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O estudo se divide em duas partes. A primeira parte estabelece o entendimento de terrorismo utilizado no estudo e trabalha com os conceitos teóricos de Clausewitz, de modo a estabelecer as conexões entre o terrorismo e a guerra. Na segunda parte, busca identificar qual a importância atribuída pela missão da Marinha do Brasil ao terrorismo; assim como, compreender a forma como tal fenômeno tem sido percebido e conduzido pela Força. Nesse sentido, são trabalhadas questões relativas às atribuições constitucionais impostas à Marinha do Brasil; à indefinição, por parte do Estado brasileiro, do terrorismo ser enquadrado como atividade de defesa ou de garantia da lei e da ordem; e à percepção da contraposição ao terrorismo, pela Marinha do Brasil, como sendo uma atividade subalterna ou de segunda ordem.
O estudo se divide em duas partes. A primeira parte estabelece o entendimento de terrorismo utilizado no estudo e trabalha com os conceitos teóricos de Clausewitz, de modo a estabelecer as conexões entre o terrorismo e a guerra. Na segunda parte, busca identificar qual a importância atribuída pela missão da Marinha do Brasil ao terrorismo; assim como, compreender a forma como tal fenômeno tem sido percebido e conduzido pela Força. Nesse sentido, são trabalhadas questões relativas às atribuições constitucionais impostas à Marinha do Brasil; à indefinição, por parte do Estado brasileiro, do terrorismo ser enquadrado como atividade de defesa ou de garantia da lei e da ordem; e à percepção da contraposição ao terrorismo, pela Marinha do Brasil, como sendo uma atividade subalterna ou de segunda ordem.
O estudo se divide em duas partes. A primeira parte estabelece o entendimento de terrorismo utilizado no estudo e trabalha com os conceitos teóricos de Clausewitz, de modo a estabelecer as conexões entre o terrorismo e a guerra. Na segunda parte, busca identificar qual a importância atribuída pela missão da Marinha do Brasil ao terrorismo; assim como, compreender a forma como tal fenômeno tem sido percebido e conduzido pela Força. Nesse sentido, são trabalhadas questões relativas às atribuições constitucionais impostas à Marinha do Brasil; à indefinição, por parte do Estado brasileiro, do terrorismo ser enquadrado como atividade de defesa ou de garantia da lei e da ordem; e à percepção da contraposição ao terrorismo, pela Marinha do Brasil, como sendo uma atividade subalterna ou de segunda ordem.
NEGAO E DESENCONTRO Mauricio Bruno de S (Pesquisador Associado do Instituto de Estudos Estratgicos INEST/UFF)
PRIMEIRA PARTE Terrorismo: fenmeno complexo Ao se tratar do terrorismo como fenmeno onde ocorre o emprego da violncia, enfrenta-se uma questo de carter essencial: de que terrorismo est se falando? O termo terrorismo possui inmeros significados dependendo da poca, do local e do interesse de quem o evoca. Walter Laqueur remete luta dos zelotes na Palestina, ocorrida no perodo entre 66 a 73 d.C., para encontrar a primeira manifestao de terrorismo. Um grupo, conhecido como sicarii 1 , que realizava assassinatos de seus inimigos em locais pblicos com grandes aglomeraes, seriam os primeiros praticantes de terrorismo (LAQUEUR, 2003). Por outro lado, o termo terror como referncia a uma conjuntura imposta pelo Estado remete a um perodo muito mais recente: 1793 a 1794, na Frana. Conhecido como perodo de Terror, ele perdurou de setembro de 1793 (promulgao da lei dos suspeitos) at abril de 1794 (Golpe Nove Termidor), quando ocorre a queda de Maximilien Franois Marie Isidore de Robespierre (1758-1794) e o fim do governo revolucionrio (PAZZINATO, 1997). Curiosamente, o Terror, longe de ser visto como uma prtica negativa ou opressiva pelo governo revolucionrio de Robespierre, foi encarado como um esforo necessrio contra as foras contrarrevolucionrias que ameaavam os ideais da Revoluo Francesa. At o momento, apesar dos insistentes esforos empreendidos por Kofi Atta Annan, quando Secretrio Geral, no perodo de 1997 a 2007, a Organizao das Naes Unidas (ONU) no conseguiu estabelecer uma definio que obtivesse o consenso de seus Estados Membros. Mesmo antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, as definies de terrorismo j eram inmeras, como o levantamento feito em 1988 por Schmid e Jongman (1988) demonstrou, ao identificar mais de 100 definies para o termo. Outro aspecto que ronda o termo terrorismo a carga poltica que carrega. Ao se rotular determinado grupo ou indivduo como terrorista, imediatamente lhe imputada uma
