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As Aspas e as Raspas
em Nietzsche e Benjamin

Henrique Antoun

A experiência da cultura e a atividade da história, que caracterizam o indivíduo e a sociedade


de nossa época, costumam ser definidas de modo genérico e pouco claro pelo termo "modernidade".
Nesta, o campo da cultura como experiência é marcado por uma convivência de mundos
disparatados no seu interior, que a todo o momento o ameaçam com o rompimento. Isto porque
esses mundos coexistem em ruptura, sendo inconciliáveis entre si -- tanto em termos individuais
quanto em termos sociais --, fazendo do viver uma prática perigosa e dilacerante, nos limites da
submissão e da autodestruição.
Nas sociedades o campo da cultura é vivenciado como aquele que permite uma certa
invariância -- nos hábitos e nas crenças; que apazigua o indivíduo -- guiando suas práticas comuns;
e que formaliza a sociedade -- orientando suas formações institucionais, configurando deste modo
uma continuidade entre o antes e o agora. Garante assim a sustentação de uma estrutura que gera
um laço entre o passado e o presente, fazendo com que neste último possam se repetir os elementos
e as operações que possibilitam a afirmação ou a manutenção de certos modos de existir. A cultura
tem como elemento mínimo de fixação o símbolo e os sistemas simbólicos implicados em sua
formalização.
A atividade da história como experiência é marcada, na modernidade, pelo enfrentamento e
pela oposição das classes, grupos e indivíduos de forma generalizada. Essa luta se caracteriza por
um sistema de competição e rivalidade, que deve persistir sem resolução para sustentar um erotismo
ampliado na atividade social e individual. Toda uma tecnologia disciplinar é investida na produção
dos indivíduos e das instituições para garantir um máximo de rivalidade pelos mecanismos de
vigilância, e um máximo de obediência pelos mecanismos de punição. A vigilância sustenta um
isolamento individual e institucional na medida em que, como atividade generalizada, não tem foco
nem fixação, encontrando-se pulverizada em todas as relações individuais; e que, como atividade
específica, encontra amplo campo de amparo e foco nas práticas institucionais. A punição — com
sua face positiva de mecanismo de recompensa — garante o engajamento individual nos
dispositivos institucionais, fornecendo a estes um campo pulverizado de atividade e alcance no
tecido social. Deste modo, um sistema fluídico de merecimentos sobrevive, em convivência
problemática, com uma descrença e desconfiança de base nos indivíduos e nas instituições.1
Como atividade, a história é vivenciada pelos indivíduos e sociedades como aquilo que orienta

1 Cf. Michel Foucault, Vigiar e punir, Petrópolis, Vozes, 1977.


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seu movimento e direção, em função dos objetivos e das finalidades que os desejos projetam do
presente para o futuro. Desta forma, produz-se um conjunto de ações encadeadas que regram os
deslocamentos, vinculando-os a operações ampliadas que devem responder às solicitações que os
orientaram. A história tem como elemento mínimo de atividade a técnica e os sistemas tecnológicos
implicados em sua formalização.
A vivência que o indivíduo tem da técnica e do símbolo traz-lhe um entendimento parcial,
marcado pela passividade e negatividade. Isto muda de figura quando entramos em seu campo de
atividade experimental. A vivência abre apenas a dimensão em que a técnica e o símbolo podem
sustentar e manter os indivíduos e a sociedade. Mas a técnica e o símbolo expressam uma atividade
formadora e inventora de tipos individuais e corpos sociais, elas compõem o campo tecno-cultural
produtor do socius, que se gera como elaboração de um meio e seus germes. Numa cultura e numa
história marcadas por crise tão radical, trata-se de pensar esta dimensão produtora do símbolo e da
técnica -- no sentido das relações que os engendram -- para possibilitar a realização de um outro
indivíduo e de uma outra sociedade. Dois pensadores ousaram empreender este caminho, abrindo as
linhas de pensamento que se mostraram as mais fecundas nesse final de século: F. Nietzsche e W.
Benjamin.
Em Nietzsche a modernidade em sua crise é pensada como algo que pode viabilizar uma
cultura do trágico. O símbolo é examinado no seu corpo discursivo, visando uma transformação de
sua produção e de sua prática que realize novas formas de pensar e avaliar, apropriadas às forças
desencadeadas pelo trágico. Em Benjamin a modernidade é pensada como algo que pode viabilizar
uma técnica da catástrofe. A técnica é examinada em seu espírito formador, visando uma
transformação semelhante que realize novas formas de agir e constituir, apropriadas aos corpos
sujeitos ao catastrófico.
Para ambos o homem era uma doença, e o nihilismo e a melancolia marcavam os sintomas
mais inquietantes dessa moléstia -- o ser homem. Todavia, ao invés de combaterem os sintomas,
buscaram eliminar a doença pelo ultrapassamento do homem. Este ir além é encarnado por
Nietzsche na concepção do além-homem que faz do nihilismo uma base, do homem um caminho, e
da doença uma gravidez. Em Benjamin a eliminação passa pela involução da nova barbárie,
tomando a melancolia como base, o civilizado como caminho, pensando a doença como demolição.
A gravidez e a demolição estão implicadas no trágico e na catástrofe, de forma que a eternidade da
vontade de potência produz o nihilismo como efeito de padecimento individual, mas implica a
gravidez como causa da atividade. Por outro lado, a afirmação do eterno retorno gera a melancolia
como causa de padecimento individual, mas implica a demolição como efeito de atividade.

