha pelo entendimento a ele tanto mais se incorpora pela vontade com ele:
Eique magis ac magis assimilatur et incorporatur.
233. E se me disserdes que comungais e não experimentais estes efeitos, essa é a
última confirmação de tudo o que tenho dito, e da razão que tive para pregar, mais que
nenhuma outra, esta matéria. E por que não creiais a experiência das vossas tibiezas, ouvi a de
São Bernardo não rara, e só de alguma vez ou muitas vezes, senão de todas os dias:
Quotiescumque ad hoc Sacramentum accedo, decoquor cum immutor, digeror cum
transformor, unior cum conformor41: Todas as vezes que chego ao Santíssimo Sacramento -
diz o devotíssimo Bernardo - ali me mudo, ali me assemelho, ali me transformo. E por que
modo se mudava, por que modo se assemelhava, por que modo se transformava aquela alma
pura? Por digestão, por concocção e por união; que são as três operações com que se
aperfeiçoa a nutrição da alma, como a do corpo: por digestão: digeror; por concocção:
decoquor; por união, unior. E para que ninguém duvide que tudo se consegue pela virtude do
Rosário e meditação dele, tudo isto disse São Bernardo, começando aquele lugar dos
Cantares, em que se diz que o Senhor sacramentado se apascenta entre rosas: Qui pascitur
inter lilia42 que é o mesmo sentido do nosso texto: Sicut acervus tritici vallatus liliis43.

40 O meu coração se encandeceu dentro de mim, e na minha meditação se incendiará o fogo (SI. 38, 4).
41 Bernard. Ser. 6 in Cant.
42 Que se apascenta entre as açucenas (Cânt. 6, 2).
43 Como um monte de trigo cercado de açucenas (Cânt. 7,2).
157

§V

Todos aqueles que participam da ceia do Senhor hão de ser como os animais
escolhidos para os sacrifícios da lei antiga, os ruminantes. O vinho e o trigo que se há de
ruminar. Qual é o tempo em que se há de fazer a meditação dos mistérios do Rosário e do
Sacramento? Quanta diferença vai dos que meditam este sagrado mistério aos que os não
meditam. A alegoria do boi e do jumento no presépio de Belém. A morte indigesta que Adão
nos deixou por herança. Conclusão.

234. Tenho-vos mostrado, devotos do santíssimo Rosário, a harmonia que ele tem
como Santíssimo Sacramento, diante de cujo Sacramento e da imagem da Senhora o cantais
aqui, ou rezais a coros todos os dias nesta hora. O que, por conclusão, vos peço em nome do
mesmo Cristo sacramentado e da mesma Virgem do Rosário, é que, para conseguir os efeitos
daquele divino Manjar, vos não contenteis só com as vozes do que rezais, senão com uma
meditação mui atenta de seus soberanos mistérios. As reses que Deus escolheu para os antigos
sacrifícios, em que se representava o de seu corpo e sangue, eram somente aquelas que,
depois de comer, tornam a ruminar ou remoer aquilo mesmo que comeram. E que nos quis
Deus significar nesta escolha e separação de animais, excluindo todos os outros? São
Cipriano: De coena Domini celebrantes sacramenta, commonemur, quasi ruminas pecus,
revocare ad fauces quae sumpsimus44. Quis-nos Deus ensinar e admoestar com esta cerimônia
- diz São Cipriano, e o mesmo diz São Gregório - que todos aqueles que participam da ceia do
Senhor, que é o Santíssimo Sacramento, hão de ser como os animais escolhidos para o
sacrifício, e que assim como estes, depois de comer, tornam a remoer muito devagar o que
comeram, assim nós, depois de comungar, havemos de meditar e considerar com muita
atenção de quem é aquele corpo e sangue, e quais são os mistérios de nossa redenção, que
com ele e por ele foram obrados. Assim o tinha profetizado, já no tempo dos mesmos
sacrifícios, o profeta Oséias: Super triticum et vinum ruminabunt45: Hão-se de pôr a ruminar
sobre o pão e sobre o vinho: sobre o pão, que é o corpo de Cristo consagrado debaixo de
espécies de pão, e sobre a vinho, que é a Sangue do mesmo Cristo consagrado debaixo de
espécies de vinho; e não só diz que o hão de comer, senão que, sobre comido, o hão de
ruminar: Super triticum et vinum ruminabunt.
235. Dirá, porém, algum crítico que parece não falou o profeta com propriedade,
porque Cristo, Senhor nosso, falando deste pão e deste vinho sacramentado, disse: Qui
manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem: Quem come a minha carne, e bebe o meu
sangue - e o que se rumina é o que se come, e não o que se bebe. Mas nesta mesma, que
parece impropriedade, declarou o profeta admiravelmente qual era o pão de que falava, que é
o corpo de Cristo, e qual o vinho, que é o seu preciosíssimo sangue, derramado por nosso
amor e por nosso remédio, e por isso digníssimo de ser ruminado e considerado com
profundíssima atenção. Olhai quão expressamente o disse a alma santa, ajuntando o mesmo
ruminar com o mesmo vinho: Guttur tuum sicut vinum optimum, dignum dilecto meo ad
potandum, labiisque et dentibus illius ad ruminandum46. -Para que se veja que o vinho, de que
falava o profeta, é o vinho que se bebe e se rumina: Ad potandum et ruminandum. - E,
declarando Alberto Magno que vinho é este que se há de ruminar, e qual é o modo com que se

44 Cyprian. Lev. 11.


45 Em Oséias o verbo está no passado: ruminabant; e não no futuro: ruminabunt (Os. 7, 14)
46 A tua garganta é como o melhor vinho, digno de ser bebido pelo meu amado, e ruminado entre os seus lábios
e os seus dentes (Cânt. 7,9).
158
há de ruminar, diz assim: Quia diu per cordis et mentis interationem debet ruminari,
Sacramentum saepe ad mentem revocando et considerando: De sorte que o vinho que se há
de ruminar é o sangue de Cristo, e o modo com que se há de ruminar é meditando e
considerando, não de passagem e de corrida, senão muito devagar e com grande atenção, os
mistérios do mesmo sangue, preço de nossa redenção, que são todos os do Rosário, porque na
Encarnação tomou o Filho de Deus a nossa carne, e sangue, na Paixão padeceu na carne e
derramou o sangue, e na Ressurreição tornou a unir o sangue à carne, que é tudo o que contém
no Sacramento o corpo e sangue de Cristo, e tudo o que nós do Rosário digesta e
distintamente consideramos.
236. E se me perguntardes quando se há de fazer esta meditação, e qual é o tempo em
que se hão de ruminar estes mistérios - que é ponto muito essencial nesta matéria –não faltará
porventura quem cuide que o tempo é somente quando acabamos de receber o Cristo no
Sacramento, e assim parece que o quis dizer São Cipriano: Quasi ruminans pecus, revocare
ad fauces quae sumpsimus. - Mas eu digo que há de ser depois de comungar, e antes de
comungar, e sempre, e todos os dias. Não deixamos dito e provado que o mesmo Cristo que se
come no Sacramento se digere no Rosário? Pois, assim como o Rosário se reza todos os dias,
assim o Sacramento se digere todos as dias, e se há de ruminar todos os dias. O primeiro que
comungou o Sacramento foi o mesmo Cristo quando o instituiu na ceia. Que ruminasse o
Senhor seu próprio corpo sacramentado não há dúvida, porque aquela comunhão foi a mais
perfeita, e o exemplar das nossas; mas parece que o ruminou pouco tempo, porque depois de
comungar teve poucas horas de vida. Assim o imaginava também eu, quando São Paulino,
contemporâneo do mesmo São Cipriano, me ensinou o que ultimamente vos disse, com estas
admiráveis palavras: Salvator noster simul hanc nobis escam et ruminavit docens, et prompsit
impertiens47: Cristo, Salvador nosso - diz o santo - deu-nos o Sacramento na hora em que o
instituiu, mas ruminou o mesmo Sacramento em todo o tempo que nos ensinou.
237. O tempo em que Cristo nos ensinou foram os últimos três anos de sua vida; a
hora em que instituiu o Sacramento, foi pouco antes da sua morte; e aquele mesmo
Sacramento, que instituiu e comungou uma só vez, e em uma só hora, esse andou ruminando
três anos inteiros, em que nos ensinou os mistérios que nele estão encerrados: Nobis et
ruminavit docens, et prompsit impertiens. - Quantas vezes ensinou Cristo o mistério de sua
Encarnação, quantas o de sua Paixão, quantas o de sua Ressurreição -que são os mesmos do
Rosário - e tudo isto antes do Sacramento? Depois de instituir o Sacramento e se comungar a
si mesmo nele, tudo o que ensinou aos discípulos foi uma repetição dos mesmos mistérios, os
quais também reduziu àquele breve círculo, em que no princípio mostramos recopilados os do
Rosário: Exivi a Patre, et veni in mundum: iterum relinquo mundum, et vado ad Patrem48. -
De maneira que antes do Sacramento e depois do Sacramento sempre o Senhor o ruminou,
para nos ensinar a que também o façamos assim, não só depois de comungar, senão antes, e
sempre. Os que comungam de oito em oito dias hão de ruminar aqueles mistérios todos os
dias da semana, e os que comungam de mês em mês, todos os dias do mês, e isto sem mudar
ou acrescentar outro exercício, senão meditando e ruminando atentamente o mesmo Rosário
que rezam. Dos que só comungam de ano em ano não falo, porque estes nem são devotos do
Rosário nem do Sacramento e se pode duvidar se são cristãos.
238. Finalmente, para que conste a todos quanta diferença vai dos que meditam estes
sagrados mistérios aos que os não meditam, e dos que ruminam ou não ruminam o que
comungam e comem no diviníssimo Sacramento, vejam uns e outros o diferente foro em que
o mesmo Senhor os recebe quando o recebem. Muito é de reparar que, quando Cristo,

47 S. Paulin. in quadram epist.


48 Eu saí do Pai, e vim ao mundo: outra vez deixo o mundo, e torno para o Pai (Jo. 16, 28).
159
Redentor nosso, entrou neste mundo, não só entrou como humanado, senão como
sacramentado, em fé de que ele era o pão vivo que desceu do céu para nos dar vida: Ego sum
panis vivus, qui de caelo descendi. Si quis manducaverit ex hoc pane, vivet in aeternum49. -
Por isso não nasceu o Senhor em outra cidade, senão na de Belém, nem outro lugar de Belém,
senão em um presépio. Em Belém, porque Belém quer dizer domus panis: casa de pão; e em
um presépio ou manjedoura, como trigo que nasce entre as palhas. Assim que com verdadeira
propriedade podemos dizer que a lapa de Belém foi a primeira capela do Santíssimo
Sacramento, e a manjedoura ou presépio o primeiro Sacrário. A um e outro lado deste pobre e
riquíssimo sacrário parece que haviam de assistir dois querubins, como aos lados da Arca do
Testamento; mas já o profeta Habacuc tinha dito que não haviam de ser senão dois animais:
In medio duorum animalium cognosceris50. - E se perguntarmos a Isaías que animais haviam
de ser ou foram estes, responde que um boi e um jumento: Cognovit bos possessorem suum,
et asinus praesepe domini sui51. - Pois, se Cristo vinha em forma ou representação de
sacramentado, por que quis que os animais que o assistissem, não fossem da mesma, senão de
diferente espécie, e um deles nomeadamente boi, e outro jumento? Para que nesta mesma
diferença se conhecesse o diferente foro que tem na casa do Pão do céu os que de um modo e
de outro se chegam a ele. O boi é animal que rumina, o jumento é animal que não rumina; e
da mesma maneira entre os que chegam à mesa do divino Sacramento há uns que ruminam e
meditam aqueles sagrados mistérios, e outros que os não ruminam nem meditam. Mas, assim
como o boi, que rumina, é animal estimado de Deus, e escolhido para o sacrifício, e o
jumento, que não rumina, reprovado, e excluído, assim o estima o mesmo Senhor, e se agrada
muito dos que meditam e ruminam seus mistérios e, pelo contrário, dos que os não ruminam
nem meditam, posto que os não exclua, não se agrada, porque mais comungam como
jumentos que como homens. Veja agora cada um se quer ficar neste foro.
239. Da Virgem, Senhora nossa, no presépio, diz o evangelista que dentro da sua alma
meditava e conferia o mesmo mistério, ponderando todas as circunstâncias dele: Maria autem
conservabat omnia verba haec conferens in corde suo52. - E porque o mesmo fazia em todos
os outros, e quer que nós também o façamos, como Mestra divina deste soberano exercício da
meditação e oração as ajuntou ambas no seu Rosário, para que assim como conta por conta
imos rezando as orações que lhe oferecemos em cada um dos passos da Vida, Morte e
Ressurreição do seu benditíssimo Filho, assim, e com muito maior vagar e atenção meditemos
parte por parte os mistérios deles, e os vamos trasladando e imprimindo na mais interior de
nossas almas. Oh! ditosas, e bem-aventuradas aquelas que por este modo verdadeiramente
celestial digerirem o pão do céu, que recebem no Diviníssimo Sacramento, porque assim o
converterão ou se converterão na sua própria substância, e lograrão a perfeita e sobrenatural
nutrição, que nas tíbias, indevotas e miseráveis se não luz, pelo comerem indigesto.
240.O principal mistério dos que se encerram no Santíssimo Sacramento é o de sua
Morte, e Paixão, porque, se não morrera, não importara o ter nascido, e também, se não
morrera, não ressuscitara nem nos levara consigo ao céu. Por esta razão nos encarrega tanto
São Paulo que, quando comungarmos, meditemos a morte do Senhor: Quotiescumque enim
manducabitis panem hunc, et calicem bibetis, mortem Domíni anunntiabitis53. - E esta
sacratíssima morte de infinito preço, se com a meditação e consideração dela a não
49 Eu sou o pão vivo que desci do céu. Se qualquer comer deste pão viverá eternamente (Jo. 6,51s).
50 Serás dado a conhecer no meio de dois animais (Hab. 3,2 LXX).
51 Conheceu o boi o seu possuidor, e o jumento o presépio de seu dono (Is. 1, 3).
52 Entretanto Maria conservava todas estas coisas, conferindo lá no fundo do seu coração umas com as outras
(Lc. 19).
53 Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálix anunciareis a morte do Senhor (I Cor.
11,26).
160
digerirmos, aproveitar-nos-á alguma coisa para emenda da vida? Tão pouco como a nossa
mesma morte, se a tomamos a vulto, e indigesta, sem considerar o que é e o que havemos de
ser. Ouvi a São Zeno falando de Adão: Sacrae arboris pomum male dulce delibavit,
lachrymas reperit, dolores et gemitus, spinas et tribulos sibimet comparavit, ultimoque
sudore turbatus posteris haereditatem indigestae mortis dereIiquit54: Comeu Adão da árvore
vedada, e digeriu o pomo em lágrimas, em gemidos, em dores, em espinhos, e nos suores, a
que foi condenado para comer o triste pão de que se sustentasse; e o pior de tudo foi que a
nós, seus descendentes, nos deixou por herança a morte indigesta: Indigestae mortis
haereditatem posteris dereliquit. - E que quer dizer que Adão, não só nos deixou por herança
a morte, senão a morte indigesta? Quer dizer o que ele fez, e o que nós fazemos. Quando Deus
notificou a Adão a sentença de morte no caso em que comesse, o que ele devia fazer era
considerar muito de propósito, e digerir primeiro consigo, que coisa era aquela a que Deus
chamava morte, sendo certo que, se bem o considerara, nunca se atreveria a comer; mas ele,
tragando indigestamente a morte, comeu o pomo cru sobre o indigesto, e porque esta morte
assim indigesta foi a que ele nos deixou por herança, por isso pecamos tão sem temor, como
ele pecou. O mais eficaz remédio para não pecar é a consideração da morte, por onde have-
mos de entrar ou ao céu ou ao inferno para sempre: Memorare novissima tua, et in aeternum
non peccabis55. - E, contudo, vendo nós cada dia morrer a tantos não deixamos de pecar. Por
quê? Porque essa mesma morte vista não a consideramos nem a digerimos. Pois, assim como
a nossa morte nos não emenda, por falta de digestão e consideração, assim também a Morte e
Paixão do mesmo Cristo, a quem comemos no Sacramento, nos aproveita pouco, porque de tal
modo o comem muitos como se não estivera ali.
241. Seja, pois, a conclusão de tudo que, unindo a meditação do Rosário com o
Santíssimo Sacramento, e a comunhão do Santíssimo Sacramento com o Rosário, digiram as
nossas almas em um o que comem no outro, de tal sorte que aquele divino pão cresça em nós
à grandeza de um monte: Sicut acervus tritici. - E das rosas, com que a Virgem do Rosário o
cerca nesta vida: Vallatus liliis - nos teça na outra, como faz a seus devotos, uma coroa de
glória, etc.

MARIA ROSA MÍSTICA

II PARTE

Censura do M. R. P. M. Frei Tomé da Conceição, da Sagrada Ordem do Carmo,


Qualificador do Santo Oficio.

EMINENTÍSSIMO SENHOR,

Li este livro que se intitula Maria Rosa Mística, Excelências, Poderes e Maravilhas
do seu Rosário, compendiadas em trinta sermões pelo Padre Antônio Vieira, da Sagrada
Religião, da Companhia de Jesus, e pregador de Sua Majestade. Já o autor desta obra saiu à
luz com a Primeira Parte, que contém quinze sermões, e nesta Segunda, que se intenta dar
também à estampa, vêm outras quinze. Li-as, não uma só vez, mas duas: a primeira por

54 Zeno Veron. Ser. de Patient.


55 Lembra-te dos teus novíssimos, e nunca jamais pecarás (Eclo. 7,40).
161
obediência, a segunda por gosto, ambas com admiração. Se não temera fazer injúria à
igualdade da sutileza com que este insigne pregador discursou estes sermões, pudera dizer que
nesta Segunda Parte se excede a si mesmo na Primeira; mas a mina, que gera este ouro, é tão
igualmente fecunda nas veias por onde o comunica, que mal se pode descobrir maioria nos
seus quilates; senda as idéias destes sermões tão novamente fabricadas, todas acho fundadas
no sentido literal ou místico dos Evangelhos, de onde este grande pregador as desentranhou
com sua agudeza, sem em coisa alguma das que diz se desviar da obrigação de orador
evangélico. Com estes sermões tem satisfeito o seu voto, e terá sem dúvida mais devotos o
Rosário da Senhora. Isto é o que me parece. Lisboa, no Convento do Carmo, em 10 de
dezembro de 1686.

Fr. Tomé da Conceição

Censura do M. R. P. M. Frei Antônio de Santo Tomás, da Sagrada Ordem de S.


Francisco, Qualificador do Santo Ofício.

EMINENTÍSSIMO SENHOR,

Vi o livro que tem por título Maria Rosa Mística, Excelências, Poderes e Maravilhas
do seu Rosário, composto pelo Padre Mestre Antônio Vieira, religioso da Sagrada Companhia
de Jesus e pregador de Sua Majestade. Consta este livro - que é a Segunda Parte - de quinze
sermões, que bem parecem frutos do singular engenho de tão insigne pregador, no agudo,
facundo e elegante, de locução tão extremada e seleta, agora frutos mais bem sazonados com
o tempo, no espiritual, dócil e útil de tão exemplar e milagrosa doutrina, doutrina para todos
proveitosa, porque a dá o autor em método tão claro, ainda no que trata mais profundo, como
teólogo especulativo, místico e expositivo, que o douto se achará convencido e o indouto
ficará ensinado, e todos suave e eficazmente arrebatados no seguimento mais fervoroso da
devoção dos Mistérios da Rosa Mística, ficando por este respeito o voto, de que faz menção o
autor, satisfeito com vantagem, pois, a Maria Santíssima, Senhora nossa, não só oferece
gratamente flores em as maravilhas de sermões, para mais florido adorno do seu Rosário, mas
também em flores lhe tributa vantajosamente frutos nas perpétuas devoções, que docemente
rende, para mais grato obséquio de tão divina flora. Com o que, se os Sermões são para quem
com tão rara eloqüência os asseou flores de muita honra, são juntamente frutos no admirável
da doutrina, e tudo para maior glória do misterioso Rosário da Mãe de Deus. Ao que se pode
aludir o que se diz no Eclesiástico, capítulo vinte e quatro: Flores mei fructus honoris, etc*. E
sendo, enfim, sermões tão floridos e frutuosos, tudo neles ajustado recende à pureza de nossa
Santa Fé, tudo neles frutifica conforme a limpeza de bons costumes: e assim, me parece, será
benefício comum conceder a licença que se pede, para dar os tais sermões à imprensa. Lisboa,
Convento de São Francisco da Cidade, em 24 de fevereiro de 1687.

Fr. Antônio de Santo Tomás

Censura do M. R. P. Doutor Bartolomeu de Quental, prepósito da Congregação do


Oratório.

SENHOR,

* As minhas flores dão frutos de honra e de honestidade (Eclo. 24,23).


162
Vossa Majestade me mandou que visse a Segunda Parte dos Sermões do Rosário, que
compôs o Padre Antônio Vieira, da Sagrada Companhia de Jesus, pregador de Sua Majestade,
como já me mandou ver a Primeira. E se eu estivera em idade de aprender, persuadira-me a
que a Providência Divina, que particularmente assiste aos príncipes, me repetia as lições, para
eu nelas aprender a pregar. Continha a Primeira Parte quinze sermões, e esta Segunda contém
outros quinze. Estes são como aqueles, e todos como de seu autor. Trinta sermões e tais
sermões sobre o mesmo assunto, é o melhor assunto para os louvores deste grande pregador.
Trinta sermões para quinze Mistérios do Rosário, são dois sermões por cada Mistério, porque
estes Mistérios, para serem bem rezados, hão de ser repetidos: repetidos cada dia, e sempre
que se rezarem, há de repetir exteriormente a voz o que interiormente meditar o juízo e
abraçar o afeto. - Em tudo são misteriosos estes sermões! - Bem parece que esta luz se
acendeu na tocha e na estrela do primeiro pregador do Rosário, o glorioso patriarca São
Domingos, de cujos exemplos e doutrina se vale tanto nestes sermões. São Domingos, para
pregar do Rosário, acendeu a sua tocha naquela luz grande, ainda a respeito daquela a que só
reconheceu maioria: Duo luminaria magna: luminare maius, luminare minus (Gên. 1,16). E a
sua estrela bebeu a luz daquela lua sempre tão cheia, que em nenhum instante padeceu
minguante, e tão luzida, que em nenhum padeceu sombra. E este insigne pregador para pregar
do Rosário também participou a luz desta formosa lua por aquela estrela e por aquela tocha. A
cada um dos Santos Patriarcas pôs Deus, Senhor nosso, por tocha para alumiar
particularmente os da sua casa e família: Ut luceat omnibus, qui in domo sunt*; mas a tocha de
São Domingos, para os louvores do Rosário, alumiou os da sua casa e família, e também os
das outras, como no nosso caso a um filho de Santo Inácio. A tocha de São Domingos
alumiou um filho de Santa Inácio para fazer trinta sermões em louvor do Rosário; e um filho
de Santo Inácio com trinta sermões acrescentou os louvores do Rosário, que São Domingos
pregou e deixou encomendado a seus filhos. Os Santos Patriarcas assim como no céu se
comunicam nas glórias, de sorte que a glória de uns o é acidental das outras, assim querem
que as suas famílias na terra se comuniquem nas glórias, como comunicam nos privilégios. A
comunicação dos privilégios lhes concedem os Sumos Pontífices na terra; a comunicação das
glórias lhes encomendam os seus Santos Patriarcas do céu. Parecerá, Senhor, que não tenho
satisfeito ao que Vossa Majestade me mandou, que visse estes Sermões e informasse com o
meu parecer. E eu cuido que tudo tenho dito, que os vi. E me parece, que esta Segunda Parte é
tão digna de imprimir como a Primeira, pois não contém coisa alguma contra o Reino, antes
muito para a sua reforma por meio da devoção do Santo Rosário, que persuade com tanta
eficácia. Vossa Majestade mandará o que for servido. Lisboa, Congregação do Oratório, 5 de
maio de 1687.

Bartolomeu do Quental
LICENÇAS DA RELIGIÃO

Eu, Alexandre de Gusmão, da Companhia de Jesus, provincial da Província do Brasil,


por comissão especial que tenho de N. M. R. P. Carolo de Noyele, Prepósito Geral, dou
licença, que se possa imprimir este livro da Segunda Parte de Sermões de Nossa Senhora do
Rosário, do Padre Antônio Vieira, da mesma Companhia, pregador de Sua Majestade. O qual
foi revisto, examinado e aprovado por religiosos doutos dela, por nós deputados para isso. E
em testemunho da verdade, dei esta subscrita como meu sinal e selada com o selo de meu
ofício. Dada na Bahia, aos 13 de julho de 1686.

* A fim de que dê luz a todos os que estão na casa (Mt. 5, 15).


163
Alexandre de Gusmão

DO SANTO OFÍCIO

Vistas as informações, pode-se imprimir a Segunda Parte dos Sermões do Rosário


compostos pelo Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus; e depois de impresso tornará
para se conferir e dar licença que corra; e sem ela não correrá. Lisboa, 25 de fevereiro de
1687.
Jerônimo Soares
O Bispo Fr. Manoel Pereira
Pedra de Ataíde de Castro
Fr. Vicente de Santo Tomás
DO ORDINÁRIO

Pode-se imprimir a Segunda Parte dos Sermões do Rosário, composta pelo Reverendo
Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, e depois tornarão, para se conferirem e dar
licença para correrem, e sem ela não correrão. Lisboa, 3 de março de 1687.

Serrão

DO PAÇO

Que se possa imprimir, vistas as licenças do Santo Ofício e Ordinário: e depois de


impresso, tornará a esta Mesa para se taxar, e sem isso não correrá. Lisboa, 6 de maio de
1687.

Roxas
Lamprea
Marchão
Azevedo
Ribeiro
SERMÃO XVI

§1

No famoso milagre do demônio mudo nos deixou escrita o evangelista toda a história
do Rosário e seus progressos. O Rosário começou quando o anjo saudou a Virgem, e
terminou quando Cristo ensinou o Padre-Nosso. A razão e o mistério por que Cristo, no
mesmo tempo em que acabava de lançar os primeiros fundamentos do Rosário, começa a
lançar fora o demônio mudo. Os empenhos do demônio contra o Rosário figurados nas
palavras de Sara a Abraão.

Beatus venter, qui te portavit1.

1. Com razão comparou o seu Evangelho a divina sabedoria de Cristo a um tesouro


escondido no campo. Uma coisa é a que todos vêem na superfície, outra a que se oculta no
interior da terra, e onde menos se imaginam as riquezas, ali estão depositadas e escondidas.
1 Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. 11,27).
164
Não as descobre quem mais cava: só as achou quem teve maior ventura, e isto é o que me
aconteceu - de que dou as graças à Virgem Santíssima - com o presente Evangelho hoje. A
ocasião por que foram ditas as palavras que propus, foi aquele famoso milagre, vulgarmente
chamado do demônio mudo; e neste caso, ao parecer tão diverso, nos deixou escrita o
evangelista toda a história do Rosário e seus progressos, e não por alegorias ou metáforas,
senão própria e literalmente. Ali temos literalmente a primeira origem deste soberano invento;
ali a guerra obstinada, que logo lhe intentou fazer o demônio; ali as vitórias que por meio dele
alcançamos contra o inferno; e ali, finalmente, o panegírico e louvares que devemos a Cristo e
sua bendita Mãe, como autora de tão grande obra: Beatus venter, qui te portavit.
2. No princípio, pois, deste Evangelho - que é o capítulo onze de S. Lucas -pediram os
discípulos a Cristo, Senhor nosso, que os ensinasse a orar: Domine, doce nos orare2. E o
modo de orar que o divino Mestre lhes ensinou foi a oração do Padre-Nosso: Et ait illis: cum
oratis, dicite: Pater, sanctificetur nomen tuum, adveniat regnum tuum, etc.3 Não é esta a
primeira oração que dizemos quando rezamos o Rosário? Sim. Pois esta mesma, e neste
mesmo dia em que Cristo a ensinou, foi a segunda e última com que se acabou de aperfeiçoar
o Rosário. O Rosário começou na Ave-Maria, quando o Anjo saudou a Virgem, dizendo: Ave
gratia plena: Dominus tecum4: E quando Cristo ensinou o Padre-Nosso, dizendo: Pater
sanctificetur nomen tuum, adveniat regnum tuum, então acabou de se aperfeiçoar o mesmo
Rosário, porque o Rosário não é outra coisa senão um modo de orar composto de Padre-
Nossos e Ave-Marias. Lançados, pois, estes dois fundamentos do Rosário, e aperfeiçoada
nestas duas orações a matéria a que a Rainha dos Anjos e Mãe do mesmo Cristo depois deu a
forma, que é o que sucedeu no mesmo ponto? Caso verdadeiramente maravilhoso e mistério
profundíssimo, mas não oculto, senão manifesto. No mesmo ponto em que o evangelista S.
Lucas acabou de referir a oração que Cristo ensinara, sem interpor palavra alguma, continua
dizendo: Et erat Jesus ejicens daemonium, et illud erat mutum (Lc. 11,14): que estava Cristo
lançando de um homem endemoninhado um demônio mudo, o qual demônio se chama mudo,
porque tinha emudecido e tolhido a fala ao homem. Pois, quando Cristo acaba de ensinar o
Padre-Nosso, quando Cristo acaba de fundar o Rosário, então - e só neste caso e em nenhum
outro - então - e no mesmo ponto sem meter tempo em meio - então trata o demônio de
emudecer o homem? Sim. Então. E com conseqüência não só misteriosa, senão literal. Porque
então se viu o demônio perdido, reconhecendo os poderes da oração e devoção do Rosário.
Por isso quando Cristo acaba de nos ensinar a orar, começa ele a se empenhar em nos
emudecer; Cristo ensinando-nos a rezar o Rosário, e o demônio tolhendo-nos a fala para que o
não rezemos.
3. Por que cuidais, senhores, que há no mundo tantos homens com nome de cristãos
que não rezam o Rosário? Porque assim como o demônio emudeceu aquele homem, assim os
emudece a eles: Mutus est, qui in Dei laudes labia sua aperire nescit -diz aqui Eusébio
Emisseno. Todas as nossas orações teme muito e aborrece o demônio, mas nenhuma persegue
com tanto ódio como o Rosário. Lede as Histórias Eclesiásticas, e não só vereis quanto o
demônio perseguiu sempre o Rosário e o procurou tirar do mundo por meio dos hereges de
todo o gênero, antigos e modernos; mas entre os mesmos católicos achareis estupendos e
temerosos exemplos das traças, dos empenhos, das promessas e da aplicação de todo seu
saber e poder, com que o demônio tem apartado a muitos deste celestial exercício. A quantos,
desesperados pela pobreza, ofereceu e descobriu tesouros mas com condição de que não
haviam de rezar o Rosário? A quantos, cegos do apetite sensual, prometeu o fim de seus

2 Senhor, ensina-nos a orar (Lc. 11, 1).


3 E Jesus lhes disse: Quando orardes dizei: Pai, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino (Lc. 11,2).
4 Deus te salve, cheia de graça: o Senhor é contigo (Lc. 1,28).
165
desonestos amores, mas com condição de que as contas do Rosário, que levavam ocultamente
consigo, as haviam de lançar fora? A quantos assegurou a vingança de seus inimigos, e que
nos perigos da guerra e das batalhas saíram com vida e sem ferida, mas com condição que
primeiro se haviam de deixar desarmar daquela mesma insígnia, que é o bálteo da milícia do
céu? Há autor grave5, o qual afirma que para o demônio servir a quem dele se quer valer, o
pacto tácito ou expresso de que usa são aquelas palavras de Sara: Ejice ancillam, et filium
ejus6, entendendo por ancila a Virgem na Ave-Maria e por seu Filho o Cristo no Padre -
Nosso. Até aos mesmos devotos da Senhora, quando os não pode apartar da sua devoção, ao
menos procura que deixem o Rosário e o troquem por outras orações, ou mais novas, ou
menos vulgares, como muitos fazem. Finalmente - este é o maior ardil e tentação de todas -
faz que os que rezam o Rosário o rezem divertidos e sem atenção, que é outro modo de
emudecer mais injurioso a Deus, como diz Santo Agostinho, porque em vez de falarem com
Deus, falam com seus vãos pensamentos7.
4. E como os empenhos do demônio em emudecer os homens, mais neste gênero de
oração que em nenhuma outra, se armam de todas suas artes, de todos suas astúcias e de todas
seus poderes: essa é a razão e o mistério, porque Cristo, no mesmo tempo em que acabava de
lançar os primeiros fundamentos ao Rosário, não se diz que lançou fora o demônio mudo,
senão que o estava lançando: Erat ejicens daemonium, et illud erat mutum8. Notai a oposição
de um erat contra outro erat: Erat ejiciens, et erat mutum. Tanta era a rebeldia, tanta a
resistência, tanta a obstinação do demônio, em se não querer render à onipotência de Cristo, e
teimar em não desimpedir a língua do homem que tinha emudecido. E se o mesmo Cristo,
multiplicando uns impulsos sobre outros, se deteve tanto em obrar este milagre, não é muito
que nós também multipliquemos sermões e discursos, pois impugnamos o mesmo demônio e
tratamos de sarar os mesmos mudos. O mudo do Evangelho finalmente falou, com grande
admiração dos circunstantes: Locutus est mutus, et admiratae sunt turbae9, e eu espero que
neste sermão se ouvirá também falar o mudo, não só com igual admiração, mas com assombro
e pasmo. Aquele mudo falou, mas não refere o evangelista o que disse: este há de falar e dizer
o que nunca ouvistes. Ele é o que há de pregar, e não eu. E porque não é capaz de graça, não a
peçamos para ele, senão para nós: Ave Maria, etc.

§II

A eloqüente pregação do mudo. Razões e condições por que Cristo concedeu aos
homens o privilégio nunca imaginado de poderem fazer mais do que ele fez: da parte de
Cristo, completar os mistérios do Rosário, e da parte nossa, as orações do mesmo Rosário. O
milagre de São Domingos e o milagre de Cristo.

5. Suspensos vos considero na expectação do novo pregador que haveis de ouvir hoje,
e agora acrescente que é o mais sábio, o mais experimentado e o mais eloqüente que nunca
ouvistes. Os pontos que há de tratar são três, sobre outras tantas questões, mas não levantadas
por ele, senão por outro pregador, também grande, e pelo qual Deus nesta ocasião obrou outro
milagre, também do demônio mudo, mas maior que o do mesmo Cristo.
6. Uma das mais notáveis promessas que Cristo fez aos que o seguiam e lhe haviam de
suceder neste mundo, foi que não só haviam de fazer obras tão grandes e tão maravilhosas
5 Auctor Sincoplediae.
6 Lança fora a escrava e a seu filho (Gal. 4,30).
7 August. de orando Deo.
8 Estava lançando um demônio, e ele era mudo (Lc. 11,14).
9 Falou o mudo, e se admiraram as gentes (Lc. 11,14).
166
como as suas, senão ainda maiores: Opera, quae ego facio, faciet, et majora faciet10. Tão
generosa e tão confiada como isto é a verdadeira e soberana grandeza. Quem em tudo quer
parecer maior não é grande. Assim o prometeu o Senhor e assim se cumpriu, porque,
deixando outros exemplos, S. Pedro dava saúde aos enfermos só com a sombra, o que Cristo
nunca fez, e convertendo Cristo em três anos só quinhentas almas, S. Pedro em um só sermão
converteu cinco mil. Mas o que faz mais admirável esta disposição da providência de Cristo, é
a razão dela, que o mesmo Senhor declarou: Majora faciet, quia ego ad Patrem vado (Jo.
14,12). Farão - diz - maiores obras que as minhas, porque eu vou para o Padre. - Cristo,
Redentor nosso, tão poderoso era enquanto viveu na terra, como depois de subir ao céu e estar
assentado à destra do Padre, pois, se havia de conceder este tão grande privilégio aos homens,
depois de se ausentar deles e estar no céu, por que lho não concedeu quando vivia neste
mundo? A razão, em suma, é porque esta prerrogativa tão singular e relevante, de haverem de
fazer os homens maiores obras que as do mesmo Cristo, havia-nos de ser concedida em
virtude dos mistérios e orações do Rosário. E estas duas condições, nem da parte de Cristo
nem da nossa, se podiam cumprir nem ter efeito, antes de o mesmo Senhor, por meio da
Morte e Ressurreição, ir deste mundo ao Padre: Et majora faciet, quia ad Patrem vado.
7. Ouçamos ao Cardeal Caetano que, mais resumida e mais nervosamente que todos,
declarou a energia deste porquê: Mirabilis apparet promissio, sed cessabit admiratio libratis
subsequentibus conditionibus adjunctis11. Se vos parece admirável uma tão grande e
extraordinária promesa, ponderai as condições seguintes, que o mesmo Senhor, ajuntou e logo
cessará a admiração. E quais são estas condições? A primeira é a morte e glorificação de
Cristo, significadas nas palavras: Quia ad Patrem vado. Clauditur efficacia mortis ejus,
dicendo, vado. per mortem enim ibat ad Patrem; et clauditur etiam glorificatio ejus, dicendo,
ad Patrem: transire enim Jesum ex hoc mundo ad Patrem, est de statu mortali et humili ad
statum immortalitatis, gloriae et regni ire. Hinc et meritum mortis ejus, et tempus
glorificationis ejus significatur in causa, quod credentes in ipsum fecerent haec, et majora.
De sorte que, para os homens fazerem maiores obras que as de Cristo, a primeira condição
que necessariamente havia de preceder, era o merecimento de sua morte e o tempo da sua
glorificação, e estas mesmas eram a segunda e terceira parte dos mistérios do Rosário, que
ainda faltavam para complemento dele. Enquanto Cristo vivia neste mundo, não estava ainda
cumprida e inteirada mais que a primeira parte dos mistérios do Rosário, que eram os
Gozosos: faltavam os Dolorosos, que se cumpriram na morte, e faltavam os Gloriosos, que se
cumpriram na Ascensão. E como Cristo havia de conceder este tão extraordinário privilégio
aos homens por meio dos mistérios do Rosário, por isso o não podia conceder nesta vida e
neste mundo senão depois que morresse e subisse ao Padre: Majora faciet, quia ad Patrem
vado.
8. Esta é a primeira condição da parte de Cristo, que são os mistérios: a segunda qual
é? É a outra, da nossa parte, que são as orações do mesmo Rosário. Assim continua e estende
a sua razão o mesmo Cristo sobre o mesmo porquê: Quia ad Patrem vado. Et quodcumque
petieritis Patrem in nomine meo, hoc faciam12: porque eu subo ao Padre, e porque ele vos há
de conceder tudo o que em meu nome pedirdes. Excelentemente o já alegado Caetano:
Explicatur amplissima facultas impetrandi, non aliquid, sed omne, quod petierint. Ubi
diligentius cerne, et nota conjunctionem, et jungentem hanc causae partem praecedenti. Ita
quod continentur haec verba sub illa conjunctione causali: quia. Et significatur clare per
hoc, quod ut credens in Jesum faciat haec, et majora, concurrunt ut causa non solum quod

10 Fará também as obras que eu faço, e fará outras ainda maiores.(Jo. 14,12)
11 Caietanus in hunc locum.
12 Porque eu vou para o Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo farei (Jo. 14,12 s).
167
ego vado ad Pátrem, sed quod vos petatis. Quer dizer que debaixo do mesmo guia e do
mesmo porquê, ajuntou Cristo a segunda parte da razão, porque os homens haviam de fazer
maiores coisas do que ele tinha obrado, e deste medo vem a concluir o Senhor, que a dita
razão ou causa se compõe de duas condições, uma da parte do mesmo Cristo, que são os
mistérios do Rosário, para cujo complemento foi necessário que ele morresse e subisse ao
Padre: Quia vado ad Patrem, e outra da parte nossa, que são as orações do mesmo Rosário,
por meio das quais impetramos e alcançamos do Padre, debaixo do nome de seu Filho, tudo o
que pedimos: Et quodcumque petieritis Patrem in nomine meo, hoc faciam. De maneira que
os mistérios e as orações do Rosário são as duas partes de que se compõem o motivo e razão
total por que Cristo concedeu aos homens o privilégio nunca imaginado de poderem fazer o
que ele fez: conservando, porém, nisso mesmo a soberania própria e a diferença de Senhor a
servos, porque Cristo, como Senhor, obrava mandando, e os homens, como servos, haviam de
obrar pedindo: Et cum hoc declaratur etiam modus faciendi, nam ipse fecit imperando,
credentibus, outem in eum promittitur quod facient haec, et majora, supplicando.
9. Suposto, pois, que aos mistérios e orações do Rosário foi particularmente concedida
esta tão admirável prerrogativa, em que pessoa, ou em que matéria a podemos ver mais
propriamente praticada, que na pessoa do grande patriarca S. Domingos, e no caso de outro
demônio também mudo. Na pessoa de S. Domingos, digo, que depois da Virgem Maria foi o
primeiro fundador e o maior propagador do Rosário; e no caso de outro demônio mudo, o qual
não só procurou de emudecer um homem, mas com efeito tinha posto perpétuo silêncio a
muitos, para que não só não rezassem o Rosário, mas o desestimassem e blasfemassem. O
milagre que obrou Cristo no demônio mudo foi muito grande, mas o que obrou S. Domingos,
em cumprimento da sua mesma promessa, foi muito maior. Lá falou o mudo: Loccutus est
mutus, mas não falou o demônio: cá falou o mesmo demônio e não só um demônio, mas
muitos demônios. Lá não refere o evangelista o que disse o mudo, sem dúvida porque falando
não disse coisa de importância: cá disseram os demônios coisas tão importantes e de tanto
peso, que nenhum homem as podia saber nem dizer semelhantes. Lá disse o mudo o que quis:
cá disseram os demônios obrigados o que não queriam. Lá, saindo o demônio de um, entrou
em muitos, que foram os escribas e fariseus que blasfemaram o milagre: cá, antes de saírem
de um corpo, muitos homens os lançaram de suas almas. Lá, finalmente, admirados os
circunstantes, só uma mulher exclamou: Extollens vocem quaedam mulier13: cá, não só admi-
rados, mas atônitos e pasmados todos, foram muitos mil os que com vozes que chegavam ao
céu, louvavam e engrandeciam a virtude e poderes da Mãe de Deus e de todo o coração se
convertiam a ele. Mas vamos já ao caso, e ouçamos o novo pregador com a atenção que ele
saberá merecer.

