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DESCONTAMINAÇÃO DO JULGADO
Resumo: este artigo pretende, após brevíssimas considerações em torno do tema provas
ilícitas, apresentar a teoria da descontaminação do julgado e comentar o inoportuno veto
ao § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008.
1. Introdução
Segundo o disposto no art. 5º, LVI, da Constituição Federal (CF), “são inadmissíveis,
no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Prevendo o direito fundamental à
inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, pretende-se, por via reflexa, a
proteção de outros direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à privacidade, à
intimidade, à vida privada (art. 5º, X), à inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI), à
intangibilidade corpórea (vedação à tortura) (art. 5º, III), ao sigilo de correspondência,
2
Quanto ao conceito de prova obtida por meio ilícito, acesas controvérsias existem em
sede doutrinária2, muito em razão de o legislador ter sido omisso quanto ao tema.
Entende-se, contudo, majoritariamente, que prova ilícita e prova ilegítima são espécies
do gênero prova ilegal. Prova ilegal é aquela obtida ao sacrifício do Direito, seja
material (prova ilícita), seja processual (prova ilegítima), enfim, por violação à lei3.
Posto isto, pode-se conceituar prova ilícita como aquela conseguida por meio de
expedientes contrários ao direito material. Tem-se, como exemplo, no processo penal, a
confissão arrancada a fórceps por tortura. Ou, no processo civil, a prova documental
obtida mediante a violação de sigilo profissional.
Deve-se anotar, ainda, que, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada
(fruits of the poisonous tree), sobre as provas derivadas efetivamente das provas ilícitas
também recai a pecha da ilegalidade, sendo, por isso, igualmente inadmissíveis no
processo4. A matéria ganha regulamentação com nova Lei 11.690/2008 (ver art. 157 e
parágrafos).
Vem se admitindo, noutro contexto, a prova obtida ilicitamente quando aquele que a
produz o faz amparado por alguma causa de exclusão de ilicitude da conduta, a exemplo
do estado de necessidade ou legítima defesa. Nesse caso, a prova ilícita é convalidada,
sendo plenamente válida no processo e podendo influenciar na convicção do
magistrado5.
1
Diz-se “em regra” porque a própria Constituição admite, em determinados casos (investigação criminal
ou instrução processual penal) e preenchidos determinados requisitos (por ordem judicial etc.), a violação
do sigilo telefônico.
2
Sobre isso, conferir NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6.
ed. São Paulo: RT, 2000. p. 157
3
Por todos, ver OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007. p. 309. Conferir, também, na doutrina constitucional, MORAES, Alexandre de. Direito
Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 126.
4
"Fruits of the poisonous tree. (...) Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica — à falta
da lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la — contamina outros
elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos, direta ou indiretamente, das informações
obtidas na escuta." STF, HC 73.351, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 9 5-96, DJ de 19-3-99.
5
“Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos
interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da
3
Traçado este panorama geral sobre as provas ilícitas, encerrasse-se este ponto, citando-
se, com as vênias de estilo, o magistério jurisprudencial do Ministro do STF Celso de
Mello, que guarda muita pertinência com tudo que acabou de ser dito:
antijuridicidade. Afastada a ilicitude de tal conduta — a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar
conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando crime —, é ela,
por via de conseqüência, lícita e, também conseqüentemente, essa gravação não pode ser tida como prova
ilícita, para invocar-se o artigo 5º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da
intimidade (art. 5º, X, da Carta Magna).” STF, HC 74.678, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 10-6-
97, DJ de 15-8-97.
6
Nesse sentido, conferir: SILVA, Ticiano Alves; DANTAS, Rodrigo Tourinho; MASCARENHAS, Oacir
Silva; RIBEIRO, Daniel Leite. Manifesto Contra Lei de Tortura dos EUA. Revista Jurídica dos
Formandos em Direito da UCSal 2006.2. Ano I, n. I. nov./dez. de 2006.
7
“Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º,
LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da
verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade — à
luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira — para sobrepor, à vedação
constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da
investigação ou da imputação.” STF, HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 30-10-01,
DJ de 14-12-01.
8
STF, HC 82.788, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-4-05, DJ de 2-6-06.
4
3. A descontaminação do julgado
Não há, pela própria condição humana, pelas próprias características que revestem
qualquer tipo de interpretação, como garantir-se, no caso, uma pretensa imparcialidade.
Ainda que o magistrado tente a todo custo mantê-la, poderá contrariar
inconscientemente todo o conjunto probatório válido apenas para poder emitir um juízo
de procedência.