Nietzsche: o discurso e as aspas


As aspas ganham seu importante papel no corpo discursivo de Nietzsche, como elementos
diferenciadores do quem nos discursos. Permitem-no ultrapassar o aforisma como forma de
pensamento superior, na direção de uma avaliação deste, não parcializada, mas rigorosamente
trágica. Assim, as aspas são uma forma de engravidar ilimitadamente o seu discurso, sem com isto
torná-lo crente ou cético, fazendo do nihilismo a sua prova mais radical, onde a um só tempo dá-se
a doença e a cura. O funcionamento das aspas na escrita de Nietzsche é peculiar: elas servem para
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enquadrar os enunciados, fazendo-os agir como corpos e índices de forças enunciativas.2 Se num
discurso tradicional elas delimitam a citação para definir uma autoria, no discurso nietzscheano as
aspas singularizam o enunciado para ressaltar a multiplicidade de suas enunciações, dando a seu
texto um caráter narrativo cinematográfico. Nietzsche procura desta maneira ultrapassar a crítica
filosófica tradicional pela invenção de um novo uso para um recurso estilístico ficcional.
Na filosofia a atividade crítica oscila entre duas formas discursivas clássicas, herdadas de
Platão e Aristóteles. A primeira é o diálogo que encena o conflito de opiniões, com a vitória pré-
determinada daquela que, trazendo uma maior quantidade de dúvidas e questões, esmaga a
adversária com golpes de razão. A outra é o exame que sabatina cuidadosamente os principais
conceitos dos sistemas anteriores, ressaltando seus titubeios e suas imperfeições, para ir
constituindo, nesse movimento, suas próprias posições sobre estes conceitos, através de uma lógica
de linguagem irrespondível. Pela primeira, Platão faz Sócrates conseguir o prodígio de permitir a
um escravo recitar uma dedução geométrica; pela segunda, Aristóteles embaraça Platão e seu
mundo das idéias com uma regressão ao infinito.
Platão e Aristóteles constituem uma univocidade da idéia ou da linguagem, em detrimento da
univocidade do ser. Pois em ambos o símbolo calou a voz das palavras, conquistando a fixidez da
verdade no presente eterno de um logos geometrizado.
Em Nietzsche o corpo do enunciado está sempre marcado pelas aspas de sua enunciação -- o
quem -- , aquelas forças que querem, e geram ou se apropriam dos enunciados que as formalizam.
Os enunciados constituem o corpo de um discurso trágico, onde todos se afirmam e se enfrentam.
Perde-se assim a coerência exclusiva da autoria particular, para ganhar-se a singularidade da
enunciação. Os termos e as proposições ganham uma neutralidade magnífica e assustadora quando
tornam-se enunciados distintos e diversos, revelando-se máscaras que dançam nos tons das vozes
que os enunciam.
No discurso trágico as aspas desaparecem, fazendo surgir da proposição e do termo séries de
enunciados que divergem, distanciando-se uns dos outros de modo tão mais radical quanto mais sua
máscara se assemelhe. Quando Antígona e Creonte se enfrentam, na tragédia de Sófocles, levam sua
divergência a limites inconciliáveis, utilizando as mesmas palavras. São palavras vermelhas de vida
e batalha, de invenção e morte, como Höelderlin percebe em sua tradução clarividente.3 A mesma
palavra, a mesma frase, se pronunciada por Antígona ou Creonte, marcam -- enquanto enunciação --
uma distância abismal, inultrapassável do ponto de vista das forças enunciadoras que lutam e do
campo semântico que geram, dando-lhes sustentação. O diálogo entre Antígona e Creonte não tem a
convergência por foco, e o entendimento que solicita não implica uma conciliação das forças que o
animam, como no diálogo democrático. O que ele procura é, sobretudo, marcar a divergência onde
Antígona e Creonte estão reunidos, e que apenas se explica, apenas é entendida, por uma diferença
que fulgura com outro vigor ao disputarem a mesma máscara -- a forma da lei --, levando essa

