Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
F. Rui Cádima
E procurar perceber porque é que desde Cézanne se abandonou o visual em favor dos
modos lábeis (e audiotácteis) da experiência. E, por acréscimo, problematizar o papel
que tiveram o alfabeto e a tipografia, as mediações simbólicas e tecnológicas, na
atribuição da função emergente do sentido da visão na linguagem e na arte.
Na Grécia, numa primeira fase, a plástica arcaica não é ainda da ordem da mimesis
como viria a ser a escultura imperial em Roma no século de Augusto, ou mesmo a
escultura helenística tardia: «a escultura arcaica grega, fundamentalmente constituída
por imagens de divindades, por deuses antropomorfizados, filiava-se sem dúvida numa
poiesis.» 4
Este é de facto o período em que se começa a notar como que uma progressiva
hemorragia do simbolismo. Fenómeno que não se verificará somente no domínio da
arte. Lévi-Strauss diria (entrevista a Georges Charbonnier): «Un ethnologue se sentirait
parfaitement à son aise, et sur un terrain familier, avec l'art grec antérieur au Vè siècle et
même avec la peinture italienne quand on l'arrête à l'Ecole de Sienne. Là où le terrain
commencerait à céder sous nos pas, ce serait donc seulement, d'une part avec l'art grec
du Vè Siècle, de l'autre, avec la peinture italienne à partir du Quattrocento» 5 .
É pois este movimento da ordem da mimesis sobre a poiesis, que se poderia ver como
um «desperdício dos símbolos da linguagem» (Leroi-Gourhan) ou como pura
«evaporação do sentido da obra» (Gilbert Durand), que nos remete exactamente para a
fundação de um regime disciplinar do olhar, de uma ‘aptidão de ver’ que é em si mesma
uma exclusão.
O novo modo de representação, isto é, este regime analógico (de analogias), emerge do
próprio aristotelismo: «A poética de Aristóteles, que será a Bíblia da estética ocidental
até ao romantismo, repousa essencialmente sobre a noção de imitação. A imitação não é
mais do que a extrema degradação da redundância.» 7
A construção pictural dos Gregos teria respondido à organização da cena fundada sobre
a multiplicidade dos pontos de vista, espécie de multi-linearidade avant-la-lettre (tal
como surgirá, no teatro, a cena politópica antiga e medieval), enquanto que a pintura da
Renascença vai elaborar um espaço centrado («A pintura não é mais do que a
intersecção da pirâmide visível seguindo uma distância dada, um centro fixo e uma
determinada luz» - Alberti) em que o centro coincide com o olho que será justamente
chamado por Jean Pélerin Viator (De Artificialis Perspectiva, 1505) de ‘sujeito’ 8 .
E não basta pensar, como sobre o Quixote, que o romance é o único género a poder
traduzir as tendências evolutivas do mundo em devir e a infinitização do discurso:
«C'est dans le roman seulement que le discours peut révéler toutes ses possibilités
originales et atteindre à des profondeurs réelles.» 13
O final do século XIX e início do século XX bem como os modernismos marcam alguns
dos limites da linearidade, com exemplos que vão, desde a emergência da pintura face à
fotografia e suas consequências, à emergência do cubismo face aos paisagismos do
século XIX, passando pelo cinema com a montagem das atracções de Eisenstein,
passando por James Joyce e indo até Michel Butor ou Jay Bolter.
A segunda metade do século fica, para além do mais, marcada por movimentos
múltiplos desconstruccionistas, da teoria das catástrofes às descontinuidades
foulcautianas.
Mas outros exemplos podem ser referidos no quadro do equilíbrio entre televisão e
narrativa digital: veja-se o «Pyramid Challenge», uma série da Sky Digital, programa
que engloba três componentes distintas: o jogo interactivo, a narrativa interactiva e o
documentário. Veja-se o modelo de ‘autoria’ ‘Storyspace’, de Michael Joyce e Jay
Bolter.
Mas os avanços não são de facto suficientes para falar de um modelo novo de televisão
«(…) intuitivo e simples, facilmente adaptável a qualquer utilizador», como refere
Valinho. Importa então deixar aberta a dimensão politópica, da não-linearidade à multi-
linearidade, mesmo quando, como acontece com Fallout 2, «a narrativa segue, quase
que passo a passo, os modelos clássicos, tanto na construção do herói, quanto na
construção do mito trágico em si (…). Assim, este jogo, pode possuir diversas linhas
narrativas, pode-se dizer até, que a quantidade dessas linhas é infinita. Mas, não importa
quantas voltas e nós essa linha possua, nem quantas linhas estejam a ela ligadas, ela
continua sendo uma linha.» 16.