1 O termo sicarii decorre da arma preferida e empregada por este grupo, a sica uma espcie de espada curta (LAQUEUR, 2003). 2
viso negativa nenhum grupo se autodenomina como terrorista. Mais do que uma questo meramente legal, o terrorismo uma questo poltica, que estabelece, automaticamente, de qual lado se est. E mesmo assim, os lados podem mudar com o tempo e com a conjuntura em que se encontram. Nesse sentido, Nelson Mandela (1918-2013) um exemplo interessante, uma vez que, s em 2008, deixou de constar na lista estadunidense de organizaes e terroristas em observao 2 , necessitando de permisso especial para viajar aos Estados Unidos (ESQUERDA.NET, 2013). Os terroristas para uns so os guerreiros da liberdade para outros. Assim, torna-se necessrio a adoo de critrios, que permitam identificar um fenmeno ou ato como sendo terrorista. Neste estudo, adotamos os fins e os meios como os parmetros bsicos necessrios para o reconhecimento de um ato ou fenmeno terrorista, como originalmente proposto pelo professor Eugnio Diniz: [...] a maneira mais til de faz-lo definindo-o com relao a seus fins e seus meios, ao mesmo tempo. A considerao dos meios nos ajudar a distinguir a ao terrorista de outras aes cujas finalidades sejam de mesma natureza; e a considerao dos fins nos ajudar a distinguir a ao terrorista de outras aes que empreguem os mesmos meios (DINIZ, 2004, p. 201).
No que se refere ao fim a ser alcanado pelos praticantes do terrorismo, o propsito poltico quase que um consenso entre os estudiosos do assunto. Trata-se de uma busca pelo poder, como bem aponta Bruce Hoffman: Terrorismo, no mais amplo emprego do termo com aceitao contempornea, fundamentalmente e inerentemente poltico. Tambm inelutavelmente sobre poder: a busca do poder, a aquisio do poder, e o uso do poder para alcanar mudanas polticas (HOFFMAN, 2006, p. 2, traduo nossa).
A busca de um propsito poltico pelo terrorista a tomada do poder o diferencia do criminoso, que visa meramente o prprio enriquecimento. Desta forma, mesmo empregando prticas violentas por vezes semelhantes, seus propsitos so eminentemente distintos. O criminoso no visa assumir o controle poltico do Estado, busca que seus negcios ilcitos permaneam operando de forma eficaz e eficiente. Na verdade, mudanas polticas podem at ser prejudiciais aos criminosos, pois isso poderia causar instabilidade na esfera econmica onde atuam. Segundo Laqueur, "H uma diferena fundamental entre crime organizado e terrorismo: as mfias no tm interesse na derrubada do governo e no
2 No que se refere s opes enfrentadas por Mandela na luta contra o apartheid na frica do Sul, observar sua declarao frente Suprema Corte da frica do Sul, em Pretria, em 20 de abril de 1964. A declarao encontra- se disponvel em: <http://www.theguardian.com/world/2007/apr/23/nelsonmandela>. Acesso em: 13 fev. 2014. 3
enfraquecimento decisivo da sociedade; na verdade, eles tm um interesse fixo em uma economia prspera" (LAQUEUR, 1996, p. 26, traduo nossa). Do ponto de vista do Estado, esta tambm uma distino importante, pois implicar na escolha e no emprego dos seus diversos instrumentos de fora, conforme a natureza da ameaa imposta por aquele que se apresenta como transgressor da lei e desafiante do monoplio da violncia do Estado. Como apontamos acima, os fins, de forma isolada, no so suficientes para permitir a categorizao de um fenmeno como sendo terrorista. A chegada ao poder poltico do Estado tambm praticada, por exemplo, pelos partidos polticos legalmente reconhecidos, nem por isso so considerados como terroristas. H a necessidade de mais um parmetro diferenciador: os meios. Terrorismo est inexoravelmente associado violncia; e os meios empregados pelo terrorismo so claramente violentos ou carregam a perspectiva do uso da violncia. Mas como a violncia utilizada para a tomada do poder poltico? O prprio termo terrorismo traz alguma indicao deste processo. Terror e medo no a mesma coisa. J na mitologia grega essa distino era explicitada ao considerarmos os dois filhos resultantes da unio de Afrodite (deusa do amor) e Ares (deus da guerra), e que auxiliavam seu pai nas batalhas; eram eles: Fobos (o medo) e Deimos (o pnico) (HORTA, 2011). O terror, diferentemente do medo, causa uma paralisia, um ficar sem ao. como se as coisas no se