2 Cf. Eric Blondel, As Aspas de Nietzsche: Filosofia e Genealogia. In: Nietzsche Hoje? São Paulo, Brasiliense, 1985,
pp.111-119.
3 Sobre a questão das traduções de Höelderlin e sua relação com o trágico Cf. Haroldo de Campos, A Palavra Vermelha
de Höelderlin. In: A Arte no Horizonte do Provável, São Paulo, Perspectiva, 1975, pp.93-97. Neste artigo a visão da
questão filológica como algo que ultrapassa o terreno da lingüística e mergulha no campo metafísico foi claramente
desenvolvido.
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disputa ao máximo dilaceramento pelo uso das mesmas palavras.4 Potência de equivocidade da
palavra sustentando a univocidade do ser. Potência diabólica do símbolo na multiplicidade do
eterno retorno.5 Palavras de sangue onde Dioniso ressuscita, e que vão constituir um discurso
indireto livre sem aspas: frases idênticas para proposições divergentes vão encarnar enunciados que
se distinguem no campo da enunciação sobretudo por seu canto polifônico.
É pela lei que Antígona deve enterrar o irmão -- lei da família e dos deuses. É pela lei que
Antígona não deve enterrar o irmão -- lei da cidade e dos homens. Cumprindo a lei Antígona
enterrou o irmão, lei que faz de todo guerreiro um bravo, digno de honra e louvor. Mas é contra a lei
que Antígona enterrou o irmão, lei que faz dele um covarde e traidor da Cidade. É pela lei que
Creonte condena Antígona e Polinice, lei da cidadania e da democracia. É contra a lei que Creonte
condena Antígona, lei do dever da irmandade e da família. Naquele momento trágico do surgimento
da Polis grega, convivem no campo social essas leis que são de Creonte e de Antígona, da cidade e
da família, dos homens e dos deuses, do cidadão e do guerreiro, como uma mesma Lei: do
dilaceramento, da disjunção e do disparate. Lei de Dioniso e duma cultura trágica regida pela ordem
do diabólico: a lógica do sentido/acontecimento.6
Neste movimento da Lei o limite das aspas torna-se difuso, e a finitude que elas delineiam
ganham o ilimitado de suas divergências. Ainda indicam o limite, mas como um autolimite que o
infinitamente perfeito ganha na multiplicidade ilimitada gerada em suas afirmações. Campo de
forças e de tensão e também campo de imanência.7 O abismo e a distância marcados pelos campos
de enunciação e pelo campo dos enunciados são como que milagrosamente cobertos e ultrapassados
pelo acontecimento e o sentido. Pode-se perceber com clareza, luminosidade nascida dos choques
do confronto, que é uma mesma voz -- a da vontade de potência -- que soa na diversidade das vozes
do coro trágico. Creonte e Antígona tornaram-se uma legião afirmando a compossibilidade
momentânea de convivência de mundos incompossíveis. Mundo onde Adão pecou e não pecou,

4 Cf. J. P. Vernant, Tensões e Ambigüidades na Tragédia Grega. In: Mito e Tragédia na Grécia Antiga, São Paulo,
Duas Cidades, 1977, pp.17-30. Vernant discute principalmente a questão das acepções contrárias que marcam palavras
de autoridade e de direito e que, longe de ressaltar a luta entre teísmo e ateísmo, marcavam a disputa entre dois campos
teocráticos até então aliados.
5 Cf. Gilles Deleuze, Klossovski ou os Corpos-linguagem. In: Lógica do Sentido, São Paulo, Perspectiva, 1974, pp.303-
307. Deleuze discute a transformação kantiana da noção de Idéia -- que faz com que Deus se torne o mestre do
silogismo disjuntivo -- e o uso que Klossovski faz dessa transformação -- retirando-a da função negativa e limitativa que
ganha ao ser atribuída aos corpos -- dando a ela a figura positiva da afirmação. Cada coisa passa a estar aberta ao
infinito dos predicados pelos quais passa e o silogismo disjuntivo atinge um princípio e um uso diabólicos. A disjunção
sendo afirmada por si faz da divergência e da diferença objeto de afirmação pura. Assim, pelo próprio princípio do
silogismo, a divergência ou diferença são objetos de afirmação pura ou então são potência de afirmar.
6 Cf. Ibid. pp.306-307. Deleuze comenta a acepção que a palavra intentio ganha no trabalho de Klossovski. Ela tem
tanto o sentido de intensidade corporal como o da intencionalidade falada. Este duplo sentido faz do signo o rastro de
uma flutuação corporal (intensidade) e do próprio sentido -- enquanto intenção -- o movimento pelo qual a intensidade
visa a si mesma ao visar ao outro, modifica-se ao modificá-lo e volta sobre seu próprio signo. Este seria o movimento
do Mesmo enquanto eterno retorno no entender de Klossovski.
7 Cf. Étienne Gilson, Jean Duns Scot: Introduction a ses Positions Fondamentales, Paris, Libraire Philosophique J.
Vrin, 1952, pp.243-254. Principalmente a questão das distinções formal e modal dos atributos divinos -- o infinito, o
intelecto e a vontade -- em sua relação com as criaturas.
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perdeu-se e salvou-se, ao mesmo tempo, pois é Dioniso quem usa todas as máscaras.8
Para Nietzsche não era mais possível usar o recurso do teatro trágico. A prática democrática
havia se apropriado dele, transformando-o num instrumento de unidade e conciliação. O diálogo na
Polis era guiado pelo espírito de convergência como anulação da diferença. Os discursos
individuais que se enfrentavam num acontecimento eram agora tratados por uma técnica que,
eliminando o divergente em cada discurso particular, constituía pouco a pouco um outro discurso,
feito das semelhanças existentes em todos eles, forçando a sua fusão num único discurso
concordante: o grande Logos do demos e da Polis, produtor do bom senso e do senso-comum.
Podemos, portanto, afirmar que a tragédia inventa uma nova possibilidade para o uso do símbolo e
da técnica, que serve de base à construção do mundo democrático grego da Polis. Mas esse mundo,
procurando fugir do trágico, apresenta-se como senhorial. As aspas sustentam a autoria, mas a
autoria gera a identidade e a semelhança -- que garantem a integridade da forma; e a proporção e a
harmonia -- que definem a composição e a adequação em suas relações. Máquina abstrata
geométrica da unidade do indivíduo, da integridade da pessoa e da identidade do sujeito.9
A tragédia era, realmente, um discurso indireto livre, o discurso vivido na polifonia do coro e
na polipolifonia do herói trágico. O Estado democrático vai dilacerá-la no discurso direto, discurso
repetido que Platão usa para seus diálogos; ou no discurso indireto, discurso relatado que Aristóteles
usa para seu exame.10 As formas da filosofia e os anseios do Estado se sobrepõem à experiência --
vivida no trágico -- da Polis, dos pólos, da multiplicidade, fazendo com que uma cultura trágica da
liberdade se oponha ao governo do comum: democracia e liberdade tornam-se antinômicas nessa
prática.
Ao colocar o problema da cultura na regência do trágico, Nietzsche traz o problema do
pensamento para o campo da linguagem e do discurso -- o que não quer dizer que ele se torne uma
questão de lingüística.11 Produzir um pensamento capaz de impedir a doença no dilaceramento das
forças, capaz de suportar e mesmo de se fortalecer nesta situação, retirando dela uma nova saúde, é
condição para que a cultura da multiplicidade possa florescer de modo afirmativo. Sabemos que
Nietzsche experimentou o aforisma, durante muito tempo, como um modo de pensamento que é
afirmativo sem implicar autoria, sendo aberto a todas as enunciações. O aforisma se presta a todos
os usos, mas de uma maneira peculiar: ele se afirma na medida em que todos os enunciados que
suscita terminam por fazê-lo retornar, como pura diferença e distância intransponível; ele é um
universo naquele ponto singular de sua máxima tensão. Entretanto, se todas as enunciações podiam
dele se apossar, se todos os enunciados podiam atravessá-lo sem que ele se perdesse -- tornando-o o
limite de todas as interpretações e o interpretável por excelência -- , era preciso que fosse gerada
uma instância crítica à altura do desafio que ele inventava. Se o aforisma se oferecia como um
correlato do ser na vontade de potência -- um mínimo de forma de expressão para um máximo de
forma de conteúdo -- a instância crítica deveria se oferecer como a prova encarnada da potência
seletiva do eterno retorno afirmando o ser.