Imagine-se, por exemplo9, uma ação ajuizada por uma mulher contra o ex-marido
pedindo indenização pelos danos extrapatrimoniais causados em virtude de
espancamentos e tortura psicológica sofridos por ela durante o casamento. Tendo tudo
ocorrido há anos, a prova dos espancamentos torna-se de difícil obtenção e a tortura
psicológica só é provada por uma testemunha, a empregada doméstica que até hoje
trabalha com a mulher, não tendo a perícia médica chegado a qualquer conclusão
definitiva. Até que a mulher junta gravações ambientais entre ela e o ex-marido em que
fica amplamente comprovado tudo que se disse. Porém, após o conhecimento da prova
pelo magistrado, alega o ex-marido que a mulher que fala na gravação não é a autora,
pedindo, por conseguinte, que a prova seja tida como ilícita, já que feita por quem não
participou da conversa. O juiz ordena perícia, que conclui positivamente ao réu. O
magistrado, então, afasta a prova do processo, em face de sua constatada ilicitude.
9
O exemplo dado é intencionalmente de natureza cível, a se demonstrar a pertinência do tema também
para outros processos, que não o penal. Além disso, parece claro que o exemplo dado repercute também
na esfera criminal, a comprovar mais uma vez a comunicação existente entre processo e direito, e a
constante alimentação feita por este àquele.
5
Não se quer dizer, note-se bem, que o juiz que se baseou na prova
ilícita irá buscar uma sentença de procedência a qualquer custo, ainda
que inexistam outras provas válidas, mas apenas que a valoração
dessas outras provas dificilmente se livrará do conhecimento obtido
através da prova ilícita.
Trata-se de situação que é peculiar à natureza humana, e assim algo
que deve ser identificado para que a descontaminação do julgado seja
plena ou para que a sua descontaminação pelo tribunal elimine- ou
previna- qualquer possibilidade de infecção posterior. Portanto, se o
tribunal decide que uma das provas que a sentença se baseou é ilícita,
o julgamento de primeiro grau deverá ser feito por outro juiz, que não
aquele que proferiu a decisão anterior.10
Por tudo isso que se faz prudente encontrar meios de se descontaminar o julgado, dando
a outro juiz a atribuição de julgar aquela causa que teve prova ilícita afastada.
Acreditávamos- e, com o veto, continuamos a acreditar- que isso poderia ser feito
mediante a declaração de ofício da suspeição do juiz por motivo íntimo, com
fundamento no art. 135, parágrafo único, do Código de Processo Civil, ou nos arts. 97 e
112 do CPP. É a solução que encontramos em nome da justiça, ainda que não seja a
ideal.
O vetado § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008 dispunha que “o juiz que conhecer
do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou
acórdão”.
10
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual de Processo de Conhecimento. 5.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 401. Rendem-se, aqui, loas aos citados processualistas por
serem os únicos autores de obras gerais de processo civil a cuidarem do assunto.
6
Perdeu-se, assim, a oportunidade de inserir no sistema norma de mais alto valor, que,
com certeza, espraiaria seus efeitos para além do processo penal, visto tratar de tema
comum ao processo como um todo. Afinal, onde há as mesmas razões de fato, deve
haver, também e necessariamente, quando inexistente lei específica, as mesmas razões
de direito, sendo de rigor aplicar-se analogicamente11 o novo dispositivo também ao
processo civil e ao processo administrativo.
Mais uma vez, valores caros à ordem constitucional- julgamentos imparciais e justos-
são sacrificados pelo utilitarismo e por imposição de circunstâncias não jurídicas. Toda
a atividade do legislador atualmente é guiada pela celeridade que se deve imprimir à
prestação jurisdicional e à atividade judiciária, o que é bem-vindo desde que não tenha
como preço – alto, que se diga- a desconsideração de princípios estruturantes e
garantísticos do sistema normativo de um Estado que é Constitucional. Torna-se ainda
pertinente, nesse sentido, o que já se disse em outra oportunidade. À época que
proferidas, as seguintes palavras foram direcionadas contra os julgadores da
jurisprudência defensiva, mas encontram felizes destinatários naqueles que alçam a
celeridade à categoria suprema de objetivo maior a ser alcançado pelo Estado:
11
Conforme ensina Paulo Nader, “a analogia é um recurso técnico que consiste em se aplicar, a uma
mesma hipótese não prevista pelo legislador, a solução por ele apresentada para um caso
fundamentalmente semelhante à não prevista”. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 23. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 188.
7
5. Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que o veto ao § 4º do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008
foi inoportuno, por tudo que de importante acrescentaria à temática da prova ilícita e à
justiça nas decisões, que se pretendem imparciais, subsistindo, ainda assim, um modo
de realizar a descontaminação do julgado, vale dizer, a declaração de ofício de
suspeição por motivo íntimo pelo magistrado que conheceu de prova posteriormente
julgada ilícita e desentranhada dos autos do processo.
6. Referências
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 8. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.
12
SILVA, Ticiano Alves. Para além de uma aplicação tradicional do princípio da fungibilidade:
possibilidade de conhecimento do ato “intempestivo” no caso de existência de dúvida fundada sobre a
natureza do prazo de art. 2°, caput, da Lei 9.800/99. Revista de Processo. Ano 32, n. 150, agosto de
2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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