encaixassem no plano racional, gerando uma inao temporria. O medo, ao contrrio, j resultado de um processo do campo racional. O terror gera uma desorientao, que para Thornton ocorre quando a vtima no sabe o que teme, quando a fonte de seu medo repousa fora do seu campo de experincia (THORNTON, 1964, p. 83, traduo nossa). Ainda segundo Thornton (1964), o terrorismo possui como alvo de seu processo de desorientao a massa e a resposta esperada a ansiedade. Assim, o meio empregado pelo terrorismo para alcanar o seu propsito poltico a disseminao generalizada do pnico e terror na populao. Nossa proposta neste estudo no desenvolver uma definio para terrorismo, mas indicar, claramente, a que fenmeno nos referimos ao utilizarmos o termo terrorismo 3 . Neste sentido e de posse destes dois elementos bsicos (fins e meios) podemos expor nosso entendimento de terrorismo como:
3 Para um maior detalhamento do entendimento de terrorismo utilizado neste estudo, observar o Captulo 2 de S, 2011. 4
[...] o emprego ou ameaa de emprego da violncia, de modo a incutir pnico e terror em um grupo alvo, a fim de alcanar propsitos polticos limitados e/ou obter aceitao e apoio de um grupo a que se deseja influenciar, de forma a alterar a relao de foras em favor do ator que emprega o terrorismo para, no futuro, alcanar seus propsitos polticos mais amplos 4
(S, 2011, p. 77).
Como vimos, o terrorismo se utiliza da violncia para alcanar um propsito poltico. Cabe nos debruarmos com maior vagar sobre esta frmula, de modo a podermos identificar a natureza deste fenmeno. Este passo reveste-se de especial importncia, pois determinar quais instrumentos de fora do Estado sero empregados em sua contraposio.
A guerra segundo Clausewitz Carl Philipp Gottfried von Clausewitz (1780-1831) foi um dos maiores estudiosos da guerra. Sua abordagem quase filosfica da guerra permanece como um marco terico relevante para todos os que se dedicam ao estudo do fenmeno guerra. Seu propsito era o de entender a guerra, como indica Raymond Aron ao referir-se ao autor do Da Guerra: O que inicialmente me atraa, era o problema filosfico, o esforo para compreender a natureza da guerra, para elaborar uma teoria que no se confundisse com uma doutrina, em outras palavras que ensinasse ao estrategista a compreender sua tarefa sem alimentar a irrisria pretenso de comunicar o segredo da vitria (ARON, 1986, p.13).
Se pudssemos resumir as propostas de Clausewitz para a guerra em duas palavras, elas seriam: Violncia e Vontade 5 . Estes dois elementos orientaram suas construes sobre o fenmeno guerra e consideramos que permanece vlida sua representao da guerra como sendo a de dois lutadores, onde um tenta submeter o outro mediante a fora fsica. A guerra seria como um grande duelo: A guerra nada mais do que um duelo em uma escala mais vasta. [...] A guerra pois um ato de violncia destinado a forar o adversrio a submeter-se nossa vontade (CLAUSEWITZ, 1986, p. 7). Para Clausewitz, a guerra pela guerra seria algo sem sentido. Ele considerou a guerra como um instrumento para um determinado propsito a inteno poltica desejada , como ele mesmo ressaltou: Vemos, pois, que a guerra no somente um ato poltico, mas um verdadeiro instrumento poltico, uma continuao das relaes polticas, uma realizao destas por outros meios. [...] a inteno poltica o fim, enquanto a guerra o meio, e no se pode conceber o meio independente do fim (CLAUSEWITZ, 1986, p. 27).
4 Entendido aqui como sendo a tomada do poder poltico. 5 Para um maior detalhamento da relao Violncia e Vontade de Clausewitz com o terrorismo, observar S, 2013. 5
A guerra, segundo os preceitos clausewitzianos, seria a convergncia do choque de vontades com o emprego da violncia, onde esta convergncia seria devidamente guiada, orientada e limitada por determinados propsitos polticos a que se pretende alcanar. Assim, a Violncia e a Vontade criariam um ambiente prprio, com regras e aes mtuas bem particulares de choques e entrechoques; ao mesmo tempo, o propsito final, que as orienta e condiciona, estaria em um outro ambiente, fora desta intensa interao. Esta dupla natureza da guerra foi percebida e ressaltada por Huntington: O elemento bsico na teoria de Clausewitz o conceito de dupla natureza da guerra. A guerra ao mesmo tempo, uma cincia autnoma, com mtodos e objetivos prprios, e condicionada na medida em que seus supremos propsitos vm de fora (HUNTINGTON, 1996, p. 74).