8 Cf. G. Deleuze, Lógica do Sentido, pp.183-186.

9 Cf. J. P. Vernant, As Origens do Pensamento Grego, São Paulo, Difel, 1984, pp.48-95.

10 Cf. M. Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo, Hucitec, 1981, pp.181-182.

11 Cf. G. Deleuze, op. cit., pp.187-190.


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Enquanto trabalhava em A Genealogia da Moral Nietzsche escreve: "ocorre-me tirar a minha


vingança de uma forma que não é das mais belas, por um excesso de dureza".12 Neste livro, seu
método crítico deveria constituir um discurso que fosse a crítica da vontade moral, da vontade fraca,
não em termos transcendentes -- como algo que fala de uma coisa diferente e distante de si --, mas
em termos imanentes. Um discurso impiedoso, onde a vontade moral se expusesse junto com os
mundos que sustentou, sendo golpeada a todo tempo pelas forças afirmativas. Estas últimas
raramente aparecem no texto com sua própria face. Elas usam os símbolos e os enunciados das
forças reativas como máscaras, encenando a história da filosofia e a história da domesticação do
homem como um refúgio insidioso, aonde as palavras efetuam verdadeiras pantominas e revelam as
vozes de seus fantasmas. Então, nos momentos mais inesperados, quando a doença parece ter
tomado todo o texto, a vontade de potência se afirma sob a forma do enigmático. É neste sentido
que as aspas vão exercer um papel essencial, permitindo ao discurso indireto livre ganhar um
correlato na filosofia daquele uso que Dostoievski lhe dera no romance. Ao enquadrarem os
enunciados e ao se multiplicarem por todo o discurso -- não mais como índices de autoria, mas
como máscaras discursivas -- as aspas ligam os símbolos aos seus fantasmas.13 Eles tornam-se
palavras possuídas por vozes -- e por tons -- que são ouvidas nos enunciados, revelando toda a sua
encenação enunciativa. Como na tragédia, é Apolo que habita o texto e conduz as cenas --
significante excessivo, despotismo significante da lei e da ordem moral -- , mas à volta do texto é
Dioniso quem ruge e espreita, conduzindo a encenação. As aspas, fazendo os símbolos se ligarem
aos seus fantasmas, liberam sua potência de simulacro legando-os para Dioniso, que pode assim
fazer perguntas enigmáticas.14 Se no texto o homem superior e o sacerdote se combatem -- com a
vitória incessante das forças reativas -- eles são apenas fantasmas da afirmação do eterno retorno,
que anuncia o além-homem como uma interrogação na inquietude do devir. O filósofo-médico de
Nietzsche revela toda sua dureza: a cura radical da doença consiste em fazê-la sentir seu próprio
gosto. Por isso rasga o discurso com seu bisturi devolvendo-lhe todos os acentos -- todas as
dissonâncias -- para que a música terrestre se execute no ritmo de seus próprios golpes e ao sabor de
seu sangue.