Depois surgem as primeiras experiências da Time Warner no sistema de pay per view
em Queens e Brooklin, lançadas em Dezembro de 1991. Um terço dos 150 canais de
rede integravam serviços de video on demand, telecompras, serviços financeiros,
informação médica, formação profissional e pay per play - jogos vídeo).
Pouco depois surgia a experiência de Orlando, na Florida, também da Time Warner, Era
um sistema on demand, designado por Full Service Network (FSN). Entre os diversos
serviços podia contar-se o video on demand, jogos video em pleno écran e tempo real,
bases de dados, telecompras interactivas, educação e formação ao domicílio, serviços de
comunicação interpessoal, etc. Foi mais um projecto-piloto que não teve a sequência
desejada, tendo, na mesma altura (anos 1992-93) envolvido um orçamento superior ao
do lançamento de uma estação privada de televisão em Portugal, cerca de 15 milhões de
contos. Com um total de quatro mil lares aderentes, este projecto experimental lançado
por aquele gigante da comunicação, pretendia testar um serviço de televisão interactiva
onde não faltava nada: dos filmes em video-on-demand, que é o serviço de maior
sucesso, aos telejogos. As dúvidas em relação a este sistema interactivo da Time Warner
colocavam-se designadamente em relação à lentidão da rede e à sua alegada frequente
inoperacionalidade (para testes, modificações, estudos, etc.).
Tem-se regularmente chamado a atenção para o facto de se registar uma certa frustração
em relação à anunciada televisão interactiva nos grandes mercados mundiais,
designadamente norte-americanos, europeus, mas também japoneses, australianos e de
Hong-Kong. É um facto que os principais projectos não têm decorrido da melhor forma.
Para a televisão interactiva é ainda claramente o tempo da experiência. A falta de
entusiasmo pela televisão do futuro, fica a dever-se a uma certa descoordenação entre a
inovação tecnológica propriamente dita, as expectativas e capacidades do consumo e a
própria conceptualização e produção de conteúdos para multimédia interactivo. De
facto, os media sedutores mas não transaccionais davam lugar aos media transaccionais
mas pouco sedutores.
O facto é que, definitivamente, «um dia ninguém nos conhecerá melhor do que o nosso
software». E os agentes de Patti Maes, ou outros sistemas inteligentes perseguirão os
nossos hábitos, os nossos comportamentos, os segredos nossos que nós próprios
teimamos em não perscrutar, enquanto consumidores generalistas ou culturais ou
outros, personalizando todo o tipo de oferta, desde os bens de consumo, aos bens
culturais… até às ficções interactivas que de repente nos devolvem a sedução dos novos
media.
Referências bibliográficas
Notas:
1 Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Anti-Édipo, Lisboa, Assírio e Alvim, s/d., p.162.
2 Deleuze/Guattari, op. cit., p. 164.
3 Giovanni Beccati, A Escultura Grega, Lisboa, Arcádia,1965, p.22.
4 Erwin Panofsky, La perspective comme forme symbolique, Paris, Éditions de Minuit,
1976, p.79.
5 Georges Charbonnier, Entretiens avec Lévi-Strauss, Paris, UGE, 1961, p. 69.
6 Charbonnier, op. cit., p.73
7 Gilbert Durand, A Imaginação Simbólica, Arcádia, Lisboa, 1979, p. 35.
8 Citado por Jean-Louis Baudry, «Effets idéologiques produits par l'appareil de base»,
Cinétique, nº 7/8, 1970.
9 José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980, p. 103.
10 José Augusto Mourão, Para uma poética do hipertexto – A Ficção Interactiva,
Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 2001.
11 Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I Vol.,
Cultura Grega, 4ª edição, FCG, Lisboa, 1976, pp. 121-122.
12 Aristóteles, La Poétique, Cap. 9, 51a/b, tradução e notas de Roselyne Dupont-Roc e
Jean Lallot, Éditions du Seuil, 1980.
13 Mikhail Bahktine, Esthétique et théorie du roman, Paris, Gallimard, 1978, p. 409.
14 Marcos Palácios, «Hipertexto, fechamento e o uso do conceito de não-linearidade
discursiva», http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/palacios/hipertexto.html.
15 Patrícia Valinho, «TV Interactiva: ao encontro de um novo utilizador», Observatório
nº 10, Obercom, Lisboa, Dezembro de 2004.
16 Cf. Eduardo Gomes Hulshof, Estrutura da Narrativa do Jogo Fallout 2 -Um estudo
sobre narrativa interativa, http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php?html2=hulshof-
eduardo-narrativa-jogo-fallout.html.
17 Françoise Séguy, Les questionnements des écritures interactives - http://www.u-
grenoble3.fr/les_enjeux/2000/Seguy/index.php