§III

O milagre de S. Domingos em Carcassona. O Rosário, cadeia que ata e abrasa os


demônios.

10. Pregando em Carcassona, cidade de França, o glorioso S. Domingos, e pregando,


como sempre costumava, a devoção do Rosário, trouxeram-lhe um endemoninhado
furiosíssimo, o qual se despedaçava a si mesmo, e, posto que vinha atado com cadeias de
ferro, não havia quem o pudesse domar nem ter mão. Mas o santo tinha outra cadeia mais
forte e mais poderosa, que era o Rosário. Lançou o seu Rosário ao pescoço do miserável
homem, e o demônio com grandes repugnâncias e visagens, em que mostrava a nova força de
13 Uma mulher, levantando a voz (Lc. 11,27).
168
que se sentia oprimir, ficou domado. Agora entenderão os doutos uma boa interpretação
daquele anjo do Apocalipse, sobre que os expositores antigos e modernos se dividem em
tantas opiniões. Diz S. João que viu descer do céu um anjo, o qual trazia na mão uma grande
cadeia, e que com ela prendeu e atou àquela antiga serpente que enganou o gênero humano, o
qual por um nome se chama demônio, e por outro Satanás: Vidi angelum descendentem de
caelo, habentem... catenam magnam in manu sua. Et apprehendit draconem, serpentem
antiquum, qui est diabolus, et Satanas, et ligavit eum14. As outras palavras que acrescenta o
texto, pode ser que nos sirvam e as expliquemos depois; o que só digo de presente é que este
anjo descido do céu é o apóstolo da Virgem Maria, S. Domingos, varão por todas suas
virtudes angélico, e que a grande cadeia que do mesmo céu trouxe na mão, e com que prendeu
a serpente, e atou o demônio, é o Rosário. Das mesmas Crônicas de S. Domingos, que em
semelhantes casos são os melhores expositores, o provo.
11. Em um povo da ilha de Evisa exorcizava um filho do mesmo santo uma mulher
endemoninhada, e era o demônio tão protervo, tão rebelde e tão obstinado, que a nenhuns
esconjuros nem orações se rendia; rendeu-se porém, finalmente, à invocação do Santíssimo
nome de Maria e aos poderes insuperáveis do seu Rosário, mas com uma circunstância muito
notável, a qual eu só pondero em prova do que digo. Quando lançaram o Rosário ao pescoço
da aflita mulher, começou a gritar o demônio: Tirem-me essa cadeia que me abrasa. Tirem-me
essa cadeia que me abrasa". Já temos que o Rosário é cadeia que ata o demônio. Mas que seja
cadeia que o abrasa, como pode ser? Assim como os anjos quando estão na terra, trazem
consigo a sua glória, assim os demônios trazem também consigo seu inferno. Os anjos trazem
consigo a sua glória, porque em qualquer parte estão vendo a Deus, e os demônios trazem
consigo o seu inferno, porque em qualquer parte estão ardendo naqueles incêndios eternos.
Pois, se este demônio estava ardendo em fogo, e em tal fogo, qual é o do inferno, como diz
que o abrasava a cadeia do Rosário? Pode haver fogo mais penetrante, mais forte e mais
abrasador que o do inferno? Sim. E estas novas chamas e labaredas são para os demônios as
orações dos cristãos. Assim o confessaram já antigamente os mesmos demônios e o refere
Minúcio Felix naquela sua famosa apologia contra os gentios: Haec omnia sciunt plerique
vestrum, ipsos daemones de semetipsis confiteri, quoties a nobis, et meritis verborum et
orationum incendiis et corporibus exiguntur. De sorte que mais queimam e mais abrasam aos
demônios as orações do Rosário que o mesmo fogo do inferno. E a razão natural é porque do
fogo do inferno vingam-se e aliviam-se com blasfemar de Deus; porém nas orações do
Rosário cresce-lhes outro fogo maior, porque ouvem nelas os louvores de Deus. No inferno
ouvem dizer: Maldito seja Cristo e sua Mãe; no Rosário ouvem pelo contrário: Benedicta tu
in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, e este é o fogo sobre fogo e o incêndio sobre
incêndio, que intoleravelmente os abrasa. Assim como S. Miguel lançou no inferno aos
demônios, dizendo: Quis sicut Deus? - assim S. Gabriel acrescentou e acrescenta cada dia o
inferno aos mesmos demônios, dizendo: Ave gratia plena. Estes são pois os fuzis de maior e
mais penetrante fogo, de que se forma a cadeia do Rosário, e esta é a cadeia que S. Domingos
trouxe do céu, e esta a com que domou o demônio que lhe presentaram, que rompia e desfazia
todas as outras.

§IV

Primeira pergunta de S. Domingos ao demônio: quantos eram, e qual tinha sido a


causa por que entraram naquele homem. Os quinze mil demônios do endemoninhado. Não é

14 Vi descer do céu um anjo, que tinha... uma grande cadeia na sua mão. E ele tomou o dragão, a serpente
antiga, que é o diabo, e Satanás, e o amarrou (Apc. 20,1 s).
169
maravilha que tanta multidão de demônios coubesse em tão estreita morada. Chegou Deus a
fazer em defensa da honra do Rosário o que nunca fez, nem faria, para defender a sua. O
extraordinário castigo sofrido por Datã e Abiron. O castigo a que submeteu S. Paulo um
cristão de Corinto. A devoção do Rosário não admite neutralidades.

12. Sossegado, pois o demônio, e reduzido a estado de responder com este primeiro
império do Rosário, que foi como exórdio do sermão, começou S. Domingos a levantar as
questões, e o demônio, ponto por ponto, a responder a elas. Era tal o ruído que dentro da
endemoninhado se ouvia de várias línguas, e confusas e espantosas vozes, que bem
mostravam não ser um só demônio o que ali residia. Perguntou-lhe, pois, o Santo quantos
eram e qual tinha sido a causa por que entraram naquele homem? Estou certo que ninguém
espera nem imagina qual podia ser a resposta. Responderam que eles eram quinze mil
demônios e que todos, por mandado de Deus, atormentavam aquele mau homem, por ser
inimigo capital do Rosário de Maria, e desprezar e desacreditar os sermões em que o pregava
Frei Domingos, e com seu exemplo e falsas exortações persuadir o mesmo desprezo a muitos,
e impedir com isso sua conversão. Instou o santo e perguntou por que eram quinze mil
precisamente, nem mais, nem menos? Responderam que em reverência dos quinze mistérios
do Rosário, e em vingança e castigo da grande injúria e afronta de Deus, com que aquele
homem os blasfemava, acrescentando os mesmos demônios, que tinham entrado nele muito
contra sua vontade e conveniência, por ser um dos maiores ministros do inferno e que mais
favorecia suas partes e os ajudava, sendo já muitas as almas que, por seu meio, se tinham
condenado. Este foi o primeiro ponto do sermão, atônitos, assombrados e temerosamente
compungidos dentro em si mesmos todos os que tais coisas ouviam.
13. Não é maravilha que tanta multidão de demônios coubesse em tão estreita morada,
como a de um corpo humano, porque são espíritos e não ocupam lugar; mas para atormentar
um só homem quinze mil demônios? Se os homens foram quinze mil, um demônio sobejava,
não só para os maltratar mas para os matar a todos. Não tinha maiores forças naturais o que no
exército de Senaqueribe matou em uma noite cento e oitenta e cinco mil homens (4 Rs.
19,35). A que fim, logo, tanto estrondo, tanto aparato, tantas levas de espíritos infernais? Jó,
que bem lhe tinha tomado o pulso aos braços, diz que não há poder no mundo que se lhe
possa comparar: Non est super terram potestas quae comparetur ei (Jó 41,24). Um só
demônio era o que teve licença, não absoluta, mas limitada, para provar com ele as forças; e,
depois dos estragos que lhe fez nos gados, nos criados, nos filhos, na casa, olhai para o
mesmo Jó, e ouvi o que dizia. O corpo, desde o pé até a cabeça, era uma chaga viva,
asquerosa, hedionda, e por fora e por dentro, sem entrar nele o demônio, eram tão agudas, tão
insuportáveis e tão contínuas, de dia e de noite, as dores que obrigavam ao mesmo exemplar
da paciência a chamar pela morte e amaldiçoar a hora em que nascera. Tempo virá - que ainda
não está cumprido - em que se desatem aqueles quatro demônios que S. João viu no
Apocalipse: Quibus datum est nocere terrae et mari15. E se para revolver todo o globo do mar
e da terra, e meter em confusão e ruína tudo quanto nele vive, bastam quatro demônios, que
fariam em tão estreito anfiteatro quinze mil leões desatados, que assim lhes chama S. Pedro,
mais fero cada um que todas as feras? Se era para vingar a injúria cometida contra os quinze
mistérios do Rosário nos quinze Padre-Nossos não bastavam quinze demônios? Se para
desafrontar as cento e cinqüenta saudações angélicas, impugnadas e desprezadas nas cento e
cinqüenta Ave-Marias, não bastava que eles também fossem cento e cinqüenta?
14. A nós parecer-nos-á que sim, mas não o julgou nem o sentenciou assim Deus. Quis
que nos desagravos do Rosário fosse tão excessivo o número dos ministros de sua justiça,
15 Aos quais fora dado o poder de fazer mal à terra e ao mar (Apc. 7, 2).
170
para que na mesma multidão dos executores se manifestasse tanto a grandeza da ofensa como
a dignidade do ofendido. Chegou Deus - vede o que digo - chegou Deus a fazer em defensa da
honra do Rosário, o que nunca fez nem faria para defender a sua. E atrevo-me a dizer o que
não faria, porque o que Cristo faria no maior perigo da sua honra e vida, para a defender, ele
mesmo o declarou, e não é tanto. Quando S. Pedro quis defender a Cristo no Horto, mandou-
lhe o Senhor que embainhasse a espada, e a razão com que o sossegou foi esta: An putas, quia
non possum rogare Patrem meum, et exhibebit mihi modo plusquam duodecim legiones
angelorum (Mt. 26,53)? Não sabes que, se eu me quisesse defender, posso pedir socorro a
meu Padre, e ele me mandaria logo mais de doze legiões de anjos? - Reparai neste número,
que é muito digno de reparo. Assim como o Senhor disse doze legiões de anjos, assim pudera
dizer, doze mil legiões, porque os anjos são inumeráveis; pois, porque disse doze legiões
determinadamente? Porque com este número de espíritos angélicos ficava largamente
encarecido o grande empenho que o Padre faria para defender a honra e vida de seu Filho, e o
mesmo Filho a sua. A corte de soldados romanos que vieram prender a Cristo constava de mil
soldados; e que partido podiam ter, diz S. Crisóstomo, contra doze legiões de anjos mil
homens? Quid facerent duodecim legiones angelorum in mille viros? Bastavam sobre todo o
encarecimento doze anjos, quanto mais doze legiões. Computai-me agora o número das doze
legiões dos anjos, naquele caso, com o dos quinze mil demônios no nosso. Cada legião
romana constava de seis mil seiscentos e sessenta e seis soldados, com que doze legiões de
anjos vêm a montar oitenta mil anjos, os quais, repartidos e contrapostos aos mil soldados que
vieram prender a Cristo, vêm a caber oitenta anjos para cada homem. E quando, na mais
encarecida suposição, tudo o que o Eterno Padre faria para defender a honra e vida de seu
Filho, e Cristo para defender a sua, era opor a cada homem oitenta anjos, o que fez o mesmo
Padre e o mesmo Filho para defender a honra e estabelecer a conservação do Rosário foi
meter dentro em um só homem quinze mil demônios.
15. As forças e poder natural dos demônios é igual ao dos anjos; mas por que foram
neste caso não anjos senão demônios, os que armou e mandou Deus em defensa do Rosário?
Porque assim como quis acreditar o Rosário no desagravo de suas injúrias, assim quis
atemorizar os homens no castigo de suas ofensas. Quando Datã e Abiron fizeram cisma no
povo e se rebelaram contra Moisés pela instituição e publicação do sumo sacerdócio, falou o
mesmo Moisés ao povo desta maneira: - Se o castigo com que Deus castigar estes rebeldes for
algum dos castigos com que ordinariamente costuma castigar os homens, não me deis crédito:
Sin outem novam rem fecerit Dominus, ut aperiens terra os suum deglutiat eos...
descenderintque viventes in infernum, scietis, quod blasphemaverint Dominum (Num. 16,30):
Porém, se Deus executar neles um castigo extraordinário e tão prodigioso, que a terra os
trague, e desçam vivos ao inferno, então entendereis sem dúvida que blasfemaram a Deus no
que disseram. - O mesmo sucedeu no nosso caso. Rebelou-se contra a pregação de S.
Domingos aquele herege, disse muitas blasfêmias contra a devoção do Rosário, fez cisma no
povo, levou após de si grande parte dele, e esta foi a culpa por que Deus o castigou com um
tão extraordinário e temeroso castigo, não o entregando a um só demônio, mas, com prodígio
nunca visto, a quinze mil. Tendo cometido um cristão da primitiva Igreja um pecado enorme,
consultou S. Paulo a congregação dos coríntios, de onde ele era, sobre o modo com que devia
ser castigado exemplarmente para terror dos demais. E qual vos parece que seria o castigo?
Não o condenou à morte, como S. Pedro a Ananias e Safira, mas, com a autoridade suprema
que tinha de Cristo, julgou que fosse entregue a um demônio, para que vivo o atormentasse:
Congregatis vobis, et meo spiritu, cum virtute Domini nostri Jesu, judicavi tradere hujusmodi
Satanae16. E se para atemorizar toda a Igreja com o castigo mais exemplar e tremendo não se
16 Congregados vós e o meu espírito, com o poder de nosso Senhor Jesus, julguei entregar o tal a Satanás (I Cor.
171
achou outro algoz mais cruel, nem se inventou outro tormento mais temeroso que entregar um
homem a um demônio, que temor e horror causaria agora este, entregue por sentença do
mesmo Cristo a quinze mil demônios? A circunstância mais prodigiosa no castigo de Datã e
Abiron, foi que a ordem do inferno se trocasse neles e que descessem ao inferno vivos, onde
os outros homens não vão senão depois de mortos. E a mesma circunstância de rigor, por
outro modo não menos temeroso, executou a justiça divina neste inimigo e perseguidor do
Rosário, porque o não mandou a ele ao inferno, senão que todo o inferno entrasse nele. Que
coisa era um homem com quinze mil demônios dentro em si, senão um inferno vivo, não
oculto e invisível no centro, senão público e manifesto sobre a face da terra? É provável que
no inferno a cada condenado atormenta somente o seu demônio tentador; a quem obedeceu e
serviu na vida. Um homem, porém, condenado a que o atormentassem quinze mil demônios,
vede que inferno seria o seu! Se os demônios, que não estavam ociosos, repartiram entre si
aquele corpo, quais seriam os tormentos que padeceria em cada mínima parte? E se todos o
atormentavam todo, quem poderá conceber nem imaginar a imensidade de um tormento
diabólico e infernal quinze mil vezes reduplicado? Mas assim castiga Deus à vista de todo o
mundo um inimigo do Rosário, para que conheçam o seu estado e tremam do seu perigo, os
que o não rezam, que são os mudos.
16. Estou vendo, porém, que o mesmo demônio mudo os anima e consola, e ainda
desculpa; e que estão dizendo dentro em si: Eu, posto que não seja devoto do Rosário, não o
persigo, nem sou seu inimigo. Enganais-vos. A devoção do Rosário não admite neutralidades:
se o rezais, sois amigo, se o não rezais, inimigo. É doutrina e sentença não menos que do
mesmo Cristo neste mesmo Evangelho: Qui non est mecum, contra me est (Lc. 11,23): Todo o
que não está comigo, é contra mim. - Como pode ser amigo de Cristo, quem não quer meditar
seus mistérios? E como pode ser devoto de sua Mãe, quem a não quer saudar muitas vezes?
Mas passemos ao segundo ponto.

§V

Segunda questão de S. Domingos ao demônio: quais os cristãos que se condenavam, e


se havia dominicanos e franciscanos no inferno. A sorte dos nobres, dos ricos e dos
poderosos. Entre os quinhentos discípulos que seguiam a Cristo, achamos apenas um nobre
para cada cento. Os grandes vão ao inferno porque podem, e os pequenos vão ao céu a mais
não poder. Cristo, causa exemplar de todos os predestinados, escolheu neste mundo o estado
de pobreza, sendo reputado por filho de um oficial. O quanto se enganou no que esperou ou
presumiu de nós S. João Batista.

17. A segunda questão que levantou S. Domingos, e a outra pergunta que fez aos
demônios, foi esta: Quais eram, entre todos os cristãos, os que mais se condenavam? E se dos
seus companheiros, e dos de seu irmão Francisco, havia também alguns no inferno? Quanto à
primeira parte responderam a multidão dos demônios na voz de um, que falava por todos,
desta maneira: Dos nobres, dos poderosos, dos ricos e regalados, assim homens, como
mulheres, temos grande número, porque a soberba, a ambição, a inveja, a vaidade, o luxo, os
deleites da carne, e os outros vícios que com estes se acompanham, em que continuam sem
arrependimento nem emenda até à morte, e os danos que fazem com seu poder aos pequenos,
que raramente ou nunca restituem, os levam quase todos ao inferno. Porém, da gente popular,
humilde e dos rústicos do campo em respeito deste grande número, são muito poucos os que
se condenam, porque, ainda que não sejam santos, a sua pobreza e o trabalho de suas mãos,
5,3 ss).
172
com que sustentam a vida e lhes leva todo o cuidado, os livram de muitos pecados e dos mais
graves, em que é fácil a penitência. E quanto aos teus companheiros, e de teu irmão Francisco,
confessamos que até agora nenhum temos conosco, mas esperamos, por meio de nossas
indústrias, que pouco a pouco se irão esquecendo de suas obrigações alguns deles, e virão,
como os demais, a nossas mãos. - Com esta clareza falaram os demônios para grande
confusão minha e de outros que sobem a este lugar, a quem também tenta e engana o demônio
mudo, pois calamos - não sei por que - o que só devêramos dizer e bradar: Vae mihi, quia
tacui, quia vir pollutus labiis ego sum17.
18. Em suma, senhores cristãos, que os grandes, os nobres, os ricos, os poderosos, não
entre os gentios, senão entre nós, são os que mais se condenam. Já nos não podemos queixar,
como o rico avarento, de que não viesse a este mundo um pregador do inferno, que referisse o
que lá se passa, pois Deus mandou nesta ocasião quinze mil pregadores do inferno, em
confirmação do que pregava um pregador da terra. Oh! cegueira! oh! miséria! oh! frieza e
esquecimento da fé! De sorte que as grandezas, as nobrezas, as riquezas, que tanto procuram
os que são ou desejam ser poderosos, e o fim por que desejam os mesmos poderes, estes são
os meios certos, por onde negociam e solicitam sua condenação, os que neste mundo se têm
por maiores e melhores que os demais. Os outros requerem diante deles, e eles são perpétuos
requerentes do seu próprio inferno; e quanto mais bem despachados, tanto mais mofinos. Tão
cegos, porém, com o fumo desta vaidade, e tão saboreados deste enganoso veneno, que não só
vivem alegres e contentes na sua miséria, e dão graças à sua fortuna, mas desprezam e têm por
vil a dos que eles, com a falsa voz do mundo chamam gente de baixa condição, sendo estes,
aqueles verdadeiramente bem-aventurados a quem Cristo prometeu o reino do céu. Isto
mesmo, que aqui pregaram os demônios, é o que pregou e ensinou Jesus Cristo. Não chamou
bem-aventurados os grandes, senão os pequenos; não os ricos, senão os pobres; não os que
riem, senão os que choram; não os abundantes e fartos, senão os famintos; não os que passam
a vida em prazeres e delícias, senão os que padecem; não os estimados e adorados, senão os
desprezados e perseguidos. Que muito, logo, que dos que em tudo seguem, amam, estimam,
professam e idolatram o contrário, esteja cheio o inferno, e sejam muito poucos os que se
salvam? Já que não somos cristãos pela fé de Cristo, por que o não seremos ao menos pelos
desenganos do demônio?
19. Ouçamos a S. Paulo, e, se queremos entender bem este ponto, entendamos que fala
conosco: Videte vocationem vestram, fratres, quia non multi sapientes secundum carnem, non
multi potentes, non multi nabiles18. Escrevia S. Paulo aos coríntios, cuja república na ciência
política, na grandeza, na nobreza, no luxo e fausto dos poderosos, competia com Roma, e se
chamava a Roma da Grécia; e para que esta pompa exterior da fortuna os não enganasse e
desvanecesse, como costuma, manda-lhes o Apóstolo que abram os olhos, e que os ponham
em quê? Não na contumácia e pouca duração de tudo o que resplandece e parece grande no
mundo, senão na sua vocação: Videte vacationem vestram (1 Cor. 1,26). A vocação dos
coríntios era a da fé e do cristianismo, a que Deus os tinha chamado e eles tinham recebido. E
nesta vocação, que é o que haviam de advertir e notar? Coisa admirável! Que não chamara
Deus a ela, nem a muitos sábios segundo a carne, que são os políticos, nem a muitos
poderosos, nem a muitos nobres: Quia non multi sapientes secundum carnem, non multi
potentes, non multi nobiles (Ibidem). Gloriem-se agora lá os poderosos e os nobres, e
desprezem os que o não são. De todos os homens são muitos os chamados e poucos os
escolhidos; dos nobres e poderosos não só são poucos os escolhidos, senão poucos os

17 Ai de mim, porque me calei, porque eu sou um homem de lábios impuros (Is. 6,5).
18 Vede, irmãos, a vossa vocação, porque chamados não foram muitos sábios segundo a carne, não muitos
poderosos, não muitos nobres (1 Cor. 1,26).
173
chamados: Vídete vocationem vestram, non multi potentes, non multi nobiles Quereis saber
quão poucos são? Cristo, Senhor nosso, como já dissemos, converteu neste mundo quinhentos
discípulos, pouco mais: assim o diz e os conta nesta mesma epístola o mesmo S. Paulo: Visus
est plus quam quingentis fratribus19; e destes quinhentos convertidos, que seguiam a escola de
Cristo, quantos eram os nobres e poderosos? Coisa mais admirável ainda. Apenas achareis um
para cada cento: Um capitão, que era José; um senador, que era Nicodemus; um fidalgo, que
era Lázaro; um régulo, que era o cafarnaíta, e para chegar a encher o número, é necessário que
entre também Zaqueu com o seu dinheiro, que ainda naquele tempo não era fidalguia. De
maneira, que da nobreza tão desvanecida, de cada cento, um; e da plebe humilde e
desprezada, de cada cento, noventa e nove.
20. E qual é a razão desta diferença? A primeira e mais visível é a que deram os
demônios. Porque os grandes e poderosos têm muita matéria e muita liberdade para os vícios:
os pequenos e que pouco podem, ou pouca ou nenhuma. Donde se segue que os grandes vão
ao inferno porque podem; e os pequenos vão ao céu a mais não poder, porque se eles puderam
também haviam de fazer como os demais. Poder fazer mal, e não o fazer, é milagre da graça,
que ela faz poucas vezes: Qui potuit transgredi, et non est transgressus: et facere mala, et
non fecit. Quis est hic, et loudabimus eum? Fecit enim mirabilia in vita sua 20. Assim que, os
grandes vão ao inferno pelas ações do que podem, e os pequenos ao céu pelas omissões do
que não podem. Esta é a razão mais pública. A mais oculta e mais alta é porque esta mesma
impotência dos pequenos e populares é efeito da sua predestinação.
21. Seguia todo o povo a Cristo, e, para impedir estes concursos e aplausos
malsofridos de seus êmulos os príncipes dos sacerdotes, mandaram eles bom número de
ministros que fossem prender ao Senhor. Foram, mas com sucesso tão encontrado, que ao
invés de prenderem, ficaram presos. Tornando pois sem a desejada presa, perguntaram-lhes os
pontífices e fariseus: Quare non adduxistis illum? Por que o não prendestes? Responderunt
ministri: Nunquam sic locutus est homo (Jo. 7, 45 s): Não o prendemos, porque o ouvimos; e
nunca houve homem que falasse como este. - Bendito seja Deus que já houve ministros que
perdoassem a um pregador por falar bem! Mas eram ministros inferiores. Ouçamos agora o
que instaram e replicaram os supremos: Nunquid et vos seducti estis? Nunquid ex principibus
aliquis credit in eum, aut ex pharisaeis? Sed turba haec, quae non novit legem (Jo.7,47 ss):
Basta, que também vós vos deixais enganar? Porventura a esse homem seguiu-o algum dos
príncipes e dos grandes? Não. Os que o seguem e crêem nele é a gente do povo, baixa e rude.
- Logo esse homem não é o Messias. Assim argumentavam e inferiam contra Cristo, como
êmulos e inimigos, devendo inferir contra si e desenganar-se, como prudentes. Em semelhante
caso de uns, que repudiaram a Cristo, e outros, que abraçaram a sua fé, diz S. Lucas: Et
crediderunt quotquot erant praeordinati ad vitam aeternam (At. 13,48): E creram nele todos
os que eram predestinados para a vida eterna. - Esta é a verdadeira conseqüência que deviam
inferir os príncipes e grandes da Sinagoga. Nós, os príncipes e grandes, não aceitamos a
doutrina de Cristo, nem o seguirmos, e o povo sim; logo o povo é o predestinado, e nós não.
22. Esta teologia não será muito agradável aos ouvidos costumados às lisonjas alheias,
e também à própria; mas é o mero espírito do Evangelho, e a suma de toda a doutrina de
Cristo. Não porque sempre e necessariamente haja de ser assim, mas porque as mais vezes, e
pelo comum da Providência Divina, é efeito e sinal da predestinação fazer Deus pequenos e
de humilde condição, e não grandes e poderosos, aos que quer salvar. E se quereis ver com os
olhos a razão fundamental e divina desta providência, olhai para a vida de Cristo. Cristo é a

19 Foi visto por mais de quinhentos irmãos (1 Cor. 15,6).


20 Pôde transgredir a lei de Deus, e não a transgrediu, pôde fazer o mal, e não o fez (Eco. 31, 10). Quem é este e
nós o louvaremos? Porque fez coisas maravilhosas em sua vida (Eclo. 31, 9).
174
causa exemplar de todos os predestinados: Quos praescivit et praedestinavit conformes fieri
imaginis Filii sui21. E qual foi o estado que Cristo escolheu neste mundo? O de pobre, o de
humilde, o da condição ínfima e plebéia, querendo o Filho de Deus ser reputado por filho de
um oficial: Fabri filius (Mt. 13,55), e ajudando a ganhar o pão com o trabalho de suas mãos e
o suor do seu rosto. Logo o que veste a samarra no monte, a que rompe a terra com o arado no
campo, o que maneja a serra, ou outro instrumento mecânico no povoado, esta gente humilde
e popular, são os que Deus comumente predestinou para no céu lhe trocar a fortuna. Vede-o
nas ações ou afetos deste mesmo Evangelho. Houve quem admirou, houve quem louvou,
houve quem blasfemou o milagre: mas quais foram uns e outros? Os que blasfemaram, foram
só os grandes e poderosos, os escribas e fariseus; os que admiraram e louvaram, todos foram
do povo. Os que admiraram, do povo: Admiratae sunt turbae; os que louvaram, ou a que
louvou, do povo: Extollens vocem quaedam mulier de turba.
23. Oh! quanto se enganou no que esperou ou presumiu de nós S. João Batista! Não
estranheis a palavra. Os profetas eram profetas e pregadores juntamente: como profetas
diziam o que havia de ser, como pregadores diziam o que era bom que fosse, e no sucesso
disto se podiam enganar. Assim se enganou conosco o Batista. Cuidou que tanto que os
homens vissem ao Deus feito pequeno não havia de haver quem quisesse ser grande, e que
haviam de contender a quem havia de ser menor que todos, assim como hoje contendem a
qual há de ser maior: Omnis vallis implebitur: et omnis mons et collis humiliabitur22. Tanto
que Deus aparecer no mundo, tão pequeno como um cordeiro, como eu o hei de mostrar com
o dedo, os montes e os outeiros se hão de abater e derrubar por si mesmos, e encher os vales, e
não há de haver altos e baixos na terra: tudo há de ser igual. E que montes e outeiros são
estes? Os montes são os da primeira nobreza e do primeiro poder; os outeiros são os da
segunda. E, posto que na Cristandade temos exemplos de alguns que voluntariamente se
abateram, os demais estão tão fora disso e os mesmos vales também, que os vales aspiram a
ser outeiros, os outeiros a ser montes, os montes a ser Olimpos e exceder as nuvens. Mas nem
por isso estão mais perto do céu, senão muito mais longe. O Batista disse: Omnis mons et
collis, falando de todos, e por isso se enganou nas suas esperanças.

§VI

Terceira e última questão de S. Domingos ao demônio: que dissesse publicamente se


tudo o que ele pregava da devoção do Rosário era verdade, e qual era no céu o santo a quem
eles mais temiam e a quem os homens mais se deviam encomendar Maria. Mãe de Deus, a
maior inimiga do demônio. Por que não diz Deus que porá inimizades entre a serpente e o
homem, senão entre a serpente e a mulher? Resposta de Salomão ao pedido de sua mãe,
Bersabé. Os rogos de Maria para com Deus são impérios, as petições são decretos, as
execuções obediência. O que dizem da devoção a Maria os Padres gregos e latinos. A Arca
de Noé e a excelência de Maria.

24. A terceira e última questão que excitou S. Domingos foi perguntar e mandar aos
demônios, que dissessem publicamente se tudo o que ele pregava da devoção do Rosário era
verdade, e qual era no céu o santo a quem eles mais temessem e a quem os homens mais se
deviam encomendar, glorificar, amar e honrar. Ouvindo esta pergunta, todos os quinze mil
demônios levantaram tais clamores e fizeram tais alaridos, que muitos dos circunstantes,

21 Os que ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho
(Rom. 8,29).
22 Todo o vale será cheio, e todo o monte e colina será arrasado (Lc 3,5).
175
assombrados, caíram em terra de pavor e espanto. Mas não foi esta só a demonstração da sua
grande repugnância e sentimento. Lançam-se aos pés do santo, e rogam-lhe que se contente de
que lhes descubram aquelas coisas à parte, e só a ele em segredo, mas de nenhum modo em
público e em presença de tanta multidão de gente. Venceu, porém, esta grande resistência a
oração de S. Domingos, e, por império da mesma Mãe de Deus, foram constrangidos os
demônios a responder e confessar a verdade publicamente e em altas vozes, que fossem
ouvidas de todos.
25. Primeiramente, raivando e mordendo muitas vezes a língua do endemoninhado,
disseram que a maior e mais poderosa inimiga que tinham no céu, era Maria, a Mãe de Deus,
que de lá os lançara. Ela é - dizem - a que, como luz, desfaz as trevas de nossos enganos; ela a
que destrói e converte em nada todas as nossas máquinas e intentos, e se não fora pela
proteção, vigilância e domínio com que reprime nossa potência e desbarata nossas traças, já
tivéramos destruído a Cristandade e enganado e pervertido a maior parte dos Estados da
Igreja. Vale mais um suspiro, um aceno, e qualquer significação da sua vontade diante do
trono de Deus, que as orações e petições de todas as hierarquias dos anjos, e todos os santos
juntos. E como somos forçados, muito a nosso pesar, a vos descobrir este segredo, sabei,
cristãos, que nenhum dos que perseveram fielmente na devoção e serviço desta Senhora, se
condena porque, ou antes da morte lhe alcança verdadeira contribuição e arrependimento de
seus pecados, ou ainda depois de mortos, e quando já os temos em nossas mãos, podendo
mais a sua valia que o nosso direito, os livra, por vários modos, de irem ao inferno. Assim que
tudo o que vos prega e ensina frei Domingos é verdade; e pela experiência que já temos, vos
seja notório a todos que nenhum devoto do Rosário, que continuar e perseverar firmemente
nesta devoção da Mãe de Deus, se condenará.
26. Isto é o que disse a uma voz toda aquela multidão de demônios, os quais, posto
que sejam pais da mentira, e não mereçam crédito, quando, porém, falam mandados e
obrigados por Deus - como neste caso - não dizem o que voluntária e maliciosamente
fingiriam, senão o que certa e verdadeiramente é, como instrumentos, posto que forçados, da
verdade divina. Quanto mais que tudo o que aqui afirmaram ou pregaram os demônios é
conforme a Sagrada Escritura e doutrina dos Santos. Disseram que a maior inimiga que
tinham é a Virgem Maria, e esta verdade é parte da mesma sentença que ouviram da boca de
Deus, quando por boca da serpente enganaram os primeiros homens: Inimicitias ponam inter
te et mulierem (Gên. 3,15): Porei inimizades entre ti e a mulher. - Para a sentença ser mais
rigorosa, e a execução dela mais temida, parece que não havia de dizer entre ti e a mulher,
senão entre ti e o homem. Porque não diz logo Deus, que porá as inimizades entre a serpente e
o homem, senão entre a serpente e a mulher: Inter te et mulierem? Porque esta mulher era, e
havia de ser, Maria; e Maria, a Mãe de Deus, é a maior e mais poderosa inimiga que têm e
temem os demônios, como eles mesmo confessam. Se a mulher de que falava, fora outra,
então diria Deus: Porei as inimizades entre ti e o homem - porque os homens são os que
matam as serpentes, e as mulheres fogem delas. Mas esta mulher mais que homem, era tão
diferente das outras, e havia de ser tão temida das serpentes e dos demônios como na segunda
parte da sentença lhe notificou o mesmo Deus: Tu insidiaberis calcaneo ejus. Ipsa conteret
caput tuum23. Será tão grande o medo que terá desta mulher, que jamais te atreverás contra ela
de rosto a rosto. Isso quer dizer: Insidiaberis calcaneo ejus. À traição e por cilada abrirás,
quando muito, contra ela a boca, como fazes pelas dos hereges, mas nunca a poderás morder.
Tuas serão as traições, mas suas as vitórias; tu maquinarás na cabeça astuta como serpente
mas ela te meterá a cabeça debaixo dos pés: Ipsa conteret caput tuum. Vede se falaram
verdade, e verdade canônica, os demônios?
23 Tu armarás traições ao seu calcanhar. Ela te pisará a cabeça (Gên. 3, 15).
176
27. Disseram mais, que basta qualquer significação da vontade de Maria para que
Deus faça prontamente quanto ela quer. Não fora Deus seu Filho, se assim o não fizera. Por
isso a pôs como Rainha do céu, da terra, e do inferno à sua mão direita: Astitit Regina a
dextris tuis24. Entrou em palácio Bersabé, mãe de el-rei Salomão, e diz o texto sagrado que
descendo-se o rei do seu trono, a saiu a receber com grande reverência, e lhe mandou pôr
outro trono à mão direita, em que se assentasse: Surrexit rex in occursum ejus, adoravitque
eam: positusque est thronus matri regis, quae sedit ad dexteram ejus (3 Rs. 2,19). Toda esta,
nem mais nem menos, é a história da Mãe de Deus no majestoso recebimento com que entrou
no céu e no trono e supremo lugar que lá tem à mão direita de seu Filho. E como Bersabé
dissesse a Salomão que tinha uma petição que lhe fazer, que responderia o sapientíssimo rei?
Pete, mater mea: neque enim fas est, ut avertam faciem tuam (3 Rs. 2,20): Pedi, mãe minha,
porque não é lícito que eu vos negue coisa alguma que me pedirdes. - Não é lícito, disse o rei
mais sábio e maior jurisconsulto do mundo, porque negar um filho a sua mãe o que lhe
pedisse seria contra a lei natural, da qual não estão isentas as maiores majestades. E, depois
que Deus teve Mãe, tem também lugar esta regra em Deus? Também, diz S. Gregório
Nicomediense, falando com a mesma Senhora: Tuam enim gloriam Creator existimans esse
propriam, et tanquam Filius ea exultans, quasi solvens debitum implet petitiones25. Não se
isenta a suprema soberania do Criador de pagar este tributo de obséquio à sua Mãe, antes se
preza e gloria tanto de fazer quanto lhe pede como Filho, que não despacha as suas petições
como graça, senão como dívida: Quasi solvens debitum implet petitiones. Alta e
verdadeiramente dito: quando Deus despacha as petições dos outros Santos, é graça, porque
faz o que pode, porque quer, quando despacha as de sua Mãe é justiça, porque faz o que não
pode deixar de querer, porque paga o que deve. E daqui infere o mesmo santo que os rogos de
Maria para com Deus são impérios, as petições são decretos, as execuções obediências: Nihil
tuae resistit potentiae, nihil repugnat tuis viribus, omnia cedunt tuo jussui, omnia tuo
obediunt imperio, omnia tuae potestati serviunt. Isto é o que dizem os santos, e isto o que
confessaram os demônios.
28. Só uma coisa das que disseram, parece dificultosa, e é afirmarem com tanta
asseveração, que nenhum devoto da Virgem Maria, se persevera na sua devoção, se condena.
Se nos quereriam os demônios enganar com esta grande confiança? É certo e certíssimo,
segundo o insaciável desejo que têm de nossa perdição, que assim o fariam, se pudessem; mas
como falavam obrigados e constrangidos por Deus, disseram, muito a seu pesar, o que não
puderam negar. Ouçamos, purificado pela boca dos santos, o mesmo que as venenosas dos
demônios vomitaram forçadas. Santo Anselmo, tão devoto da Senhora como alumiado do céu,
diz esta sentença notável, mas recebida e aprovada de todos os teólogos: Sicut, o Beatissima
Virgo, omnis a te aversus et despectus, necesse est ut intereat, ita omnis ad te conversus et a
te respectus, impossibile est ut pereat. Quer dizer: Assim como todo aquele que se aparta de
vós, ó Beatíssima Virgem, e por isso se faz indigno de vossa proteção e amparo,
necessariamente se condena; assim todo aquele que se converte a vós, e se faz digno de que
ponhais nele os olhos de vossa misericórdia e piedade, impossível é que se perca. - O mesmo
dizem, falando pelos mesmos termos de salvação e condenação, entre os Padres gregos, S.
Germano, S. Efrém, S. Epifânio, e entre os latinos, S. Pedro Damião, S. Boaventura, S.
Bernardo, o qual declara o medo destes dois impossíveis, com uma, não só comparação, mas
figura da mesma Senhora, tão elegante como evidente: Arca Noe significavit excellentiam
Mariae. Illam Noe, ut diluvium evaderet, fabricavit: istam Christus, ut humanum genus
redimeret, praeparavit. Per illam octo tantum animae salvantur: per istam omnes ad

24 Apresentou-se a rainha à tua destra (SI. 44, 10).


25 Greg. Nicomed. Orat. de oblat. Virg. Deiparae.
177
aeternam vitam vocantur26. Na arca de Noé foi significada a excelência de Maria - diz S.
Bernardo -. Aquela fabricada por Noé, esta por Cristo: aquela para se salvarem então os
poucos que conservaram a vida natural, esta para se salvarem depois todos os que alcançaram
a vida eterna. - Notai agora a propriedade da semelhança, que não pode ser maior, nem mais
adequada. - No dilúvio de Noé todos os que estiveram dentro na arca se salvaram, e todos os
que ficaram fora, se perderam: e com tal necessidade de se salvar ou perder no meio de dois
impossíveis, que nem os de fora podiam deixar de se perder, nem os de dentro podiam deixar
de se salvar, porque para que uns não pudessem entrar, nem outros sair, tinha Deus por si
mesmo fechado a arca. Do mesmo modo nesta tempestade universal da vida e do mundo, em
que todos flutuamos e tantos naufragam. Os que estão dentro na arca, isto é, debaixo da
proteção de Maria, todos se salvam; os que estão fora dela todos se perdem, e uma ou outra
coisa tão infalivelmente, debaixo desta suposição - a qual depende de nós - que os que se
perdem: necessariamente se perdem: Necesse est; ut intereat- e os que se salvam, impossível é
que se não salvem: Impossibile est, ut pereat.
29. Mas quais e quantos foram os que se salvaram na arca? Bendita seja e infini-
tamente bendita a misericórdia de Deus e de sua Mãe! Homines et jumenta salvabis, Domine,
quemadmodum multiplicasti misericordiam tuam27. Os que se salvaram na arca, ou eram
homens racionais, como Noé e sua família, em que são significados os justos, que vivem
conforme a razão e obedecem e servem a Deus, ou eram os animais brutos de todas as
espécies, uns feros, outros venenosos, outros de rapina, em que são significados os pecadores
em todo o gênero de vícios, que vivem sem freio de razão, levados só do ímpeto dos apetites.
E todos estes se salvaram na arca, porque debaixo da proteção de Maria - se foram tão
venturosos ou tão diligentes que a souberam procurar - não só os justos senão também os
pecadores, por mais e maiores pecadores que sejam, todos se salvam. Isto é o que
confessaram e pregaram os demônios. E se acrescentaram confirmando a doutrina de S.
Domingos, que entre todos os devotos da Senhora, os que rezam o seu Rosário são os que
gozam esta soberana prerrogativa, com especial assistência do céu e respeito à mesma
devoção. Na mesma arca, e no mesmo dilúvio temos conta por conta as do Rosário. O dilúvio,
diz o texto sagrado que durou cento e cinqüenta dias: Obtinuerunt aquae terram centum
quinquaginta diebus28 e a arca, diz o mesmo texto que nadou por cima dos mais altos montes
quinze côvados: Quindecim cubitis altior fuit aqua super montes, quos operuerat: porro arca
ferebatur super aquas29. De sorte que a providência da salvação e os números do Rosário se
ajustaram de tal forma, que o dilúvio durou cento e cinqüenta dias, e as águas cresceram sobre
os montes quinze côvados, para que a arca não tocasse em algum deles, e se perdesse, e todos
os que iam nela se salvassem. E deste modo pereceram todos, e só os que estavam na arca se
salvaram: Cuncta, in quibus spiraculum vitae est in terra, mortua sunt. Remansit autem solus
Noe, et qui cum ea erant in arca30.