Benjamin: a história e as raspas


As raspas são, para Benjamin, os elementos de diferenciação do quem na história. Permitem-no
ultrapassar a questão do narrador na atividade histórica como alguém limitado a operar com o "o-
que-já-foi" da representação. Respondem ao problema de encontrar uma eternidade na história que,
sem eliminar a equivocidade dialética dos conflitos, revele como nela se afirma a univocidade do
ser enquanto eterno retorno seletivo. A eternidade deve se opor ao falso movimento, espacializado,
no qual ela foi mergulhada e que a transformou no cortejo de vencedores -- essa reconciliação do
espírito consigo mesmo. Ao narrador preso à representação só seria possível duas atitudes:
permanecer ligado às linhas gerais do quadro histórico passado -- procurando copiá-las à distância o
mais fidedignamente possível; ou estender estas linhas para o futuro, através da compreensão de sua
dinâmica, para através deste entendimento participar de seu desenvolvimento -- procurando apressar

12 F. Nietzsche, cit. in. Daniel Halévy, Nietzsche: uma biografia, Rio de Janeiro, Campus, 1989, p.342.

13 Cf. M. Bakhtin, op. cit., p.182.

14 Cf. G. Deleuze, op. cit., pp.217-223.


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a marcha do inevitável e coibir a efetuação de retrocessos. Um passado totalmente determinado e


intocável e um futuro vazio preenchido pelas finalidades do sujeito histórico são as duas ficções
geradas por essa concepção narrativa do tempo histórico.15
Este tempo falsificado correlato dum falso movimento produzem a ilusão de uma história já
pronta na origem ou no fim de seu caminho pré-traçado.16 As raspas -- enquanto cacos e pedaços
que escapam da narrativa vitoriosa ou ressentida produzida pelo embate ruidoso -- vão permitir
pensar não apenas um quadro histórico racional e arquitetônico, mas também uma pintura histórica
expressiva e pictórica.17 O relato do historiador pictórico reduz o monumento à ruínas descobrindo
seus cacos e suas raspas. Pode assim fazer a história do presente que possui um passado
contemporâneo e cúmplice e um futuro de pura espreita e espera. A matéria da história são os cacos,
as mônadas, e seu verdadeiro movimento -- como duração -- é a atividade das forças, em seus
gestos e ações, no presente.18 O espírito é apenas o efeito do que realizam, não lhe cabendo
primazia nem de origem nem de finalidade. Neste sentido, o historicismo falseia a história,
construindo-a como um monumento, cuja constituição narra o progresso da ocupação de um tempo
vazio. Pretendendo apresentar a imagem eterna do passado, o historicismo esvazia o tempo, faz do
movimento uma ilusão e das forças que agem, fantasmas. Concebe a história como um "era uma
vez", o mundo como uma fábula, os homens como atores representando personagens de uma peça
acabada.19
O falso movimento é uma ilusão. Gera-se na imagem monumental que a narrativa do vencedor
faz do seu passado e projeta em seu futuro. Todos os vencedores são eternos, mas a eternidade de
suas ordens pertencem ao futuro vencedor. Porém na duração -- onde o movimento das forças se
atualiza -- , o monumento é reduzido a cacos pelos gestos realizados.20 A ação pertence ao presente
e este, ao se efetuar, faz aparecerem cacos que, como grãos, vão compor as imagens das suas
representações. Entre eles habitam, como raspas inúteis, pedaços que não compõem nem se
encaixam nos monumentos futuros ou nas narrativas históricas. O historicismo zeloso e apressado

15 Cf. Walter Benjamin, Teses sobre Filosofia da História, São Paulo, Ática, 1985, p.161 § XIII. «A história é objeto
de uma construção, que tem lugar não no tempo vazio e homogêneo, mas no repleno de atualidade.»
16 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.161, § XIII. «O progresso, tal como ele se configurou nas cabeças dos socialdemocratas,
era, primeiro, um progresso da própria humanidade (e não de suas habilidades e conhecimentos). Segundo, ele era
infinito (correspondendo a uma infindável capacidade de aperfeiçoamento da humanidade). Terceiro, ele era
considerado como essencialmente inelutável (como algo que avançava por si mesmo, percorrendo um caminho direto
ou em forma de espiral).»
17 Para entender o conceito de Arquitetônico e de Pictórico Cf. Renascença e Barroco, de Heinrich Wölfflin,
Perspectiva, 1989, pp.39-46. Mais tarde Wölfflin vai adotar o termo linear para designar o conceito anteriormente
denominado arquitetônico. Preferimos manter a primeira designação por sua proximidade com o que I. Kant vai chamar
de arquitetônica da razão, lembrando que o termo arquitetura serve tanto para o planejamento de espaços como para o
de sistemas, como no caso da arquitetura de sistemas de computação.
18 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.160, § XII. «O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida em luta. »