Os mesmos trs elementos que compem a guerra clausewitziana choque de vontades, violncia e propsito poltico tambm podem ser identificados no fenmeno terrorismo atuando e interferindo tanto em suas aes, como em suas intenes. Segundo nosso entendimento, tal perspectiva nos permite inserir o terrorismo sob a construo de guerra proposta por Clausewitz o terrorismo seria uma modalidade de guerra. Para tornar ainda mais clara esta aderncia do terrorismo com a guerra, torna-se interessante resgatar mais uma das construes de Clausewitz: a Trindade de Clausewitz. Clausewitz considerou que trs elementos deveriam estar em equilbrio para que a guerra pudesse ser um fenmeno autossustentvel no sentido de assumir forma e ter continuidade no tempo. Estes elementos poderiam ser sumarizados como Razo, Emoo e Tcnica, sendo que cada um deles teria um agente correspondente na estrutura do Estado (Governo, Povo e Foras Armadas, respectivamente): A guerra, ento, no apenas um verdadeiro camaleo, que modifica um pouco a sua natureza em cada caso concreto, mas tambm como fenmeno de conjunto e relativamente s tendncias que nela predominam, uma surpreendente trindade em que se encontra, antes de mais nada, a violncia original do seu elemento, o dio e a animosidade, que preciso considerar como um cego impulso natural, depois, o jogo das probabilidades e do acaso, que fazem dela uma livre atividade da alma, e, finalmente, a sua natureza subordinada de instrumento da poltica por via da qual ele pertence razo pura. O primeiro desses trs aspectos interessa particularmente ao povo, o segundo ao comandante e ao seu exrcito, e o terceiro importa sobretudo ao governo. As paixes chamadas a incendiar-se na guerra de preexistir nos povos em questo; a amplitude que assumir o jogo da coragem e do talento no domnio do acaso e das suas vicissitudes depender do carter do comandante e do exrcito; quanto aos objetivos polticos, s o governo decide por eles (CLAUSEWITZ, 1986, p. 30). 6
Era o equilbrio desta Trindade mesmo que um equilbrio dinmico que permitiria que a guerra, como fenmeno social, pudesse ocorrer e se manter. Se pensssemos em uma estrutura fsica que pudesse representar a Trindade, a imagem de um trip atenderia de forma interessante. Perceba que, mesmo variando a altura de cada um de seus ps, a estrutura poderia se manter estvel at determinados limites , apesar do desnvel de sua parte superior. Voltemos, agora, nosso olhar para a frmula, sugerida por Clausewitz, de como se alcanar a vitria e a confrontemos com os elementos da Trindade. Ele sugere que o primeiro passo para a derrota do inimigo reside na destruio de suas foras militares o eixo Foras Armadas de sua Trindade: preciso destruir as foras militares. O que significa que tm de ser colocadas em tais condies que se tornem incapazes de prosseguir o combate. [...] Dos trs elementos [foras militares, territrio e vontade do inimigo] que acabamos de enumerar, so as foras militares que se destinam a defender o pas; portanto, seguindo a ordem natural, so elas que preciso destruir em primeiro lugar; em seguida, o territrio que dever ser conquistado; na seqncia (sic) destes dois xitos, e segundo as foras que disporemos ainda nesse momento, o inimigo ser ento constrangido a assinar a paz (CLAUSEWITZ, 1986, p. 30-31).
Com a eliminao ou comprometimento do elemento Foras Armadas, a Trindade no teria como manter-se estvel um dos ps do trip teria sido removido , levando impossibilidade de continuidade da guerra por parte do oponente. Este o preceito que tem orientado todas as guerras regulares entre Estados a destruio das foras militares oponentes.