§VII

São Domingos, o Hércules dos católicos. Saem os demônios da boca de endemo-


ninhado em figura de carvões acesos.
26 Div. Bernard. in Psalmo Qui habitat, citat. a Salmerone, tom. 6, tract. 28.
27 Tu, Senhor, salvarás os homens e as bestas, segundo tens multiplicado a tua misericórdia (Sl. 35,7 s).
28 E as águas tiveram a terra coberta cento e cinqüenta dias (Gên. 7,24).
29 Elevou-se ainda a água por cima dos montes quinze côvados: a arca, porém, era levada sobre as águas (Gên.
7,20. 18).
30 Tudo o que tem vida e respira sobre a terra, tudo morreu. Ficaram somente Noé e os que estavam com ele na
arca (Gên. 7,22s).
178

30. Depois que os demônios falaram e satisfizeram a todas as perguntas, e pregaram


aqueles três grandes desenganos a todo o concurso dos ouvintes, que no princípio eram mais
de dois mil, e sempre foi crescendo, chega-se S. Domingos ao herege endemoninhado,
manda-lhe imperialmente que o siga em virtude do santo Rosário. Parece-me que estou vendo,
não fabulosa, mas verdadeiramente a história de Hércules, quando tirou por força do inferno,
e trouxe atado após si o cão Cérbero de três cabeças. O Hércules dos católicos era Domingos;
o cão Cérbero, o herege, propriamente trifauce, que por três bocas e com três línguas, todas
blasfemas, ladrava contra o santo, contra a Santíssima Virgem, e contra a devoção do seu
Rosário. E, assim como se diz de Hércules: Cerberum traxit triplici catena, assim levava o
santo preso após si aquele cão infernal, e a cadeia era o Rosário, que são três cadeias em uma,
ou uma cadeia de três ramais: triplici catena. Posto o endemoninhado no meio do auditório,
diz o Santo e pede a todos que, para que Deus livre aquele miserável homem da multidão de
demônios que o atormentavam, se ponham todos de joelhos, e em alta voz rezem o Rosário.
Oh! prodígio! Oh! caso inaudito! Oh! maravilha própria, não só da onipotência, mas da
sabedoria divina, com que tudo dispõe e executa eficaz e ordenadamente! Tanto que se rezou
a primeira Ave-Maria, em figura de carvões acesos saíram da boca do endemoninhado cem
demônios. Rezou-se a segunda, e saíram outros cento, outros cento à terceira, outros cento à
quarta; e, saindo desta maneira cento a cento a cada Ave-Maria, no ponto em que se acabaram
de rezar as cento e cinqüenta Ave-Marias das quinze décadas, ficou totalmente livre o homem
dos quinze mil demônios, e não só livre no corpo, senão da alma, já desenganado, já
convertido, já alumiado e reconhecido de seus erros, já devoto, e devotíssimo - como todos os
que se acharam presentes ao milagre - da puríssima e poderosíssima Mãe de Deus, e do seu
Rosário. Oh! benditíssimo Filho de Maria, quanto honrastes e honrais a vossa Santíssima
Mãe, e com quantos excessos de glória quisestes se cumprisse nesta ação a verdade daquela
vossa grande promessa: Majora faciet31? Vós detivestes-vos, e gastastes tempo em lançar um
só demônio: Erat Jesus ejiciens daemaonium32: e o nome de vossa Mãe, no mesmo momento
em que pronunciava, lançava cem demônios, dez vezes pronunciado, mil, cento e cinqüenta
vezes pronunciado, quinze mil. E se o Rosário se pronunciara no inferno, ainda que sejam
tantos milhares os demônios que o habitam, cedo ficaria despovoado.

§VIII

Porque são invisíveis, por isso mesmo devemos temer os demônios muito mais. A
proposição do apóstolo S. Paulo. Que faremos, estando sitiados de tantos e tão poderosos
inimigos? Por que se compara a Senhora ao plátano plantado no meio das estradas? Razões
por que o demônio não tentou a Cristo nem o buscou nos primeiros ou últimos verdores da
adolescência, e não o tentou em Nazaré, ou em outra cidade vizinha, senão no deserto.

31. Tenho dito o que basta para a admiração. E que posso dizer de novo para a
doutrina? A primeira coisa que digo é o que tantas vezes dizia e pregava S. Paulo. Como os
demônios são espíritos invisíveis, e não os vemos, parece que não acabamos de persuadir que
há demônios, e que perpetuamente andamos cercados deles, sendo assim que, porque são
invisíveis, por isso mesmo os devemos temer muito mais. Se um soldado tivesse arte de se
fazer invisível, entrar, sair e obrar o que quisesse, sem ser visto, este se devera temer mais que
os grandes exércitos; e os demônios, pelo contrário, não são um só contra muitos homens,

31 Fará outras ainda maiores (Jo. 14,12).


32 Estava Jesus lançando um demônio (Lc. 11,14).
179
senão muitos contra cada um, e todos invisíveis. Isto é o que sobretudo ponderava S. Paulo:
Quoniam non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem; sed adversus principes et
potestates, adversus mundi rectores tenebrarum harum, contra spiritualia nequitiae, in
caelestibus33. Três coisas nota o Apóstolo nestas palavras, todas muito para temer. A primeira,
que lutamos com quem não tem corpo, e por isso com partido muito desigual, porque eles têm
por onde nos pegar, e nós não: Non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem. A
segunda, que nós pelejamos às escuras, e eles com luz, porque eles vêem-nos a nós, e vêem-
nos por fora e por dentro, e nós não os vemos a eles: Adversus mundi rectores tenebrarum
harum. A terceira, que nós temos os pés na terra, e eles não têm pés, senão asas velocíssimas,
com que voam pelo ar, o qual ocupam desde a terra até o céu: Contra spiritualia nequitiae, in
caelestibus. E se perguntarmos a razão por que aquela parte dos demônios, que não estão
presos e aferrolhados no inferno, e permitiu Deus que ficassem cá em cima para nos tentarem,
o sítio que ocupam é todo o elemento do ar, quanto se estende desde a terra até o céu, a razão
é - diz S. Bernardo - porque deste modo nos quiseram cercar e sitiar totalmente, assim da
parte donde só nos podem vir e entrar os socorros, que é o céu, como da parte donde nós os
podemos procurar com nossas orações, que é a terra: In aere esse delectantur, ut dona Dei ad
nos descendere, vel nostras orationes ad Deum ferri impediant.
32. Que faremos nós, logo, estando assim sitiados de tantos e tão poderosos inimigos?
Defender-nos só, é pouco. O que devemos fazer é fortificar-nos e armar-nos de tal sorte, que
não só os demônios desesperem a vitória, mas que nos temam e fujam de nós; e isto só o
podemos conseguir, pondo-nos à sombra da torre de Davi, de que pendem milhares de
escudos, que é a Virgem Maria, e só dentro do recinto do seu Rosário. Quasi platanus
exaltata sum juxta aquam in plateis34, diz a mesma Senhora falando de si. Compara-se ao
plátano alto, fresco, copado e sombrio, não plantado só para amenidade e delícia dentro dos
jardins, senão fora e no meio das estradas ou ruas largas: in plateis. Esta distinção das ruas
largas às estreitas, é da alma santa, quando buscava o Esposo: Per vicos, et plateas quaeram
illum35; e a significação de umas e outras é do mesmo Esposo, Cristo:Arcta via est; quae ducit
ad vitam: lata, quae ducit ad perditionem36. As ruas largas são aquelas por onde os maus
caminham ao inferno, e as estreitas, por onde os bons vão ao céu. E porque as ruas e estradas
largas são os lugares onde os demônios principalmente nos tentam, onde nos fazem a maior
guerra, e por onde nos levam à perdição, esse é o motivo e o mistério porque a Virgem Maria
assiste e se levanta como plátano nas mesmas estradas, para ali nos defender dos demônios e
os pôr em fugida. Pois, como plátano para nos defender e como plátano para pôr em fugida os
demônios? Sim. Que essas são as virtudes e propriedades do plátano: Platanus quot habet
folia, tot habet scuta: O plátano - diz Hugo - tantos escudos tem, quantas folhas - porque esta
é a forma que a natureza deu às folhas do plátano, podendo-se dizer daquela árvore, ou castelo
verde, o que se diz da Torre de Davi: Mille clypei pendent ex ea37 e por isso figura da Virgem
Santíssima, enquanto nos defende dos demônios. E enquanto os faz fugir, também plátano,
porque, como diz Piério: Platani folia arcent vespertiliones: as mesmas folhas do plátano têm
virtude de afugentar os morcegos, filhos das trevas e inimigos da luz, e por isso feios e
funestos, símbolos dos mesmos demônios, dos quais afirma por experiência S. Bernardino,
que com tal extremo temem a Rainha dos Anjos e fogem de sua presença, que a nenhum lugar
onde esta Senhora assista, se atrevem eles a chegar, nem de muito longe: Doemones ne de
33 Porque nós não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra
os governadores desta terra, contra os espíritos de malícia espalhados por esses ares (Ef. 6,12).
34 Elevei-me como o plátano nas praças junto da água (Eclo. 24, 19).
35 Buscá-lo-ei pelas ruas e praças públicas (Cânt. 3,2).
36 Estreito é o caminho que guia para a vida, e espaçoso o caminho que guia para a perdição (Mt. 7,13 s)
37 Dela estão pendentes mil escudos (Cânt. 4,4).
180
magno spatio audent illi appropinquare.
33. A prova da Escritura nos dará o príncipe dos mesmos demônios, e só ele a poderá
inventar, quanto é encarecida. Cristo, Senhor nosso, até a idade de trinta anos assistiu sempre
com sua Santíssima Mãe, obedecendo-a e servindo-a, e, depois da morte de S. José
sustentando-a, como bom Filho, com o trabalho de suas mãos e suor de seu rosto. Houve,
enfim, de sair o divino Sol a alumiar o mundo, e para começar pelo primeiro e mais
necessário documento, ensinando-nos com seu exemplo a vencer o demônio e suas tentações,
diz o texto sagrado que se retirou a um deserto para ali ser tentado: Ductus est Jesus in
desertum, ut tentaretur a diabolo38. Parece que nem da parte de Cristo para o exemplo, nem
da parte do demônio para a tentação, se havia ela de guardar para tão tarde. A idade mais
sujeita e ainda inclinada às tentações, e a menos forte e mais bisonha para as resistências é
muito antes dos trinta anos. Pois, por que não tentou o demônio a Cristo, nem Cristo o buscou
ou desafiou para ser tentado nos primeiros ou últimos verdores da adolescência, idade que nos
outros homens é a mais ardente, a menos desenganada, e a mais aparelhada e pronta para ser
vencida? Respondem douta e devotamente graves autores que naquela idade, e em todos os
anos seguintes, até aos trinta, assistia sempre o Senhor e morava com sua Santíssima Mãe, e
debaixo da sua sujeição e obediência, como consta dos evangelistas, e por isso o demônio em
todo este tempo não teve ousadia para o tentar nem esperança de o vencer, porque onde
assiste ou é assistida Maria, não só não se atrevem a chegar os demônios, mas fogem daí
muito longe: De longo spatio non audent appropinquare. De muito longe, digo com S.
Bernardino, e o provo do mesmo texto. Se o demônio se não atreveu a acometer o Cristo
enquanto estava em casa de sua Mãe, por que o não acometeu fora dela, na cidade de Nazaré,
ou em outra vizinha, nem Cristo o buscou para ser tentado senão no deserto de além do
Jordão, em tantas léguas de distância? Porque conhecia o Senhor o grande medo que os
demônios têm ao sagrado fortíssimo de Maria, e quanto fogem, não só à presença, senão a
qualquer vizinhança daquela soberana Majestade, para eles tremenda. Prevendo, pois, que
assim como o demônio em tantos anos se não atreveu a o tentar em sua casa, também agora
não teria ousadia para o acometer, ainda em lugar apartado e distante, se não fosse muito
longe dela; por isso se retirou àquele deserto, onde, desacompanhado de sua Mãe e muito
longe de sua presença, desse ânimo e confiança ao demônio de o acometer, e lá pudesse ser
tentado como queria: Ductus est in desertum, ut tentaretur a diabolo (Mt. 4,1).
34. Ainda não está ponderado o maior encarecimento do caso. Tenta, finalmente, o
demônio a Cristo, e as palavras por onde começou a primeira e segunda tentação foram: Si
Filius Dei es (Mt. 4,3): Se és Filho de Deus. - Não só do jejum de quarenta dias – porque
também Moisés e Elias tinham jejuado outros quarenta- mas de todas as outras circunstâncias
sobre-humanas que Cristo tinha obrado no deserto, julgou o demônio que aquele homem era
mais homem, e não podia ser menos que o Filho de Deus prometido nas Escrituras. A este
princípio atribuem muitos a notícia que o demônio teve da divindade de Cristo; mas o certo e
infalível fundamento foi a voz do Eterno Padre, quando disse sobre o Jordão: Hic est Filius
meus dilectus39, que o demônio muito bem ouviu. Pois se o demônio tenta a Cristo uma, duas
e três vezes, quando o reconhece Filho de Deus, como se não atreve a o tentar nem uma só
vez debaixo da sujeição de sua Mãe, e em sua casa, quando só o considerava homem? Esta
mesma pergunta, ou admiração, é o maior encarecimento que se pode dizer nem imaginar de
quanto o demônio respeita, foge e teme, não só a pessoa e presença daquela mulher; a que foi
sentenciado que lhe pisaria a cabeça, mas a assistência somente e proteção dos que vivem à
sombra da mesma Senhora, e ela tem debaixo de sua sujeição e amparo. De sorte que o

38 Foi levado Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo (Mt. 4,1).
39 Este é o meu Filho amado (Mt. 3,17).
181
mesmo Cristo, considerado só como homem, não se atreve o demônio a o tentar, porque o vê
acompanhado e assistido de Maria; e, depois que o reconhece por Filho de Deus, porque o vê
só e desacompanhado dela, não teme de o acometer, nem receia de o tentar uma e muitas
vezes, como se fora mais formidável ao demônio a companhia e assistência só daquela
prodigiosa mulher, que a união e presença da mesma divindade! Basta, demônio, que ao Filho
de Deus, conhecido por tal, esperas tu e presumes vencer; e ao Filho de Maria, supondo só
que é homem, enquanto está com ela, não te atreves a tentar? Mas permitiu Deus que tu o
entendesses assim, para que nós entendamos que, debaixo da sua proteção e amparo, nunca tu
nem todo o inferno nos poderá ofender. Infinitas são as coisas que se puderam dizer, e
altíssimos os pensamentos que sobre este grande paralelo se puderam levantar; mas para mim,
sem nenhuma outra consideração, basta só a simples verdade e certeza do sucedido. E qual é?
É certo que enquanto Cristo esteve com sua Mãe, não o tentou o demônio, e é certo que
depois que se apartou dela, logo o tentou.

§IX

As três jerarquias dos demônios: os matutinos, os meridianos e os vespertinos, aos


quais contrapôs a Senhora os três terços do seu Rosário. A divisão dos demônios no
parafraste caldeu. O que argúem os demônios contra o que fez Deus pelos homens.
Conclusão.

35.O que, pois, devemos fazer para nos defender do demônio e suas tentações, ou para
que ele e elas fujam de nós e nos temam, é, como dizia, recolhermo-nos à sombra da Torre de
Davi, a Virgem Senhora nossa, e dentro do recinto do seu Rosário, porque assim fortificados,
nenhum demônio haverá nas três jerarquias do inferno, nem todos juntos, que, se chegarem a
nos tentar, nos possam vencer. Disse nas três jerarquias, porque esta é a forma em que se
repartem, como em três terços, todos os demônios, e dividem entre si o dia natural, para que
em nenhuma hora dele cesse a bateria com que nos combatem. Os primeiros chamam-se
demônios matutinos, e a estes pertencem as horas da madrugada e da manhã; os segundos
chamam-se demônios meridianos, e a estes pertencem as horas do meio-dia e de todo ele; os
terceiros chamam-se demônios vespertinos, e a estes pertencem as horas da tarde e o resto da
noite. Vede agora a singular energia e propriedade com que a estes três terços do inferno
contrapôs a Senhora os três terços do seu Rosário, dividindo na mesma forma o dia, e
respondendo horas a horas. Aos demônios vespertinos respondem os mistérios da Encarnação,
que foi obrada na última hora da tarde; aos demônios meridianos respondem os mistérios da
Paixão, que foi obrada nas horas do meio-dia; e aos demônios matutinos respondem os misté-
rios da Ressurreição, que foi obrada na primeira hora da manhã. E para que nos não falte a
prova da Escritura, com as mesmas três diferenças de demônios no mesmo dia, ouçamos o
parafraste caldeu sobre aquelas palavras dos Cânticos: Donec aspiret dies, et inclinentur
umbrae40.
36. Omni tempore, quo populus domus Israel tenebat manibus suis artem patrum
suorum, fugiebant nocentes spiritus tenebricosiores, et vespertini, et matutini daemones de
medio eorum. Quer dizer: Em todo o tempo em que o povo fiel da casa de Israel trazia nas
mãos a arte de seus pais, fugiam dele todos os maus espíritos. E que maus espíritos eram
estes? Tenebricosiores, et vespertini, et matutini daemones. Eram os demônios vespertinos, os
demônios matutinos e os demônios meridianos. E para que ninguém duvide qual era o poder
de que temiam e a virtude que os fazia fugir, continua assim o mesmo parafraste: Eo quod
40 Até que sopre o dia e declinem as sombras (Cânt. 4,6).
182
majestas Domini residebat in domo sanctuarii, quae aedificata, est in monte Moriah, et
omnes daemones, et nocentes spiritus fugiebant ab odore incensi aromatum. E a razão - diz -
era porque a Arca do Testamento residia na casa do santuário, edificada no monte Mória, e
todos os maus espíritos e demônios fugiam do cheiro do incenso aromático, que se oferecia e
queimava diante dela. Todos sabem que a Arca do Testamento significa a Virgem, Senhora
nossa, e também sabem que o incenso significa a oração, e os aromas de que era composta, os
mistérios que a acompanham: logo, toda aquela representação no Templo antigo, que também
significava a Igreja, era uma figura profética, ou uma profecia em figuras, de que a mesma
Senhora, por meio da devoção e orações do seu Rosário, havia de atemorizar, dissipar e pôr
em fugida os demônios, para que se não atrevam a tentar a seus devotos, ou quando os tentem,
os não possam vencer. Aos quais devotos só digo e aconselho que, repartindo o dia na mesma
forma em que os demônios o têm repartido, e aplicando os mistérios às mesmas horas em que
foram obrados, os da Encarnação os meditam à noite, os da Paixão ao meio-dia, e os da
Ressurreição pela manhã. Assim o fazia com o mesmo espírito e nas mesmas horas Davi:
Vespere, et mane, et meridie enarrabo, et annuntiabo, et exaudiet vocem meam (SI. 54, 18):
Eu orarei, e Deus me ouvirá, à tarde, pela manhã e ao meio-dia: vespere, contra os demônios
vespertinos; mane, contra os matutinos; et meridie, contra os demônios meridianos.
37. Repartindo nesta forma o Rosário, não só triunfaremos dos mesmos demônios,
mas confundiremos os baldões e blasfêmias com que eles caluniam a Deus, lançando-lhe em
rosto o fazer-se homem, pela má paga que lhe dão os homens. Este é o sentido daquele verso,
tão encarecido e repetido do Profeta: Quod exprobraverunt inimici tui, Domine, quod
exprobraverunt commutationem christi tui41. Como se disseram os demônios – discorre S.
Cipriano: - Porque nós, ó Deus, não aprovamos o decreto de vos fazerdes homem, nos
lançastes no inferno; mas agora mostra bem a experiência quanto mais acertado foi nosso
parecer. E senão, olhai para as comutações do vosso Cristo e vede o que ele deu e o que
recebe, o que fez e como lhe pagam. E para que esta diferença seja mais manifesta, comparai
os poucos que o servem a ele, e os muitos que nos servem a nós, dizem os demônios. Ele
padeceu pobrezas, injúrias, afrontas, bofetadas, açoites, e a mesma morte pelos homens; nós
nenhuma coisa padecemos por eles. Ele fez-lhes infinitos benefícios; nós fazemos-lhes todo o
mal que podemos. Ele promete-lhes logo, e de contado, o céu para a alma, e, para depois da
ressurreição, também lhes assegura a glória do corpo; nós assim para a alma como para o
corpo, o que lhes prometemos e asseguramos é o fogo e tormentos eternos, e, contudo, a sua
doutrina é desprezada e a nossa abraçada e seguida. Ele, crido, mas não amado; nós não
amados, mas obedecidos. Ele servido de poucos, e como forçados; nós livre e voluntariamente
de quase todos. Ele, enfim, tão mal pago e tão desigualmente correspondido, que o seu amor
se paga com desamor, as suas finezas com ofensas, os seus benefícios com ingratidões; e nós,
triunfando e zombando de quanto fez pelos homens, os quais antes querem o inferno conosco
que o céu com ele. Isto é o que dizem os demônios. E conclui S. Cipriano o seu discurso
perguntando-nos a nós, os cristãos, que é o que respondemos a isto? Quid ad haec
respondebimus,fratres charissimi?
38. Não há dúvida que muitos são obrigados a confessar, que, posto que os demônios
no que argúem contra Deus, mentem ímpia e blasfemamente, no que dizem de nossas
ingratidões e da má paga que damos ao amor, aos benefícios, ao sangue e morte de Cristo,
falam muita verdade, com grande confusão da fé, e afronta do nome cristão. Desta, porém,
nos desafrontam gloriosamente e os desmentem com infinitos euges todos os devotos do
Rosário, em todo o mundo, porque tudo o que meditam em seus mistérios e tudo o que

41 Com que nos têm insultado, Senhor, os teus inimigos, com que nos têm insultado em recompensa do teu
Cristo (Sl 88, 52)
183
repetem em suas orações são reconhecimentos, admirações, louvores e graças pelo que o
Filho de Deus feito homem nos amou em sua Encarnação, pelo que padeceu por nós em sua
Paixão, e pelo que nos promete e assegura em sua Ressurreição, pagando-lhe desta maneita
nossos entendimentos, nossos corações e nossas línguas, não o que devem, mas contudo o que
podem. Confundam-se pois e emudeçam as calúnias e blasfêmias do demônio. E, assim como
a oradora do Evangelho pelo demônio mudo que falou, levantou a voz, assim nós pelos
demônios, que tão insolentemente falam, emudecidos, ajuntemos as nossas vozes com a sua, e
digamos ao Filho de Deus, em perpétuo louvor seu e da benditíssima Mãe de quem nasceu
homem: Beatus venter, qui te portavit.

FINIS

SERMÃO XVII

Extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit illi: Beatus venter qui te portavit1.

§I

O louvor da mulher e o louvor da turba. Os louvores da turba não só são turbados,


mas turbulentos. Os dois modos de rezar o Rosário: com a turba, isto é, juntamente com
muitos, e como a mulher isto é, cada um consigo e por si só. Argumento do discurso: é mais
útil às nossas almas, e mais agradável à Senhora rezar o Rosário cada um retiradamente
consigo, ou publicamente com muitos?

39. Como não há comunidade tão boa em que se não ache algum mau, de que foi o
maior escândalo Judas, assim não há comunidade tão má, em que se não ache algum bom, de
que é o melhor exemplo esta boa mulher que da meio da turba levantou a voz em louvor de
Cristo: Extollens vocem quaedam mulier de turba (Lc. 11,27). A mulher louvou o Filho pela
Mãe, e a Mãe pelo Filho; porém, a turba nem louvou o Filho nem louvou a Mãe. Assim se
dividiram em partes contrárias a mulher e a turba, e assim havia de ser, para que o louvor
ficasse inteiro. Antes digo que tanto louvou a turba em não louvar, como a mulher louvando,
porque se a turba também louvara, ficava o louvor desautorizado e suspeitoso. Os louvores da
turba não só são turbados, mas turbulentos, que tal é o seu juízo. Quereis saber- diz Sêneca - o
que é, não só pior, mas péssimo neste mundo? Vede o que segue, e ouvi o que diz a turba, e
daí fazei argumento: Argumentum pessimi turba est. Esta é a razão, por que levantando a voz
a mulher discreta, não houve uma só língua que a seguisse. Ou foi porque reprovaram o que
dizia, ou porque temeram de o aprovar. Se porque o reprovaram, foi erro; se porque temeram,
covardia; e tudo isso é ser turba, multidão sem juízo e sem valor.
40. Mas que tem isto com o meu Rosário? Muito. Porque o Rosário ou se pode rezar
com a turba, isto é, juntamente com muitos, ou se pode rezar como a mulher, isto é, cada um
consigo e por si só. No caso do Evangelho ninguém houve naquele confuso ajuntamento que
seguisse o exemplo e voz da devota oradora, que publicamente a levantou sobre todas em
louvor de Cristo e sua Mãe; porém, hoje em todas as quatro partes do mundo vemos tão
refutado aquele erro, tão condenada aquela covardia e tão emendada aquela impiedade, que
em toda a monarquia de Portugal e suas conquistas, apenas há paróquia, convento, ou

1 Uma mulher, levantando a voz do meio do povo, lhe disse: Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos
a que foste criado (Lc. 11,27).
184
qualquer outro menor lugar dedicado ao culto divino, em que todos os dias, em públicas e
altas vozes, se não cantem os louvares do mesmo Filho e da mesma Mãe, na devoção do seu
Rosário. Assim sucederam àquela turba indevota e ímpia tantas outras turbas ou ajuntamentos
cristãos, devotos e pios; e àquele silêncio e murmuração infernal tantos outros coros celestiais
e divinos, em que, juntamente com a propagação universal da Fé, se repete no mesmo Rosário
a confissão dos principais mistérios dela, não encontrados já, e discordes entre si a mulher e a
turba, senão concordes na mesma devoção as turbas com a mulher, e a mulher com as turbas.
41. Contudo, porque a devoção bem entendida e bem intencionada, não só deve pôr os
olhos exteriores na glória de Deus, senão os interiores na sua maior glória, ou sobre as
palavras: Mulier quaedam de turba - determino hoje distinguir e apartar, não a turba e a
mulher, senão o quaedam e a turba. Porei de uma parte o quaedam, que é uma pessoa rezando
só, e da outra o turba, que são muitos rezando juntos, e nesta diferença - que parecendo só do
modo, pertence muito à substância da oração - disputarei em problema, por uma e outra parte,
se é mais útil a nossas almas e mais agradável à Senhora do Rosário, rezá-lo cada um
retiradamente consigo, ou publicamente com muitos? A resolução será a que Deus e a mesma
Senhora nos inspirarem com sua graça.
Ave Maria, etc.

§11

O que dizem os doutores a respeito da oração em comum? O encarecimento da


oração de muitas nas epístolas de São Paulo. O obséquio da Madalena negado, e o obséquio
das Marias acolhido por Cristo ressuscitado. Por que quis e ordenou Cristo que indo orar ao
Padre, no Horto, o assistissem e acompanhassem os três mais amados discípulos? Razões do
indeferimento da oração de Cristo. Tanto podem com Deus os rogos de muitos, que ainda aos
mesmos demônios não nega Cristo o que lhe pedem, quando são muitos os que o rogam.

Mulier quaedam de turba,


42. A mesma questão que eu propus para disputar hoje, altercou já antigamente, em
presença do imperador Constantino, o grande Doutor da Igreja Santo Atanásio: Quid rectius
putas particulatim, et dissociatim populum sinaxes facere, an potius ut in locum unum
conveniat, et unam eamdemque sine dissonantia vocem reddat2? E que resolveu Atanásio?
Resolveu que a oração de muitos juntamente é a que mais convém aos homens e a que mais
agrada a Deus; e assim o afirma, não como conclusão mais provável, senão totalmente certa:
Certe id rectius est. Antes dele tinha seguido esta mesma sentença Tertuliano, e antes de
Tertuliano, Santo Inácio Mártir, e pelo mesmo tempo de Atanásio, S. João Crisóstomo e Santo
Ambrósio, e depois destes muitos outros santos e doutores, e, entre todos, o grande lume da
Igreja, Santo Tomás, o qual não duvidou dizer que a oração de muitos é impossível que não
alcance de Deus tudo o que se pode impetrar: Multorum preces impossible est, quod non
impetrent illud quod est impetrabile3.
43. Passando dos doutores às Escrituras Sagradas, e fazendo a comparação ex-
pressamente de um a muitos, S. Paulo na Epístola aos Filipenses se encomenda nas suas
orações, e diz que sabe de certo que por elas lhe concederá Deus tudo o que mais conveniente
for à sua saúde, assim temporal como espiritual: Scio quia hoc mihi proveniet ad salutem, per

2 Athanas. in Apologet ad Constant.


3 D. Thomas, 2.2. q. 83.
185
vestram orationem4. E na Epístola segunda aos Coríntios lhes dá as graças, e pede que eles as
dêem a Deus pelos grandes perigos de que o tem livrado por suas orações, acrescentando que
por elas o livrará também de outros muitos que ainda o aguardam: Qui de tantis periculis nos
eripuit, et eruit: in quem speramus, quoniam et adhuc eripiet, adjuvantibus et vobis in
oratione pro nobis5. E na Epístola aos Romanos os roga instantissimamente, e protesta que,
por amor de Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, o ajudem diante de Deus com suas
orações: Obsecro vos, fratres, per Dominum nostrum Jesum Christum, et per charitatem
Sancti Spiritus, ut ajuvetis me in orationibus vestris pro me adDeum6. Estes três textos tão
notáveis, quando não houvera outros na Escritura Sagrada, bastavam, não só para fé e crédito,
mas para um singularíssimo encarecimento de quanto valem diante do acatamento divino e
quanto importam, não só a quaisquer homens, senão ainda aos maiores santos e às mais altas e
firmes colunas da Igreja, as orações de muitos, pois o mesmo vaso da eleição, o mesmo após-
tolo do terceiro céu, e o mesmo Paulo, por amor do qual desceu o Filho de Deus segunda vez
do céu à terra, não se fiando só das suas orações, as pede tão repetidamente a tantos, e a eles
confessa dever quanto tem alcançado e espera alcançar de Deus. Isto só bastava, como digo,
para encarecimento de quanto podem com Deus as orações de muitos; mas ainda no mesmo
Apóstolo temos outro encarecimento maior.
44. Pediu S. Paulo a Deus que o livrasse de certas moléstias do demônio, que ainda
não está averiguado quais fossem e não só pediu, mas rogou, que é mais, nem só rezou uma
vez, senão muitas: Propter quod ter Dominum rogavi7; e, contudo, nem as suas petições, nem
os seus rogos, nem as suas instâncias alcançaram de Deus o que pretendia. Pois, se Paulo não
alcança de Deus por suas orações o que pede, por que espera de o alcançar pelas orações dos
romanos, dos coríntios e dos filipenses, que eram uns homens seus discípulos, que ele pouco
antes tinha convertido à fé? E se Paulo se fundava na experiência das mercês que tinha
alcançado por meio das suas orações, como ele mesmo confessa e lhes agradece, aqui se
reforça muito mais a dúvida. É possível que ouve Deus aos discípulos, e não ouve ao Mestre?
Defere as orações dos que ontem eram gentios, e não defere as orações do doutor dos gentios?
Sim. E por quê? Porque esses mesmos discípulos quando oravam em Roma, em Filipos e em
Corinto, oravam muitos juntos; e Paulo, quando fazia aquela sua oração, orava só. E é tanto
mais poderosa diante de Deus a oração de muitos que a oração de um só, que ainda que a
oração do que ora só seja um S. Paulo, e a oração dos que oram juntos seja dos que ontem
eram gentios, e hoje começam a ser cristãos, a oração destes alcançará o que pede, porque são
muitos, e a oração de Paulo não, porque é só um. O mesmo S. Paulo o declarou assim aos
coríntios, acrescentando ao texto que já referi, que ele era uma só pessoa, mas eles muitas: Ut
ex multorum personis, ejus quae in nobis est donationis, per multos gratiae agantur pro
nobis8.
45. E por que esta razão de diferença não pareça dificultosa, vejamo-la em outro amor
e merecimento, que só pode competir com o de S. Paulo. Na manhã da Ressurreição, quando
a Madalena, debaixo dos disfarces em que lhe tinha aparecido, reconheceu o seu divino
Mestre, quis-se lançar aos pés, onde também ela tinha ressuscitado, e o Senhor lhe impediu
este afeto, posto que tão devido dizendo: Noli me tangere, nondum enim ascendi ad Patrem