19 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.161, § XIV. «[…] para Robespierre, a Roma Antiga era um passado carregado de
atualidade e que ele destacava do contínuo da história. A Revolução Francesa entendia-se como uma Roma retornada.
Citava a Roma Antiga assim como a moda cita uma roupagem pretérita.»
20 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.161, § XV. «A consciência de explodir com o continuum da história é característica das
classes revolucionárias no momento de sua ação.»
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os move para fora da cena para que não perturbem sua unidade e totalização. Estas raspas escapam
à narrativa por não possuírem nela nenhum papel. Surgem como pequenas manias, gestos
inconseqüentes, modas passageiras: usar roupas escuras, errar bebendo nos bares, vagabundear a
ermo pelas ruas.21 Nada que revele a importância dos grandes atos que fazem a história, e que
nascem das ações significativas que se encadeiam para compô-los.
A técnica é vista pelo historicismo como o que objetiva os anseios de liberdade do espírito
humano. Ela proporciona ao homem o domínio das forças da natureza; possibilita-lhe o progresso
como ocupação regrada do tempo vazio; traz, a um só tempo, a regra e a evolução para o homem e a
sociedade, aumentando o seu conhecimento. A técnica civiliza a vida humana com os novos meios
que produz, gerando os grandes sistemas sociais; educa o comportamento individual, disciplinando
as paixões e diminuindo o egoísmo nos trabalhos coletivos. Ela positiva a agressividade animal,
dando-lhe utilidade e sentido de objetividade; faz com que surja um futuro preenchido por projetos
e grandes empreendimentos. Através da técnica as ações se encadeiam e se tornam significativas.
Desta significação surgem os grandes atos que transformam qualitativamente o presente,
aumentando a riqueza do futuro. Com toda esta argumentação o historicismo falseia o movimento
da técnica transformando-o num movimento espacializado que elide o tempo reduzindo-o a uma
variável espacial. Reduz a técnica ao movimento mecânico reversível e lhe fornece objetos
exteriores. Elimina sua instância maquínica, viva, produtora do agenciamento de corpos e afetos.
Na duração o verdadeiro movimento mistura os seres e transforma o mundo de modo
irreversível. Sendo assim, o verdadeiro movimento é melhor percebido como ação de se fazer22 do
que em sua reconstituição na consciência pela representação que dele é feita. Quando a água se
mistura ao açúcar, ou quando o leão devora a presa, algo mudou de forma irreversível no mundo e
nos seres que o habitam. Neste sentido, a duração é o acontecimento, e a técnica é o gesto de cada
indivíduo acontecendo e construindo no seu interior. Se a luta de classes dá-se em torno de coisas
brutas e materiais, é porque nestas se encontram as finas e espirituais.23 Se na técnica o indivíduo se
faz instrumento na ação de se realizar, são as forças que o possuem na duração que podem explicar
o seu gesto. E como o acontecimento une os gestos do mundo de modo irreversível, ele deve ser
entendido dentro da duração em sua relação com este fora que constrói sem cessar. A representação
falseia o movimento, fazendo com que possibilidades que não eram reais enquanto este se dava,
surjam na sua narração. Esta memória psicológica banha o passado de melancolia e o afasta dos
indivíduos que nele se realizaram.24 É diferente da lembrança que surge ao sujeito histórico num

21 Cf. W. Benjamin, Paris do II Império em Baudelaire, São Paulo, Ática, 1985, pp.65-92. Benjamin usa essas três
figuras de acontecimentos aparentemente sem importância em sua própria época para caracterizar os três lances de suas
ações decisivas para a modernidade. A boemia gera Blanqui, o líder da Comuna; a "flânerie" gera Baudelaire, o poeta
da modernidade; e a moda das roupas escura encarna o luto pela derrota da Comuna de Paris no corpo da sociedade.
22 Traduzimos assim a expressão de Henri Bergson en train de se faire com a qual ele diferencia o movimento como
durée -- Duração em nosso texto --, e o falso movimento espacializado.
23 Cf. W. Benjamin, Teses sobre Filosofia da História, p.155, § IV. «A luta de classes, que está sempre ante os olhos
de um historiador escolado em Marx, é uma luta em torno das coisas brutas e materiais, sem as quais não haveria as
finas e espirituais.»
24 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.156, § VII. «Ao historiador ansioso por penetrar no cerne de uma época, Fustel de
Coulanges recomendou que ele deveria, então, tirar da cabeça tudo o que soubesse sobre o posterior transcurso da
história. É impossível caracterizar melhor o método com o qual o materialismo histórico rompeu. É um processo de
empatia. Sua origem é um pesadume do coração, a acedia, que renuncia a se apossar da autêntica imagem histórica que
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instante de perigo: essa pode libertá-lo de ser um instrumento alheio, fazendo-o senhor de sua
própria mudança.25
A história contada após ter sido feita sujeita os homens a uma vitória que não podem encarar
sem horror. Esta história faz a dominação aparecer como um legado que coroa a cada passo o
vencedor. O dominador de hoje celebra sua marcha triunfal sobre aqueles que estão atirados no
chão, mas arrasta neste cortejo uma pilhagem: a dos bens culturais. Estes, enquanto parte do cortejo,
não podem ser rememorados sem horror, pois devem sua existência aos esforços dos grandes gênios
e à anônima servidão de seus contemporâneos. São documentos de cultura e de barbárie.26
A história surge como uma catástrofe única que acumula escombros aos pés do seu Anjo.
Aqueles que esperam contemplar com deleite o passado -- eterna virtualidade onde habita o espírito
-- descobrem desconsolados a tempestade do progresso soprando no paraíso. Acreditavam num
tempo vazio que o progresso ocupava: agora vêem-se lançados na duração, onde o passado é
cúmplice do presente, pois nele se atualiza, sendo por ele realizado. A história como duração é uma
catástrofe que empilha escombros até o céu.27 Acreditar no progresso -- o tempo esvaziado; confiar
num mundo estável e dado -- como uma massa de base amorfa e obediente; servir ao comando dos
mecanismos do corpo -- como um aparelho sem controle: são estes os erros fatais, as ilusões que
fazem com que a história do homem e dos indivíduos se torne o cortejo da escravidão.28 A vida do
homem e da história está envolvida em uma catástrofe que os demole impiedosamente, impelindo-
os para o desconhecido.
Quando os acontecimentos da história se monumentalizam surgem sempre fantasmas, como
uma parcela atualizada do que não pôde se realizar. Quando a Revolução Francesa se transforma em