Davi e Golias A histria bblica de Davi versus Golias prope uma situao interessante que remete a nosso estudo. Na histria, o filisteu Golias de Get, cujo talhe era de seis cvados e um palmo (BBLIA SAGRADA, 1986, p. 321) aproximadamente dois metros e noventa e dois centmetros de altura , enfrentou o franzino Davi nada mais do que um menino, nas palavras do prprio rei Saul dos israelitas. O desfecho todos conhecem e Golias acabou derrotado por Davi. A histria evoca uma situao onde o mais fraco (Davi) enfrenta um oponente mais forte (Golias). Se Davi aplicasse a frmula apontada por Clausewitz para buscar a vitria, ou seja, enfrentar de forma direta os braos e as armas de Golias o equivalente a sua fora militar , ele seria sumariamente derrotado. Essa opo no era vivel 7
para Davi, nitidamente inferior em fora fsica e em experincia de armas. Davi recorreu a um subterfgio (atingi-lo com uma pedra lanada por sua funda), que tornou toda a fora fsica de Golias irrelevante. O terrorismo surge como uma opo de enfrentamento dos mais fracos do ponto de vista blico, frente aos mais fortes. Impossibilitado de enfrentar de forma direta as foras militares superiores de seu oponente, sob o risco do prprio extermnio, o terrorista da mesma forma que Davi , opta por uma abordagem que minimize a superioridade do oponente; atua sobre outro eixo da Trindade de Clausewitz, que no o representado pela Tcnica (ou Foras Armadas, na correspondncia da construo estatal), atua sobre a Emoo (ou o Povo). So sobre as percepes, medos, receios e expectativas que o terrorismo busca atuar e construir sua legitimidade. Mais do que o campo do embate blico e da violncia direta, o terrorismo uma disputa de vontades, que ocorre no ambiente das percepes. Nesse sentido, a alegoria de Davi versus Golias costuma ser evocada para referir-se ao fraco enfrentando o forte. Como anteriormente alertado, neste estudo, no nos aprofundaremos na correlao entre terrorismo e Vontade, pois no s o espao no permite, como no esse nosso propsito aqui. Entretanto, fica o alerta de que caso prossegussemos, o apoio divino de Davi que ao possuir o prprio Deus a seu lado, conduz inexorvel questo: ento quem poderia derrot-lo desde o incio? ofereceria interessantes oportunidades de correspondncia alegrica entre os terroristas e como eles encaram a essncia da causa que defendem. Assim, o que pretendemos destacar nesta primeira parte foi que o terrorismo uma modalidade de guerra irregular e, portanto, abarcado pelo campo de atuao das Foras Armadas de um Estado. Entendemos, tambm, que o terrorismo um fenmeno plenamente aderente lgica da guerra concebida por Clausewitz e que tal modelagem permanece vlida e atual.
SEGUNDA PARTE A imposio constitucional Definido o entendimento do termo terrorismo, podemos voltar nossa ateno de estudo para o caso brasileiro; mais especificamente, para a Marinha do Brasil como Fora Armada. A Constituio Federal de 1988 estabeleceu, em seu artigo 142, as atribuies constitucionais das Foras Armadas (FA): 8
Art. 142. As Foras Armadas, constitudas pela Marinha, pelo Exrcito e pela Aeronutica, so instituies nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da Repblica, e destinam-se defesa da Ptria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (BRASIL, 1988).
Podemos dividi-las, de forma resumida, em duas: (1) defesa da Ptria; e (2) garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem. Como a garantia dos poderes constitucionais so garantidos pela aplicao da prpria lei e pela manuteno da ordem, podemos considerar, para efeito deste estudo, a atribuio (2) como garantia da lei e da ordem (GLO). Cabe destacar, que a Constituio Federal no estabelece uma hierarquia entre as atribuies constitucionais das FA. A defesa da ptria no apresentada como prioritria em relao GLO e vice versa. Ao no ressaltar tal distino hierrquica, a Constituio acaba por reforar sua igualdade de importncia tanto a defesa da ptria, como a GLO esto em um mesmo nvel de prioridade, segundo o texto constitucional. Em 1999, as FA receberam, pela Lei Complementar n 97, um novo grupo de atribuies. Como definido no pargrafo nico, do artigo 1, da citada Lei: Sem comprometimento de sua destinao constitucional, cabe tambm s Foras Armadas o cumprimento das atribuies subsidirias explicitadas nesta Lei Complementar (BRASIL, 1999). Assim, as FA possuem dois grupos de atribuies: (a) as atribuies constitucionais (definidas na Constituio Federal) e (b) as atribuies subsidirias (definidas em Lei Complementar). A Lei Complementar n 97 alterada, em 2004, pela Lei Complementar n 117 tambm estabeleceu que o emprego das FA sob a atribuio constitucional de GLO, somente pode ocorrer quando: [...] esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituio Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua misso constitucional (BRASIL, 2004).
