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Este documento debate as articulações entre gênero, sexualidade e afetos em comunidades ditas "tradicionais", levando em conta experiências de pesquisa com indígenas, quilombolas e outros grupos. Questiona o uso de categorias como "sexualidade" para descrever práticas nesses contextos e como os estudos consideram os efeitos do poder nessas relações. Também reflete sobre como esses grupos constroem discursos sobre afetos e como estes se entrelaçam com instituições locais.
Originalbeschreibung:
Alteridade, genero, sexualidade e afeto _ adriana pisciteli
Este documento debate as articulações entre gênero, sexualidade e afetos em comunidades ditas "tradicionais", levando em conta experiências de pesquisa com indígenas, quilombolas e outros grupos. Questiona o uso de categorias como "sexualidade" para descrever práticas nesses contextos e como os estudos consideram os efeitos do poder nessas relações. Também reflete sobre como esses grupos constroem discursos sobre afetos e como estes se entrelaçam com instituições locais.
Este documento debate as articulações entre gênero, sexualidade e afetos em comunidades ditas "tradicionais", levando em conta experiências de pesquisa com indígenas, quilombolas e outros grupos. Questiona o uso de categorias como "sexualidade" para descrever práticas nesses contextos e como os estudos consideram os efeitos do poder nessas relações. Também reflete sobre como esses grupos constroem discursos sobre afetos e como estes se entrelaçam com instituições locais.
O objetivo deste debate, iniciando as comemoraes dos 20 anos dos Cadernos Pagu, estimular a realizao de novas reflexes sobre as articulaes entre gnero, sexualidade e afetos. Levando em conta experincias de pesquisa com comunidades indgenas, ribeirinhas, quilombolas, extrativistas, populaes rurais e com integrantes de camadas baixas urbanas, propomos uma discusso sobre a vigncia e fertilidade em termos analticos e polticos, de categorias frequentemente imaginadas como prprias de camadas mdias urbanas, brancas ou Ocidentais. Parte significativa dos estudos antropolgicos sobre sexualidade no Brasil est orientada pela hiptese foucaultiana da sexualidade como dispositivo de gesto do Ocidente burgus moderno (e na reelaborao de Judith Butler para pensar corpo e gnero), como criao histrica e geograficamente situada que, no pas, teria marcado as camadas mdias urbanas. Nesse mapa, as ditas sociedades tradicionais e os setores sociais considerados por alguns autores como prximos delas oferecem um campo privilegiado para pensar a sexualidade, na medida em que sugeririam caminhos paralelos ou divergentes dos modelos frequentemente associados a populaes urbanas e de camadas mdias (muitas vezes, implicitamente consideradas brancas). Tomando como referncia esses universos de pesquisa, perguntamo-nos sobre a utilizao de categorias como sexualidade ou erotismo na descrio e conexo de prticas em contextos nos quais tais categorias podem no existir ou no coincidir com as chaves tericas que at certo ponto as produziram. Quais so os aspectos que conduzem ao pesquisador a incluir ou excluir prticas, gestos, palavras, discursos ou performances em categorias como sexualidade ou amor? Existem noes micas anlogas, comparveis, e qual o seu rastro? Que lugar ocupam, ou podem ocupar, questes como Debate alteridade, gnero, sexualidade, afeto 8 homossexualidades e homoafetividades, sexo comercial, transformaes corporais, alteraes nos cdigos de gnero, no prazer sexual, nos estudos realizados na chave do parentesco, da poltica local, ou de outros problemas clssicos dos estudos antropolgicos voltados para as sociedades tradicionais? As articulaes entre gnero e sexualidade colocam outros desafios. No que se refere a gnero, as anlises antropolgicas tm mostrado como essa categoria foi historicamente produzida no mbito do pensamento feminista, gestada como ferramenta analtica que, centrada na anlise da posio subordinada das mulheres, contribusse para a transformao social. A vasta produo realizada posteriormente props leituras mais amplas, em termos dos fluxos de relaes diferenciadas de poder, que deslocaram o olhar dos termos da relao (homem e mulher), refletindo sobre a produo desses termos e das relaes entre eles, nas performatividades e nos trnsitos entre diversas noes de masculinidade e feminilidade. Os trabalhos de Marilyn Strathern e da filsofa e crtica literria Judith Butler foram pioneiros nesse sentido. Paralelamente, a capilarizao dos discursos e efeitos das aes dos movimentos em prol dos direitos humanos e de agncias de desenvolvimento atingem as comunidades tradicionais, convertendo algumas dinmicas marcadas por gnero e prticas sexuais em aspectos negativos, e, s vezes, criminalizados (a interseo de gnero, gerao e etnia um exemplo privilegiado, se pensarmos nas relaes sexuais, conjugais e reprodutivas intergeneracionais em comunidades indgenas). A convergncia entre esses movimentos tericos e polticos torna mais complexas as anlises sobre as articulaes entre gnero e sexualidade e suscita uma srie de questes. Como os estudos sobre sociedades tradicionais, incluindo as anlises etnolgicas, tratam dos efeitos do poder no gnero, na sexualidade e nas relaes entre ambos? Como esses efeitos so considerados nos estudos sobre contato, principalmente quando aparecem no mapa grandes projetos de infraestrutura em Adriana Piscitelli e Jos Miguel Nieto Olivar 9 territrios indgenas, ribeirinhos, extrativistas? Como as pautas dos movimentos de direitos humanos e as exigncias dos programas de desenvolvimento so apropriadas ou reelaboradas, ou como podem s-lo, em contextos percebidos como de significativa alteridade cultural? Como evitar relativismos que diluam o potencial poltico de gnero sem repetir o vis evolucionista que emparelha tradicional com desigual e moderno com equitativo? Afinal, gnero , ou pode ser, uma categoria frtil quando estudamos comunidades tradicionais? Os estudos antropolgicos sobre as articulaes entre sexualidade, gnero e afetos, particularmente quando se trata de amor romntico, tm privilegiado camadas mdias de grupos urbanos. A relativamente menor ateno concedida a essas articulaes quando se trata de grupos ditos tradicionais, rurais, marginais suscita algumas perguntas. Esse aparente silncio estaria vinculado a razes micas, de organizao do campo acadmico e/ou a consideraes polticas? H nesses grupos discursos consolidados sobre diferentes estilos ou modalidades de afetos, incluindo ou no o amor romntico? Como neles se entretecem os afetos nas prticas e instituies atravs das quais se produz localmente o mundo (o casamento, a guerra, a poltica, a natureza, o comrcio, as pessoas)? A partir dessas premissas e indagaes, convidamos diversas/os autores/as a realizar um posicionamento sucinto sobre alguma das perguntas ou sobre o conjunto delas, baseado nas suas experincias de pesquisa ou na reflexo em torno produo sobre esses universos. Observamos que para sua generosa participao, as/os colaboradoras/es no tiveram acesso prvio aos textos das/dos demais participantes. No entanto, as (sugestivas) diferenas nas leituras, perspectivas e abordagens oferecem elementos para colocar em debate as articulaes entre gnero, sexualidade e afetos.