fugaz fulgura. Entre os teólogos medievais, ela era considerada como a origem da melancolia.»
25 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.156, § VI. «Articular historicamente algo passado não significa reconhece-lo “como ele
efetivamente foi”. Significa captar uma lembrança como ela fulgura num instante de perigo. Para o materialista
histórico, trata-se de fixar uma imagem do passado como ela inesperadamente se articula para o sujeito histórico num
instante de perigo. O perigo ameaça tanto os componentes da tradição quanto seus receptores. Para ambos ele é um só:
sujeitar-se a ser um instrumento da classe dominante.»
26 Cf. W. Benjamin, op. cit., pp.156-157, § VII. «[...] com quem se identifica o historiador do historicismo? A
inelutável resposta é: com o vencedor. Os dominadores num certo momento histórico são, no entanto, os herdeiros de
todos aqueles que alguma vez já venceram. Assim sendo, a identificação com o vencedor acaba toda vez beneficiando o
detentor do poder. Com isso já se disse o suficiente para o materialista histórico. Quem até esta data sempre obteve a
vitória participa da grande marcha triunfal que o dominador de hoje celebra por cima daqueles que hoje estão atirados
no chão. Como era de costume, a pilhagem é arrastada junto no cortejo triunfal. Costuma-se chamá-la de: bens
culturais.»
27 Cf. W. Benjamin, op. cit., pp.157-159, § IX. «O anjo da história deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o
passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula
escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar os
mortos e de reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte
que ele não consegue mais cerrá-las. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas,
enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade.»
28 Cf. W. Benjamin, op. cit., p.159, § X. «Parte do pressuposto de que a rígida crença desses políticos no progresso, a
sua confiança em sua “base nas massas” e, por fim, a servil subordinação deles a um aparelho sem controle, formam três
lados da mesma questão.»
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revolução burguesa e se dissemina na Europa, surge o fantasma do comunismo rondando o