Da mesma forma, deve ocorrer a transferncia do controle operacional dos rgos de segurana pblica necessrios ao desenvolvimento das aes para a autoridade encarregada das operaes (BRASIL, 2004). Depreende-se que tais situaes envolvam a perda ou comprometimento da normalidade constitucional, num tal grau de gravidade, que os rgos de segurana pblica seriam considerados incapazes de lidar com os desafios impostos pelo oponente situaes de exceo. 9
Finalmente, cabe destacar que o emprego das FA em zelar pela segurana pessoal das autoridades nacionais e estrangeiras em misses oficiais, isoladamente ou em coordenao com outros rgos do Poder Executivo (BRASIL, 2004) esto regidas pelo artigo 16-A da Lei Complementar n 97 acrescido, em 2010, pela lei Complementar n 136 , que dispe sobre as atribuies subsidirias. Ou seja, o emprego das FA nos chamados Grandes Eventos (Copa do Mundo FIFA 2014 e Olimpadas 2016), por exemplo, estaria mais prximo de sua atribuio subsidiria do que das constitucionais.
Terrorismo: defesa, GLO ou o qu? O site do Ministrio da Defesa assim define a Poltica Nacional de Defesa (PND): [...] o documento condicionante de mais alto nvel do planejamento de defesa e tem por finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da capacitao nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as esferas do Poder Nacional. (MINISTRIO DA DEFESA, 2012).
Tal documento de alto nvel de planejamento aprovado, em 2013, pelo Decreto Legislativo n 373 estabeleceu como uma de suas orientaes: 7.16. imprescindvel que o Pas disponha de estrutura gil, capaz de prevenir aes terroristas e de conduzir operaes de contraterrorismo (BRASIL, 2012b). Ao mesmo tempo, alerta em sua ltima orientao: 7.22. O emprego das Foras Armadas na garantia da lei e da ordem regido por legislao especfica (BRASIL, 2012b). Assim, a PND insere a questo do terrorismo na competncia da Defesa, ao atribuir uma de suas orientaes ao tema, e reafirma a separao entre GLO e Defesa, ao reservar uma legislao especfica, fora da PND, para o primeiro. A PND sugere que o terrorismo seria uma questo de Defesa. Entretanto, a Estratgia Nacional de Defesa (END) cita a questo do terrorismo uma nica vez, no tpico reservado Segurana Nacional que no Defesa, segundo o prprio entendimento da PND , juntamente com as aes de defesa civil, emergncia em sade pblica e de segurana pblica, dentre outras (BRASIL, 2012a). O documento no estabelece nenhuma integrao, seja em suas diretrizes, seja em seus eixos estruturantes, entre o terrorismo e a uma estratgia para a defesa. Quando adentramos na doutrina militar, o terrorismo se torna ainda mais nebuloso. A Doutrina Militar de Defesa (DMD), ao tratar do emprego das FA, estabelece que: 6.1.3 O emprego das FA ocorre nas seguintes situaes: a) guerra So aquelas que empregam o Poder Militar, explorando a plenitude de suas caractersticas de violncia. 10
defesa da Ptria. b) no-guerra So aquelas que, embora empregando o Poder Militar, no mbito interno e externo, no envolvem o combate propriamente dito, exceto em circunstncias especiais, onde este poder usado de forma limitada. garantia dos poderes constitucionais. garantia da lei e da ordem. atribuies subsidirias. preveno e combate ao terrorismo. aes sob a gide de organismos internacionais. emprego em apoio poltica externa em tempo de paz ou crise. outros empregos de no-guerra (MINISTRIO DE DEFESA, 2007, p.43, grifo nosso).
Cabe atentar que, pela DMD, o terrorismo no faria parte de sua atribuio constitucional de defesa da Ptria 6 , mas sim de outra categoria, chamada de no-guerra; e mesmo ao se considerar esta categoria, ainda haveria uma separao entre terrorismo, GLO e atribuies subsidirias. Estas distines no so desenvolvidas ou explicadas na DMD e o terrorismo acaba por ser categorizado como uma situao quase que autnoma, uma vez que no submetido ao atendimento de uma atribuio constitucional de GLO, nem das atribuies subsidirias.