4 Porque sei que isto se me converterá em salvação, pela vossa oração (Flp. 1,19).
5 O qual nos livrou de tão grandes perigos, e livra ainda; em quem esperamos que ainda igualmente nos livrará,
se vós nos ajudardes também, orando por nós (2 Cor. 1,10 s).
6 Rogo-vos, pois, ó irmãos, por nosso Senhor, Jesus Cristo, e pelo amor do Espírito Santo, que me ajudeis com
as vossas orações por mim a Deus (Rom. 15,30).
7 Por cuja causa roguei ao Senhor três vezes (2 Cor. 12,8).
8 Para que, pelo dom que se nos tem concedido, em atenção de muitas pessoas, por intervenção de muitos sejam
dadas graças por nós outros (2 Cor. 1,11).
186
meum (Jo. 20,17): Não me toques, porque ainda não subi a meu Padre. - As exposições que
deram a estas palavras os santos Padres e intérpretes são quase tantas como os mesmos
autores, mas todas elas padecem uma manifesta instância, porque dali a poucas horas, vindo a
mesma Madalena juntamente com as outras Marias, o mesmo Senhor lhes consentiu que se
lançassem a seus sagrados pés e os abraçassem apertadamente: Illae autem accesserunt, et
tenuerunt pedes ejus9. Pois, se agora permite Cristo, e concede a Madalena e às outras Marias
que se lancem a seus pés, e lhos abracem, por que proibiu tão severamente à mesma Madalena
que lhos tocasse: Noli me tangere? A razão que o Senhor lhe tinha dado desta proibição:
Nondum enim ascendi ad Patrem meum10 - ainda era e subsistia a mesma, porque Cristo nem
tinha subido, nem havia de subir ao Padre, senão dali a quarenta dias. Pois se à Madalena se
negou este favor, e por esta causa, por que razão agora; subsistindo a mesma causa, lhe
concede o mesmo favor a ela e às demais, tão fácil e tão liberalmente? Porque agora as
devotas mulheres eram muitas, e dantes a Madalena, ainda que devotíssima, era uma só. A
Madalena quando só, nem era menos amante, nem menos amada de Cristo - como também S.
Paulo - mas para o mesmo Cristo conceder o que dele se espera, não importa tanto o amar ou
merecer muito, quanto o serem muitos os que o procuram. Por isso a mesma razão que bastou
para se negar o favor a uma, depois que, junta com as demais, foram muitas, nem bastou, nem
foi razão, nem o Senhor se valeu dela. E isto que à Madalena sucedeu com os seus afetos, é o
mesmo que S. Paulo experimentou e confessou das suas orações.
46. Mas o caso que agora ponderarei é sobre todos admirável, e não em outrem, senão
no mesmo Cristo. Quando este Senhor se retirou ao Horto, para orar a seu eterno Padre,
encomendou muito aos três mais amados discípulos, que daquela pouca distância em que se
apartava deles, o acompanhassem: Sustinete hic, et vigilate mecum11. E por que quis e ordenou
Cristo que indo orar ao Padre, o assistissem e acompanhassem estes discípulos? Sem dúvida
porque quis o Senhor confirmar com o exemplo o que tinha ensinado com a doutrina, quando
nos prometeu que, se dois ou três se unissem a pedir a Deus alguma coisa, seu Padre lha
concederia infalivelmente. De maneira que até o mesmo Filho de Deus, para impetrar de seu
Pai o que pedia, não quis que fosse a sua oração só sua, senão acompanhada de outras. Com
esta prevenção começou o Senhor a orar: Pater mi, si possibile est, transeat a me calix iste
(Mt. 26,39): Se é possível, Pai meu, passe de mim este cálice. - E por que disse: se é possível?
Agora nos devemos lembrar do que referimos de Santo Tomás, que é impossível não impetrar
de Deus a oração de muitos tudo o que é possível. E como a oração de Cristo, naquele caso,
era sua e mais dos discípulos, a quem encomendou o acompanhassem nela, por isso alegou a
condição do passível: si possibile est, porque, sendo a sua oração de muitos, não lhe podia o
Padre negar tudo o que fosse possível: Multorum preces impossibile est, quod non impetrent
illud, quod est impetrabile.
47. Até aqui bem-fundadas esperanças tinha o Senhor de impetrar o que pedia. Porém,
como experimentasse que orando uma, duas e três vezes, o Pai não deferia à sua petição,
quantas vezes orou, e não foi ouvido, outras tantas se levantou da oração e veio ver se o
acompanhavam e assistiam nela os discípulos, como lhes tinha encarregado. E por quê?
Porque inferiu o mesmo Senhor, segundo a verdade da sua promessa que, suposto não deferir
o Pai à sua oração, era sinal que o não acompanhavam nela os que tinha escolhido por
companheiros. E assim foi, porque sempre os achou não orando, senão dormindo: Invenit eos
dormientes (Mt. 26, 43). Reparai agora em duas grandes considerações, uma da parte de
Cristo e a outra da parte do Padre. Da parte de Cristo, que achando os discípulos dormindo, os

9 E elas se chegaram a ele, e se abraçaram com os seus pés (Mt. 28,9).


10 Porque ainda não subi a meu Pai (Jo. 20,17).
11 Demorai-vos aqui, e vigiai comigo (Mt. 26,38).
187
exortou a que vigiassem e orassem com ele: Sic non potuistis una hora vigilare mecum?
Vigilate, et orate12. Da parte do Padre que, não obstante estas recomendações, e serem os
discípulos os que mais obrigados eram e mais amavam a seu Mestre, permitisse, contudo, que
todos dormissem e não orassem. Por que razão, pois, faz Cristo tantas diligências para que
vigiem e orem os que tinha escolhido por companheiros de sua oração, e por que razão o
Padre, pelo contrário, lhes infunde um tal letargo: Erant enim oculi eorum gravati13 - para que
não vigiem nem orem? Assim Cristo, como o Padre, ambos obravam direitamente ao fim cada
um de seus intentos. Cristo obrou como quem desejava e pedia, e o Padre como quem tinha
decretado de não conceder. Cristo, como quem desejava e pedia, procurava que os discípulos
orassem juntamente com ele, tendo por certo que, se a sua oração fosse de muitos, não podia o
Padre negar o que se pedisse; e, pelo contrário, o Padre, como quem tinha decretado de não
conceder, impedia que eles orassem; porque sendo a oração não de muitos, senão de um só,
ainda que fosse seu próprio Filho, lhe ficava livre o negar, como com efeito negou.
48. Parecia-me a mim, que este era o maior encarecimento de quanto pode com Deus a
oração de muitos, mas ainda, em certo modo, nos resta por ver outro maior. Tendo Deus
concedido tantas licenças ao demônio contra Jó, disse ao mesmo Jó, que já não havia de
conceder ao demônio coisa alguma que lhe pedisse, por mais bem-compostas e eficazes que
fossem as palavras com que lho propusesse: Non parcam ei, et verbis potentibus, et ad
deprecandum compositis14. Passemos agora ao Evangelho, e acharemos que pedindo os
demônios a Cristo duas coisas, ambas lhes concedeu. Lançando-os do corpo de um
endemoninhado, rogaram-lhe que os não mandasse para o inferno: Rogabant illum ne
imperaret illis ai in abyssum irent15 - e o Senhor lhes concedeu que ficassem embora neste
mundo. Rogaram-lhe mais que lhes permitisse entrar em grande multidão de animais imundos
que pastavam por aqueles campos: Et rogabant eum, ut permitteret eis in illos ingredi - e
também lho concedeu: Et permisit illis16. Pois, se Deus tinha prometido a Jó, que não havia de
conceder ao demônio coisa alguma que lhe pedisse, como agora, fazendo-lhe duas petições
lhe concede ambas? Leiamos bem todo o texto e acharemos a razão da diferença. Perguntou
Cristo ao demônio, que atormentava este endemoninhado, como se chamava? E ele
respondeu: Legio mihi nomen est, quia multi sumus (Mc. 5,9): Chamo-me Legião, porque não
sou um só demônio, mas somos muitos. - E como estes demônios eram muitos, e o de Jó era
um só, por isso ao de Jó prometeu o mesmo Senhor que lhe não havia de conceder coisa
alguma que lhe pedisse, e a estes concedeu o que pediam. Tanto podem com Deus os rogos de
muitos, que ainda aos mesmos demônios não nega Cristo o que lhe pedem: Daemones ipsi,
cum Dominum obsecrant, sua petitione fraudati non sunt, disse excelentemente Santo
Antíoco. E se lermos atentamente a conseqüência de ambos os textos, assim de S. Marcos,
como de S. Lucas, acharemos que a confiança que os demônios tiveram para esperar que o
Senhor lhes havia de conceder o que pediam, foi fundada em serem muitos. S. Marcos: Legio
mihi nomen est, quia multi sumus. Et deprecabatur eum17. S. Lucas: Intraverant daemonia
multa in eum. Et rogabant illum18. E se até aos demônios, quando são muitos os que o rogam,
lhes concede Deus suas petições, como as não concederá aos devotos do Rosário, que juntos e
com tanto exemplo e piedade o rezam nas nossas igrejas?

12 Visto isso, não pudestes uma hora vigiar comigo? Vigiai e orai (Mt. 26, 40 s)
13 Porque estavam carregados os olhos deles (Mt. 26,43).
14 Não lhe terei respeito a ele, nem às suas palavras eficazes e compostas para rogar (Jó 41,3).
15 E estes lhe pediram que não os mandasse ir para o abismo (Lc. 8, 31).
16 E lhe rogavam que lhes permitisse entrar neles. E Jesus lho permitiu (Lc. 8,32).
17 Legião é o meu nome, porque somos muitos. E pedia-lhe instantemente (Mc. 5,9 s).
18 Eram em grande número os demônios que tinham entrado nele. E estes lhe pediram (Lc. 8.30s).
188
III

Qual é a razão ou razões por que têm tanto valor e poder com Deus a oração de
muitos? As razões que nos dão S. João Crisóstomo, Santo Atanásio, Tertuliano, Santo Tomás
e S. Vicente Ferrer.

49. Mas, antes que deixemos esta primeira parte do nosso problema e a demos por
bastantemente provada, vamos às razões dela. Qual é a razão ou razões por que tem tanto
valor e poder com Deus a oração de muitos? Muitas e várias são as que deram os Santos
Padres, e todas por suas e por si mesmas dignas de se não passarem em silêncio. S.
João Crisóstomo funda esta diferença na mesma qualidade natural da voz e das vo-
19
zes . Ainda que as vozes sejam igualmente intensas, se a voz é uma só ouve-se pouco, se são
muitas, ouvem-se muito, e por isso ainda naturalmente ouve Deus mais as vozes e orações de
muitos, que a voz de um só: Longe magis eam orationem, quae ex ore multorum valere
consentaneum est: plus enim nervorum in ea est, et audientia major. Desta razão, que parece
vulgar, passa o mesmo Santo a outra, muito mais alta e encarecida, e diz assim: Reveretur
Deus multitudinem unanimem, et consentientem in precando: ut veluti pudore victus, non
audeat illis negare. Sabeis por que pode tanto com Deus a oração de muitos? É porque à
multidão dos que oram se deve tão grande respeito, que até a mesma Majestade divina a
reverencia: Reveretur Deus multitudinem unanimem, et consentientem in precando. E é tal a
força desta reverência em Deus, que por isso não ousa nem se atreve a negar coisa alguma,
quando são muitos os que lha pedem: tanto assim - notai, ou não noteis a palavra - tanto
assim, que quando Deus o não fizera por vontade, o faria por vergonha: Ut veluti pudore
victus, non audeat illis negare.
50. Santo Atanásio, nas palavras que já citamos: particulatim, et dissociatim, diz que a
razão é porque a oração que cada um faz em particular vai desacompanhada, e a que faz
juntamente com muitos, leva consigo o acompanhamento de todos. Cá nas cortes da terra, se o
requerente é só, e vai só, acha grandes dificuldades em ser admitido; mas se vai com grande
acompanhamento, todas as entradas tem muito francas. E quase este mesmo é o estilo do céu.
Se a oração vai acompanhada de muitos, sempre tem as portas abertas; mas se vai só e
desacompanhada, não acha a entrada tão fácil. A isto aludia cortesãmente Davi, quando dizia
a Deus uma vez: Intret in conspectu tuo oratio mea20, e outra vez: Intret postulatio mea in
conspectu tuo21. Como se dissera: a oração, Senhor, que vos faço, é só minha: Oratio mea, e a
petição também só minha: Postulatio mea; e, como seja de um só, e não de muitos, o favor
particular que espero de vossa piedade e grandeza é que, sem embargo de ir só e
desacompanhada, se lhe não negue a entrada a vosso conspecto: Intret oratio mea. Intret
postulatio mea in conspectu tuo. E isto é o que chama Santo Atanásio, particulatim, et
dissociatim.
51. Tertuliano, à africana, vai por outro rumo Responde aos gentios, que estranhavam
aos cristãos orarem juntos nas suas congregações, e diz assim pomposamente: Coimus in?
coetrum et congregationem, ut Deum, quasi manu facta precationibus ambiamus orantes.
Haec vis Deo grata est22: Concorremos os cristãos e congregamo-nos a orar todos juntos,
como de mão armada, e, deste modo, sitiamos e pomos de cerco a Deus com nossas orações,
para que apertado de todas as partes, não tenha, nem lhe fique lugar de resistir a elas, e como

19 Chrysost. homil. 3. De incomprehensib. Dei naturae.


20 Entre à tua presença a minha oração (SI. 87,3).
21 Entre a minha petição até ao teu acatamento( Sl. 118,170).
22 Tertull. de Oratione Dominica, et in? Apologet.
189
obrigado por força, nos conceda quanto lhe pedimos. E sabei que esta mesma, que parece
força e violência, é muito aceita e agradável ao nosso Deus: Haec vis Deo grata est.
52. Santo Tomás, como tão singular no engenho e na doutrina, dá outra razão, também
singular: Multi enim minimi, dum congregantur, fiunt magni: Pode tanto com Deus a oração
de muitos, porque ainda que cada um dos que oram por si mesmo, e por si só, seja pequeno,
quando se ajunta com os demais, faz-se grande. Se não dera esta razão um tão grande teólogo
e filósofo, como Santo Tomás, não me admirara tanto, quanto parece dificultosa de se
entender. A união de muitos juntamente congregados faz número e multidão, mas não faz
grandeza. Como diz logo o Doutor Angélico, que juntos em oração os pequenos, ainda que
sejam mínimos, se fazem grandes? Para se fazerem grandes os pequenos, é necessário que
cresçam; e como podem crescer; só porque eles se ajuntam aos demais, ou os demais a eles?
Entendo que entendeu Santo Tomás, que crescem per juxta positionem. Os homens, os brutos,
as árvores crescem, porque têm vida vegetativa; as pedras não têm vida vegetativa, e também
crescem: mas como? Dizem os filósofos que per juxta positionem, convertendo cada uma em
si, e acrescentando a si o que tem junto de si. E isto mesmo é o que faz a união recíproca dos
que oram, quando oram muitos juntos: Multi enim minimi, dum congregantur, fiunt magni.
53. Em um facho composto de muitas canas, quando arde se vê o mesmo, porque cada
uma arde com o seu fogo e com o das outras. E esta é a razão que dá S. Vicente Ferrer, para
ser mais forte e mais poderosa a oração de muitos, e levantar ao céu e a Deus mais fervorosa e
maior labareda: Ideo congregamur, ut inflammemur; et oratio ascendat ad Deum23.
Finalmente a grande misericórdia de Deus é uma multidão de misericórdias: Secundum
magnam misericordiam tuam, et secundum multitudinem miserationum tuarum24; e para a
multidão das misericórdias se render às nossas orações, necessário é que também as orações
sejam da multidão. Quanto mais do que do mesmo Deus diz Isaías: Quoniam multus est ad
ignoscendum25. E se Deus, para perdoar e fazer mercês, é muitos ou muito: Quoniam multus
est - bem se deixa ver que só os muitos podem ter proporção com o muito, e quanto valerão
para com ele as orações e deprecações dos muitos.
54. De tudo isto colhe por conclusão S. Crisóstomo que concorrerem os fiéis à igreja
para ali orarem juntos, como se faz no Rosário, não só é o melhor e mais conveniente modo
de orar, senão que o contrário é grande erro: O frigidam excusationem, quam a pluribus reddi
audio! Orare domi possumus. Te, homo, decipis, et magno in errore versaris. Escusam-se
muitos - diz o Santo - de vir orar à igreja, dizendo que também podem orar em sua casa, e esta
escusa é muito fria e muito errada, com que o homem se engana a si mesmo. - E por quê?
Nam et si domi quoque detur orandi facultas, tamen fieri non potest, ut domi tam bene ores,
quam in ecclesia, ubi clamor felici societate excitatus ad Deum defertur: Porque, ainda que
cada um possa orar em sua casa, é certo que nem orará tão bem, nem com tanto merecimento
e fruto, porque lhe falta a feliz companhia de muitos juntos, com que as vozes da oração de
todos se excitam mais altamente e sobem mais prontamente a Deus. - E isto baste quanto à
primeira parte da nossa questão.

§1V

Segunda parte do discurso: O conselho do Doutor de todos os doutores. Cr!sto orava


retirado e só, para que entendamos que o orar só, e não juntamente com muitos, é o modo

23 S. Vicent. Ferrer, Sermon.. in 5 Domin. Post. Trinitat.


24 Segundo a tua grande misericórdia, e segundo as muitas mostras da tua clemência (Sl. 50, 3).
25 Porque ele é de muita bondade para perdoar (Is. 55, 7).
190
mais agradável a Deus e o mais conveniente aos homens. O fim por que Jacó se deixou ficar
só no deserto. A luta entre Jacó e Deus em forma humana. A oração, batalha de abraços. As
audiências públicas e as audiências particulares. Jamais comunicou Deus a uma comunidade
e congresso de muitos os secretos de sua providência e as revelações de seus decretos.

55. Entrando na segunda, seja o primeiro fundamento dela o conselho do Doutor de


todos os doutores, e do Mestre de todos os mestres, Cristo, Senhor e Deus nosso: Tu autem
cum oraveris, intra in cubiculum tuum, et clauso ostio, ora Patrem tuum in abscondito (Mt.
6,5): Tu, quando quiseres orar, entra no aposento mais retirado de tua casa, e, com a porta
cerrada, ora em secreto a teu Padre. - Tu cum oraveris. Tu - diz - e não vós, porque o que ora,
há de ser um só, e não muitos. Intra in cubiculum tuum: entra no aposento mais retirado,
porque ainda que seja na própria casa, não há de ser em lugar público. Et clauso ostio: e com
a porta cerrada, para não ver, nem ser visto de quem o divirta. Finalmente: Ora Patrem tuum
in abscondito: ora a Deus em segredo, porque ele ouve mais os corações que as vozes.
56. Isto é o que Cristo nos ensinou de palavra, e parece que o não podia ensinar por
obra, porque desde o dia em que entrou neste mundo não teve casa, e muito menos
apartamento retirado nela onde se recolher a orar. Contudo são, não só muitos, mas contínuos
os exemplos que o mesmo Senhor nos deixou deste retiro e desta soledade, orando sempre
retirado e sempre só. Os retiros de quem não tem casa são os desertos. Não professava Cristo
vida eremítica, mas, contudo, se nas cidades vivia, nos desertos orava: nas cidades tratava
com os homens, nos desertos com Deus. Depois de obrar em Cafarnaum infinitos milagres,
para que não bastou o dia, senão parte da noite: Egressus - diz S. Marcos abiit in desertum
locum, ibique orabat26]. Depois de dar de comer com cinco pães aos cinco mil que o seguiam:
Dimissa turba - diz S. Mateus - ascendit in montem solus orare27. Antes de perguntar aos
discípulos qual fosse a opinião que dele tinham os homens: Et factum est - diz S. Lucas -cum
solus esset orans28. E antes da Transfiguração, diz o mesmo Evangelista: Ascendit in montem,
ut oraret29. Em suma, que quando não era alguma oração breve, em caso público e forçoso,
sempre Cristo orava só, e sempre em lugar secreto e retirado.
57. Mas isto mesmo, mais interiormente considerado, não carece de dificuldade. Porque assim
o retiro do lugar, como a soledade da pessoa, ainda enquanto homem, parece que encontra
muito as soberanas perfeições de Cristo. Quando Moisés orava no monte, Josué pelejava na
campanha; quando Maria contemplava aos pés de Cristo, Marta ministrava o que era
necessário para a mesa: e por quê? Porque, segundo a limitação da natureza humana, as ações
da vida ativa encontram muito as atenções da contemplativa, e porque no mesmo sujeito e no
mesmo tempo mui dificultosamente se compadecem e concordam estas duas obras, ou estes
dois cuidados juntos; por isso a oração e as armas se dividem entre Josué e Moisés, e a
contemplação e ação entre Marta e Maria. Porém, em Cristo não era assim. Tanto podia
contemplar no meio dos maiores concursos de Jerusalém, como no retiro dos montes e na
soledade dos desertos. E não só podia, mas com efeito assim obrava. Dos nossos anjos da
guarda diz o mesmo Cristo que semper vident faciem Patris30. Pois, se os anjos sempre estão
vendo e contemplando a Deus, e no mesmo tempo assistindo a todas as ações dos homens,
quanto mais a alma de Cristo, a qual, posto que era da mesma espécie que as nossas, nos dotes
e perfeições excedia com superioridade quase infinita as de todos os espíritos angélicos.
Quando pregava, quando obrava os milagres, e quando padecia os trabalhos e os tormentos,
26] Saiu, e foi a um lugar deserto, e fazia ali oração (Mc. 1,35).
27 E logo que despediu a turba, subiu só a um monte a orar (Mt. 14,23).
28 E aconteceu que estando só, orando (Lc. 9, 18).
29 Subiu a um monte a orar (Lc. 9,28).
30 Incessantemente estão vendo a face do Pai (Mt. 18, 10).
191
sempre e no mesmo tempo contemplava o Senhor e orava juntamente, sem que as ações
exteriores impedissem a oração, nem a oração as ações exteriores. Mas, se isto era assim, por
que se retirava aos montes e aos desertos, e não só deixava, mas fugia da companhia dos
homens, para orar só: Fugit. In montem ipse solus 31? Porque ainda que o seu retiro não era
necessário à sua oração, a sua oração e o seu retiro era necessário ao nosso exemplo. Obrava
assim, para nos ensinar a obrar assim. Orava, para que orássemos, e retirava-se, para que nos
retiremos e orava retirado e só, para que entendamos que o orar só, e não juntamente com
muitos, é o mais agradável a Deus e o mais conveniente aos homens.
58. Nem cuide alguém, que por ser um só o que ora, por isso serão menos poderosas
com Deus as suas orações. Se as orações de muitos, por serem muitos, cercam e apertam a
Deus, e quase o obrigam por força a que conceda quanto lhe pedem, como dizia Tertuliano:
Ur Deum quasi manu facta precationibus ambiamus orantes: vede quanto mais apertam e
mais fortemente prendem ao mesmo Deus as orações de um só. Voltando Jacó para a pátria
com tão numerosa família, que se dividia em duas grandes tropas: Cum duabus turmis (Gên.
32,10), diz o texto sagrado que mandou passar diante todos os que levava consigo, e ele se
deixou ficar só no deserto: Traductis omnibus quae ad se pertinebant, mansit solus32. Dá a
razão Oleastro, e diz com a sentença de todos os Padres, que foi para tratar só por só com
Deus, e orar sem impedimento: Quia oratio requerit locum secretum, et qui orat debet
requirere secretiora loca, ubi nemo cum possit impedire33. Este foi o fim por que Jacó se
deixou ficar só, que é tudo o que até agora temos dito. Mas qual foi o efeito? Qual nunca
jamais se viu nem se podia imaginar :Et ecce vir luctabatur cum eo(Gên. 32,24). No mesmo
ponto - diz o texto - apareceu Deus ali em forma humana, e começou a lutar com Jacó. Pois,
por que Jacó se retira de toda a sua família, e se deixa ficar em um deserto para orar sem
impedimento, e tratar só por só com Deus, Deus, como se fora provocado a desafio, em vez de
lhe lançar os braços por agradecimento da fineza, se põe a lutar com ele? Sim, e por isso
mesmo. Porque a oração é uma batalha de abraços, em que o homem por uma parte se abraça
com Deus, e por outra luta com ele para o render a que lhe conceda quanto deseja e pede. E
neste caso foi Deus o autor ou agressor da luta, sendo ele o que lhe deu o princípio: para
mostrar quanto pode com a Majestade divina a oração de um homem, quando se retira de
todos e de tudo, para orar sem estorvo e tratar só por só com Deus.
59. Mas, que foi o que fez Jacó e o que pôde nesta luta? Agora se segue o que nem
imaginar se podia. Pôde tanto, que arcando Deus com ele, ele também arcou com Deus:
Luctabatur cum eo34; pôde tanto, que o não pôde Deus derrubar, nem cansar, nem enfraquecer
em uma noite inteira: Usque mane35; pôde tanto, que obrigou ao mesmo Deus a que,
desenganado de o não poder render, lhe pedisse partido: Dimitte me36; pôde tanto, que ele,
Jacó, como superior na batalha foi o que pôs a Deus as condições da trégua: Non dimittam te,
nisi benedixeris mihi37? pôde tanto que, efetivamente, conseguiu de Deus, e logo e no mesmo
lugar, quanto dele pretendeu: Et benedixit ei in eodem 1oco38. Finalmente, pôde tanto que,
com vitória e triunfo nunca imaginado, o mesmo Deus se confessou por vencido, e a Jacó por

31 Retirou-se para o monte ele só (Jo. 6, 15).


32 E, passado tudo o que lhe pertencia, ficou só (Gên. 32,23s)
33 Porque a oração requer um lugar secreto, e quem ora deve procurar os lugares mais escondidos, para que
ninguém o distraia.
34 Lutava com ele (Gên. 32,24).
35 Até pela manhã (Gên. 32,24).
36 Larga-me (Ibid. 26).
37 Não te largarei se me não abençoares (Ibid. 26).
38 E abençoou-o no mesmo lugar (Ibid. 29).
192
invencível: Si contra Deum fortis fuisti, quanto magis contra homines praevalebis39? Que
dirão agora os que tanto encarecem a oração de muitos juntos? Tudo isto, que não poderiam
conseguir todos os homens do mundo, pôde um homem só, e só, porque soube orar só e
retirado dos homens: Traductis omnibus quae ad se peritinebant, mansit solus40.
60. E quanto a serem melhor ouvidas as vozes de muitos, a que S. Crisóstomo chamou
oudientia major, a mesma palavra audiência nos abre as portas à evidente razão e diferença
por que a oração de um só é melhor ouvida de Deus. Os príncipes dão dois gêneros de
audiência, uma geral e pública, outra particular e secreta. A geral e pública pertence à
majestade e à justiça; a particular e secreta à própria da familiaridade e do favor. A geral e
pública é para todos; a particular e secreta é só para os privados e validos, que gozam os
privilégios da graça, e são participantes dos arcanos do príncipe. E tal é a grata e interior
audiência em que Deus ouve e se comunica aos que na oração secreta e retirada tratam só por
só com ele. Que valido há que não possa mais com o rei em uma hora do gabinete, que todos
os vassalos da monarquia, ainda juntos em cortes? José só podia mais com Faraó que todos os
conselheiros e ministros do Egito; Daniel só podia mais com Dario que todos os sátrapas dos
persas e medos; Amanso, e depois Mardoqueu só, podiam mais com Assuero, que todas as
cento e dezessete províncias de que era monarca. E não é menor o poder e valia que tem com
a majestade divina todo aquele que a portas cerradas trata só por só com Deus, não no
gabinete do mesmo Deus, senão no próprio: Intra in cubiculum tuum, et ora.
61. Vede, vede, se comunicou Deus jamais a alguma comunidade e congresso de
muitos os secretos de sua providência e as revelações de seus decretos, como os fiou sempre
de um só, e de um só, excluídos os muitos. Com muitos estava Daniel, e nota ele, que depois
que os muitos foram excluídos e ele deixado só, então lhe comunicou Deus a famosa
revelação das Hebdômadas e de quanto no preciso termo delas havia de suceder: Ego autem
relictus solus, vidi visionem grandem hanc41. Também S. Paulo caminhava para Damasco
acompanhado de muitos, quando Cristo lhe apareceu a ele só, e a ele só lhe disse o que dele
pretendia, em modo que nenhum dos companheiros ouviu a voz, nem viu quem fosse o que
falava: Et qui mecum erant, lumen quidem viderunt, vocem autem non audierunt ejus qui
loquebatur mecum42. Assim Abraão, estando só, viu no vale de Mambré os três Anjos que
representavam a Trindade. Assim Jacó, estando só, viu no caminho de Mesopotâmia, a escada
que chegava da terra ao céu. Assim Moisés, estando só, viu no deserto de Madiã a sarça, que
ardia e não se queimava. Assim S. Pedro, estando só, viu no terrado de Jope o mapa de todas
as feras que havia de matar e comer. E assim, finalmente, S. João, estando só, viu no seu
desterro e ilha de Patmos, os mistérios do Apocalipse, e neles toda a história do futuro até o
fim do mundo.

§V

A razão por que Deus sempre evita a freqüência e ajuntamento de muitos, e só se


comunica e manifesta aos que estão sós. S. Bernardino e as três espécies de atenção. A
injúria da oração divertida. Que dirão a isto os santos e doutores que tanto vos encareciam a
oração de muitos juntos? O que nos diz e ensina o texto sagrado acerca da soledade assim de
Deus para com os homens, como dos homens para com Deus no trato e comércio da oração?

39 Se contra Deus foste forte, quanto mais o serás contra os homens (Ibid. 28).
40 Passado tudo o que lhe pertencia, ficou só (Gên. 32,23s).
41 Tendo eu pois ficado sozinho, vi esta grande visão (Dan. 10,8).
42 E os que estavam comigo viram sim a luz, mas não ouviram a voz daquele que falava comigo (At. 22,9).
193
62. E se perguntarmos também nesta segunda parte do nosso problema a razão por que Deus
sempre evita a freqüência e ajuntamento de muitos, e só se comunica e manifesta aos que
estão sós, a razão, em que não há opiniões nem pode haver dúvida, é porque Deus não se
comunica familiarmente senão aos que perfeitamente oram, e a alma da perfeita oração é a
atenção, a qual se não pode conservar entre muitos. A multidão por isso se chama turba,
porque perturba, inquieta, diverte, e a atenção divertida, inquieta e perturbada, como pode ser
capaz de Deus, nem de ouvir e receber seus secretos? S. Bernardino, falando da oração vocal,
divide a atenção em três partes, ou em três atenções: a primeira às palavras, a segunda ao
sentido, a terceira ao objeto: Triplex est in oratione attentio procuranda: prima ad verbum,
secunda ad sensum, tertia ad objectum43. Todas estas atenções requer oração, e muito
particularmente a nossa do Rosário. Atenção às palavras que na Ave-Maria são angélicas, e
no Padre-Nosso divinas; atenção ao sentido delas, para que o coração responda com os afetos
ao que soa e pronuncia a língua; atenção ao objeto, porque o objeto que se representa em cada
década, são os mistérios da Vida, Morte e Ressurreição do Filho de Deus, em que a atenção
deve ser mais firme, mais aplicada e mais atenta. Por isso acrescenta o mesmo S. Bernardino:
Bona quidem est attentio prima, melior est secunda, tertia optima reputatur: que a primeira
atenção é boa, a segunda melhor, e a terceira, em grau superlativo, ótima. - Se todas estas
atenções concorrem e se ajuntam na nossa oração, então será ela perfeita e digna de que Deus,
muito interior e muito familiarmente, se comunique à alma; mas, se faltar qualquer delas, e,
muito mais, se faltarem todas, nem será atenção, nem oração, senão quê? Uma grave injúria
que fazemos a Deus, com quem falamos.
63. Ouvi a S. Bernardo: Magnam injuriam Deo facio, cum illum precor, ut meam
vocem audiat quam ego, qui fundo, non audio: deprecor illum, ut mihi intendat , ego vero nec
mihi, nec illi intendo44: Quando oro sem a devida atenção faço uma grande injúria a Deus. E
por quê? Porque lhe peço que me ouça a mim, quando eu mesmo me não ouço, e porque lhe
rogo que atenda ao que digo, quando eu nem ao que digo, nem a mim, nem a ele atendo. - Isto
é orar, ou zombar de Deus? Não só é zombar, mas desprezá-lo, diz Santo Efrém: Cum ad
orandum te composueris, noli vaga aut distracta mente esse, ne quando contemnens
inveniaris45: Quando orais, ora com a devida atenção, e não divertido e distraído em outros
pensamentos, por que não sejais compreendido no maior crime de lesa-majestade divina,
como desprezador do mesmo Deus: Ne quando contemnens inveniarius. Deus diz que está
com os que oram: Ibi sim in medio eorum46. Mas vede como argúi Eusébio Emisseno aos que
orando, por divertidos e desatentos, nem estão com Deus nem consigo: Quomodo erit Deus in
medio tui, si tecum ipse non fueris? Si deest ille, qui poscit, quomodo aderit ilIe, qui
poscitur47? Como há de estar Deus convosco, se vós não estais em nós? E se o que roga está
ausente, como há de estar presente o que é rogado? - Tão contrária é do que pretende e tanto
desfaz o que faz, a desatenção de quem ora. E como a alma, que na oração devia estar toda
recolhida e dentro em si, abertas as portas dos sentidos, sai fora e se derrama e distrai com
outros cuidados, e a companhia dos homens e ajuntamento de muitos são outras tantas
ocasiões de divertimento e distração, e o maior impedimento que tem a atenção dos que oram,
por isso Cristo os manda encerrar no retiro mais secreto de sua casa, e ele, que a não tinha,
não só ia orar aos montes e aos desertos, mas escolhia para a oração o silêncio mais secreto

43 Bernardi de oration. et attent.


44 Bernard. Mediat, cap. 8.
45 S. Ephrem, in illudi Attende tibi, cap. 10.
46 Aí estou eu no meio deles (Mt. 18,20).
47 Emissemus in eudem locum.
194
das noites: Erat pernoctans in oratione Dei48 - para que com a soledade do tempo, com a
soledade do lugar e com a soledade da pessoa nos ensinasse a orar sós.
64. Que dirão agora a isto os santos e doutores que tanto nos encareciam a oração de
muitos juntos? S. Crisóstomo, que foi o primeiro e o último, e que mais empenhada mostrou
sua eloqüência pelo acompanhamento da oração, não retratando aquelas suas razões, mas
obrigado das evidências desta, nos aconselha que no tempo e no lugar busquemos as
comodidades da oração mais quieta, acrescentando que o ermo e a soledade é só o porto
quieto e seguro de toda a perturbação: Tam a loco, quam a tempore tranquillitatem orandi
quaeramus. Tranquillitatis quippe mater eremus est, quietis portus, et omnis perturbationis
expultrix49. E S. Jerônimo, falando de si mesmo na Epístola a Eustóquio: Sic ubi aspera
montium, concava vallium, rupium praerupta cernebam, ibi meae orationis locus50: Se em
alguma parte via o áspero dos montes, o côncavo dos vales, o talhado dos rochedos, ali me
metia e ali era o lugar da minha oração. - De sorte que não só buscava Jerônimo os ermos, os
desertos, as soledades, senão no ermo o mais oculto, no deserto o mais escondido, e na
soledade o mais só. Isto mesmo dizem S. Dionísio Areopagita, S. Basílio, Santo Agostinho,
Santo Ambrósio, Beda, e todos os padres, entre os quais S. Gregório Nazianzeno, com
particular reparo entre as ações e orações de Cristo pondera que, para as ações, buscava os
homens, e, para as orações, se retirava deles: Jesus ipse ut actiones maltitudini, hominumque
frequentiae, ita preces quieti, locisque ab hominum commercio semotis fere tribebat51.
65. Mas porque a autoridade da Sagrada Escritura, como divina, excede sem
comparação a de todos os santos e doutores, vejamos o que nos diz e ensina o mesmo texto
sagrado acerca desta soledade, assim de Deus para com os homens como dos homens para
com Deus, no trato e comércio da oração, sempre só por só. No capítulo terceiro dos Cânticos,
declarando a soledade do lugar, nota o retiro do deserto: Quae est ista, quae ascendit per
desertum, sicut virgula fumi... et thuris52? No capítulo dezoito da Sapiência, declarando a
soledade no tempo, nota o silêncio da meia-noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et
nox in suo curso medium iter haberet, omnipotens sermo tuus... a regalibus sedibus...
prosilivit53. No capítulo terceiro dos Trenos, declarando a soledade da pessoa, nota a quietação
elevada e elevação quieta do solitário: Sedebit solitarius et tacebit, quia levavit se super se54.
Só no lugar, só no tempo, só na pessoa, e sempre só por só o homem com Deus. Finalmente, o
mesmo Deus querendo-se comunicar muito e interior e familiarmente com uma alma, diz que
a retirará e apartará consigo, e a levará a uma soledade, para lá lhe falar ao coração: Ecce ego
lactabo eam, et ducam eam in solitudinem, et loquar ad cor ejus55. E, sendo Moisés vice-Deus
na terra, quando Faraó lhe pediu que fizesse oração, para que cessasse a praga dos trovões e
tempestade que destruía todo o Egito, respondeu que, depois que saísse da cidade, então oraria
a Deus, e cessaria aquele castigo: Cum egressus fuero de urbe, extendam palmas meas ad
Dominum, et cessabunt tonitrua, et grando non erit56. E por que não orou Moisés logo e na
cidade, senão depois que saiu dela? Porque sendo vice-Deus, como dizia, não teve confiança
48 Passou toda a noite em oração a Deus (Lc. 6,12).
49 Chrysost. homil. 51, Mat, 14.
50 Hieron. in Epistol. ad Eustoch.
51 Nazianz. Orat. ad Maxim.
52 Quem é esta, que sobe pelo deserto como uma varinha de fumo... e de incenso? (Cânt. 3,6)
53 Quando tudo repousava em profundo silêncio, e a noite estava no meio do seu curso, a tua palavra onipotente
baixando do teu trono real, saltou para a terra (Sab. 18,14 s).
54 Assentar-se-á solitário, e ficará em silêncio, porque levou este jugo sobre si (Lam. 3.28).
- A Vulgata traz: quia levavit super se.
55 Eis aqui estou eu que a atrairei docemente a mim, e a levarei à soledade, e lhe falarei ao coração (Os. 2,14).
56 Depois que eu tiver saído da cidade, estenderei as minhas palmas para o Senhor, e cessarão os trovões, e não
choverá mais pedra (Êx. 9,29).
195
para esperar que o mesmo Deus, que lhe dera as suas vezes, ouviria a sua oração, senão
quando orasse só. Tanto importa ainda aos mais validos de Deus a soledade do lugar e da
pessoa quando lhe hão de fazer oração.
66. De tudo o dito se colhe por última conclusão com S. Lourenço Justiniano, que a
oração de um só é mais eficaz e mais segura que a oração de muitos juntos; porque, se a
freqüência e companhia de muitos lhe acrescenta o valor, a mesma companhia e freqüência
lhe diminui a atenção: Minus vanis cogitationibus stimulatur qui orat, ubi non est hominum
frequentia, quandiu namque animus permixtus est turbis, non vacat soli Deo57.

§VI

Qual destas partes deve seguir o devoto do Rosário? Será melhor rezar em público ou
rezar só? Aos homens diz o autor que rezem ou na igreja ou em sua casa, onde
experimentarem maior devoção; porém, às mulheres diz que rezem em sua casa, e de nenhum
modo fora dela. A grande conveniência e decência desta distinção. Para a mulher, edifício
sem alicerces, o maior apetite é andar e sair Onde falou Eva com a serpente ? Se Eva se
contivera dentro no Paraíso, e não quisera ver mais mundo, ela se livrara dos encontros em
que viu e ouviu o que lhe não convinha.