horizonte da história. Estes fantasmas como que introduzem as dissonâncias na sinfonia dos
vitoriosos. Mas tomados em sua abstração real — pura virtualidade — acabam por tornar genérico o
que no presente é sempre singular. A fim de ressaltar essa singularidade, sem trair o movimento
real, Benjamin irá enfocar a época da Comuna de Paris e o golpe de Napoleão III. Ao contrário de
Marx, que através dela procura explicar o mecanismo da história, Benjamin vai perseguir seu tempo
verdadeiro, como ação de se fazer do movimento. Sendo ação de se fazer ele é passagem, fluxo
contínuo que atinge o corpo e obriga o pensamento a pensar. A história como mecanismo é fruto
das três ilusões, assim como o corpo como mecanismo funciona a partir das ilusões bem sucedidas
que a genética e o hábito lhe legam. Na modernidade, onde só os corpos possuem espírito, sem que
um espírito desencarnado paire sobre eles a guiar-lhes os passos, entregar a direção ao movimento
do mecanismo é abandonar-se a um aparelho cego e descontrolado.
Toda uma concepção falseada das faculdades do homem sustenta a dominação. Ao tempo vazio
vai corresponder uma razão que formaliza a apreensão do mundo em termos de sucessão. Inventa
assim para si as questões que organizam o tempo experimentado no mundo. As técnicas são os
meios produzidos para experimentar essas questões e resolvê-las. Às forças, como base amorfa,
corresponde uma vontade que deve se submeter à razão. Enquanto entregue às paixões que a
iludiam, a vontade estava fadada a perder-se. Comandada pela razão ela pode ser satisfatoriamente
preenchida, agindo sobre os meios técnicos que vão progredir nesses movimento. Ao comando dos
mecanismos corresponde um instinto educado pelo progresso. Ele aceita a pressão contínua
exercida sobre si à medida em que, dominando a natureza, satisfaz seus impulsos de conquista e
evita os desprazeres.
O lugar da passagem é onde o tempo pode ser melhor pensado, e a história melhor concebida.
No lugar da passagem os restos não foram varridos, as raspas encontram-se por toda parte, e os
cacos podem ser examinados. A passagem é onde a modernidade ainda é ação de se fazer. O tempo
não está escondido num produto já acabado. Lá estão as caricaturas, com seus pequenos gestos
inconseqüentes e sem significação. São eles os simulacros dos tipos que a história dos vencedores
procura modelizar. Sobre o flâneur -- apesar da despreocupação que ostenta e do errar distraído que
guia seus passos -- parece se esconder a face rapace do animal procurando sua vítima.29
Toda a multidão na ação de se fazer circula pelas passagens, levada por seu movimento. Por
isso mesmo os homens chocam-se ininterruptamente, vivenciando o choque no corpo sob a forma
da pantomina educada; mas ele é experimentado no espírito como a inquietação dos conflitos em
que sua vida está mergulhada. Isto faz o homem comungar com os produtos da Indústria cultural e
compactuar com as instituições que o aprisionam nos choques.30
Uma nova concepção das faculdades se impõe ao tempo da duração, ao movimento na ação de
se fazer, ao gesto que responde à solicitação. A razão não é mais comandante, mas puramente
passagem. Ela leva as sensações do presente ao espírito, como inquietações problemáticas. O
espírito, pela intuição, decide sobre a verdade ou a falsidade dos problemas. A intuição é sua
capacidade de distinguir, nas inquietações, as faces dos problemas que lhe são apresentados. Estas

29 Cf. W. Benjamin, Paris do Segundo Império em Baudelaire, São Paulo, Ática, 1985, pp.65-92.

30 Nestes dois últimos parágrafos julgamos ter constituído uma correlação entre a situação que M. Foucault descreve
em Vigiar e Punir, op. cit., e a que W. Benjamin descobre no ensaio supra citado.
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inquietações são calculadas pela vontade, em termos do mais e do menos das paixões. O instinto
soluciona os problemas efetuando os gestos que a eles vão responder.
A razão como passagem, via e veículo das avaliações, ganha assim uma nova importância. Ela
faz comunicar o corpo e o espírito, a infra-estrutura e a superestrutura, de forma direta, pelas
correspondências.31 Na razão as forças se examinam e se experimentam, podendo configurar
múltiplas formas a partir de suas relações e de seus pontos de vista. Por isto a liberdade está ligada à
inquietação. Ela é como aquelas forças que escapam e não se compõem no cálculo, e também como
os pontos de vista que não pactuam com a dominação. Como raspas, sobras, essas forças podem
elaborar um outro cálculo, diferente daquelas que experimentaram o choque direto do
enfrentamento. É nelas que a intuição aprimora sua capacidade de avaliar os problemas de forma
rápida e adequada. É nelas que o problema pode ser inventado, e colocado de modo a trazer as
soluções para o presente que padece preso a limites. São elas que transformam os limites em
obstáculos contornáveis. Com elas a catástrofe se torna atividade da revolução, que inventa na
inquietação do presente os gestos de sua liberdade.
Narrar o século XIX através da vida de Baudelaire é falar de uma outra vitória, fora do âmbito
da dominação do poder. Em Baudelaire o acontecimento da revolução não foi falseado. Na sua obra
poética todos os que dele participaram falam por suas próprias vozes, revelando seus pontos de vista
nas vidas que constroem. Sua poesia redime o gesto conspiratório de Blanqui, mostrando o mundo
que o suscitou e as caricaturas que o habitavam. Baudelaire produz a si mesmo, impedindo que seus
sonhos se dêem na passividade do sono. É quando todos dormem que ele se esgrima com as forças
que poderiam subjugá-lo, materializando-as em seus versos. Ser sujeito de si mesmo é poder
arrancar este gesto de determinação de dentro da catástrofe onde o mundo se constrói; é descobrir
seus sinais em cada presente, buscando a configuração pela qual a revolução se faz.
O poder é difuso e está em toda parte. Porém o poder não age, apenas reage na cegueira do
mecanismo estimulado. Reage aos gestos miúdos, manias e modas passageiras através dos quais a
revolução realiza a sua atividade. Nestes pequenos gestos, a história tem a forma de mônada que o
pensamento fixou -- transmitindo-lhe um choque cristalizador. A história das mônadas é o oposto da
história monumental: nela, uma vida constituiu o que vai se tornar o signo de uma paralisação
messiânica -- signo da chance revolucionária -- no mesmo gesto miúdo que fez sua liberdade. Ao
salto tigrino no passado, como real virtual do espírito, corresponde o mesmo salto no céu aberto da
história: a ação de se fazer no presente como única eternidade.

31 Sobre este aspecto ver H. Arendt, Homens em Tempos Sombrios, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp.143-
144.

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