A misso da Marinha Antes de nos voltarmos para a misso da Marinha do Brasil (MB) propriamente dita, devemos nos debruar na lgica que envolve a construo das misses na prpria Marinha. De forma simplificada, a MB adota a seguinte forma de construo para uma misso: Misso = Tarefa + Propsito, sendo que na escriturao, o Propsito, normalmente, vem antecedido da expresso a fim de, que o separa da Tarefa. Os significados de cada termo podem ser vistos abaixo, no QUADRO 1.
QUADRO 1 Conceitos empregados na construo de uma misso pela Marinha Termo Conceito adotado Tarefa uma ao operativa especfica, atribuda por um superior a um subordinado, ou por este assumida, e que, quando implementada apropriadamente, cumpre ou contribui para o cumprimento da Misso do Superior. Sua redao se inicia sempre por um verbo no infinitivo. Efeito Desejado o resultado da ao a ser executada, ou seja, o que se espera da realizao da Tarefa.
6 O termo guerra empregado na DMD refere-se ao entendimento de um conflito entre Estados, seguindo os moldes de um conflito clssico regular. Um detalhamento deste entendimento encontra-se desenvolvido em: S, 2011, p. 148-156. 11
Propsito a finalidade que o Comandante deseja alcanar no intuito de cumprir, integral ou parcialmente, a Deciso do Superior. A sua redao tambm deve iniciar-se, sempre, por um verbo no infinitivo. Misso a Tarefa mais o Propsito, unidos pela expresso a fim de. Assim, ela deve indicar claramente o que fazer (Tarefa) e para que fazer (Propsito). Fonte: MARINHA DO BRASIL, 2006, p. 2-1 - 2-5.
Apresentados a esta frmula de construo, podemos nos voltar para a misso da Marinha do Brasil, que se encontra expressa na parte no sigilosa do Plano Estratgico da Marinha (PEM): Preparar e empregar o Poder Naval, a fim de contribuir para a defesa da Ptria. Estar pronta para atuar na garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem; atuar em aes sob a gide de organismos internacionais e em apoio poltica externa do Pas; e cumprir as atribuies subsidirias previstas em Lei, com nfase naquelas relacionadas Autoridade Martima, a fim de contribuir para a salvaguarda dos interesses nacionais (MARINHA DO BRASIL, 2008, p. 5-1).
Podemos dividir a misso da MB em duas partes. A primeira seria: (a) Preparar e empregar o Poder Naval, a fim de contribuir para a (b) defesa da Ptria. A frmula de construo aparece de maneira clara. Identificamos que o preparo e emprego do Poder Naval 7
comporia a Tarefa (a) a ser empreendida para alcanar-se o Propsito (b) defesa da Ptria. Assim, o Poder Naval, que pode ser resumido como sendo toda a estrutura operacional da Marinha, teria seu preparo e emprego totalmente voltado para a defesa da Ptria. Esta interpretao seria reforada pela atribuio de prioridades, que a prpria Marinha estabeleceu entre GLO e defesa da Ptria: A defesa da Ptria a componente preponderante e essencial da destinao constitucional das FFAA 8 e deve ser o propsito principal da Misso da MB (MARINHA DO BRASIL, 2008, p. 5-1 - 5-2). Voltemos agora nossa ateno para a segunda parte da misso: (1) Estar pronta para atuar na garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem; (2) atuar em aes sob a gide de organismos internacionais e em apoio poltica externa do Pas; e (3) cumprir as atribuies subsidirias previstas em Lei, com nfase naquelas relacionadas Autoridade Martima, a fim de contribuir para (4) a salvaguarda dos interesses nacionais.
7 O Poder Naval compreende os meios navais, aeronavais e de fuzileiros navais; as bases e as posies de apoio; as estruturas de comando e controle, de logstica e administrativa. As foras e os meios de apoio no- orgnicos da Marinha do Brasil (MB), quando vinculados ao cumprimento da Misso da Marinha e submetidos a algum tipo de orientao, comando ou controle de autoridade naval, sero considerados integrantes do Poder Naval (MARINHA DO BRASIL, 2004, p. 1-2). 8 Foras Armadas. 12
Podemos identificar a atribuio constitucional GLO (1) e as atribuies subsidirias (3). S que, diferentemente da (b) defesa da Ptria, tais atribuies aparecem como Tarefas e no Propsitos a serem alcanados. A MB, de forma autnoma, estabeleceu que a GLO e as atribuies subsidirias no so propsitos a serem alcanados em seu esforo de misso, mas sim meras aes a serem empreendidas. E mais, criou um propsito novo: (4) a salvaguarda dos interesses nacionais, que no oriundo da Constituio Federal ou de Lei Complementar. Em sua justificativa de criao deste novo propsito, a MB argumenta, curiosamente, que estaria atendendo aos anseios da sociedade brasileira: contribuir para a salvaguarda dos interesses nacionais. Constatou-se a necessidade de incluir mais um propsito na nossa misso, o qual estivesse relacionado com os anseios da sociedade. Essa percepo deve-se ao fato de que, nos tempos atuais, a sociedade brasileira tem tido uma expectativa diferente daquela que outrora possua em relao atuao das FA, particularmente da Marinha. Paralelamente, a Marinha, no obstante o esforo contnuo de preparo do Poder Naval, de certo modo, no tem obtido sucesso, no que se refere a mostrar-se relevante sociedade e receber dela seu reconhecimento, nem tem conseguido demonstrar a importncia de o Brasil possuir uma Marinha forte. Portanto, para atender a esse objetivo, passa-se a explicitar na misso os interesses nacionais (MARINHA DO BRASIL, 2008, p. 5-2).