67. Temos disputado o nosso problema por uma e outra parte. E como cada uma delas
se defende, e tem por si grandes textos, muitos doutores e eficazes razões, ambas são
prováveis. O que agora resta, como no princípio propus, é fazer juízo de uma e outra, e
resolver qual se deve seguir na reza do Rosário, como mais proveitosa a nossas almas, e mais
aceita a Deus e a sua Santíssima Mãe. Não falo nos casos de necessidade, porque então
devemos orar em qualquer tempo, em qualquer lugar e em qualquer estado que nos acharmos.
Moisés orou na campanha, Jó orou no muladar, Ezequias orou na cama, S. Paulo orou no
cárcere, Daniel orou no lago dos leões, Jonas orou no ventre da baleia, o Bom Ladrão orou na
cruz, e todos estes oraram, ou sós ou entre muitos, conforme o caso o permitia. Havendo pois
de orar, não por necessidade, senão por eleição, e havendo de ser a oração, não outra, senão a
do Rosário, de que particularmente tratamos, sendo muito provável o modo de orar só, e
também muito provável o modo de orar juntamente com muitos, o que se pergunta agora por
última conclusão é: qual destas partes deve seguir o devoto do Rosário? Será melhor rezar em
público e juntamente com muitos na igreja, ou rezar só e retirado em sua casa? Respondo com
distinção. Aos homens digo que rezem ou na igreja ou em sua casa, onde experimentarem
maior devoção e onde tiverem maior comodidade. Às mulheres porém absolutamente digo
que cada uma deve rezar em sua casa e de nenhum modo fora dela: os homens sejam embora
muitos, a mulher sempre uma só. E isto é o que diz o nosso texto: Mulier? Quaedam: A
mulher? Uma. E onde houver turba, não com ela, mas separada dela: Mulier quaedam de
turba.
68. O fundamento desta distinção não é de grande louvor para as mulheres, mas de
grande conveniência e decência, sim. Por quê? Porque muitas vezes quando a mulher sai a
rezar o Rosário, ou, como se diz vulgarmente, o terço, mais sai a sair que a rezar. Quando
Deus criou o homem e a mulher, foi com grande diferença, ainda nos termos com que o refere
a Escritura. Do homem diz que o formou Deus: da mulher, que a edificou: Aedificavit...
costam... in mulierem58. Não quis o Autor da natureza que a mulher se contasse entre os bens
móveis. O edifício não se move do lugar onde o puseram: e assim deve ser a mulher: tão

57 Laurent. Justinian. de Orat, c. 5 et 6.


58 E da costela formou a mulher (Gên. 2,22).
196
amiga de estar em casa, como se a casa e a mulher foram a mesma coisa. Mas a sua inclinação
correspondeu tão pouco ao mistério ou documento com que fora criada, que, como se viu
edifício sem alicerces, o maior apetite da mulher é andar e sair. Na mesma criação de Eva, e
no mesmo momento em que foi criada, temos o exemplo. Formou Deus a Eva da costa de
Adão, e depois de formada não diz o texto sagrado que o Senhor lha mostrou ou que lha
entregou, senão quê? Coisa verdadeiramente digna de grande admiração e reparo. Diz que a
trouxe Deus a Adão: Aedificavit,.. costam, quam tulerat de Adam, in mulierem: et adduxit
eam ad Adam59. Se a trouxe, sinal é que estava noutro lugar, e não ali. Pois se ali tirou Deus a
costa a Adão, e ali formou a Eva, por que não estava Eva ali, senão em outra parte, onde Deus
a foi buscar e a trouxe? Porque a primeira coisa que fez Eva, no mesmo instante em que teve
ser, foi, não parar no mesmo lugar um só momento, senão sair e andar. Para não sair dali tinha
Eva as duas mais fortes razões que se podem imaginar, porque ali estava Deus, que acabava
de a criar, e ali estava o esposo, de cujo lado fora criada. Mas é tal a inclinação, e tão
impaciente na mulher o apetite de sair e andar, que por sair e andar deixou Eva o esposo, e por
sair e andar deixou a Deus. Ó quantas vezes, por este mesmo apetite, vemos deixado a Deus, e
os esposos pior que deixados?
69. Mas ainda Eva depois de trazida não aquietou. Perdeu-se Eva a si, a seu marido, e
a seus filhos, e a todo o mundo, porque falou com a serpente e a ouviu. Mas como podia Eva
falar com a serpente? Esta dúvida excitou Ruperto Abade, tão bem fundada, como sutilmente
argüida. Dentro da cerca do Paraíso Terreal, que depois defendeu o querubim com a espada de
fogo, não podiam entrar as serpentes, porque se as serpentes entrassem, também entrariam os
lobos, os tigres, e todos os outros animais, o que era contra a dignidade, limpeza e asseio do
mesmo Paraíso, plantado pelas mãos de Deus, como um céu na terra. Quanto mais que ao
mesmo Adão, tinha Deus mandado que o guardasse, e naquele tempo não havia de quem o
guardar, senão dos mesmos animais, os quais também se não se pode dizer que furtivamente
entrassem no Paraíso, porque eram obedientes ao homem. Pois, se a serpente não entrou nem
podia entrar no Paraíso, como lhe falou Eva, e onde? Excelentemente o mesmo Ruperto:
Libera nobis relinquitur facultas asserendi, quod non serpens in paradiso fuerit, sed mulier
corpore, et oculis vaga, dum incontinenter deambulat, forte prospectans qualis extra
paradisum mundus haberetur, locus datus est, et occasio, unde serpentes tentaret60: Sabeis -
diz Ruperto - por que teve ocasião Eva de falar com a serpente, e onde lhe falou? Não foi
dentro no Paraíso, senão fora. Dentro não, porque a serpente não podia entrar lá; mas fora da
cerca do Paraíso sim, porque a mulher, tão vagabunda nos olhos como nos passos, teve apetite
de ver qual era o mundo cá por fora, e este foi o lugar em que se encontrou com a serpente, e
a serpente a tentou e fez cair: Dum incontinenter deambulat, prospectans qualis extra
paradisum mundus haberetur. Se Eva se contivera dentro do Paraíso que Deus lhe tinha dado
por morada, e não quisera ver mais mundo, ela se livrara dos encontros em que viu e ouviu o
que lhe não convinha; mas, porque quis sair e andar por fora, por amor do mundo, que fora
melhor não ver, não só perdeu o mesmo mundo, senão também o Paraíso, e a si e a nós. E isto
é o que sucede cada dia às filhas de Eva.

§VII

Muitas vezes começa com boa tenção o que acaba em tentação. O que sucedeu à filha
de Jacó em Salém, cidade dos siquemitas. Uma mulher que sai a ver mulheres, também sai a
ser vista de homens. As devoções e as devassidões no Livro dos Provérbios. O que diz
59 E da costela que tinha tirado de Adão formou a mulher, e a trouxe a Adão (Gên. 2,22).
60 Rupert. Lib. 3 in Genes., cap. 29.
197
Oleastro da limitação da lei do Templo somente aos homens.

70. Não quero dizer com isto que quando saem as que saem, seja sempre com má
tenção; mas é certo que muitas vezes começa com boa tenção o que acaba em tentação.
Peregrinando Jacó com toda a sua família, fez assento em um lugar- que então se chamou
Socot, e depois Citópolis - e ali, diz a História, que Dina, filha do mesmo Jacó, saiu um dia de
casa para ver as mulheres daquela terra: Egressa est autem Dina, ut videret mulieres regionis
illius (Gên. 34,1). Esta foi a tenção com que saiu da casa de seu pai aquela donzela; e qual foi
o sucesso? O sucesso foi que Siquém, príncipe da mesma terra, vendo a Dina e agradando-se
dela, a tomou ou roubou por força, e Simeão e Levi, irmãos de Dina, vendo-se afrontados,
tiveram traça com que matar por traição ao mesmo príncipe Siquém e a todos os siquemitas; e
se Deus com especial providência não guardara a Jacó, também ele pereceria e acabaria ali
com todos seus doze filhos, de que nasceram as doze tribos de Israel. Pois, se a tenção com
que Dina saiu da casa de seu pai, não foi mais que de ver as mulheres daquela terra: Egressa
est, ut videret mulieres regionis illius - como veio a parar esta honesta tenção em tamanhas
desgraças, a que só por milagre do céu se não seguiram outras maiores? Porque uma mulher
que sai a ver mulheres, também sai a ser vista de homens. E se no ver não há perigo nem
indecência, no ser vista periga a honra, periga a pessoa, periga a família, e periga talvez toda a
república, e não só uma, senão muitas, como neste caso. A tenção de Dina em querer somente
ver mulheres, podia ser inocente; mas no risco e ocasião de ser vista de homens, também foi
culpada, porque, como gravemente disse Tertuliano: Ejusdem libidinis est videre et videri61.
Por isso S. Jerônimo, com o exemplo da mesma Dina, exortava à virgem Eustóquio a nunca
sair de casa: Cave, ne domum exeas, et velis videre mulieres regionis alienae: Dina egressa
corrumpitur. Até o poeta gentio, notando discretamente semelhantes saídas, disse que saíam
Penélopes e tornavam Helenas: Penelope venit, abit Helene62. E isto é o que sucedeu à filha de
Jacó, que saiu Dina e tornou Indiana.
71. Nem se evitam estes inconvenientes com irem sobredourados com o nome de
devoção, porque muitas vezes as que se chamam devoções são verdadeiramente devassidões.
As contas do Rosário também podem ter seus descontos, e as rosas suas espinhas, e assim
sucede, quando o rezar é somente pretexto de sair, de ver e de falar e do que se não pode falar
nem ver. Não falo por boca do vulgo malicioso e maldizente, porque o que digo não é
murmuração nem malícia sua, senão provérbio de Salomão expresso. Descreve ele uma
mulher inquieta e vã, da qual diz, primeiro que tudo, que é tão amiga de sair, ou tão
impaciente de não sair, que não pode ter os pés dentro em casa: Quietis impatiens, nec valens
in domo consistere pedibus suis63. Enfim, saiu de casa esta mulher, e que fez ou que disse? O
que verdadeiramente era, posto que parecia outra coisa. Parecia devoção, e era - como dizia
devassidão. Encontrou-se com quem a trazia inquieta, e tão fora de si como de casa, e o que
lhe disse foram estas formais palavras: Victimas pro salute devovi, hodie reddidi vota mea.
Idcirco egressa sum in occursum tuum, desiderans te videre64: Fui hoje à igreja a oferecer
sacrifício, e dar cumprimento a um voto que tinha feito a Deus; por isso saí a me encontrar
convosco, tendo grandes saudades e desejo de vos ver. - Notai muito aquele por isso: idcirco.
De maneira que o pretexto de sair à igreja era dar cumprimento ao voto, e o verdadeiro fim e
intento era ver a quem buscava. O voto era pretexto de ir à igreja: Victimas pro salute devovi,
hodie reddidi vota mea; e o devoto, e o desejo de o ver, era a verdadeira causa de sair de casa:
61 Há tanto perigo de pecado em ver como em ser visto.
62 Martialis.
63 Não lhe sofrendo o coração estar queda, nem podendo ter os pés dentro em casa (Prov. 7,11).
64 Pela tua saúde ofereci vítimas, hoje dei cumprimento aos meus votos. Por isso te saí ao encontro, desejando
ver-te (Prov. 7,14 s)
198
Idcirco egressa sum in occursum tuum, desiderans te videre.
72. Oh! quantas vezes sucede isso mesmo na nossa terra, sendo o Rosário o pretexto
das hipocrisias, e o terço o terceiro destes sacrilégios! E porque não parece que falo de longe,
em que as conjecturas são incertas, quero fechar este discurso com o parecer e sentença de um
grande autor, não de outra nação, senão português, nem de outra profissão, senão dos
pregadores do Rosário, nem de outro convento, senão do de Lisboa, nem de outra igreja,
senão da antiquíssima e famosa de S. Domingos, onde o terço do Rosário se reza todos os dias
com tão particulares concursos, e donde esta tão louvável devoção se propagou por todo o
reino e reinos de Portugal. O autor é Frei Jerônimo de Azambuja, mais conhecido no mundo
pelo nome de Oleastro, tão, pio, como douto e doutíssimo comentador do Pentateuco. E para
que se veja o fundamento da sua sentença, no capítulo trinta e quatro do Êxodo mandava Deus
que três vezes no ano fossem todos ao Templo - que naquele tempo era um só e aparecessem
em sua presença. Mas, nota a mesma lei que este preceito falava só com as pessoas do gênero
masculino: Tribus temporibus anni apparebit omne masculinum tuum in conspectu
omnipotentis Domini Dei Israel65. Repara pois nesta limitação Oleastro, e dando a razão por
que a lei obrigava os do gênero masculino, e não do feminino, os homens e não as mulheres,
diz assim: Femininum genus docet non hinc inde discurrere, etiam pietatis et religionis
praetextu. Amat hoc genus exire, amat hinc inde discurrere: sed quia a viris suis saepius
arcentur causam religionis et pietatis mentiuntur. Ut ergo licentiosum genus teneret in
officio, occasiones vagandi praecludit: Quer dizer o douto, religioso e experimentado
comentador, que na limitação desta lei quis Deus ensinar a todos aqueles a quem pertence,
que as mulheres não devem sair de casa, ainda com pretexto de piedade e religião, porque a
gente deste gênero - diz ele como testemunha ocular - é muito amiga de sair e de andar por
fora, e porque talvez lho proíbem os que têm o mando da casa, fingem devoções falsas e
mentirosas: Causam religionis et pietatis mentiuntur. Assim que desobrigou Deus as mulheres
desta lei do Templo, para lhes tirar a ocasião, não de orar, mas de sair, estimando mais o seu
recolhimento que as suas romarias.

§VIII

Na manhã da Ressurreição, por que não foi também a Senhora com as outras Marias
ao sepulcro? A solidão na conversão das mulheres no Testamento Novo. Conclusão.

73. E para que saibamos sem dúvida que este recolhimento é o que mais aprova e o
que mais lhe agrada à mesma Senhora do Rosário, ponhamo-nos entre os Mistérios Dolorosos
e Gloriosos, e vejamos o que então fez ou não fez a mais qualificada piedade. Na manhã da
Ressurreição foram as Marias com grande devoção e diligência ao sepulcro, para ungir o
Sagrado Corpo. Agora pergunto: E foi também com as outras Marias a Virgem Maria,
Senhora nossa? Não. Pois, por que não foi também a Senhora? Era menos devota? Amava
menos a Cristo? Considerava com menor dor os tormentos de sua paixão e as ausências da sua
morte? Claro está que o amor de Salomé, de Jacó e da Madalena, em comparação dos
ardentíssimos afetos da Virgem, eram tibiezas. Pois, por que não foi também a Senhora com
as outras Marias? Porque teve por melhor e mais decente o seu recolhimento, e porque sabia
que era mais agradável ao próprio Filho o contemplar seus mistérios entre quatro paredes que
i-lo buscar ao sepulcro. As Marias no sepulcro tiveram grandes visões de anjos: e se é melhor

65 Tudo o que do gênero masculino é teu, será presentado três vezes no ano diante do onipotente Senhor, Deus
de Israel (Êx. 34,23).
199
devoção a de não ir onde só se vêem anjos, quanto mais onde não são anjos os que se vêem?
74. Em conclusão: A mulher? Só. Mulier? Quaedam. Só e apartada da multidão e dos
concursos: de turba. Assim o faz o mesmo Cristo, quando quer converter mulheres. Primeiro
aparta a multidão e as turbas, e, quando ficam separadas e sós, então as converte. Levaram a
Cristo aquela mulher criminosa para que a condenasse, e o Senhor, que a não quis condenar,
senão absolvê-la e reduzi-la de pecadora a santa, que fez? Pôs-se a escrever na terra os
pecados dos acusadores, e depois que todos se foram: Remansit solus Jesus, et mulier in
medio stans - diz o Evangelista66. Ficou Cristo só, e a mulher só com Cristo; e, agora que
estava só, lhe falou o Senhor, e não só lhe perdoou os pecados passados, mas, com suas
divinas palavras, lhe deu alentos para não cometer outros: Vade, et jam amplius noli
peccare67. Chegando Cristo ao poço de Sicar, fatigado do caminho, a horas do meio-dia,
despediu de si a todos os apóstolos, e mandou-os que fossem buscar de comer à cidade. Para
ir buscar de comer bastava um. E por que mandou o Senhor todos? Porque havia de vir ali a
Samaritana, a quem o Divino Mestre havia de converter e revelar grandes mistérios. E posto
que a multidão dos apóstolos era de homens santos, bastava ser multidão para estorvar, e que
somente estando só pois só podia uma mulher ter confiança para perguntar, liberdade para
ouvir; e capacidade e sossego para entender, Por isso a Madalena em sua casa se retirou até de
uma irmã tão santa como Marta; e se recolheu, também só aos pés de Cristo. E por isso, antes
de Cristo vir ao mundo, lemos da famosa Judite, que no alto do seu palácio fez um aposento
secreto, em que dentro da própria casa, e longe das inquietações dela, se retirava com Deus e
consigo: In superioribus domus suae fecit sibi secretum cubiculum68.
75. Isto é o que nos prega o Evangelho nas palavras mulier quaedam. E se esta
unidade e solidão de uma e só, foi necessária às que não eram santas, para que o fossem, e,
depois de serem santas, para se conservarem na perfeição e pureza da vida, nenhuma mulher
haverá em qualquer estado da sua, que o não tenha por errado, se seguir o modo ou apetite de
querer orar entre muitos. Finalmente, para que todos entendam e se persuadam que a devoção
e oração do Rosário, de si mesmo e por si mesmo as obriga a este retiro, saibam que assim
nasceu e começou o Rosário, e que assim se deve continuar. O princípio e o nascimento do
Rosário foi o mistério da Encarnação. E como nasceu e começou por este mistério, senão no
retiro e soledade da mesma Senhora dele? Sola in penetralibus, sola sine comite, sola sine
teste, diz Santo Ambrósio. Assim começou o Rosário na bendita entre todas as mulheres, e
assim deve continuar em todas e em cada uma: Mulier quaedam.

SERMÃO XVIII

Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus1.

§I

Diferença entre o nome de Jesus e o nome de Cristo. Por que se declara a dignidade
do Filho de Deus e da Virgem com o nome de Ungido. Propriedade e correspondência

66 E Ficou só Jesus, e a mulher, que estava no meio em pé (Jo. 8, 9).


67 Vai, e não peques mais (Jo. 8, 11).
68 No andar superior da casa tinha feito para si um quarto retirado (Jdt. 8,5).
1 Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo (Mt. 1,16).
200
maravilhosa com que a arquitetura da primeira página de todos os Evangelhos se compõe
dos varões mais ilustres da prosápia de Cristo. Primeira questão: Se por Cristo, Filho da
Virgem Maria, ser Rei, e Rei universal do mundo, pertence também à Senhora o mesmo título
e dignidade real. Segunda questão e argumento do sermão: Se Cristo, enquanto Pontífice
Sumo, por ser Filho da mesma Senhora, comunicou à mesma Mãe a dignidade pontifical, o
que, segundo o autor, não se deu senão depois de a Virgem Maria ser Senhora do Rosário.

76. Esta é a última cláusula do Evangelho, e esta havia de ser, para concordar o fim
com o princípio. No princípio tinha dito o Evangelista que escrevia o Livro da Geração de
Jesus Cristo: Líber generationis Jesu Christi; e depois de contar quarenta e um ascendentes,
todos sucessivamente continuados de pai a filho, chegando, finalmente, à Virgem Maria
Senhora nossa, conclui que de Maria nasceu Jesus, que se chama Cristo: Maria, de qua natus
est Jesus, qui vocatus Christus (Mt. 1, 16).
77. Ente o nome de Jesus e o de Cristo há esta diferença: Jesus, que quer dizer
Salvador, é o nome da pessoa; Cristo, que quer dizer o Ungido, é o título da dignidade. E
porque desta dignidade do Filho havemos de tirar a da Mãe, em cuja solenidade estamos, será
bem que saibam, os que o ignoram, porque se declara a dignidade do Filho de Deus e da
Virgem com o nome de Ungido. A razão brevemente é porque na pessoa de Cristo, Senhor
nosso, enquanto homem, estiveram juntas as duas supremas dignidades de Rei e de Sumo
Pontífice; e era cerimônia sagrada daqueles tempos, em parte observada também nos nossos,
que os reis e os pontífices fossem ungidos. Saul, que foi o primeiro rei, foi ungido por
Samuel; e Arão, que foi o primeiro pontífice, foi ungido por Moisés: porém Cristo, Senhor
nosso, Rei sobre todos os reis, e Pontífice sobre todos os pontífices, não foi ungido por mão
ou ministério de homens, senão imediatamente por Deus, como diz o Profeta: Unxit te Deus,
Deus tuus, oleo lactitae, prae consortibus tuis2.
78. Esta é a propriedade e correspondência maravilhosa com que a arquitetura desta
primeira página de todos os Evangelhos, assim como as fachadas dos grandes edifícios se
ornam e enobrecem de formosas estátuas, assim ela se compõe dos varões mais ilustres da
prosápia de Cristo, e as personagens entre eles de maior vulto, ou são reis, de que o primeiro
foi Davi, ou pontífices, de que o primeiro foi Zorobabel. E por que o ordenou assim Deus, de
quem mais que dos pais depende a sucessão dos filhos, e, sendo Filho seu, o que nesta
geração se deduzia? Para que se visse claramente, diz Santo Agostinho, na mesma
descendência natural de seus primogenitores, que assim a unção da coroa como a da tiara,
assim a dignidade de rei como a de pontífice, e toda a propriedade e significação de ungido,
porque se chama Cristo, não só lhe competia direitamente por Filho de seu Pai, senão também
pelo nascimento de sua Mãe: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus3.
79. Isto posto, em que não há dúvida, entram agora duas questões, uma antiga e já
tratada, outra nova, e tão nova, que hoje é a primeira vez em que será ouvida. Pergunta a
primeira questão: se por Cristo, Filho da Virgem Maria ser Rei, e Rei universal do mundo,
pertence também à Senhora a mesmo título e dignidade real? E posto que alguns,
demasiadamente espirituais, duvidaram antigamente de ajuntar na Virgem Santíssima o real
com o Santo, a sentença afirmativa é hoje comum de Teólogos e Padres, dos quais só quero
alegar dois. Ruperto, falando da mesma Senhora: Haec in caelis Regina Sanctorum, et in
terris Regina Regnorum est: quanddoquidem est MaterRegis coronati, quem constituit
Dominus super omnia opera manuum suarum, ac proinde Regina constituta totum
possidetFiliiRegnum. E S. Bernardino, com a mesma clareza, e sobre o mesmo fundamento:

2 Por isso te ungiu Deus, o teu Deus, com óleo de alegria sobre teus companheiros (SI. 44, 8).
3 Da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo (Mt. 1,16).
201
Virgo Beatissima omnem hujus mundi meruit Principatum et Regnum, quia Filius ejus in
primo instantis suae conceptionis monarchiam totius promeruit et obtinuit universi, sicut
propheta testatur, dicens: Domini est terra, et plenitudo ejus, orbis terrarum, et universi qui
habitant in eo. De maneira que a Virgem Maria assim no céu, como na terra, é Senhora e
Rainha universal de todos os anjos, de todos os homens e de todas as criaturas quantas contém
e abraça o mundo universo. E a razão por que lhe compete este direito, e tem o domínio, posse
e exercício dele, é por ser Mãe de um Filho, Rei e Monarca universal do mesmo mundo, que é
Cristo: De qua natus este Jesus, qui vocatur Christus. E isto baste quanto à primeira questão.
80. Agora se segue a segunda, que é muito não entrasse ao menos em pensamento
depois da resolução da primeira. Cristo, segundo as duas unções, que vimos, não só é Cristo e
Rei Supremo, senão Cristo e Pontífice Sumo. Logo, se enquanto Rei Supremo, por ser Filho
de Maria, comunicou a sua Mãe a dignidade real, poderemos dizer também que, enquanto
Pontífice Sumo, por ser Filho da mesma Senhora, comunicou à mesma Mãe a dignidade
pontifical. Esta é a nova questão que trago hoje, não para disputar, senão para decidir. E para
que me ajudeis a pedir eficazmente a muita graça que me é necessária para uma decisão tão
dificultosa, digo resolutamente, que antes de a Virgem Maria ser Senhora do Rosário, não se
podia provar com efeito que Cristo seu filho lhe tivesse comunicado a dignidade pontifical;
mas, depois de ser Senhora do Rosário, sim. Isto é o que haveis de ouvir.

§11

As três propriedades ou excelências que constituem o perfeito pontífice na Epístola


aos Hebreus se acham com eminência na Virgem Santíssima, Senhora nossa: a excelência da
eleição, a excelência da mediação e a excelência dos sacrifícios e oblações.

81.O apóstolo S. Paulo, definindo as obrigações da dignidade pontifical, em ordem a


declarar a soberana perfeição do pontificado de Cristo, diz assim: Omnis pontifex ex
hominibus assumptus, pro hominibus constituitur in iis, quae sunt ad Deum, ut offerat dona,
et sacrificia pro peccatis4. Sobre as quais palavras o doutíssimo Cornélio A Lápide - o qual na
exposição de S. Paulo, por não dizer que excedeu a todos os comentadores, digo que se
venceu a si mesmo - dividindo esta definição do apóstolo em suas partes essenciais diz que
nela se contém três propriedades, ou excelências, que constituem o perfeito pontífice. A
primeira pertence à eleição da pessoa, as outras duas à execução do ofício, e todas três, digo
eu, se acham com eminência na Virgem Santíssima, Senhora nossa.
82. Prima est, ut pontifex ex hominibus assumatur, quasi selectus, caeterisque
dignior: A primeira propriedade é que a pessoa que houver de ser assunta à dignidade
pontifical seja escolhida entre todas, e a mais digna; isso quer dizer ex hominibus assumptus.
E que pessoa há, ou pode haver, ainda que a eleição se fizesse, não só entre os homens, senão
entre os Anjos tão merecedora de ser unicamente a escolhida, e tão infinitamente digna sobre
todas as criaturas, como a que mereceu ser Mãe do mesmo Criador? Por isso o Espírito Santo
lhe chama: Una et electa (Cânt. 6,8): Uma e escolhida - porque na sua eleição foi única sem
controvérsia, única sem oposição, sem parelha, sem semelhança. Una, et electa - diz Ruperto -
quia nec inter angelos, nec inter homines, similem vel primam habet, vel sequentem habitara
est. Não sei se reparais bem na energia desta eleição e na excelência dela. A excelência da
eleição da Senhora não está em ser escolhida, senão em ser escolhida como uma: Una et
electa. A eleição ou escolha comumente diz unidade e supõe multidão, porque de muitos se

4 Todo o pontífice assunto dentre os homens é constituído a favor dos homens naquelas coisas que tocam a
Deus, para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados (Hebr. 5,1).
202
escolhe um; porém, quando o escolhido é tão singular e único, que não tem oposição, a glória
da eleição é a unidade: é ser escolhido, não como um de muitos, senão como um e só. Se no
céu entre os astros se houvera de fazer eleição, como havia de ser escolhido o Sol? Não havia
de ser escolhido como comparado, senão como único. Pois, assim foi escolhida Maria: Electa
ut sol: Una, et electa5. E como a Senhora no céu e na terra não só é a mais digna, que isso
seria ter comparação, mas única e incomparavelmente digníssima sobre todas as criaturas,
vede, se pelo merecimento da pessoa lhe compete a dignidade pontifical? Assim o entenderam
e disseram todos os que ouviram este único e incomparável elogio, porque tanto que o
Espírito Santo lhe deu o nome de una et electa, logo, imediatamente, foi aclamada de todos
por beatíssima, que é o título pontifical: Viderunt eam filiae, et beatissimam praedicaverunt
eam6. A Senhora tinha dito de si: Ex hoc beatam me dicent omnes generationes7; mas, os que
do merecimento da pessoa passaram à consideração da dignidade que lhe era devida, não só
lhe chamaram beatam, senão beatissimam.
83. Secunda est, ut hominum causam agat apud Deum, tanquam eorum mediator, pro
eisque oret et interpellet: A segunda propriedade, e primeira obrigação do ofício pontifical, é
ser o pontífice mediador ou medianeiro público entre Deus e os homens, e, diante da Divina
Majestade, orar e advogar por suas causas. - Isso quer dizer: Pro hominibus constituitur in iis,
quae sunt ad Deum8. E que mediação se pode desejar nem imaginar entre Deus e os homens,
nem mais íntima, nem mais eficaz, nem mais poderosa, que a daquela mesma Senhora que,
dentro em suas entranhas, uniu a natureza divina com a humana, e do homem e de Deus fez
uma só pessoa? Ouvi a S. Bernardo: Advocatam praemisit peregrinatio nostra, quae tanquam
Judicis Mater, et Mater misericordiae suppliciter et efficaciter salutis nostrae negotia
pertractabit9. Somos peregrinas na terra - diz Bernardo - mas nem por isso as nossas causas
estão desamparadas no céu, porque no céu temos por advogada delas quem as há de tratar
com tanta eficácia e poder, como a que é Mãe do Juiz, e com tanto amor e piedade, como a
que é Mãe da misericórdia. - Grande razão e singular prerrogativa, que só no pontificado de
Cristo se acha semelhante. Cristo foi Pontífice sobre todos os pontífices: por quê? Porque os
outros pontífices são somente homens, e Cristo é Homem e Filho de Deus juntamente. Como
Homem, intercede pelos homens; como Filho de Deus, pode tudo com Deus. Assim o pondera
S. Paulo, sinalando a diferença que há de Pontífice a pontífice entre Cristo e os outros. Aos
outros fá-los Deus pontífices como Deus: a Cristo fê-lo Deus Pontífice como Pai. Aos outros
como Deus: Nec quisquam sumit sibi honorem, sed qui vocatur a Deo, tanquam Aaron10; a
Cristo como Pai: Christus non semetipsum clarificavit, ut pontifex fieret: sed qui locutus est
ad eum: Filius meus es tu11. E desta diferença que se segue? Segue-se - acrescenta logo o
mesmo S. Paulo - que as suas arações e intercessões não são só ouvidas pelo beneficio da
causa, ou pela autoridade do ofício, senão pela reverência da pessoa: Qui in diebus carnis
suae preces, supplicationesque ad eum... offerens, exouditus est pro sua reverentia 12. Esta é a
prerrogativa singular de Cristo enquanto Pontífice. E que a mesma concorra na Virgem Mãe
sua, quem o pode duvidar? Porque, se Cristo como Homem intercede pelos homens, e como

5 Escolhida como o sol: Uma e escolhida (Cânt. 6,8 s).


6 As Filhas a viram, e elas a apregoaram pela mais bem-aventurada (Cânt. 6,8).
7 De hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações (Lc. 1,48).
8 É constituído a favor dos homens, naquelas coisas que tocam a Deus (Hebr. 5,1).
9 Bernard. Serm. Ide Assumpt.
10 E nenhum usurpa para si esta honra, senão o que é chamado por Deus, como Arão (Hebr. 5, 4).
11 Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer pontífice, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho (Hebr.
5,5).
12 O qual nos dias da sua mortalidade, oferecendo a ele preces e rogos, foi atendido pela sua reverência (Hebr.
5,7).
203
Filho de Deus pode tudo com Deus, também a Senhora, pelo que tem de humana, intercede
pelos homens, e porque é verdadeira Mãe de Deus, poderá e pode tudo com ele. E se as
orações e intercessões de Cristo são ouvidas de Deus pela reverência do Filho, não menos
serão ouvidas as da Senhora, antes em certo modo mais, pela reverência de Mãe. Assim, o
conclui noutra parte o mesmo S. Bernardo: Advocatam vis habere erga ipsum? Ad Mariam
recurre: nec dubius dixerim: exaudietur ei ipsa pro reverentia sua13: Se quereis ter advogada
diante do Supremo Juiz, recorrei - diz - a Maria confiadamente, porque, assim como o Pai
ouve a Cristo por reverência de Filho, assim Cristo ouve a Senhora por reverência de Mãe. -
Com tanta eminência resplandece em Maria Santíssima a segunda condição que se requer para
a dignidade pontifical.
84. Tertia est, ut Deum peccatis, et peccatoribus iratum placet, et reconciliet per dona
et sacrificia: A terceira propriedade e último ofício do pontífice, é aplacar a Deus ofendido
dos pecados, e reconciliá-lo com os pecadores, por meio das oblações e dos sacrifícios; isso
quer dizer: Ut offerat dona et sacrificia pro peccatis14. E que ministro sagrado houve jamais
nem haverá no mundo, tão apto e apropriado para este soberano ministério de aplacar a Deus
ofendido pelos pecados como aquela puríssima criatura em que nunca houve pecado? Os
outros pontífices e sumos sacerdotes, diz o Apóstolo, primeiro oferecem os sacrifícios pelos
seus pecados, e depois pelos do povo; porém, Cristo, em quem nunca houve pecado, não tem
essa necessidade: Qui non habet necessitatem... quemadmodum sacerdotes, prius pro suis
delectis hostias offerre, deinde pro populi15. E assim como Cristo só oferecia sacrifícios a
Deus pelos pecados do povo, e não pelos seus, porque os não tinha, e por isso eram mais
gratos e mais aceitos a Deus os sacrifícios de seu Filho, o mesmo devemos nós não só
entender e dizer dos de sua Mãe, mas, deste altíssimo princípio inferir quão decentemente
assentaria na pessoa da Virgem puríssima a dignidade pontifical. Assim o inferiu o mesmo S.
Paulo: Talis enim decebat ut nobis esset pontifex, sanctus, innocens, impollutus, segregatus a
peccatoribus, et excelsior caelis factus16. As quais palavras ou excelências todas, assim como
se dizem do Filho, se podem e devem afirmar igualmente da Mãe, santa, inocente, pura,
imaculada, separada e excetuada do número dos pecadores, e levantada sobre todos os céus.
Logo; talis decebat ut nobis esset pontifex. E para as ofertas e sacrifícios: Ut offerat dona, et
sacrificia - quem jamais presentou tal oferta a Deus, como a que a Senhora lhe ofereceu no
Templo, quando lhe presentou seu próprio Filho nascido de quarenta dias? E quem jamais lhe
fez tal sacrifício, como o do mesmo Filho no monte Calvário, mais crucificado na alma e no
coração da Mãe, que na mesma cruz? Não chegou Abraão a ver morrer Isac, e contudo diz S.
Pedro Crisólogo, que de tal sorte se sacrificou nele a si mesmo, que ele era o sacrifício e o
sacerdote, ele a vítima e o pontífice: Abraham se immolabat in filio, ut esset idem victima et
pontifex, sacrificium et sacerdos. E se isto bastou em Abraão, porque era pai, para ser
sacerdote e pontífice, aquela Mãe, cuja obediência e caridade foi infinitamente maior que a de
Abraão, e cujo Filho e sacrifício era infinitamente maior que Isac, quem se atreverá a lhe
negar ou a duvidar a dignidade pontifical?

§III

O nome de mulher não se opõe totalmente à dignidade pontifical. Como Maria, irmã
13 Bernard. Serm. I de Nativit.
14 Para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados (Hebr. 5,1).
15 Que não tem necessidade, como os outros sacerdotes, de oferecer sacrifícios primeiramente pelos seus
pecados, depois pelos do povo (Hebr. 7, 27).
16 Porque tal pontífice convinha que nós tivéssemos, santo, inocente, imaculado, segregado dos pecadores, e
mais elevado que os céus (Hebr. 7,26).
204
de Moisés e figura da Virgem Santíssima, é contada entre os três pastores do povo hebreu?