Se considerarmos que a MB segue a DMD, o terrorismo estaria fora da situao de guerra esta sim correlacionada atribuio constitucional de defesa da Ptria , estando, portanto, relegado a uma das outras atribuies, que compem a segunda parte de sua misso mesmo que de forma tambm no definida. Pior, esta segunda parte da misso teria, segundo a prpria Marinha, importncia menor do que a primeira. A importncia do terrorismo nas consideraes de prioridade da MB tambm pode ser mensurada pela presena do tema nos seus cursos de mais alto nvel estratgico. O caso do Curso de Poltica e Estratgia Martimas (CPEM), realizado na Escola de Guerra Naval, torna-se um exemplo revelador. O CPEM o ltimo curso de carreira dos Oficiais de Marinha, sendo realizado quando o Oficial se encontra no ltimo posto antes de atingir o Almirantado. Segundo seu currculo, ele visa o exerccio dos cargos da Alta Administrao Naval e afirma que: ao longo do curso, os AO [Oficiais alunos] analisam a conjuntura, o conceito estratgico naval decorrente e as capacidades que a Marinha deve possuir para o atendimento dos objetivos navais de defesa (ESCOLA DE GUERRA NAVAL, 2013, p. 4). Uma verificao do contedo programtico de cada uma das disciplinas deste curso mostrou que nenhuma das disciplinas oferecidas trata ou aborda a questo do terrorismo, seus efeitos ou suas implicaes, tanto para o Poder Naval, como para a formulao e conduo de 13
uma estratgia martima. Outro indicador interessante a lista de temas oferecidos para o Trabalho de Final de Curso do CPEM, resultante das sugestes enviadas pelos rgos de Direo Setorial (ODS) da Marinha, que englobam os Almirantes de quatro estrelas. Em 2013, a lista final de temas oferecidos contou com um total de 153 temas, onde apenas dois tratavam de terrorismo (1,3%) o que tambm no uma garantia de que sejam escolhidos e desenvolvidos, pois o nmero de temas supera o de Oficiais alunos).
Concluso Na primeira parte deste estudo apresentamos como o terrorismo se insere nas consideraes de guerra desenvolvidas por Clausewitz e o entendimento do termo terrorismo por ns utilizado. Quando confrontamos este entendimento com os documentos que norteiam a estratgia de defesa do Brasil e, mais especificamente, com a misso da MB, percebemos que o entendimento de terrorismo por eles adotado no se encontra associado a um conceito de guerra ao menos como Clausewitz o concebeu. Na verdade, a MB no deu sinais de identificar, de forma clara, o que ela entende por terrorismo e, consequentemente, qual a sua participao nos processos para sua contraposio (antiterrorismo e contraterrorismo). A ausncia deste aprofundamento se torna evidente, ao sequer constar do currculo de seu curso de mais alto nvel estratgico. Na segunda parte, identificamos como a misso da Marinha relega o terrorismo para uma categoria de segunda ordem de prioridade j que a primeira a defesa da Ptria, associada a uma guerra clssica entre Estados e, portanto, regular; e no identifica nas demais atribuies um propsito que deva ser alcanado, mas mera tarefa. O terrorismo permanece como elemento rfo do devido enquadramento nas atribuies constitucionais e subsidirias da Marinha. Considerando a conjuntura do sculo XXI, onde o terrorismo surge como elemento fundamental das consideraes estratgicas de qualquer Estado que pretenda se apresentar como lder regional, a postura de nossa Marinha , no mnimo, temerria. 14
REFERNCIAS
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