85. Vejo, porém, que da mesma cruz, e das palavras do mesmo Filho crucificado, se
tira o argumento com que sobre tantas prerrogativas de merecimento se nega à Santíssima
Mãe esta dignidade. As palavras do Filho foram: Mulier, ecce filius tuus17; e este nome de
mulher é o que se opõe totalmente à dignidade pontifical. Mas não é de tanto peso esta
instância, que não tenha fácil solução na Escritura, nos santos e na razão.
86. No capítulo onze do profeta Zacarias, diz Deus que matou três pastores do seu
povo em um mês: Succidi tres pastores in mense uno (Zac. 11,8). E, posto que o profeta não
declare ali quem foram estes três pastores, S. Jerônimo, S. Remígio, Alberto Magno, Hugo
Cardeal, e todos os que entenderam este lugar mais própria e literalmente, dizem que foram
Moisés, Arão, e Maria Profetisa, irmã de ambos. Chamam-se três pastores, porque por meio
de todos três livrou Deus o seu povo do cativeiro do Egito, e o governou e guiou pelo deserto
até à Terra de Promissão, como depois lhe fez cargo pelo profeta Miquéias, nomeando todos
três na mesma forma: Quia eduxi te de terra Aegypti... et misi ante faciem tuam Moysen, et
Aaron, et Maríam18? E dizer Deus que os matou a todos em um mês: in mense uno, é maior e
mais clara confirmação de serem estes, porque, como consta do Livro dos Números (Núm.
20,1), Maria morreu em março do ano quarenta da peregrinação no deserto, e neste mesmo
mês sucedeu a incredulidade e desobediência de Moisés e Arão (Núm. 20,12), em pena da
qual os sentenciou Deus no mesmo ato à morte, e que não entrassem na Terra de Promissão,
de que já estavam tão perto. E essa é a propriedade da palavra succidi, porque lhes cortou a
vida, e mais os passos.
87. Mas, se neste número entrava Maria, como lhes chama Deus três pastores? Arão
era pastor no espiritual, e eclesiástico, porque era sumo pontífice; Moisés era pastor no
temporal e civil, porque era governador supremo com autoridade real; porém, Maria que, por
ser mulher, nem tinha, nem parece que era capaz tanto de uma como de outra dignidade, como
lhe atribui Deus igualmente o mesmo nome ou título? E sendo os ofícios pastorais só dois,
como eram os pastores três: Succidi tres pastores? Eram os pastores três, sendo os ofícios
dois - respondem os mesmos autores - porque assim Arão como Moisés, ambos governavam
juntamente com Maria, e cada um a tinha por companheira, e fazia participante da sua
dignidade. Maria, sobre ser profetisa muito alumiada de Deus, era também de maior idade que
Moisés e Arão, como consta uma e outra coisa da História Sagrada, e por estas duas razões,
posto que Moisés e Arão fossem somente irmãos de Maria, o respeito e veneração com que a
tratavam era de mãe, e como tal, nem Arão no eclesiástico nem Moisés no civil, obravam
coisa alguma em que Maria não tivesse parte. E porque esta dobrada autoridade comum com
ambos lha tinha dado Deus, por isso, sendo dois os ofícios pastorais, diz o mesmo Deus, que
eram três os pastores: Succidi tres pastores; e por isso fez cargo aos hebreus de lhes ter dado a
liberdade do cativeiro do Egito, não só a Moisés e Arão, senão igualmente a Maria: Misi ante
faciem tuam Moysen, et Aaron, et Mariam?
88. Ao nosso ponto agora: Maria, irmã de Moisés e Arão, como lemos em S. Jerônimo
e Santo Ambrósio, foi figura da virgem Maria; e não só pela semelhança do nome, único em
todo o Testamento Velho, nem só pela graça de profetisa, nem só pelo triunfo de co-redentora
do povo, mas singularmente pela prerrogativa da virgindade, em testemunho da qual se não lê
na Escritura matrimônio nem sucessão da mesma Maria; e Santo Ambrósio expressamente lhe
dá o título de Virgem: In Veteri Testamento clausum Hebraeorum populum Virgo per Maria
pedes duxit: in Evangelio Aucthorem mundi, et Redemptorem Virgo generavit. Sendo logo

17 Mulher, eis aí teu filho (Jo. 19,26).


18 Porque eu te tirei da terra do Egito... e te enviei diante de ti a Moisés, e a Arão, e a Maria (Miq. 6,4)?
205
aquela Maria virgem, vede se era expressa figura da Virgem Maria! Do mesmo modo Moisés
e Arão em duas pessoas foram uma só figura de Cristo, na qual se uniram as duas dignidades,
a real, como em Moisés, e a pontifical, como em Arão. E se estes dois irmãos cada um
comunicou a sua dignidade a Maria, por ser irmã e maior, porque não comunicaria também
ambas as dignidades Cristo a Maria, de quem aquela só foi figura, sendo ele Filho e ela Mãe?
E se lá o ordenou assim, aprovou e afirmou Deus, cá, por que se há de negar ou duvidar?
89. Da dignidade real ninguém duvida que Cristo, como Rei, a comunicasse a sua
Mãe; e daqui infiro eu, com a mesma e muito maior razão, que também o mesmo Cristo como
Pontífice lhe comunicou a pontifical. E provo, porque a dignidade real não a teve Cristo por
sua Mãe, e a pontifical sim. Não é menos bem-fundada esta ilação, que na teologia de S.
Paulo no segundo capítulo da Epistola ad Hebraeos: Quia ergo pueri communicaverunt
carni, et sanguini, et ipse similiter participavit eisdem: ut per mortem destrueret eum, qui
habebat mortis imperium: et liberaret eos, qui timore mortis per totam vitam obnoxii erant
servituti. Nusquam enim angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit. Unde debuit
per omnia fratribus similari, ut misericors fieret, et fidelis pontifex ad Deum19. Dá a razão S.
Paulo, porque o Filho de Deus se fez homem, e não anjo, e diz que foi para que sendo homem,
pudesse ser verdadeiro e perfeito Pontífice, o que não podia ser sendo anjo. E por que não
podia ser Pontífice, sendo anjo? Porque os anjos não têm carne nem sangue: são imortais e
não têm pecado. E para Cristo fazer o oficio de perfeito Pontífice, havia de sacrificar sua vida
e morrer pelos homens, e para isso era necessário ter carne e sangue e ser mortal. E havia de
interceder eficazmente com Deus pelos pecadores, e para isso era necessário ser semelhante a
eles, não no pecado, senão na natureza e nas misérias que dele se seguiram; e essa carne, esse
sangue, essa mortalidade, essa natureza sujeita e capaz das penalidades humanas, que era todo
o cabedal e aparato necessário para ser perfeito Pontífice: Ut misericors fieret, et fidelis
pontifex ad Deum - de quem a recebeu o Filho de Deus, senão de sua Mãe? De sorte que a
dignidade real não a teve Cristo só de sua Mãe, porque, já sendo Deus, era Rei: Tu es ipse Rex
meus, et Deus meus20: porém a dignidade pontifical sim, porque se não fora seu Filho, não
seria Pontífice. Excelentemente S. Dionísio Alexandrino:Inhabitavit in sancto suo
tabernaculo, quod est Deipara Maria; illic enim in ipsa Rex noster, Rex gloriae factus est
pontifex21: Habitou Deus no tabernáculo virginal do ventre santíssimo de Maria, e sendo já
Rei da glória, e Rei nosso, ali, onde o Verbo se fez carne, ali foi feito Pontífice: Illic in ipsa
factus est pontifex. Logo, se Cristo porque foi Rei - o que não recebeu de sua Mãe - lhe
comunicou a dignidade real, com muito maior razão, porque foi pontífice - o que recebeu da
mesma Mãe - lhe devia comunicar a dignidade Pontifical.
90. Nem vale finalmente em contrário a objeção de ser mulher a bendita entre todas as
mulheres, e exceção de todas, não só porque foi Mãe e Virgem, e por isso com dobrada
autoridade de Mãe e de Pai juntamente em respeito de seu Filho - por onde, em sentença de
grandes teólogos, é chamada Matripater - mas porque se esta diferença do sexo em Maria,
irmã de Moisés, não foi impedimento para participar com Arão a dignidade pontifical, muito
menos o deve ser em Maria, Mãe de Jesus, que por isso se chamou Cristo: De qua natus est
Jesus, qui vocatur Christus. E para que não fique só a força desta ilação no argumento da
paridade, assim o disse expressa e milagrosamente ao intento S. João Damasceno: Tu es

19 E porquanto os filhos tiveram carne e sangue comum, ele também participou igualmente das mesmas coisas,
para destruir pela sua morte ao que tinha o império da morte - isto é, ao diabo - e para livrar aqueles que, pelo
temor da morte, estavam em escravidão toda a vida. Porque ele em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a
descendência de Abraão (Hebr. 2, 14ss).
20 Tu mesmo és o meu rei e o meu Deus (SI. 43,5).
21 Dionysius Alex. contra Paulum Samosat.
206
quippe Summa Christianorum Antistes, hinc te magna laudum contentione veneramu22:
Veneramos-vos, Senhora, e louvamos-vos com toda a intenção de nossos afetos - diz
Damasceno - porque vós sois o Sumo Pontífice dos cristãos: Summa Christianorum Antistes.
Antistes pela dignidade pontifical, summa, e não sumo, pela diferença do sexo. E Santo
Arnesto, Arcebispo Praguense, unindo é distinguindo na mesma Senhora ambas as
dignidades, real e pontifical, nos exorta a que recorramos a um e outro tribunal de Maria,
seguros de que a sentença que der em nosso favor, não poderá ser revogada, porque, ou como
real, ou como papal, levará, por ser sua, a cláusula non obstante, em respeito de qualquer
outro juízo. Mariam invoca, Mariam appela - diz o Santo - et in omne sententia, quam pro te
dabit, apponet illam clausulam gloriosam, imperialem, atque papalem: non obstante23.

§1V

Maria Santíssima, pelas prerrogativas do seu Rosário, não só é própria, mas


singularmente pontífice: pontífice na etimologia do nome, nas insígnias da dignidade e na
potestade das chaves. A misteriosa visão que teve um bispo de França, inimigo da devoção
do Rosário. O Rosário, ponte que passa os homens da terra ao céu. Maria Santíssima na
passagem milagrosa do Jordão.

91. Removido, pois, o impedimento aparente do sexo, com a autoridade dos santos,
com o exemplo da Escritura, e com a eficácia da razão, e demonstrado o merecimento
sobreeminente da pessoa por todas as qualidades que requer a definição de S. Paulo para o
perfeito pontífice, como fizemos no primeiro discurso, segue-se que do direito passemos ao
fato, e que vejamos praticado na Senhora do Rosário, ou no Rosário da Senhora, o título,
poder e exercício da dignidade pontifical. Isto é o que agora farei; e para que a prova e
demonstração proceda com toda a clareza, a divido em três partes. Em cada uma delas
veremos a Santíssima e Beatíssima Mãe, pelas prerrogativas do seu Rosário, não só própria,
mas singularmente pontífice. Pontífice na etimologia do nome; pontífice nas insígnias da
dignidade; pontífice na potestade das chaves.
92. Marco Varro, mais antigo que Marco Túlio, e o maior e mais erudito mestre da
língua latina, declarando no livro quarto a etimologia donde foi tomado e teve sua origem este
nome pontifex, diz que pontífice é o mesmo que pontem faciens: o que faz ponte, e que a
ocasião de chamarem assim aos sumos pontífices, instituídos em Roma por Numa Pompílio,
foi a Ponte Sublícia, edificada pelo sumo pontífice Anco Márcio, obra tão celebrada naquele
século ainda rude, que a ele lhe deu o nome, e depois se perpetuou em seus sucessores. Donde
também o tomou, com a língua, depois da vinda de Cristo, a Igreja Romana. Teodoro Estudita
chamou à Virgem, Senhora nossa: Pons securus christianorum: Ponte segura dos cristãos.
Venâncio Fortunato: Pons ad penetrandos polos: Ponte que chega e alcança de pólo a pólo. S.
Proclo: Pons, per quem Deus ad homines descendit: Ponte pela qual Deus desceu aos
homens24. - E bastam estas autoridades, tão graves e tão justamente aplicadas à Senhora com o
nome expresso de ponte, e tantas vezes repetido, para prova do meu intento? Não bastam,
porque nenhum destes autores chega a dizer o que eu digo. Para ser pontífice não basta ser
ponte, é necessário fazer ponte: pontem faciens; e esta é a que a Senhora fez quando instituiu
o seu Rosário, e não só disse que a fizera, senão que a mostrou feita.
93. 0 primeiro a quem a mesma Senhora comunicou a idéia desta sua obra, foi o

22 D. Damasc. in Moeneis Graec. die I Januar.


23 D. Arnest. in Mariali, cap. 26.
24 Theod. Stud. in Canon. Ode 8; Venant. Fortun. lib. 1 de Partu Virg.; Proclus, Orat. de Nativit. Domini.
207
grande patriarca S. Domingos, encarregando-lhe que a publicasse e pregasse, como logo
começou a pregar em França, com espírito e eloqüência mais que humana, de que se seguiram
dois efeitos, ambos notáveis mas muito encontrados. Convertiam-se os homens a milhares,
assim os hereges à fé católica, como os maus católicos à virtude e vida cristã, e não poucos a
deixar o mundo e seguir a perfeição evangélica: e este era geralmente o primeiro efeito da
pregação e devoção do Rosário. O segundo, e contrário, foi que, vendo o inimigo do gênero
humano as muitas almas que por meio da mesma devoção se livraram da sua tirania, tratou de
desacreditar e desautorizar o Rosário por tal arte, que todos os que o rezavam, o
desestimassem primeiro, e depois o deixassem. Para isto tomou o demônio por instrumento,
quem vos parece? Porventura algum daqueles hereges mais obstinados? Porventura algum
leigo dos de consciência mais livre e mais estragada? Porventura algum sacerdote ou religioso
ordinário, êmulo de S. Domingos? Ainda subiu mais alto, ainda fortificou mais a indústria,
ainda enfeitou mais a tentação. Havia naquela província um bispo muito presumido de seu
saber, mas de muito pouco zelo e espírito. Este, em lugar de agradecer ao santo o pasto tão
divino que dava a suas ovelhas, e o ajudar na pregação e propagação daquelas novas do céu, a
que podemos chamar o Evangelho da Virgem Maria, começou em público e em particular a
desfazer e desacreditar os sermões do grande Apóstolo, dizendo que, em vez de pregar pontos
mui subidos do Evangelho, pregava aquelas vulgaridades, em vez de levar ao púlpito estudos
e pensamentos novos, que ninguém tivesse ouvido, ia ensinar o Padre-Nosso e Ave-Maria,
que os meninos sabiam. Vede quanto a paixão é cega e a presunção ignorante! Como se
houvera pontos mais subidos que os mistérios da Encarnação do Verbo eterno e da redenção
do gênero humano! Como se houvera meditações mais divinas que as da vida e morte do
Filho de Deus! Como se houvera orações mais excelentes que o Padre-Nosso, ditado por
Cristo, e a Ave-Maria, por um Arcanjo! Como, finalmente, se houvera doutrina mais
evangélica que a memória das graças e benefícios altíssimos, que Deus em Pessoa nos veio
trazer e fazer ao mundo, a qual memória ele no fim de sua vida nos encomendou e encarregou
sobre tudo! Nada disto via nem considerava o cego e ignorante prelado; e como a natureza
dos homens é mais inclinada ao mal que ao bem, e mais à vaidade que à verdade, se S.
Domingos por uma parte fazia grande fruto, o bispo por outra parte o desfazia, sendo muitos,
principalmente dos mais prezados de entendidos - que praza a Deus não tenham imitadores -
os quais o deixavam totalmente, ou, para o dizer com nome mais próprio, apostatavam da
devoção do Rosário.
94. Triunfante sobre esta infernal vitória estava uma noite dormindo o que tão pouco
vigilante pastor era do seu rebanho, quando arrebatado em visão se achou subitamente no
meio de um rio largo, profundo, escuro e furioso, cuja corrente a espaços por penhascos e
rochas talhadas se despenhava estrondosa e medonhamente. Aqui andavam nadando, ou, mais
verdadeiramente, naufragando grande multidão de homens e mulheres de todos os estados:
uns que soçobrados das ondas se afogavam, e iam logo a pique; outros que mortos já de
muitos dias, saíam acima aboiados em horrendas figuras; outros que arrebatados da corrente,
eram arremessados com fúria nos penhascos, onde se espedaçavam; outros que lutavam com
toda a força e grandes ânsias com o peso do ímpeto das águas; e outros que ao som delas,
onde mais mansamente corriam, se deixavam levar brandamente: e este era o estado mais
perigoso, porque quase sem se sentir se achavam perdidos, sendo finalmente muito raros os
que com grandíssimo trabalho chegavam à outra banda da ribeira, e todos despidos. No meio
desta aflição, já desmaiado, levantou o bispo os olhos ao céu, e viu que à mão direita havia
uma formosa ponte, que atravessava o rio de parte a parte, pela qual caminhavam seguros
outro grande concurso de gente, homens, mulheres, meninos, todos alegres e cantando. E
como advertisse que diante os ia guiando uma pessoa venerável, e, pelo hábito branco e manto
208
preto, reconhecesse o mesmo pregador, que ele perseguia: -Valei-me, santo, que já vos
confesso por tal - disse a grandes brados - Valei-me que me afogo! - Pois afoga-te, e chama
agora pelos teus pensamentos subidos, que te subam à ponte. - Assim lhe pudera dizer, e com
muita razão, o pregador das vulgaridades. Mas como os santos se vingam fazendo bem a
quem lhes faz mal, ele foi o que subiu milagrosamente, e o introduziu na ponte com os
demais.
95. Era a formosa ponte larga, e bem defendida por ambos os lados, donde se viam
com lástima, mas sem temor, os perigos e naufrágios dos que se fiavam do rio. Estava
fundada sobre três grandes arcos de mármore, cada um dos quais se rematava em cinco torres
muito altas, e entre elas, repartidas de dez em dez, outras cinqüenta menores, que por todas
faziam número as mais altas de quinze, as menores de cento e cinqüenta. No fim se levantava
um palácio de admirável arquitetura, por cuja portada, igual na largura à da ponte, eram
admitidos todos os que tinham passado por ela, e dali levados a uma grande sala interior, onde
em trono de pedras preciosas cercado de resplendores, assistia assentada uma rainha de
celestial majestade e formosura, a qual todos adoravam. Aqui recebia cada um da soberana
mão uma coroa de rosas, e este era o sinal, ou passaporte real, com que só se podia entrar no
jardim do mesmo palácio, chamado o Paraíso das delícias, mais ameno e deleitoso que o que
Deus tinha plantado no princípio do mundo. Chegou-se finalmente o bispo, quando se seguia
por ordem o seu lugar, para também receber a coroa; mas trocada a majestade da Rainha em
severidade, lhe disse com aspecto irado: - Que atrevimento é este? Se tu és o maior inimigo, e
perseguidor do meu Rosário, como tens ousadia para pretender à coroa, que só aos devotos
dele se concede? Aparta-te logo de minha presença e de todo este lugar, e agradece à minha
piedade não te mandar dar o castigo que tuas culpas merecem. - Estas palavras, e muito mais
o semblante com que foram ditas, causaram tal perturbação e horror ao pobre bispo, que,
tremendo e assombrado, espertou no mesmo ponto e tornou em si. Em si tornou, mas tão
outro do que dantes era, e tão reconhecido do seu erro e ignorância, que daquele dia em diante
foi o mais zeloso pregador do Rosário, e o maior apregoador de suas grandezas.
96. Esta é, pois, a ponte que traçou e fabricou a Virgem Santíssima. Os três grandes
arcos de mármore são as três diferenças de mistérios em que se funda o Rosário - Gozosos,
Dolorosos, Gloriosos - os quais, se se não consideram nem meditam, ainda que se rezem as
orações, é Rosário sem fundamento sólido. As quinze torres mais altas são os quinze Padre-
Nossos, e as cento e cinqüenta menores divididas de dez em dez entre uma e outra, são as
cento e cinqüenta Ave-Marias; e todas elas são torres, porque todas, espiritual e
temporalmente, nos defendem de nossos inimigos. O rio arrebatado é o curso da vida
presente, que nunca pára, cheio de tantos perigos e precipícios, e as duas ribeiras, a que a
ponte se estende, e, sendo tão distantes, abraça e une, são este e o outro mundo, são os dois
horizontes do nascer e morrer, são o tempo e a eternidade. Vede se merece o nome de
pontífice quem fez esta ponte? A Igreja grega em dois hinos, falando com a Senhora, lhe diz:
Pons traducens omnes de morte ad vitam: Ponte que passa a todos da morte à vida; Pons
homines a terra traducens in caelum: Ponte que passa os homens da terra ao céu. - E esta é a
ponte do seu Rosário.
97. Desta passagem da terra ao céu foi figura a passagem do deserto à Terra de
Promissão, e o rio Jordão que se passou, figura também do rio que nós passamos. E quem fez
esta milagrosa passagem, senão a Virgem Senhora nossa, figurada na Arca do Testamento, a
qual de tal sorte secou o rio, o qual se não podia vadear, que homens, mulheres e meninos,
sendo tantos mil, o passaram a pé enxuto? E não faltou nesta passagem o mistério e
propriedade do Rosário, porque diz o texto sagrado que, quando os filhos de Israel passaram o
Jordão, levavam os olhos em Jericó, que lhes ficava da outra banda: Populus autem incedebat
209
contra Jericho: et sacerdotes, qui portabant arcam... stabant, super siccam humum in medio
Jordanis25. No meio do rio estava a Virgem Maria, como verdadeira Arca do Testamento, que
teve dentro em si a Deus, fazendo das areias do fundo uma nova ponte e imóvel, por onde,
sem impedimento das águas, o passassem a pé e seguramente. E da outra banda da ponte,
como no nosso caso, estava em Jericó a mesma Virgem como Senhora propriamente do
Rosário, que por isso a compara o Espírito Santo à planta da rosa, não em outra parte ou terra,
senão na de Jericó: Quasi plantatio rosae in Jericho26. E por que mais no terreno de Jericó,
que em outro fértil de rosas? Porque as rosas de Jericó, entre todas as do mundo, são
compostas de cento e cinqüenta folhas, quantas são as saudações angélicas, com que
veneramos e invocamos a Virgem no seu Rosário. Assim comenta o mesmo texto Ricardo de
Sancto Lourentio: Dicitur Maria Rosa, non quaelibet, sed Jericuntina, quia in Jericho
crescunt rosae speciosissimae, habentes centum quinquaginta folia27.

§V

Maria, pontifice pelas insígnias da dignidade. Notável diferença entre o pontificado


de Cristo e o de Arão. O reino sacerdotal e o sacerdócio real. A semelhança e significação
da tiara pontifical. As três coroas da Senhora do Rosáno: os mistérios gozosos, os dolorosos
e os gloriosos. A admirável visão relatada por Cesário. Por que chama Deus a Senhora três
vezes quando a chama para ser coroada? Os três outeiros do Monte Líbano.

98. Provada na Virgem Santíssima a significação de pontífice pela etimologia do


nome, vejamos a substância da mesma significação, ou o significado do mesmo nome pelas
insígnias da dignidade. A insígnia que, entre todos os que se chamam pontífices, distingue
deles e sobre eles o sumo pontificado, é a tiara. Coroa a tiara uma só cabeça, mas compõe-se
de três coroas. E por que de três? Para significar que é coroa sobre coroas, e que todas as do
mundo lhe estão sujeitas. Assim o confessam e protestam com humilde adoração todos os reis
católicos, beijando o pé ao Sumo Pontífice. E esta é uma diferença muito notável e muito
digna de se saber entre o Pontificado de Cristo e o de Arão. Ouçamos a Moisés e a S. Pedro.
Moisés, falando do reino e sacerdócio da lei velha, chama-lhe Regnum sacerdotale, reino
sacerdotal: Vos eritis mihi in regnum sacerdotale28. S. Pedro, pelo contrário, falando do reino
e sacerdócio da lei da graça, troca as mesmas palavras de Moisés, e chama-lhe sacerdotium
regale, sacerdócio real: Vos autem genus electrum, regale sacerdotium29. Pois, se na lei velha
havia pontífices e reis, e na lei da graça há reis e pontífices, por que aquela se chama reino
sacerdotal, e esta, não reino sacerdotal, senão sacerdócio real? Porque na lei velha a dignidade
real era superior aos pontífices, e na lei da graça a dignidade pontifical era superior aos reis:
Quia scilicet in synagoga Judacorum Regnum eminebat Sacerdotio; in Ecclesia vero Christi
Sacerdotium eminet Regno diz, com Ascânio Martinengo, Cornélio A Lápide30.
99. Dentro na mesma cristandade temos mais expressa esta semelhança e significação
da tiara, e a razão das suas três coroas. Os imperadores coroam-se três vezes com três coroas

25 E o povo caminhava em direitura a Jericó; e os sacerdotes que levavam a Arca ... se conservaram quedos e
prestes sobre a terra seca no meio do Jordão (Jos. 3,17).
26 Como as plantas das rosas de Jericó (Eclo. 24,18).
27 Maria é comparada não a qualquer rosa, mas à rosa de Jericó, porque em Jericó crescem belíssimas rosas de
cento e cinqüenta folhas.
28 Vós sereis o meu reino sacerdotal (Êx. 19,6).
29 Vós sois a geração escolhida, o sacerdócio real (1 Pdr. 2,9).
30 Cornelius ibi. Ascanius Martineng. ab eo relato, Exod. 19,6.
210
diferentes, e, assim como a dignidade imperial, por ser temporalmente a suprema do mundo,
se recebe por três coroas, assim a pontifical, que espiritualmente é a suprema e a suma, se
compõe e representa com outras três. E tal é a tiara pontifícia, que à Virgem, Senhora nossa,
lhe compete por Senhora do Rosário. As três coroas dos imperadores, uma é de ferro, outra de
prata, outra de ouro, e as da Senhora do Rosário também poderão ser formadas dos mesmos
metais. A primeira de prata, nos mistérios Gozosos, a segunda de ferro, nos Dolorosos, e a
terceira de ouro, nos Gloriosos. Por esta mesma ordem as conta e distingue S. Bernardino na
cabeça humana do divino Autor dos mesmos mistérios, sendo tanto do soberano Filho, que os
obrou, como da soberana Mãe, que o acompanhou em todos: Prima corona est carnea, qua
conformatus fuit ab utero; et haec corona contexta fuit de purissimis sanguinibus Virginis 31:
A primeira coroa - diz o Santo - é a da Encarnação, e esta foi formada das puríssimas
entranhas da Virgem Maria, com que a mesma Mãe Santíssima coroou ao Filho de Deus e
seu. Secunda est spinea, qua coronatus fuit a noverca synagoga; et contexta fuit peccatorum
nostrorum aculeis: a segunda coroa é da Paixão, e esta foi tecida de espinhos, com que
cruelmente a coroou sua madrasta, a Sinagoga. Tertia fuit gemmea, qua coronatus fuit in
Resurrectionis triumpho; et haec contexta fuit ex dotibus pretiosissimis sui corporis gloriosi:
a terceira coroa é da Ressurreição, e essa foi lavrada de pedras preciosas pelos dotes celestiais
do Corpo glorioso, com que a coroou seu Eterno Padre. - E quem não vê que estas três coroas,
uma de gosto, outra de dor, outra de glória, não são outras, senão as mesmas três de que se
compõe a tiara pontifical da Senhora do Rosário?
100. Cada uma destas coroas primeiro foi do Filho, porque o Filho obrou os mistérios;
mas depois, ou logo, foi também da Mãe, porque a Mãe os obrou juntamente com ele, não
havendo algum em todo o Rosário, em que a Senhora não tivesse parte e lhe fizesse
companhia, e por isso participante da mesma coroa. Conta Cesário no Livro Sétimo uma visão
admirável. Estava em um altar uma imagem da Virgem Maria com seu bendito Filho nos
braços, e tanto que o sacerdote começava a cantar o Evangelho, o Menino tirava a coroa da
cabeça da Senhora e punha-a na sua. Vede qual seria a admiração dos que isto viam, e ainda o
sentimento dos devotos da Virgem! Mas tanto que o Credo chegava àquelas palavras: Et
incarnatus est de Maria Virgine, et homo factus est32, logo o Menino tornava a tirar a coroa de
sua cabeça, e punha-a na de sua Mãe33. De sorte que a coroa, que era de Cristo, era também da
Senhora, primeiro do Filho, e depois da Mãe, mas de ambos, não diversa, senão a mesma. E
isto é o que se verifica em cada uma das três coroas dos mistérios do Rosário. A coroa da
Encarnação primeiro foi de Cristo concebido, e depois da Virgem que o concebeu em suas
puríssimas entranhas, e criou a seus peitos: e estes são os mistérios Gozosos. A coroa da
Paixão primeiro foi de Cristo crucificado e morto, e depois da afligida e piedosa Mãe, que a
assistiu ao pé da cruz: e estes são os mistérios Dolorosos. A coroa da Ressurreição primeiro
foi de Cristo, que, ressuscitado, subiu ao céu, e depois da Senhora, também ressuscitada, que
triunfante o seguiu na mesma subida: e estes são os mistérios Gloriosos. E destas três coroas,
finalmente, se compôs a tiara pontifical do Rosário, transformadas ou transfiguradas todas três
em coroas de rosas.
101. Não me detenho em referir ao estender exemplos desta transformação -como fiz
na matéria do discurso passado, e pode ser faça no seguinte - por ser coisa vulgar em toda a
História Eclesiástica as muitas vezes que da boca dos devotos do Rosário, a cada Ave-Maria
que rezavam, foram vistas sair rosas, as quais a Mãe de Deus, com soberano agrado, recolhia,
e, enfiadas em ouro tecia delas coroas. Destas coroas, pois, que nem são mais nem menos de

31 D. Bernardin. ad íllud Apoc. 6: Data est et corona.


32 E nasceu de Maria Virgem. e se fez homem.
33 Caesarius, lib. 7. cap. 47.
211
três, conforme as três partes do Rosário, se compõe, e aperfeiçoa a tiara pontifical da Senhora
dele. A primeira coroa é de rosas encarnadas, pertencente aos mistérios da Encarnação, pela
cor do Verbo feito carne; a segunda é de rosas vermelhas, pertencente aos mistérios da
Paixão, pela cor do sangue derramado na cruz; a terceira é de rosas brancas, pertencente aos
mistérios da Ressurreição, pela cor própria da imortalidade, de que apareceram vestidos os
anjos naquele dia. Mas ouçamos a Salomão, que viu as coroas, a matéria, o número, e a
mesma tiara: Veni de Libano, Sponsa mea, veni de Libano, veni: coronaberis (Cânt. 4,8):
Vinde do Líbano, Esposa minha, vinde do Líbano, vinde, e sereis coroada. - Duas coisas são
as sabidas nestas palavras, e duas não. A Esposa todos sabem que é a Virgem Maria, e quem
lhe chama Esposa sua, Sponsa mea, também se não ignora que é Deus. Mas, se Deus chama a
Senhora para a coroa, coronaberis, por que a chama, não uma, nem duas, senão três vezes:
Veni, veni, veni? E se o Monte Líbano não é rico de minas de ouro ou pedras preciosas, mas
fértil somente de flores, e cultivado dos jardins famosos de Salomão, por que se diz que do
Líbano hão de sair as coroas: de Libano coronaberis? Assim constroem o texto os que melhor
o concordam. E tudo é o que queremos dizer.
102. Chama Deus a Senhora três vezes quando a chama para ser coroada, porque a
mesma Senhora foi coroada três vezes. e com três coroas. E porque estas coroas não foram de
ouro, ou pedraria, senão de rosas, por isso não saíram das minas de outros montes, senão dos
jardins do Líbano. Mais diz o texto. Não só diz que saíram estas três coroas do Líbano, senão
de três outeiros ou cabeços do mesmo monte: De capite Amana, de vertice Sanir et Hermon34.
E com que mistério? Com todos os três do Rosário e sua distinção. Todo o Monte Líbano,
insigne pai: sua altura e pela singular candidez que lhe deu o nome, significa toda a vida de
Cristo, sublime, celestial, puríssima; os três outeiros distintos e mais eminentes do mesmo
monte, denotam os passos e mistérios da mesma vida de Cristo, mais notáveis, de que a Vir-
gem compôs e dividiu em três partes o seu Rosário, e dos quais, transformados em rosas, se
teceram as três coroas. Uma coroa, como lauréola de Virgem, pelas mistérios da Encarnação;
outra, como lauréola de Mártir, pelos mistérios da Paixão; e a terceira, como lauréola de
Doutora, pelas mistérios da Ressurreição. E o fundamento desta terceira lauréola, como afir-
mam comumente os Santos Padres e Doutores sagrados, é porque desde a Ascensão de Cristo
até a Assunção da Senhora - que foi o tempo dos terceiros mistérios - ficou a Soberana Mãe
neste mundo substituindo a ausência de seu Filho, como Mestra dos Apóstolos e de toda a
Igreja, alumiada sobre todos do Espírito Santo, magistério que também pertence ao caráter e
ofício próprio de pontífice. Em suma, que dos três mistérios do Rosário se formaram as três
coroas, não unidas, senão distintas, nem juntas, senão sucessivas, uma sobre a outra: Veni,
veni, veni, coronaberis; e destas três coroas pela mesma ordem se compôs, ornou e aperfei-
çoou a tiara pontifical da Senhora do Rosário. Assim o tinha eu imaginado sem autor, quando
achei que muito antes o tinha escrito o doutíssimo Del Rio, comentando literalmente este
mesmo texto dos Cantares. As suas palavras são estas: Tres coronae de tribus lectae collibus
unius mantis promittuntur, ut tribus virtutibus correspondeant. Unde fortassis et caput
visibile Ecclesiae, Romanum Pontificem, triplicis coronae tiara exornari receptum:
Prometem-se à Esposa três coroas, colhidas dos três outeiros do mesmo monte, que
respondem às três virtudes dos mistérios referidos. E daqui parece, diz este eruditíssimo autor,
se tomou na Igreja Romana o uso da tiara do Sumo Pontífice, composta de três coroas. - De
sorte que, quando os Pontífices de Roma puseram sobre a cabeça a tiara de três coroas, já
havia mil anos que a mesma tiara pontifical, e com a mesma forma, estava profetizada,
traçada e destinada para a Virgem Santíssíma do Rosário.

34 Do alto de Amaná, do cume de Sanir e de Hermon (Cânt. 4,8).


212
§VI

A potestade das chaves. O poder e a limitação das chaves de Pedro. O amor, medida
de poder. Comparação entre o amor de Maria e o amor de todos os justos e espíritos
angélicos.

103. Segue-se agora o que só falta para complemento do nosso discurso, que é a
potestade das chaves. O que contém esta potestade dos Sumos Pontífices, é o que declarou
Cristo, Senhor nosso, ao primeiro de todos, S. Pedro, quando lhe prometeu: Tibi dabo claves
regni caelorum. Et quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in caelis: et
quodcumque solveris super terram, erit solutum et in caelis(Mt. 16,19): Dar-te-ei as chaves do
reino do céu na terra, com potestade tão plena e absoluta, que tudo o que as tuas chaves
abrirem ou fecharem na terra, infalível e irrefragavelmente será aberto ou fechado no céu. -
Toda esta delegação - se bem com poder ordinário – é fundada na primeira e suprema
potestade de Cristo, a qual o mesmo Senhor intimou ao mesmo S. Pedro e aos outros
Apóstolos, quando os mandou pregar a sua nova lei a todo mundo: Data est mihi omnis
potestas in caelo et in terra35. E como estas palavras declaratórias da potestade de Cristo são
tão parecidas com as das chaves que deu a S. Pedro, perguntam aqui os teólogos, se deu
Cristo e deixou aos Sumos Pontífices todos seus poderes? E resolvem concordemente que
não. Alegam-se em prova desta limitação muitos exemplos e casos, em que os pontífices não
podem o que pode Cristo; mas a melhor e mais relevante exceção de todas, é a que o mesmo
Cristo publicou em voz no Apocalipse, e mandou a S. João, como seu secretário, que a
escrevesse autenticamente: Ego sum primus, et novissimus, et vivus, et fui mortuus: et ecce
sum vivens in saecula saeculorum, et habeo claves mortis, et inferni. Scribe ergo 36. Contrapõe
o Senhor em próprios termos chaves a chaves, e declara que ele não tem só as chaves do céu,
como Pedro e seus sucessores, senão também as chaves da morte e do inferno, em que ele não
tem poder ou jurisdição alguma.
104. Isto posto, pergunto eu agora: A potestade das chaves da Senhora do Rosário,
qual destas é? É como a das chaves de S. Pedro, ou como a das chaves de Cristo? Se é
somente como a das chaves de S. Pedro, pouco deu o Filho de Deus a sua Mãe. Esses poderes
são para o anel do pescador, mas não para o anel da Esposa, em cujo nome se lhe deram as
três coroas da tiara: Veni, Sponsa mea, veni, veni: coronaberis. Quando Cristo deu a tiara a S.
Pedro, exprimindo também as três coroas nas três vezes que lhe encomendou as suas ovelhas,
sucessivamente lhe perguntou primeiro outras três vezes se o amava mais que os outros
apóstolos que estavam presentes: Diliges me plus his37? E se a potestade das chaves, e a
diferença dos poderes se há de medir como excesso do amor, injúria seria do amor de Mãe se
se houvesse de remunerar como o amor de Pedro. Entrem no exame do amor de Maria, não só
os apóstolos, senão os santos de todas as três leis, e os anjos de todas as três jerarquias; entre
na lei da natureza Adão, com novecentos anos de rigorosa penitência; entre Abel com todos
os inocentes; entre Enos, entre Set, entre e apareça o extático e arrebatado Enoc; entre Noé, o
mais justo de todo o mundo no seu tempo, e por isso reparador do mesmo mundo; entrem
Abraão, Isac e Jacó, dos quais Deus se chamou singularmente Deus. E não fiquem de fora
Melquisedeque, nem Jó, que é tudo o que produziu grande a lei da natureza. Na lei escrita,
entre Moisés com as tábuas da mesma lei, depois de ver como Deus ama e como se deve

35 Tem-se-me dado todo o poder no céu e na terra (Mt. 28,18).


36 Eu sou o primeiro e o último, e o que vivo e fui morto, mas eis aqui estou eu vivo por séculos dos séculos, e
tenho as chaves da morte e do inferno. Escreve pois (Apc. l,l7ss).
37 Amas-me mais do que estes (Jo 21,15)?
213
amar, nas labaredas da sarça; entre Josué, entre Gedeão, entre Samuel, entre o homem cortado
pelo coração de Deus, o devotíssimo Davi; entrem Josias e Ezequias, exceção de reis; entre
Elias com todo o fogo do seu carro; entrem Isaías e Jeremias, com todos os profetas; entrem
Judas e Eleazaro, com todos os Macabeus; entre tudo o que teve heróico e notou com letras
grandes a lei escrita. Na lei da graça, enfim, entre João, o Precursor, e João, o Amado, entre o
mesmo S. Pedro com os demais Apóstolos; entre, ou desça do terceiro céu o grande Paulo;
entre com toda a aljava do amor a Madalena; entrem os Basílios, os Agostinhos, os
Bernardinos; saiam dos desertos os Arsênios, os Antônios, e das cartuxas os Brunos; venham
com todos seus esquadrões os Bentos, os Domingos, os Franciscos, e, com o nome de Jesus,
ambos os Inácios; venha Inês, venha Cecília, venham as duas Catarinas, venha Teresa, nome e
coração singular, e venham finalmente todos os que com a vida nos rigores, ou com a morte
nos tormentos, provaram a Cristo a fé e a verdade de seu amor: Diligis me plus his?
105. Não digo tal, Virgem Santíssima, que não sou tão descomedido. Com o imenso
de vosso amor, nenhum humano se pode comparar, ainda que entrassem nesta conta, Ana,
Joaquim, e o mesmo esposo José, toda a soberana Trindade do vosso sangue. Mas subamos ao
céu, onde todos são espíritos. Amam muito, na primeira jerarquia, os anjos, os arcanjos, as
virtudes; amam mais, na segunda jerarquia, as potestades, os principados, as dominações;
amam sobre todos, na terceira e suprema, os tronos, os querubins, os serafins, chamados por
antonomásia os fogosos, os abrasados, os ardentes. Mas que comparação ou semelhança tem
todo esse amor com o amor de Maria? O céu, onde eles vêem a Divina Essência, chama-se
Empíreo, que quer dizer céu de fogo, porque tudo lá são incêndios, tudo é arder em fogo de
amor de Deus; mas, comparado o amor dos servos com o amor da Mãe, todo esse arder é
frieza, todo esse fogo é neve. Mais ama Maria em um só ato a Deus do que todos os espíritos
angélicos juntos o amam e amarão por toda a eternidade. E se a potestade das chaves se mede
pelo excesso do amor, claro está, que a potestade pontifical de Maria há de ser maior que a
das chaves de Pedro. Quando Cristo deu as chaves a S. Pedro, chamou-lhe Barjona, filho de
João; e se ao filho de João se deu tão grande potestade, qual é a que se deve dar à Mãe do
Filho de Deus?
106. Respondendo, pois, à nossa questão, digo que a potestade pontifical da Senhora
do Rosário não é como a de S. Pedro, senão como a de Cristo. Porque não só lhe deu o mesmo
Cristo as chaves do céu, como a S. Pedro, senão também as chaves da morte e do inferno, que
ele reservou para si, e são somente suas: Habeo claves mortis et inferni38. E para que se veja
que lhe foram dadas à Senhora, como Senhora particularmente do Rosário, e em razão e
respeito dos seus mistérios, notai o que diz imediatamente antes o mesmo Cristo, como Autor
deles: Et vivus, et fui mortuus, et ecce sum vivens in saecula saeculorum (Apc. 1,18): Eu, que
tenho as chaves da morte e do inferno, fui vivo, e depois fui morto, e agora sou outra vez vivo
para toda a eternidade. -Não sei se caís já na conseqüência, que não pode sei mais própria.
Que coisa são os mistérios do Rosário, senão uma morte de Cristo entre duas vidas? A
primeira vida mortal, em que nasceu e viveu, que são os mistérios Gozosos, a segunda vida
imortal, em que ressuscitou e subiu ao céu, e vive eternamente, que são os mistérios
Gloriosos; e, nomeio destas duas vidas, a morte de cruz, em que padeceu por nós, que são os
mistérios Dolorosos. Os primeiros: et vivus; os segundos: et fui mortuus; os terceiros: et ecce
sum vivens in saecula saeculorum. E depois de referir o Senhor estes três mistérios no mesmo
número e pela mesma ordem, e todos obrados em si mesmo, então diz que tem as chaves da
morte e do inferno. E se estas chaves, e esta potestade lhe foi dada a Cristo enquanto homem,
porque obrou estes mistérios, a sua Santíssima Mãe, que tanta parte teve neles, como Senhora
do Rosário, porque se lhe não daria a mesma potestade e as mesmas chaves: Claves mortis et
38 Tenho as chaves da morte e do inferno (Apc. 1,18).
214
inferni? E para que ninguém o duvide, vamos ao fato.

§VII

Cristo, não só deu à Senhora do Rosário as chaves do céu, como a Pedro, senão
também as chaves da morte e do inferno, que ele reservou só para si. O milagroso caso de
Alexandra de Aragão. Quão grandes danos são os que causa em uma república uma mulher
pouco honesta. As duas jurisdições da potestade do Sol: a luz e o calor e os poderes da
Virgem Santíssima.

107. Houve no reino de Aragão uma mulher moça e nobre, por nome Alexandra, a
qual pelas pregações de S. Domingos tomou por devoção rezar todos os dias o Rosário. Estes
foram os bons propósitos, mas não foi este inteiramente o efeito, porque, se muitas vezes
rezava, muitas vezes também deixava de o fazer, sendo a principal virtude da oração a
perseverança. Não deixava de rezar Alexandra porque a pobreza a obrigasse a trabalhar todo o
dia e parte da noite, porque era rica; nem porque lhe levasse todo o tempo o governo da casa e
o cuidado dos filhos e da família, porque não era casada. Pois, por que não rezava? Ainda o
porquê era pior que o não rezar. Era muita prezada da gentileza, e o espelho e a janela eram as
duas peças da casa que lhe ocupavam todas as horas do dia. O espelho para se ver e enfeitar, a
janela para aparecer e ser vista. Se ela entendera bem a devoção do Rosário, soubera que em
cada um de seus mistérios nos deixou Cristo um espelho. Fecisti, Domine, de corpore tuo
speculum animae meae -dizia aquele grande Bispo de Óstia, a devotíssima Drogo.39 De seu
sacratíssimo Corpo fez Cristo este espelho, não para o corpo, senão para a alma, na qual ela se
vê tão desfigurada, quantas são as figuras diversas, em que o mesmo Senhor se nos representa
em cada mistério do Rosário. Nos mistérios Gozosos se olha a alma para Cristo em um
presépio: naquela pobreza está vendo a sua cobiça, naquela humildade a sua soberba, naquele
desabrigo e desamparo a sua comodidade e o seu regalo. Nos mistérios Dolorosos se olha a
alma para Cristo atado a uma coluna: naquela coluna está vendo a sua inconstância, naquelas
cordas as suas liberdades, naquela desnudez as suas galas, naqueles cinco mil e tantos açoites,
os milhares de seus pecados. Nos mistérios Gloriosos se olha a alma para Cristo subindo ao
céu: naquela formosura está vendo a fealdade de seus vícios, naqueles resplendores as trevas
da sua cegueira, naquela agilidade o peso de suas paixões, e naquele entrar no céu o perigo de
o perder para sempre. Se as vezes que Alexandra tomava o Rosário nas mãos se vira nestes
espelhos, eu vos prometo que ela tratara mais de parecer bem a Deus que aos homens.
108. Como esta louca mulher aparecia tanto, não faltaram homens tão loucos como
ela, que a passeavam e pretendiam. Foram os príncipes pretendentes dois mancebos nobres
dos melhores da cidade, entre os quais cresceu a competência, e se atearam os ciúmes com tal
fúria, que determinaram resolver a contenda pelas armas; e assim se foram um dia desafiados
ao campo. Tiram pelas espadas sós por sós, e depois de se baterem e ferirem, não como
homens, mas como duas feras assanhadas, cansados já, e envoltos em sangue, retiraram-se
ambos atrás, para se investirem com maior ímpeto; parte um para o outro, metem as espadas
pelos mesmos fios, alcançam-se no mesmo tempo pelo peito esquerdo, e caem ambos mortos.
Sabido o caso e a causa, juntam-se os parentes para verem o que se devia fazer; e,
aconselhando-se mais com a dor, que com a lei de Deus e com a razão, vão-se de tropel à casa
de Alexandra, resolutos a vingarem na sua vida as mortes dos que por amor dela a tinham
perdido. Lança-se a triste mulher a seus pés, pedindo-lhes que ao menos a deixem confessar;
mas um deles, em que a cólera foi mais cruel e menos cristã, pega-lhe pelos cabelos, e
39 Drog. Ostriens. de Passíon.
215
bradando Alexandra: Virgem do Rosário, valei-me - com o mesmo golpe lhe cortou a cabeça
e as palavras que ia pronunciando. Havia no pátio da casa um poço, e, lançada nele a cabeça
se saíram os matadores, tomando cada um o caminho que melhor lhe pareceu para escapar à
justiça. Nós, que faremos?
109. Paremos um pouco à vista deste lastimoso espetáculo, e consideremos quão cego,
quão precipitado e quão horrendo vício é o da sensualidade, e quão grandes danos são os que
causa em uma república uma mulher pouco honesta. Se se pegasse o fogo àquela cidade, raro
podia ser o incêndio que levasse tantas casas, como este levou. Levou a casa da mesma
Alexandra, levou as casas dos dois competidores, que morreram no desafio, levou as casas de
todos os parentes, que por vingar sua morte se desterraram para sempre das suas. A tantos
levou este raio, não do céu, mas do inferno. E se bem advertirmos, acharemos que a que
menos mal livrou foi a mesma Alexandra. Os seus matadores, ainda que escaparam as vidas,
perderam a pátria, perderam o descanso de suas casas, e, sobretudo, perderam a graça de
Deus, que é o maior de todos os bens, cometendo aquele grande pecado. Os dois
competidores perderam a vida, porque se mataram; perderam a alma, porque morreram
subitamente em pecado atual, e ainda os miseráveis corpos incorrendo as penas do duelo,
perderam a sepultura eclesiástica, e, como excomungados, foram sepultados no campo, entre
os brutos. Alexandra, ainda que perdeu a vida, porque a degolaram, só ela naquele fracasso
não cometeu pecado algum, que é o que mais importa, antes pediu confissão para eles, posto
que a não alcançou, que é assaz grande mal.
110. Estava ausente S. Domingos nesta ocasião, mas de lá viu toda aquela tragédia,
porque Deus lha revelou com todas suas circunstâncias. Daí a alguns tempos veio à mesma
cidade, perguntou pela casa de Alexandra, e a novidade da pergunta e a memória do caso
passado fez que fosse após o santo muito mais gente da que por toda a parte o acompanhava e
seguia. Entra no pátio da casa, chega ao poço, e, inclinando-se para baixo, começa a bradar:
Alexandra! Alexandra! Acudiram todos os que puderam a ver o eco que faziam na
profundidade do poço aquelas vozes e a resposta que de lá lhe davam quando, vêem subir pelo
ar uma cabeça com os cabelos estendidos, os olhos abertos, a cor do rosto muito viva, e
chegando mais perto reconheceram todos ser a cabeça de Alexandra. Nesta prodigiosa forma,
posta sobre o bocal do poço, começou a falar, e a primeira coisa que disse foi: - Padre frei
Domingos, ouça-me vossa reverência de confissão, que a isso venho. - Não se pôs de joelhos,
nem bateu nos peitos a penitente, porque não tinha mãos nem pés; mas, como tinha olhos,
chorava muitas lágrimas, e, como tinha língua, confessou muito miúda e muito
declaradamente todos os pecados de sua vida. Acabada a confissão geral, e recebida a
absolvição, mandou recado S. Domingos à paróquia, que trouxessem o Santíssimo
Sacramento; e veio ao poço de Alexandra aquele Senhor que no poço de Sicar tinha
convertido a Samaritana, para matar em ambas a sede que tem de nossas almas. Não morreu
logo Alexandra - se assim se pode chamar a que da garganta para baixo estava convertida em
cinzas - porque quis Deus que para admiração de sua onipotência, e exemplo daquele povo,
estivesse assim dois dias, vendo-a e ouvindo-a todos.
111. Perguntada o que lhe sucedera quando a degolaram, respondeu que a Virgem
Santíssima, em prêmio dos Rosários que rezava, posto que tão imperfeitamente, e não
continuados, lhe fizera dois estranhos e milagrosos favores: o primeiro, que para não ir ao
inferno, como por seus pecados merecia, lhe alcançara um ato de contrição; o segundo que,
apartando-se a alma do corpo, não morresse de todo, e se conservasse na cabeça e na língua,
para se poder confessar. Finalmente, que pela vaidade e incontinência de sua má vida, e pelos
escândalos e males que com ela tinha causado, estava condenada a duzentos anos de
Purgatório; porém, que pela graça dos sacramentos que tinha recebido, e pelos sufrágios que
216
pedia, principalmente aos confrades do Rosário, esperava que aquela sentença da Divina
Justiça se moderasse, e as penas lhe fossem diminuídas. Ditas estas coisas, e outras de grande
edificação e espanto, cerrou os olhos, emudeceu a língua, perdeu as cores, e acabou de morrer
a venturosa Alexandra. Dali foi levada a prodigiosa cabeça com extraordinária pompa, e mais
como em triunfo que como enterro, a ajuntar-se com o corpo no mesmo lugar onde trágica e
lastimosamente fora sepultado. Fizeram-se muitos sufrágios em toda a cidade, e ao cabo de
quinze dias - número sagrado dos mistérios do Rosário - apareceu a alma de Alexandra
vestida de glória a S. Domingos, dando-lhe as graças de lhe haver ensinado aquele soberano
meio que na vida, na morte, e depois da morte, tinha sido a causa de todas as suas felicidades,
e agora o era da eterna, para onde, tomando-a pela mão, a levou consigo a mesma Virgem
Santíssima.
112. Assim exercitou a Senhora do Rosário neste caso - como em outros - a potestade
das suas chaves sobre a morte e sobre o inferno: Claves mortis et inferni. Sobre a morte,
fazendo que Alexandra degolada, e com o corpo já sepultado, se conservasse viva; sobre o
inferno, impedindo com a mesma vida, e com a graça da contrição e dos sacramentos, que não
fosse condenada ao inferno, como seus pecados mereciam. Esta potestade pontifical, e estas
chaves sim, que não são como as de Pedro, senão como as de Cristo. As chaves de Pedro só
têm jurisdição sobre a terra: Quidquid solveris super terram; quidquid ligaveris super
terram40; porém as da Senhora do Rosário, não só sobre a terra, senão debaixo da terra.
Debaixo da terra, nas partes vizinhas a nós, onde se abrem e cerram as sepulturas, que são os
cárceres da morte: claves mortis; e debaixo da terra, nas partes mais inferiores e remotas do
centro dela, onde penam eternamente os condenados, que são os cárceres do inferno: claves
inferni.
113. A potestade que Deus deu ao Sol: Solem in potestatem diei41: tem duas jurisdi-
ções: a da luz, e a do calor, mas a do calor muito maior que a da luz, porque a da luz pára na
superfície da terra, onde alumia os homens; a do calor penetra as entranhas e centro da mesma
terra, onde gera, purifica e eriquece os metais. Essa é a energia com que disse elegantemente
Davi, falando do mesmo Sol: Nec est qui se abscondat a calore ejus (SI. 18,7): Não há quem
se esconda do seu calor. - Parece que não havia de ser do seu calor, senão da sua luz, porque a
luz é a que descobre tudo. Mas diz nomeadamente do seu calor, distinguindo-o da luz, porque
tudo o que está debaixo da terra esconde-se à luz do Sol, porém ao seu calor nenhuma coisa se
pode esconder, por mais que a esconda e cubra a terra. Lá se estende a sua eficácia, lá penetra,
lá obra maravilhosos efeitos. Tais - diz S. Bernardo - são os poderes da Virgem Santíssima:
Cujus radius universum orbem illuminat, cujus splendor, et perfulget in supernis, et inferos
penetrat, nec est, qui se abscondat a calore ejus: Não há, nem sobre a terra, nem debaixo da
terra, quem se possa esconder a este soberano Sol, porque, se com os raios de sua luz alumia
todas as partes superiores da terra, com a eficácia de seu calor penetra até os infernos:
Perfulget in supernis, et inferos penetrat. É verdade que o profeta quando disse: Nec est qui
se abscondat a calore ejus, falou literalmente de Cristo; mas por isso mesmo pertencem os
mesmos efeitos e os mesmos poderes à Mãe, de quem é Filho. Porque se Cristo, por ser
ungido em Supremo Rei, lhe comunicou a dignidade real, também por ser ungido em
Pontífice Sumo, lhe havia de comunicar a pontifical. Pontifical no nome, pontifical nas
insígnias, pontifical nos poderes, como deixamos provado: e não por outra razão nem por
outro título, senão por nascer da mesma Senhora o mesmo Jesus, que se chama Cristo: De
qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

40 Tudo o que desatares sobre a terra: tudo o que ligares sobre a terra (Mt. 16, 19).
41 O Sol para presidir ao dia (SI. 135,8).
217
§VIII

Os dois documentos do sermão: não seguir nem o exemplo de Alexandra nem o do


bispo presumido. Conhecer e temer o vício da sensualidade, conhecer e estimar a devoção do
Rosário. Os bens que a sensualidade tirou a Alexandra e os bens que a devoção do Rosário
lhe tornou a restituir. O rio da perdição e a ponte do Rosário, salvo-conduto com que
seremos admitidos ao paraíso interior das delícias.

114. De tudo o que fica dito neste largo discurso, só tiro dois documentos contrários
aos que se costumam tirar de todos os sermões. Nos outros sermões exortam os pregadores a
imitação dos exemplos que têm pregado; eu o que vos peço, é que de nenhum modo os
imiteis. Pode ser que esteja neste auditório e me ouvisse alguma alma de tão pouco juízo, ou
algum juízo de tão pouca alma, que com o exemplo de Alexandra diante dos olhos, fizesse
uma resolução. Ora, eu de hoje por diante quero rezar o Rosário, ao menos algumas vezes, e
sobre esta carta de seguro viver muito a meu gosto, e a meus gostos, como ela vivia; porque
quando o mal seja muito, aí está a Virgem do Rosário, que na hora da morte me não faltará
com um ato de contrição. Deus nos livre de tal discurso, e de tal exemplo, porque assim como
o do Bom Ladrão tem levado muitos ao inferno, assim o fará o de Alexandra. O fruto que
devemos tirar da sua vida e da sua felicidade são dois conhecimentos, um de temor, outro de
estimação: conhecer e temer o vício da sensualidade, conhecer e estimar a devoção do
Rosário. É tão grande mal o vício da sensualidade, que todos os bens tirou a Alexandra, e é
tão grande bem a devoção do Rosário, que todos os bens lhe tornou a restituir e todos os
males lhe remediou. Tirou-lhe todos os bens a sensualidade, porque lhe tirou a honra,
infamando-a em toda a cidade; tirou-lhe a vida, sendo causa de que lhe cortassem a cabeça;
tirou-lhe a consciência, porque a trouxe enredada e perdida em tantos vícios, e quase lhe tirou
e condenou a alma, porque a teve pendente de um fio tão delgado, como é um ato de contrição
no instante da morte, e esse por milagre. Isto fez a sensualidade. E a devoção do Rosário, que
fez? De todos estes males a livrou, e todos estes bens lhe restituiu. Restituiu-lhe a honra,
porque de infame a fez famosa em todo o mundo; restituiu-lhe a vida, porque com a cabeça
cortada lhe conservou a alma naquela tão pequena parte do corpo; restituiu-lhe a consciência,
porque naquele último instante, em que é tão dificultoso, lhe deu a graça pela contrição, e,
depois de morta, pelos Sacramentos; e, finalmente, restituiu-lhe a alma, porque, caminhando
direita ao inferno por seus pecados, por meios tão extraordinários e milagrosos a levou à bem-
aventurança, que está gozando e gozará por toda a eternidade. Mas porque uma felicidade
destas mais é para admirar, que para esperar, rezar o Rosário sim, e melhor do que Alexandra
o rezava, mas guardar de viver como ela.
115. O segundo exemplo é o bispo presumido, que perseguia a S. Domingos e despre-
zava os sermões do Rosário. Se o mesmo fizerdes a estes meus, eu vos perdôo; e se algum
deles vos persuadir a ser devotos do Rosário, que é o fim para que os escrevo, a Deus e a vós
darei muitas graças, e haverei o trabalho por bem empregado. O documento que só tiro deste
exemplo, é que vos guardeis de que o vosso entendimento ou a vossa presunção vos lance no
rio, e que vos pergunteis a vós mesmos, se é melhor ir pelo rio ou pela ponte. Aquele rio
largo, escuro, profundo e furioso é o mundo; os que se vão logo a pique, são os que morrem
de morte súbita; os que andam aboiados em figuras disformes, são os que morreram em
tempos passados, de que temos tão lastimosos exemplos; os que vão arrebatados da corrente
dar nos penhascos, são os que morrem de mortes violentas e desastradas; os que se deixam
levar das águas, são os que vivem neste mundo sem consideração do outro, e no fim da vida
se acham perdidos; os que, finalmente, chegam à ribeira vivos, são poucos, e todos despidos:
218
poucos, porque são raros destes os que se salvam; e despidos porque de tudo quanto cá se
adquiriu com tanto trabalho, com tanto desvelo e com tantos perigos da alma, tudo cá fica, e
nenhuma coisa se leva, senão os encargos. Vede agora, se é melhor nadar forcejando sempre,
quando não seja naufragar neste rio, ou caminhar descansado por cima da ponte com toda a
segurança que nos promete o ser obra daquela poderosíssima e riquíssima Senhora que, para
Deus remir e salvar o mundo, lhe deu todo o preço e cabedal, tirando-o das mesmas
piedosíssimas entranhas com que sumamente deseja nos salvemos todos. Só por ser obra da
Virgem Maria e lhe dar gosto devêramos ser muito devotos do seu Rosário, quanto mais, que
não só devemos esta contínua memória aos mistérios que nele se representam, sob pena de
sermos ingratíssimos a Deus e a sua Mãe; mas, pondo somente os olhos na nossa necessidade
e no nosso perigo, nenhum outro meio podemos tomar mais seguro em uma passagem forçosa
e tão incerta, como desta para a outra vida. Entremos, pois, sem temor, e com grande
confiança por esta firmíssima ponte do Rosário: sem temor porque as torres, de que está
fortificada, nos defenderão de todos nossos inimigos; e com grande confiança, porque no fim
dela está com as portas abertas o formosíssimo palácio da Rainha da Glória, de cuja soberana
mão, se perseverarmos, receberemos a coroa de rosas, que é o caráter, o penhor e o salvo-
conduto com que, sem dúvida, seremos admitidos ao paraíso interior das delícias, onde Deus
se deixa ver e gozar, e nós o veremos e gozaremos por toda a eternidade.

FINIS

SERMÃO XIX

Com o Santíssimo Sacramento Exposto.

Beatus venter qui te portavit1.

§1

Três são os sacramentos que concorrem neste dia, e em todos três está a mesma
dignidade e humanidade de Cristo diversamente sacramentada: o Sacramento do Altar o
Sacramento do Evangelho e o Sacramento do Rosário. A definição de sacramento: sinal
visível da graça invisível, no Sacramento do Evangelho e no Sacramento do Rosário. Assunto
do sermão: combinar e comparar entre si esses três sacramentos.

116. Encerrado e desencerrado temos hoje a Cristo, Senhor e Redentor nosso, no altar
e no Evangelho. Desencerrado no altar, porque naquele trono de majestade o temos exposto a
nossos olhos, e encerrado no Evangelho, porque ali se nos representa encerrado dentro do
sacrário virginal do ventre beatíssimo: Beatus venter qui te portavit (Lc. 11,27). E basta estes
dois Sacramentos para declarar os mistérios e desfazer os encontros de toda a presente
solenidade? Não bastam. Antes os mesmos dois Sacramentos se ordenam hoje a outro terceiro
Sacramento, que é o Rosário santíssimo da Virgem Senhora nossa, primeiro e principal
argumento de toda a presente ação, e tão grande como dificultoso assunto dela. De maneira
que três são os Sacramentos que concorrem neste dia, e em todos três a mesma divindade e
humanidade de Cristo diversamente sacramentada. O Sacramento do altar, o Sacramento do
Evangelho, o Sacramento do Rosário. E porque não faça dúvida nestes dois últimos o nome
1 Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. 11. 27).
219
que lhes dou de Sacramento, não sendo algum dos sete, vede com quanta propriedade lhe
quadra a definição de Sacramento!
117. Sacramentum est visibile signum invisibilis gratiae: o Sacramento em comum -
com mais declarada definição do que o tinha definido Santo Agostinho, e o definiu depois
dele Santo Tomás - é um sinal visível da graça invisível, ou um sinal que se vê, da graça que
se não vê. - Daqui se segue, que assim o Sacramento do Evangelho, como o do Rosário, não
só tem grande semelhança com qualquer outro Sacramento, senão maior ainda com o maior
de todos, que é o Santíssimo Sacramento do altar. Sendo todos os Sacramentos santos, qual é
a razão por que o Sacramento do altar se chama santíssimo? A razão é porque os outros
Sacramentos, debaixo da matéria visível, só significam a graça santificante, que causam
invisivelmente; porém, o Sacramento do altar não só significa a graça santificante que causa,
senão também o mesmo Santificador e Autor da graça, que é Cristo, o qual este Sacramento
encerra dentro em si oculto e invisível debaixo dos acidentes que vemos. E tudo isto é o que
causam e contêm - cada um por seu modo - assim o Sacramento do Evangelho como o
Sacramento do Rosário.
118. Qual é o Sacramento do Evangelho? Beatus venter qui te portavit. E o ventre
puríssimo da Virgem Maria, enquanto trouxe dentro em si o Verbo Eterno encarnado. Que
este sinal fosse visível, bem o demonstraram as dúvidas ou admirações de S. José. E que além
da graça santificante da Senhora, significasse invisivelmente o mesmo Filho de Deus, Cristo,
concebido por virtude do Espírito Santo, e trazido em suas entranhas, bem o ensinou o anjo ao
mesmo S. José, quando depois lhe revelou e declarou o mistério: Quod enim in ea natum est,
de Spiritu Sancto est2. Eis aqui como o Sacramento do Evangelho em tudo é parecido ao
Sacramento do altar.
119. E o Sacramento do Rosário? Também, e pelo mesmo modo. O Rosário que
trazeis nas mãos - vede quão puras devem ser - é o sinal visível deste Sacramento. O efeito
invisível é a graça santificante que, por meio do mesmo Rosário, alcançamos que digna e
devotamente o rezam. E encerra mais alguma coisa dentro em si o mesmo Rosário? Encerra
tudo que encerra o Sacramento do altar, e encerra tudo o que encerrou o ventre da Virgem, e
ainda encerra mais: porque não só encerra, como o ventre virginal, a Cristo enquanto
encarnado, nem só, como o Sacramento do altar, a Cristo enquanto morto, senão ao mesmo
Cristo enquanto encarnado, enquanto morto, enquanto ressuscitado, e em todos os outros
mistérios Gozosos, Dolorosos, e Gloriosos do mesmo Cristo.
120. Assentados, pois, assim estes três Sacramentos, o que falei em dois discursos será
combinar e comparar entre si os mesmos Sacramentos. No primeiro compararei o Sacramento
do altar com o Sacramento do ventre virginal, em maior louvor do Sacramento do altar. No
segundo compararei o Sacramento do Rosário com o Sacramento do altar, em maior louvor do
Sacramento do Rosário. Como em todos três é interessada a Senhora, não em parte, mas em
tudo, não nos pode faltar com sua graça. Ave Maria, etc.

§II

O Sacramento do Evangelho. A mulher do Evangelho, por cuja boca falou o Espírito


Santo, por que não chama bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre que
concebeu o Filho de Deus? As três bem-aventuranças com que a Senhora foi chamada e se
chamou bem-aventurada. O ventre da Virgem louvado pelos Santos Padres e pela Igreja. O
entendimento que só compreende o que compreendeu o ventre da Virgem é o entendimento
do Eterno Padre. O ventre de Maria compreende mediatamente toda a divindade, porque
2 Porque o que nela se gerou é obra do Espírito Santo (Mt. 1, 20).
220
todo o corpo de Cristo está no ventre de Maria.

Beatus venter qui te portavit.

121. Com razão reparou nestas palavras o Cardeal Hugo, na púrpura e na pena
igualmente eminentíssimo, e pergunta assim: Quare non dixit mulier ilIa: Beata Mater quae
te portavit, potius quam beatus venter? Esta mulher do Evangelho, por cuja boca falou o
Espírito Santo, por que não disse bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre? -
Isaías, quando profetizou este mistério inaudito, atribuiu a novidade e maravilha dele à
conceição, e ao parto da Virgem: Ecce virgo concipiet, et pariet filium3. O anjo, quando
trouxe a embaixada à Senhora, falou pelos mesmos termos: Ecce concipies, et paries4. Pois, se
esta oradora humilde, que tão alto levantou a voz, queria louvar o Filho pela Mãe, e o ser Mãe
consiste em gerar, conceber e parir o Filho, por que cala a conceição e o parto, e o mesmo
nome da maternidade, e só louva, apregoa e canoniza por bem-aventurado o ventre que o
trouxe em si: Beatus venter qui te portavit? Não fora esta mulher figura da Igreja Católica,
como bem notou o Venerável Beda: Ecclesiae catholicae typum gessit - se não falara assim. O
que muito e muitas vezes pondera a Igreja no altíssimo mistério da Encarnação do Verbo, é a
capacidade imensa do ventre sacratíssimo de Maria. Tão capaz, que coube nele o que não
cabe no céu: Quem caeli capere non poterant, tuo gremio contulisti; tão capaz, que coube
nele o que não cabe em todo o mundo: Quem totus non capit orbis, in tua se clausit viscera;
tão capaz, que coube nele o mesmo Filho de Deus, tão imenso e infinito, como seu próprio
Padre: Beata viscera Mariae, quae portaverunt aeterni Patris Filium. Fazer-se Deus homem,
foi o maior invento do seu amor; nascer de uma Virgem, foi o maior decoro de sua soberania;
caber no ventre de uma mulher, foi o maior portento de sua imensidade: Beatus venter qui te
portavit.
122. Aquela palavra beatus é a que só penetrou o profundo, e encareceu o sublime, e
pode dar o justo peso às outras. Três mulheres chamaram bem-aventurada à Senhora neste
mesmo mistério, e por ele. A mulher do nosso Evangelho: Beatus venter qui te portavit; Santa
Isabel, alumiada com espírito de profecia: Beata quae credidisti5; e a mesma Virgem
Santíssima no seu Cântico: Beatam me dicent omnes generationes6. E sendo uma destas três
mulheres a mesma bendita entre todas as mulheres, a que mais encareceu o mistério é a autora
do nosso texto. Vede se tenho razão. O que noto nestas três bem-aventuranças, com que a
Senhora foi chamada e se chamou bem-aventurada, é que nenhuma delas se parece com a
bem-aventurança do céu. Santa Isabel chamou bem-aventurada à Virgem Maria pela fé com
que creu o que lhe disse o anjo: Beata quae credidisti e no céu não há fé. A mesma Virgem
chama-se bem-aventurada, porque Deus pôs nela os olhos: Quia respexit humilitatem ancillae
suae, ecce enim ex hoc beatam me dicent 7: e a bem-aventurança do céu não consiste em Deus
ver o bem-aventurado, senão em o bem-aventurado ver a Deus. Finalmente, a mulher do
Evangelho chamou bem-aventurado o ventre da Senhora, porque foi capaz de ter e trazer a
Deus dentro em si: Beatus venter qui te portavit: e esta bem-aventurança também se não acha
no céu, ainda que no número dos bem-aventurados entre a mesma Mãe de Deus. E por quê?
Porque Deus, por sua infinita essência, é incompreensível a todo o entendimento e co-
nhecimento criado. E, posto que o entendimento da Senhora, ilustrado com lume da glória,
3 Eis que uma virgem conceberá, e parirá um filho (Is. 7,14).
4 Eis conceberás, e parirás (Lc. 1,31).
5 Bem-aventurada tu que creste (Lc. 1,45).
6 Todas as gerações me chamarão bem-aventurada (Lc. 1,48).
7 Por ele ter posto os olhos na baixeza de sua escrava, porque eis de hoje em diante me chamarão bem-
aventurada (Lc. 1,48)
221
excessivamente maior que o de todos os bem-aventurados, veja mais em Deus que todos os
anjos e santos, não só divididos, mas juntos, contudo, não compreende nem pode
compreender a Deus. E daqui se segue, que o ventre da Virgem, no seu gênero, é mais bem-
aventurado que o entendimento da mesma Virgem:Beatus venter qui te portavit, porque o seu
entendimento não compreende a Deus, e o seu ventre sim.
123. Entre agora a autoridade, e a maior autoridade, sem a qual todo este discurso
ficaria duvidoso e vacilante. Santo Epifânio, com apóstrofe ao ventre virginal, exclama assim:
O uterum caelo ampliorem, qui Deum incomprehensibilem in te vere comprehensum
portasti8! Ó ventre puríssimo de Maria, maior e mais capaz que o céu, pois a Deus, que é
incompreensível, verdadeiramente o compreendeste e trouxestes dentre em ti! -Note-se muito
aquela grande palavra: vere comprehensum. E Santo Atanásio, insigne coluna da fé e doutor
da Igreja, falando com a Senhora: Ave gratia plena, splendidum caelum, quae Deum
incomprehensum augusto potissimum loco in te ipsa contines: Deus vos salve cheia de graça,
novo céu e mais resplandecente, que contendes e abreviais a Deus incompreensível dentro em
vós mesma, e, o que é mais, em um lugar tão estreito como o de vosso sacratíssimo ventre. - E
S. Metódio, ainda mais antigo que ambos, encarecendo a capacidade imensa do mesmo
ventre: Tu incircumscripti circumscriptio, tu cuncta continentis, et comprehendentis
comprehensio9: Vós sois, ó ventre puríssimo, o que só pudestes limitar o que não tem limite;
vós sois a compreensão do que tudo compreende. - Finalmente, para que a tão grandes
autoridades ajuntemos e ponhamos o selo com outra maior, o mesmo diz, e com a mesma e
maior admiração, o Concílio Efesino: Quis vidit, quis oudivit unquam tale10? Quem viu, ou
quem ouviu jamais tal coisa? - Incircumscriptus Deus uterum inhabitat, et quem caeli non
capiunt, venter amplexus est Virginis: Deus, que não cabe nos céus, cabe no ventre de uma
Virgem; e o que é imenso e incompreensível, o mesmo ventre o abraça e compreende. - E
como o ventre virginal de Maria compreendeu a Deus, cuja infinita grandeza não pode
compreender entendimento algum criado, nem ainda o da mesma Virgem, com razão a
oradora do Evangelho, como oráculo do Espírito Santo, e a voz de toda a Igreja Católica, o
que louva, o que apregoa, o que canoniza como singularmente bem-aventurado, não é o
entendimento, com que a Senhora vê a Deus, senão o ventre, em que o compreendeu e trouxe
dentro em si: Beatus venter qui te portavit.
124. Um só entendimento há que compreenda o que compreendeu o ventre de Maria.
E qual é? Porventura o de Cristo enquanto homem? Nem esse. Oh! grande grandeza também
incompreensível do sacrário virginal deste segundo Sacramento! Por isso os padres e
concílios - se bem advertistes - todos se declaram por exclamações de admiração, de
assombro, de pasmo. O entendimento que só compreende o que compreendeu o ventre de
Maria, é o entendimento do Eterno Padre. A maior grandeza da Virgem, em seu gênero
infinita, é que o Eterno Padre e Maria sejam Pai e Mãe do mesmo Filho. E, assim como a
mente do Pai gerando o Eterno Verbo, e comunicando-lhe o ser divino, compreende a todo
Deus, assim o ventre da Mãe, gerando temporalmente a Cristo, e dando-lhe o ser humano,
compreendeu dentro em si a mesma divindade toda. Mas, se o Pai deu ao Filho o ser divino, e
a Mãe o ser humano, diga-se que a mente do Pai compreendeu a divindade, e o ventre da Mãe
a humanidade, e a divindade não? Antes por isso mesmo. Que se assim não fora, não fora a
Senhora Mãe de Deus. A Virgem Maria não gerou a humanidade de Cristo com subsistência
humana, como as outras mães geram os outros homens; mas, com subsistência divina, unida
hipostaticamente à mesma humanidade, por meio da qual união o Filho, no instante em que

8 D. Epiphanius, de laud. Virg.


9 D. Method. orat. ad Hipani. Domini.
10 Concil. Ephes. cap. 7.
222
foi concebido, ficou verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e a Mãe, que deu o ser a tal
homem, verdadeira Mãe de Deus. Pois, assim como a mente do Pai, gerando o Verbo,
compreendeu toda a divindade sua e do Filho, assim o ventre da Mãe, gerando o mesmo
Filho, compreendeu toda a divindade, não sua, mas do Verbo.
125. Declare-nos esta altíssima teologia S. Paulo por termos que a possam entender
bem, ainda os que não são teólogos. Falando S. Paulo da divindade do Filho de Deus feito
homem, diz que toda a enchente da divindade habita o corpo de Cristo: In ipso inhabitat
omnis plenitudo divinitatis corporaliter11. Habitar quer dizer estar com permanência e deste
modo esteve desde o instante da Encarnação, e está, e há de estar para sempre a divindade em
Cristo, por virtude da união hipostática, que é de sua natureza união indissolúvel. E usou
também o apóstolo da palavra habitar, porque como o que habita a casa está todo dentro na
casa, e a casa o cerca, e contém todo dentro em si, assim a divindade está toda dentro do
corpo de Cristo, e o corpo de Cristo acerca e compreende, não só toda, mas totalmente, que é
outro e maior mistério que encerram as mesmas palavras. Para significar que toda a divindade
está no corpo de Cristo, bastava dizer: Jn ipso in habitat plenitudo divinitatis, porque
plenitude quer dizer, toda. Pois, por que não diz o apóstolo só plenitudo, senão omnis
plenitudo, que vem a ser como se dissera: - Toda a divindade toda, ou todo o todo da
divindade? - Porque, para compreender a Deus, como definem os teólogos, não só basta
conhecer ou conter a todo o Deus, senão todo e totalmente. E isto é o que quis significar o
apóstolo, não só dizendo, toda a Divindade, senão todo o Todo dela: omnis plenitudo, para
mostrar que o corpo de Cristo contém e abraça dentro em si a divindade, não de qualquer
modo, senão compreensivamente e por inteira compreensão: toda uma vez enquanto
plenitudo, e toda outra vez enquanto omnis, e, por isso, toda e totalmente. Donde se seguem,
em última conclusão do nosso discurso, as duas conseqüências e semelhanças dele. A
primeira, que o ventre da Virgem compreendeu toda a divindade, porque, se o corpo de Cristo
compreende imediatamente toda a divindade, porque toda a divindade está no corpo de Cristo,
também o ventre de Maria compreende mediatamente toda a divindade, porque todo o corpo
de Cristo está no ventre de Maria. E assim como - que é a segunda conseqüência e paridade -
assim como a mente do Padre compreende toda a divindade, porque na mente do Padre está
todo Deus em espírito, assim o ventre de Maria compreende toda a divindade, porque no
ventre de Maria está todo Deus em corpo. Deus Verbum totum erat in corpore, totum in Deo
Patre, disse, como eu o pudera ditar, S. Basílio de Selêucia12. E este é o grande mistério com
que a voz do nosso texto não chama bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre:
Beatus venter qui te portavit.

§III

Segunda parte do sermão: O Sacramento do Altar. Grande maravilha é que o Verbo


Eterno, ao qual só compreende a mente do Padre, o compreendesse o ventre de uma Virgem,
e muito mais se receba e caiba também todo no peito do homem. Diferenças e vantagens do
sacramento do Altar sobre o Sacramento do Evangelho. O milagre e prodígio de Cristo no
Mistério da Fé. A mesa de Elcana, a mesa de José e a mesa de Cristo. O maior mistério da
natureza, a composição do contínuo ou da quantidade, e o mistério sobrenatural do
Sacramento.

126. E se tudo - para que do Sacramento do Evangelho passemos ao Sacramento do

11 Nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col. 2,9).


12 Basilius Seleucus, de Annuntiat.
223
Altar - se tudo o que compreende a mente do Padre compreendeu o ventre de Maria, porque
teve dentro em si todo o corpo de Cristo: Totum in corpore, totum in Patre - que menos
podemos nós dizer do mesmo corpo de Cristo no Santíssimo Sacramento, instituído pelo amor
e obrado pela Onipotência, não só para o adorarmos no altar, mas para o recebermos dentro
em nós mesmos? Que disse Cristo quando instituiu aquele diviníssimo mistério? Accipite, et
comedite: hoc est corpus meum (Mt. 26,36): Recebei, e comei: este é o meu Corpo. - Todo na
mente do Padre, todo no ventre da Virgem, e todo no peito dos que o recebem, e tão
inteiramente todo em todos, como todo em cada um: Sic totum omnibus, quod totum singulis.
Grande maravilha é que o Verbo Eterno, ao qual só compreende a mente do Padre, o
compreendesse o ventre de uma Virgem; mas não é menor, antes igual maravilha, que esse
mesmo Verbo, que está todo na mente do Padre e todo no ventre da Virgem, se receba e caiba
também todo no peito do homem. Na mente do Padre todo o Verbo gerado, no ventre da
Virgem todo o Verbo encarnado, no peito do homem todo o Verbo sacramentado. Mas isso
mesmo é ser Verbo, disse excelentemente, declarando e estendendo o seu pensamento, o
mesmo S. Basílio: Quemadmodum Verbum in charta descriptum, totum est in charta et totum
in mente gignente, et totum in iis, qui illud legunt vel audiunt: ita Deus Verbum, et multo
quidem perfectius, totum erat in corpore, totum in Deo Patre, totum in caelo, totum in terra,
totum in universa creatura: Que é o Verbo Eterno? É a palavra divina. Pois assim como a
mesma palavra está toda na mente de quem a concebe e gera, e toda no papel onde se escreve,
e toda naqueles que a lêem ou ouvem, assim o mesmo Verbo Divino está todo na mente do
Padre, que o gerou, todo no ventre da Mãe, que o concebeu, todo naqueles acidentes brancos,
onde se imprimiu, e todo no peito do homem, que o ouve pela fé e o recebe pelo Sacramento.
127. A proporção e a paridade não pode ser mais própria, nem mais igual. Mas porque
eu prometi de tal maneira comparar o Sacramento do Altar com o Sacramento do Evangelho,
que seja em maior louvor do Sacramento do Altar, ouçamos agora as diferenças ou vantagens
deste segundo Sacramento sobre o primeiro. E não peço licença à Virgem Santíssima para
esta vantajosa comparação, pois tudo o que se disser do Santíssimo Sacramento do corpo e
sangue de Cristo, é em dobrado louvor da mesma Senhora, da qual Cristo recebeu o mesmo
corpo e sangue. Começando, pois, este segundo discurso, por onde acabamos o primeiro, a
primeira diferença ou vantagem do Sacramento do Altar sobre o Sacramento do Evangelho, é
que no ventre sacratíssimo da Virgem de tal modo esteve todo o corpo de Cristo, que só
estava todo em todo, mas não todo, senão parte em cada parte; porém, no Sacramento do Altar
não só está todo em todo, e todo em qualquer parte, como muitas vezes ouvistes, mas em
qualquer parte está todo e todo totalmente, o que porventura não tendes ouvido.
128. Nenhum corpo há no mundo, ainda que seja tão grande como a terra e o céu, ou
tão pequeno e tão mínimo como um átomo, que esteja todo em todo, e todo em qualquer parte
do mesmo todo. E a razão não é outra, senão porque é corpo. Estar todo em todo, e todo em
qualquer parte, é propriedade só dos espíritos: e assim está em nós a nossa alma. Toda em
todo o corpo, toda em um braço, toda em uma mão, toda em um dedo, e toda na menor parte
dele. Com esta semelhança se costuma explicar o modo com que o corpo de Cristo está na
hóstia. E posto que seja um dos grandes milagres deste mistério, que sendo corpo esteja ali
com propriedades de espírito, ainda a semelhança da alma diz muito menos do que na
realidade é. A alma, ainda que está toda no braço, toda na mão e toda no dedo, se ao corpo lhe
cortarem um dedo, não fica no dedo; se lhe cortarem a mão, ou o braço, não fica na mão nem
no braço. Pelo contrário o corpo de Cristo de tal modo está todo na hóstia, que se a hóstia se
partir pelo meio, ou em quatro partes, ou em cento, ou em mil, em qualquer parte, ou maior,
ou menor, ou mínima, está todo o corpo de Cristo. E qual é a razão de tamanha diferença e
maravilha? A razão é - como filosofa esquisitamente Teófilo - porque o corpo de Cristo em
224
qualquer parte da hóstia está todo e totalmente, e a alma em qualquer parte do corpo, ainda
que está toda, não está totalmente13. Mais claro. A alma está toda em qualquer parte do corpo,
mas não por modo total, senão parcial, porque, se estivera em qualquer parte por modo total,
estivera reduplicada e não uma só vez, senão muitas vezes no mesmo corpo; porém o corpo de
Cristo, em qualquer parte da hóstia está todo, não por modo parcial, senão por modo total, e
por isso está o mesmo corpo tantas vezes reduplicado na mesma hóstia, quantas são as partes
quase infinitas em que ela se pode dividir, e não só nas partes sensíveis, em que só se pode
consagrar, mas também, depois de consagrada, até nas partes insensíveis. A alma de tal
maneira está toda em qualquer parte do corpo que ou há de estar toda ou não há de estar; o
corpo de Cristo de tal maneira está todo em qualquer parte da hóstia, que não pode deixar de
estar nem de estar todo. Todo em toda, todo em qualquer parte, e, dividida essa parte em mil
partes, em todas todo.
129. Oh! milagre! Oh! prodígio! não sei, se maior da onipotência ou do amor! A maior
inclinação do amor é dar ou dar-se todo, e a maior mortificação do mesmo amor é dar
somente parte. Ponhamos três mesas à vista, para que se veja a soberania daquela. Assentado
à mesa Elcana com toda a sua família, quando veio a repartir a porção que lhe coube do
sacrifício que tinha oferecido no Templo, diz o texto sagrado que deu uma parte a Ana, mas
desconsolado e triste, porque, amando-a muito, lhe dava uma só parte: Annae autem dedit
partem unam tristis, quia Annam diligebat (1 Rs. 1,5). Assim se entristece e mortifica o amor
quando dá parte a quem quisera dar tudo. Mas desta mortificação nenhum amor pode livrar,
ainda quando o maior amor se ajunta com o maior poder. José era todo-poderoso no Egito, e
quando deu o banquete a seus irmãos, depois de reconhecidos, posto que amava mais que a
todos a Benjamim, que fez com todo esse amor e com todo esse poder? Nota o mesmo texto
sagrado, que na repartição dos pratos, que ele fazia por sua própria mão, a maior parte era a de
Benjamim, e tanto maior que excedia a dos outros em cinco partes: Major pars venit
Benjamin, ita ut quinque partibus excederet (Gên. 43,34). De sorte que podendo tudo José, e
fazendo seu amor tudo o que podia nesta repartição, o que pôde dar a quem mais amava foi
uma parte maior, mas a maioria e excesso dessa maior parte também foram partes: Major
pars, quinque partibus. Não assim o divino amor e verdadeira onipotência de Cristo naquela
sagrada mesa. Estando a ela o Senhor com seus discípulos, disse-lhes que tomassem o cálix,
em que lhes deixava seu sangue, e o repartissem entre si: Accipite, et dividite inter vos14. E
entre o accipite e o dividite, entre o tomar e repartir o cálix, e o mesmo é do pão depois de
consagrado, houve alguma diferença? Muito grande e nunca vista, ainda na Teologia mais
estreita. Quando tomaram o pão da mão de Cristo, estava o corpo de Cristo todo em todo:
tanto que o repartiram entre si, estava todo em qualquer parte. O pão partia-se em partes, e o
que estava debaixo do pão partia-se em todos ou em um só todo, porque todo o corpo de
Cristo, e o mesmo, estava na parte que coube a cada um. Nem a parte de João - que era o
Benjamim - foi maior parte, nem a dos outros menor, porque o todo estava tão inteiramente
nas partes como no todo.
130. Esta foi a razão e proporção admirável porque na substância e acidentes do
Sacramento uniu Cristo inseparavelmente o maior mistério sobrenatural com o maior mistério
da natureza. É a composição do contínuo, ou da quantidade, em que toda a Filosofia até hoje
mais soube pasmar que definir. Porque sendo próprio da quantidade o ser divisível, ou poder-
se dividir, de tal modo se compõe de partes qualquer quantidade que, por mais que se divida
em infinito, em nenhuma parte se pode dividir tão pequena que essa mesma parte não seja
divisível e se possa dividir em partes. E porque a propriedade da quantidade é poder-se

13 Theophilus Reinaudus, in Candelabro Euchar, cap. 8, § 16.


14 Tomai-o, e distribuí-o entre vós (Lc. 22,17).
225
sempre dividir, e a propriedade do amor é querer-se sempre dar todo, por isso mediu e
proporcionou o Senhor o todo do seu corpo com as partes da quantidade da hóstia, para que
assim como as partes se podem sempre dividir, assim o seu corpo se pudesse sempre
multiplicar. A hóstia em qualquer parte sempre divisível em partes, e o corpo debaixo de
qualquer parte sempre multiplicável em toda. Tanta é a diferença nesta só consideração com
que o Sacramento do Altar, que foi a última obra do amor e onipotência divina, se exalta
sobre a primeira, que foi o Sacramento do Evangelho. O mesmo corpo de Cristo que está
naquela hóstia consagrada é o que esteve no sagrado ventre da Virgem Maria. Mas no ventre
da Virgem esteve todo o corpo em todo, e parte em parte; porém na hóstia, não só está todo
em todo, e toda em qualquer parte, mas em qualquer parte todo, e totalmente. Todo e
totalmente, porque assim como qualquer parte da hóstia se pode dividir em infinito, assim o
mesmo corpo do Senhor, quantas forem mais e mais as partes divididas, tanta estará mais e
mais todo em todas. E todo, e totalmente, por modo ainda mais sublime e admirável, porque
ainda que as partes se não dividam, basta somente serem divisíveis em si, para que em todas,
por mais que sejam infinitas, esteja todo.

§1V

As outras diferenças gloriosas de um e outro Sacramento, e a maior e mais estupenda


de todas as diferenças: no ventre da Virgem esteve o Filho de Deus onde nunca entrou
pecado, e no Santíssimo Sacramento, quando entra no peito dos homens, não só está em
pecadores, mas muitas vezes entre os mesmos pecados. Cristo, Senhor nosso, rio que saiu do
lugar das delícias. O que padece Cristo Sacramentado nas consciências de todos os que o
recebem impenitentes? O ventre virginal de Maria, paraíso do paraíso.

131. Infinito seria também o nosso discurso, se houvéssemos de ponderar uma por
uma as outras diferenças gloriosas de um a outro Sacramento. Mas, porque nem a brevidade
do tempo permite a ponderação, nem a necessidade da matéria se satisfaz com o silêncio,
contentar-me-ei somente com as apontar. No ventre da Virgem entrou Cristo uma só vez, no
Sacramento entra em nós todos os dias: Haec quotiescumque feceritis15. No ventre da Virgem
esteve só nove meses: no Sacramento há mil e seiscentos anos que está conosco, e há de estar
até o fim do mundo: Ecce ego vobiscum sum... usque ad consummationem saeculi16. No ventre
da Virgem esteve em Nazaré nas montanhas, e poucas horas em Belém: no Sacramento está
em todas as partes do mundo, sem exceção de lugar: Ubicumque fuerit corpus17. No ventre da
Virgem crescia o corpo de Cristo, mas até aquele limite somente em que tão pequeno, ou tão
pequenino nasceu: no Sacramento não cresce, nem pode crescer, porque está ali na idade, na
grandeza e na estatura de varão perfeito: Ln mensuram aetatis plenitudinis Christi18. No
ventre da Virgem estava o Filho na Mãe, mas a Mãe não estava no Filho: no Sacramento o
mesmo Cristo está em nós, e nós nele: In me manet, et ego in illo19. No ventre da Virgem
alimentava-se o Filho dos comeres naturais de que se sustentava a Senhora: no Sacramento o
mesmo Senhor é o nosso alimento e o nosso sustento: Qui manducat meam carnem, et bibit
meum sanginem20. No ventre da Virgem esteve Cristo em carne mortal: no Sacramento, e em

15 Todas as vezes que fizerdes isto (Eccles. in Canon).


16 Estai certos de que eu estou convosco... até a consumação dos séculos (Mt. 28,20).
17 Onde quer que estiver o corpo (Lc. 17,37).
18 Segundo a medida da idade completa de Cristo (Ef. 4,13).
19 Fica em mim, e eu nele (Jo. 6,57).
20 O que come a minha carne e bebe o meu sangue (Jo. 6,57).
226
nós, está em corpo imortal e glorioso: Hic est panis, qui de caelo descendit21. No ventre da
Virgem recebeu Cristo de sua Mãe a vida temporal: no Sacramento recebemos nós dele a vida
eterna: Qui manducat hunc panem, vivet in aeternum22.
132. Em cada uma destas diferenças havia muito que dizer, muito que encarecer,
muito que admirar; mas, como ainda não chegamos à maior e mais estupenda de todas, nela
só me deterei mais um pouco. E que diferença é esta, digna de tão particular admiração e
reparo? É que no ventre da Virgem esteve o Filho de Deus onde nunca entrou pecado, e no
Santíssimo Sacramento, quando entra no peito dos homens, não só está em pecadores, mas,
muitas vezes, entre os mesmos pecados. Só quem compreender as delícias sobre-humanas que
o segundo Adão gozava no Paraíso sempre inocente do grêmio virginal, poderá de algum
modo conjeturar, ou desta diferença as distâncias, ou de tal fineza os extremos. Ponhamo-nos
no Paraíso Terreal, e reparemos no que não vi reparar até agora. Depois de dizer a Escritura
que Deus tinha plantado por sua mão um Paraíso de delícias, no qual pôs o homem:
Plantaverat autem Dominus Deus paradisum voluptatis... in quo posuit hominem (Gên. 2,8) -
diz, que do lugar das delícias saía um rio para regar o Paraíso: Et fluvius egrediabatur de loco
voluptatis ad irrigandum paradisum (Gên. 2,10). Logo, se do lugar das delícias saía um rio
para regar o Paraíso, segue-se que o paraíso chamado das delícias, não tinha as delícias - ao
menos as maiores - em toda a parte, senão em um só lugar, o qual própria e particularmente se
chamava o lugar das delícias: de loco voluptatis. Suposta, pois, esta distinção e diferença tão
expressa no texto, saibamos agora que lugar das delícias era este, o qual dava o nome a todo o
Paraíso, e do qual saía o rio que o regava. S. Pedro Damião, alegorizando o passo, diz que o
lugar das delícias do Paraíso da terra é o ventre puríssimo da Virgem Maria, na qual Deus não
só depositou, mas acumulou todas as suas delícias, e o prova com outro texto da boca do
mesmo Deus: Locum voluptatis uterum Mariae intelligo, in quo cumulavit omnes delicias
deliciarum Dominus, de cujus deliciis Spiritus Sanctus admiratorio sermone in Cantico sic
eructat: Quae est ista, quae ascendit de deserto deliciis affluens23! O paraíso das delícias do
homem era o paraíso de Adão, que pecou; mas as delícias das delicias de Deus, e o lugar
delas: de loco voluptatis - era o ventre de Maria, em que nunca houve pecado.
133. Já temos qual é o lugar das delícias. E o rio que dele saía: Fluvius egrediebatur
de loco voluptatis - qual é? Esta segunda dúvida nos obriga a sair da terra ao céu, e de um
paraíso a outro paraíso, e de um ventre sacratíssimo a outro mais alto e mais divino. Ouvi ao
mesmo Santo: Fluvius iste est Dominus meus Jesus, qui e duobus locis voluptatis egreditur,
ex utero Patris, ex utero Virginis: O rio que saía do lugar das delícias é o Filho de Deus e de
Maria, Cristo Jesus, Senhor e Redentor nosso, o qual não uma só vez, senão duas, saiu do
lugar das suas delicias, no paraíso do céu, quando saiu do seio do Pai: ex utero Patris - no
paraíso da terra, quando saiu do ventre da Virgem: ex utero Virginis. De sorte que o Verbo
Eterno, quando saiu do seio do Pai, saiu do lugar das suas delicias no céu, e quando entrou no
ventre da Virgem, entrou no lugar das suas delícias na terra, e a fineza que fez por nós não
esteve no entrar, esteve no sair: Fluvius egrediebatur de loco voluptatis. Como na Virgem
Maria não havia nem houve nunca pecado, antes a suma perfeição de todas as virtudes,
enquanto Cristo esteve no ventre de sua Mãe, ali tinha e gozava todas as suas delícias; tanto
assim que, se não fora por agradar e obedecer a seu Pai, nunca dali saíra, como ele mesmo
disse pelo profeta: Tu es, qui extraxisti me de ventre matris meae (SI. 21,10): Vós, Pai meu,
sois o que só me pudestes tirar do ventre de minha Mãe, e me tirastes dele quase por força -
que isso quer dizer, extraxisti, ou, como treslada Tertuliano: avulsisti. Assim que o maior

21 Aqui está o pão que desceu do céu (Jo. 6,59).


22 O que come deste pão viverá eternamente (Jo. 6, 59).
23 P Damian. Serm. de Annuntiat.
227
sacrifício que Cristo fez a seu Eterno Padre nascendo, foi o mesmo nascer, porque foi sair do
centro do seu amor, do seu desejo, do seu descanso, das suas delícias.
134. Destas delícias, que Cristo gozava no ventre santíssimo de sua Mãe, se vê bem a
diferença da fineza com que no Santíssimo Sacramento do altar se sujeita a entrar no peito dos
homens. Lá estava a fineza no sair, cá está no entrar. O fim por que Cristo se deixou no
Sacramento foi para regar e fecundar nossas almas com os influxos de seu corpo e sangue,
como rio nascido da fonte de toda a graça, que é a divindade: Et fluvius egrediebatur ad
irrigandum paradisum (Gên. 2,10). As almas puras e santas, que não só vivem em fé, mas em
perfeita caridade, tão raras na corrupção e abusos da vida, que se costuma, essas são as plantas
do paraíso, que ele rega e santifica com tanto fruto como gosto. Mas não pára aí. Inde
dividitur in quatuor capita (Gên. 2,10) acrescenta o mesmo Texto: - e dali se divide, como em
cruz, para as quatro partes do mundo - onde sucede àquele sagrado pão o que ao do semeador
do Evangelho, que um cai nas pedras, onde se seca, outro nas espinhas, onde se afoga, outro
nas estradas, onde o pisam, e pouco em terra boa, onde frutifique. Por isso com grande
mistério sai e se divide em cruz, porque sai, como diz S. Paulo, para ser outra vez crucificado
e afrontado: Rursum crucifigentes sibimetipsis Filium Dei, et ostentui habentes24.
135. Isto é o que padece Cristo sacramentado - posto que glorioso e impassível -nas
consciências de todos os que o recebem, ou totalmente impenitentes em pecados manifestos,
ou com falsa contrição e fingido ou corado arrependimento, que são os que mais
ordinariamente se enganam ou querem enganar a si mesmos, mas não enganam a Deus. E
nestas almas sem alma - como a de Judas - não duvidaram a dizer Santo Anselmo, S.
Pascásio, S. Cipriano e Santo Agostinho que padece mais Cristo no Sacramento do que
padeceu na cruz. Magis peccant - diz Santo Agostinho - qui tradunt Christum peccatoribus
membris, quam qui tradiderunt eum crucifixoribus Judaeis. E a razão é porque os judeus
crucificaram a Cristo em um madeiro inocente, e os que o recebem em pecado crucificam-no
em si mesmos, como notou o apóstolo: Crucifigentes sibimetipsis Filium Dei. Aquela cruz,
porque era cruz sem pecado, era muito mais leve para Cristo; mas esta, junta com os pecados
dos que o crucificam em si mesmos, é muito mais pesada, muito mais cruel, muito mais
insuportável. Assim o ponderou o mesmo Cristo na mesma hora em que deu os primeiros
passos para a cruz: Ecce appropinquavit hora, et Filius hominis tradetur in manus
peccatorum (Mt. 26,45): É chegada a hora em que serei entregue nas mãos dos pecadores. -
Dos pecadores, disse, e não dos algozes nem dos tiranos, porque maior horror lhe fazia nas
mãos dos que o crucificaram a circunstância dos pecados que a tolerância dos tormentos.
Deixo as injúrias e blasfêmias, com que a fé do diviníssimo Sacramento é negada dos hereges;
nem falo nas violências e desacatos atrozes das mãos ímpias e sacrílegas com que aquele
Sancta Sanctorum da Divindade tem sido tantas vezes profanado, porque, para prova da
vantagem que buscamos, basta a diferença de dizer com pecados ou sem pecado. Assim,
como uma alma em pecado é o inferno do inferno, assim o ventre virginal, onde nunca houve
pecado, era o paraíso do paraíso. Logo, não só foi maior fineza sujeitar-se Cristo no
Sacramento a entrar no peito dos pecadores, mas essa só foi a fineza, porque encerrar-se no
ventre da Mãe sempre santíssima, não foi fineza, senão delícia. No Sacramento do altar
adorado, mas ofendido; no Sacramento do ventre da Mãe, ele e o mesmo ventre sempre
beatificado: Beatus venter qui te portavit.

§V

Terceira parte do sermão: O Sacramento do Rosário e o Sacramento do Altar.


24 Crucificam de novo ao Filho de Deus em si mesmos, e o expõem ao ludíbrio (Hebr. 6,6).
228
Semelhança entre um e outro sacramento. A presença de Cristo na Eucaristia e na parte
mental do Rosário. A sentença de Salomão sobre o curso do Sol, figura dos mistérios da vida
de Cristo. O curso do Sol divino e os devotos do Rosário. Os signos do Zodíaco nos mistérios
do Rosário.

136. Comparado com tanta vantagem o Sacramento do Altar com o Sacramento do


Evangelho, resta comparar o Sacramento do Rosário com o Sacramento do Altar, comparação
em que a vantagem parece dificultosa. Mas, como é obra em que o Filho de Deus pôs a
matéria, e a Mãe de Deus deu a forma, não será impossível. Comecemos pela semelhança, que
é o fundamento da comparação, e acabaremos pelas diferenças, donde se poderá coligir a
vantagem. É muito parecido o Sacramento do Rosário com o Sacramento do Altar, ambos
santíssimos. Em quê? Não em outra proporção - porque não havemos de mudar a idéia - senão
na mesma que ponderamos entre o Sacramento do Altar e o Sacramento do Evangelho. Se
naquele sagrado mistério está todo Cristo em toda a hóstia, e todo em qualquer parte, no
Rosário passa o mesmo, e não invisível, senão visivelmente. O Rosário, como todos sabem,
consta de duas partes: uma mental e outra vocal; na mental, que são os mistérios, em qualquer
parte está todo Cristo; na vocal, que são as orações, em qualquer parte está todo o Rosário.
137. Estar todo Cristo em qualquer parte do Rosário mental, é coisa tão manifesta que
a vêem os olhos. O que medita o Rosário na parte mental são os mistérios da Vida, Morte, e
Ressurreição de Cristo; e nenhum mistério há de todos quinze em que Cristo não esteja todo:
todo na substância, posto que dividido e diverso nos acidentes. Dividi em partes os tempos, os
lugares e os mesmos períodos da vida de Cristo, e não me dareis parte alguma em que não
esteja todo. Todo no mistério da Encarnação - e só ele todo, porque desde o primeiro instante
foi inteiro e perfeito homem, o que não acontece aos demais-; todo na Visitação, santificando
o Batista; todo no Presépio, aclamado de anjos e adorado de reis, posto que nascido entre
animais; todo uma vez no Templo, presentado a Deus nos braços de Simeão, e todo outra vez,
depois de perdido, achado entre os doutores. E porque nesta vida, ainda que seja do mesmo
Deus, não há gostos sem pesares, se destes mistérios, que foram os Gozosos, passarmos aos
Dolorosos, todo no Horto suando sangue, todo no Pretório atado à coluna, todo coroado de
espinhos, todo com a cruz às costas, e todo pregado e morto nela. Estes são os dois acidentes
de que se compõe toda a vida humana, que por isso S. Paulo os dividiu somente em gozosos e
dolorosos: Gaudere cum gaudentibus, flere cum flentibus25. Mas, porque o mesmo Cristo com
sua morte nos mereceu outra segunda vida, que é a imortal, também esta tem outros acidentes,
que são os Gloriosos, de que se compõe a terceira parte do Rosário, e em todos e qualquer
parte deles temos igualmente a Cristo todo. Todo ressuscitado, todo subindo ao céu, todo
mandando de lá o Espírito Santo, todo recebendo em triunfo a sua gloriosíssima Mãe, e todo
com toda a Santíssima Trindade coroando-a em trono de suprema majestade por Rainha do
céu e da terra e Senhora universal de homens e anjos.
138. Ouçamos agora a Salomão que, no curso e círculo que faz o Sol, reconheceu
todos estes mistérios e sua variedade, como nós também fazemos na volta que imos dando ao
círculo do Rosário: Oritur Sol et occidit, et ad locum suum revertitur; ibique renascens, gyrat
per meridiem (Ecl. 1,5 s): Nasce o Sol no oriente e morre no ocidente; mas, depois de morto e
estar debaixo da terra, torna outra vez a renascer e continuar seu curso. - E que Sol é este
senão aquele primeiro planeta, fonte de toda a luz: Quae illuminat omnem hominem
venientem in hunc mundum26 - o qual, debaixo dos acidentes do Sol que vemos, consagrou,
como em um sacramento natural, o curso, os movimentos e os mistérios de sua primeira e

25 Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram (Rom. 12,15).
26 Que alumia a todo o homem que vem a este mundo (Jo. 1,9).
229
segunda vida, já nascido, já morto, já ressuscitado, que são as três partes ou terços de que se
compõe o Rosário: Oritur sol, a primeira; et occidit, a segunda; et ad locum suum revertitur,
ibique renascens, a terceira27. Não é pensamento meu, senão comento e aplicação de
Olimpiodoro: Christus velut Sol ortus est in nativitate, occidit in morte, rursus ortus, et velut
renatus est in resurrectione28. Nos mistérios da Encarnação e nascimento esteve Cristo como
Sol coberto de nuvens, porque a nuvem da humanidade encobria os raios da divindade; nos
mistérios da Paixão e da Cruz esteve como Sol eclipsado com as sombras funestas da morte e
total escuridade da sepultura; nos mistérios da Ressurreição e da subida ao céu esteve como
Sol claro e resplandecente no meio-dia, desfeitas totalmente as nuvens, e sumidas e
aniquiladas as sombras; mas, o Rosário e seus devotos - como a milagrosa flor do heliotrópio
- que fazem? Vão seguindo sempre e acompanhando ao divino Sol em todos estes passos, e
revestidos sempre - que é mais - dos mesmos acidentes. Nos Gozosos gozando-se, nos
Dolorosos doendo-se, nos Gloriosos gloriando-se, e semelhantes em tudo a quem em todos se
lhes deu todo.
139. Duvidam aqui e disputam os padres e expositores, se fala Salomão neste texto do
círculo que faz o Sol cada dia saindo e tornando ao Oriente, ou do curso que faz cada ano
dentro dos trópicos, visitando e detendo-se em todos os signos do zodíaco. Os dois Gregórios,
Taumaturgo e Niceno, entendem o lugar do círculo de cada dia; S. Jerônimo e Teofilato, do
curso de cada ano, e uma e outra sentença têm por si grandes matemáticos. Outros autores,
porém, conciliam e abraçam ambos estes sentidos do texto, entendendo-se de um e outro
curso do Sol. E o mesmo fazem melhor, e com mais certeza que todos, os devotos do Rosário.
Os devotos do Rosário? Pois como? Que tem que ver o Rosário com o Sol, ou no círculo de
cada dia, ou no curso de cada ano? Muito, e por modo muito admirável. Não dissemos que
debaixo dos acidentes deste Sol natural e visível representou e sacramentou Cristo todo o
curso, movimentos e mistérios de sua vida mortal e gloriosa? Sim. Pois, assim como o
zodíaco do Sol natural se compõe de doze signos, assim o Sol divino tem outro zodíaco mais
alto e mais dilatado, que se compõe e reparte em quinze sigilos, que são os quinze mistérios
do Rosário. E assim como o Sol corre e visita o seu zodíaco nos doze meses do ano, assim
Cristo correu e aperfeiçoou o seu dando luz e calor ao mundo, não menos que em espaço de
cinqüenta e oito anos, que tantos se contaram desde o dia de sua Encarnação, que foi o
primeiro mistério, até o dia da Coroação de sua gloriosa Mãe, que foi o último. E os devotos
do Rosário, com maravilha que se não vê no céu, conciliam, como dizia, todo este curso do
divino Sol, e todos os passos e espaços deste tão dilatado zodíaco dentro do círculo natural de
um só dia, porque o círculo do Rosário, que cada dia rezam, os inclui, abraça e compreende a
todos. E basta isto? Não basta. Porque ainda lhe falta a maior propriedade, que é estar Cristo
neste seu zodíaco, não só todo em todos os signos, que são todos os quinze mistérios, senão
todo em qualquer parte de cada um.
140. Os signos do zodíaco no nosso entendimento são umas apreensões de figuras
várias, que só consideramos mentalmente; e no céu são certo ajuntamento de estrelas, de que
se compõem os mesmos signos, e por isso se chamam constelações. E as estrelas, que são?
São uns espelhos do Sol, em que o Sol, não em parte, senão todo, nem outro senão o mesmo,
de tal sorte se divide e multiplica, que em toda a constelação está todo, e em qualquer parte ou
estrela dela todo, e todo em cada uma alumia, e todo em cada uma influi, obrando diferentes
efeitos no mundo, segundo a diversa natureza de suas próprias qualidades. Tais são no
zodíaco do Rosário os mistérios de que se compõe. Considera-os mentalmente o nosso
entendimento, apreendendo e representando ao mesmo Cristo em diversos tempos, lugares,

27 O Sol nasce, e se põe e torna ao lugar donde partiu, e aí renasce (Ecl. 1,5 s)
28 Olimpiodorus in Commentar.
230
idades e ações, como em diferentes figuras, tão várias como são as de sua infância, paixão e
glória; e não só está Cristo todo em todos os mistérios, senão todo em cada um, e todo em
cada parte dele, e todo alumiando, e todo influindo, porque, segundo os diversos motivos de
gosto, de dor e de glória, primeiro, com os raios de sua luz, alumia os entendimentos, e
depois, com a eficácia de suas influências, move e afeiçoa as vontades. Assim o Sol todo em
todo, e todo em qualquer parte no seu zodíaco; assim Cristo todo em todo, e todo em qualquer
parte no Sacramento do Altar; e assim todo em todo, e todo em qualquer parte no Sacramento
do Rosário.

§VI

Presença de Cristo na parte vocal do Rosário. Qual é a razão por que a Hóstia e o
Cálix não compõem dois sacramentos, senão um só? Os dois sonhos de el-rei Faraó e as
duas orações de que se compõe o Rosário. Como pode ser que o Padre-nosso e a Ave-Maria
sejam a mesma oração, e o Rosário, nestas duas orações, também um só e o mesmo? A
oração do centurião romano e a oração dos que por ele intercederam.

141. E se na parte mental do Rosário, que são os mistérios, em qualquer parte está
todo Cristo, vejamos agora como na parte vocal, que são as orações, também em qualquer
parte está todo o Rosário. Primeiramente, assim como no Sacramento do Altar, da Hóstia, em
que está o corpo, e do Cálix, em que está o sangue de Cristo, se compõe um só Sacramento,
assim no Rosário vocal, da oração do Padre-nosso, em que oramos a Deus, e da oração da
Ave-Maria, em que invocamos a sua Santíssima Mãe, se compõe um só Rosário, e pela
mesma razão. Qual é a razão por que a Hóstia e o Cálix, não compõem dois sacramentos,
senão um só? Porque ainda que nos acidentes, e no que mostram, são diversos, na substância e
no que significam, são o mesmo. Quando el-rei Faraó do Egito teve em sonhos aquelas duas
visões tão sabidas, uma das vacas, primeiro grossas e depois macilentas, outra das espigas,
primeiro gradas e depois falidas, chamado José para interpretar estas visões ou sonhos, que
verdadeiramente foram proféticos, respondeu que o sonho do rei era um só: Somnium regis
unum est (Gên. 41,25). Mas, se os sonhos tinham sido dois, e as coisas ou figuras que o rei
vira em cada um deles eram tão diversas, como diz José que eram um só sonho? Porque ainda
que eram dois nos acidentes, era um só na substância, ainda que eram dois no que se vira, era
um só no que significavam. Do mesmo modo no Sacramento, e também no Rosário. No
Sacramento o que se vê na Hóstia e no Cálix, são acidentes e sinais diversos: mas, o que esses
acidentes cobrem e esses sinais significam são o mesmo corpo e sangue de Cristo na Hóstia, e
o mesmo sangue e corpo de Cristo no Cálix; e, por isso não dois, senão um só e o mesmo
Sacramento. No Rosário o que ouvimos em uma oração é o Padre-nosso, o que ouvimos na
outra é a Ave-Maria, e, tomadas pelo que soam, são duas orações diferentes, mas, entendidas
pelo que significam, são uma só e a mesma. E assim como na Hóstia ex vi verborum está o
corpo e não está o sangue, e no Cálix ex vi verborum está o sangue e não está o corpo, mas, o
sangue leva consigo o corpo, e o corpo o sangue, assim na primeira oração do Rosário ex vi
verborum está o Padre-nosso, e na segunda ex vi verborum está a Ave-Maria, mas, o Padre-
nosso também leva consigo a Ave-Maria, e a Ave-Maria o Padre-nosso.
142. Se assim é, bem dito está. Mas parece que não é assim, e com evidência. No
Padre-nosso não há uma palavra que se pareça com a Ave-Maria, na Ave-Maria não há uma
palavra que se pareça com o Padre-nosso; logo, como pode ser que o Padre-nosso e a Ave-
Maria sejam a mesma oração, e o Rosário nestas duas orações também um só e o mesmo?
231
Respondo que sim. Não ex vi verborum, ou por força das palavras, como já disse, mas por
força e por razão do que nelas se pede. O orar propriamente é pedir. E quando o que se pede é
o mesmo, ainda que as palavras sejam diversas, a oração é a mesma. No Padre-nosso fazemos
sete petições a Deus; na Ave-Maria, se bem advertis, não pedimos à Senhora coisa alguma em
particular, senão somente em comum, que rogue por nós: Ora pro nobis peccatoribus: e como
a Senhora não pode pedir ou querer para nós outra coisa nem melhor, nem mais necessária,
nem mais conveniente, nem mais útil, senão o mesmo que Cristo nos ensinou que pedíssemos
a Deus, o que só vimos a pedir na Ave-Maria é, que a Mãe do mesmo Deus interceda com seu
Filho para que nos conceda o mesmo que nós lhe pedimos. Logo, o mesmo que se pede no
Padre-nosso é também o que se pede na Ave-Maria, com que uma e outra oração vêm a ser a
mesma, e nem a intercessão que se acrescenta na Ave-Maria, nem as diversas palavras de que
ela consta bastam para que a oração seja diferente, porque quando quem pede e quem
intercede procuram e solicitam a mesma coisa, posto que o façam por diferentes termos,
sempre a petição é a mesma.
143. Não pode haver melhor prova nem exemplo mais próprio desta verdade, que o
sucesso do centurião. Como o centurião fosse gentio e romano, e não hebreu como Cristo,
para alcançar dele a saúde do moço, que alguns querem fosse seu filho, tomou por
intercessores os sacerdotes da cidade em que vivia e outros seus amigos, também hebreus,
confiando que pelo parentesco nacional que tinham com o Senhor, o obrigariam mais
facilmente a lhe conceder o que tanto desejava. E esta é a mesma razão por que nós na Ave-
Maria, para que a Senhora interceda eficaz e poderosamente por nós diante de Deus, o
fundamos também no parentesco tão estreito que tem com ele, dizendo: Santa Maria, Mãe de
Deus, roga por nós. - Mas, ouçamos as palavras com que o centurião orou a Cristo, e com que
os intercessores fizeram a mesma petição. O centurião disse: Domine, non sum dignus, ut
intres sub tectum meum: sed tantum dic verbo, et sanabitur puer meus (Mt. 8,8): Senhor, eu
não sou digno de que entreis em minha casa; mas, basta que, deste mesmo lugar, com uma só
palavra vossa, deis saúde ao meu enfermo. - E os intercessores, que disseram? At illi cum
venissent ad Jesum, rogabant cum sollicite, dicentes ei: Quia dignus est ut hoc illi praestes:
diligit enim gentem nostram, et synagogam ipse aedificavit nobis (Lc. 7,4 s). Rogaram ao
Senhor com grande instância concedesse ao centurião o que lhe pedia, alegando que era muito
digno daquele favor, porquanto, sendo romano, amava muito a gente hebréia, e, sendo gentio,
lhes tinha edificado uma sinagoga, que era o mesmo que uma igreja. - Pode haver palavras
mais diversas em tudo que estas dos intercessores e aquelas do centurião? Não pode. E
contudo a petição do centurião e a dos que por ele intercediam era a mesma petição, porque
ele para si e os outros para ele, todos pediam a mesma coisa. A petição dos filhos do Zebedeu
e a da mãe não era a mesma? A mesma era, porque assim lho disse Cristo a eles: Nescitis quid
petatis29. Pois isso é o que nós fazemos sem diferença, tanto no Padre-nosso como na Ave-
Maria. No Padre-nosso pedimos como filhos dizendo: Pater noster; na Ave-maria intercede a
Senhora como Mãe, e por isso lhe dizemos: Mater Dei, ora pro nobis; mas, assim nós, como a
soberana Intercessora, todos fazemos uma só oração e a mesma, porque nós pedimos à
Senhora que peça, e a Senhora pede a Deus o que nós pedimos. E, finalmente, desta oração
dividida em duas partes se compõe um só e o mesmo Rosário, como da Hóstia e do Cálix no
altar se compõe um só e o mesmo Sacramento.

§VII

Última propriedade da semelhança. Davi e a oração de cada dia. Distinção entre


29 Não sabeis o que pedis (Mt. 20,22).
232
Verbum e Sermo. De qualquer parte que tomemos o Padre-nosso, e entrarmos nele como um
artificioso labirinto da idéia e mão divina, acharemos que todas as sete petições se contêm
em cada uma, e cada uma em todas sete. As sete petições do Padre-nosso e os sete preceitos
da segunda tábua da lei. A milagrosa virtude de toda a Ave-Maria e de cada uma de suas
partes. Os milagrosos resplendores da humilde donzela de Hungria. Os maravilhosos efeitos
das partes mínimas da Ave-Maria nas vidas de Tomás de Kempis, de Santa Benvenuta, de
Santa Gertrudes, etc. A Virgem sacramentada nas palavras da Ave-Maria. O pensamento
notável do rico avarento. As relíquias da Virgem no Sacramento do Altar.

144. Só resta, para última propriedade da semelhança, que assim a oração do Padre-
nosso como a Ave-Maria, esteja também cada uma toda em toda, e toda em qualquer parte, o
que não parece dificultoso de persuadir, sendo uma e outra oração palavras divinas. Porque, se
as palavras da consagração, por serem de Cristo, têm virtude para fazer que seu corpo esteja
todo em todo, e todo em qualquer parte, as outras palavras divinas, por que não terão igual
eficácia para obrar em si mesmas a mesma maravilha? Davi, falando da oração de cada dia,
qual é a do Rosário: In quacum que die invocavero te, ecce cognovi quoniam Deus meus es30 -
diz assim: In Deo laudabo verbum, in Domino laudabo sermonem31. Quer dizer: que em Deus
tanto louva a palavra como as palavras, tanto as poucas como as muitas, tanto as simples
como as compostas; porque essa é a diferença de verbum a sermo. É verdade que na língua
grega, em que S. João escreveu o seu Evangelho, a mesma palavra com que disse: In
principio erat Verbum32, igualmente significa verbum e sermo, e assim o interpretou o maior
teólogo da Igreja Grega, S. Gregório Nazianzeno, dizendo: Editus ex ilIo Sermo, qui temporis
expers
Effigiem in sese Patris exprimit undique,
Et illi par est natura33.
Porém, os teólogos latinos, posto que não neguem nem possam negar esta propriedade,
atribuem com maior distinção o Verbum ao Filho de Deus antes da Encarnação, e o Sermo ao
mesmo Filho depois de encarnado, porque Sermo rigorosamente diz composição, a qual não
houve senão depois da Encarnação, no composto inefável de Cristo. Suposta, pois, esta
distinção de verbum a sermo, por que diz Davi falando da oração de cada dia, que tanto louva
a Deus pela palavra como pelas palavras, tanto pelas poucas como pelas muitas, tanto pelas
simples como pelas compostas: In Deo laudabo verbum, in Domino laudabo sermonem?
Porque nas orações compostas por Deus, tanto se contém nas muitas palavras como nas
poucas, tanto em todas como em algumas, tanto em toda a oração como em qualquer parte
dela.
145. Vede-o na oração do Padre-nosso, composta de sete petições, nas quais todas sete
se contêm em cada uma e cada uma contém todas sete. Seja exemplo a primeira. Na primeira
petição: Sanctificetur nomen tuum34, pedimos a Deus, como entendem Santo Agostinho, S.
Jerônimo, S. Crisóstomo, S. Cipriano, e todos os Padres, que seja Deus santificado em nós. E
se Deus é santificado em mim, já o reino de Deus veio a mim: Adveniat regnum tuum35,
porque regnum Dei intra vos est36; se Deus é santificado em mim, já eu faço a vontade de

30 Em qualquer dia que eu te invocar, eis que conheço que tu és o meu Deus (SI. 55,10).
31 Em Deus louvarei a palavra; no Senhor louvarei a promessa (Sl. 55,11).
32 No princípio era o Verbo (Jo. 1,1).
33 Nazianz. Carm. 2, in Arcanis.
34 Santificado seja o teu nome (Mt. 6,9).
35 Venha a nós o teu reino (Mt. 6,10).
36 O reino de Deus está dentro de vós (Lc. 17,21).
233
Deus na terra como no céu: Qui facit voluntatem Patris mei, qui in caelis est37; se Deus é
santificado em mim, já lhe posso pedir o pão nosso como meu, porque é pão dos filhos: Panis
filiorum, non mittendus canibus38; se Deus é santificado em mim, eu perdôo e Deus me
perdoa: Dimittite, et dimittemini39; se Deus é santificado em mim, a tentação não me vence a
mim, senão eu a ela: Sed faciet etiam cum tentatione proventum40 ; finalmente, se Deus é
santificado em mim, nenhum mal me pode acontecer, porque de todo estou livre: Non accedet
ad te malum41. E se dermos agora outra volta do fim do Padre-nosso para o princípio, o
mesmo corre por outro modo. Se estou livre de todo o mal, não posso cair em

37 O que faz a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt. 7,21).
38 Pão dos filhos, que não deve ser dado aos cães (Eccles. in Miss. Sacram.).
39 Perdoai, e sereis perdoados (Lc. 6,37).
40 Antes fará que tireis ainda vantagem da mesma tentação (1 Cor. 10,13).
41 Não se chegará a ti mal (Sl. 90.10).

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