Sie sind auf Seite 1von 106

CONTOS EVANGÉLICOS

De:
Florbela Ribeiro

1
O HÓSPEDE

Aquele hóspede chamou a atenção do povoado.


Ninguém conseguiu ficar indiferente à passagem de Jesus por ali.
Os milagres e a forma eloquente dos seus discursos abriam as bocas
de espanto, o que Ele fazia acontecer e dizia, corria velozmente nos
lábios de todo o povo.
Mas foi Marta quem teve o privilégio de o hospedar em sua casa.
Como boa anfitriã que era não queria descurar nenhum pormenor
para a melhor e mais acolhedora recepção ao Mestre.
Após a casa devidamente limpa e as coisas no seu lugar, iniciou os
preparos da refeição. Seleccionou as melhores carnes, as melhores
ervas aromáticas para o tempero, o melhor vinho, e é claro que não

2
esqueceu a sobremesa. O pormenor da sobremesa era importante.
Teria de ser preparada com todo o requinte e muito carinho.
Sim, porque para fazer uma boa sobremesa é indispensável um toque
de carinho e muita ternura. Dir-se-á até que o doce perde o sabor se
não tiver uma boa pitada de amor.
Para isso, Marta contava com a preciosa ajuda de Maria, para a
elaboração de um almoço tão requintado.
Havia tanto trabalho a fazer ainda, mas… Maria não se aproximava
para a ajudar.
Em vez disso mantinha-se na sala escutando os ensinos de Jesus.
A irresponsabilidade da irmã arreliava Marta, abeirou-se da porta e
acenou-lhe para que esta se aproximasse. Absorta como estava aos
pés das palavras do hóspede especial, Maria nem se apercebeu que a
sua irmã a chamava.
Marta teve que ir ter com ela e em surdina disse-lhe:
- Maria que fazes aqui sentada aos pés de Jesus, quando há ainda
tanto trabalho para fazer?
- Escuto o Mestre, minha irmã, e suas sábias palavras que, tanto
falam ao meu coração – respondeu-lhe Maria.
- Ora, ora Maria deixa-te de desculpas e vem ajudar-me. Palavras que
falam ao coração, pois sim – disse Marta com um ar arreliado – queres
esquivar-te ao trabalho não é verdade?
Maria olhou indignada para Marta e com tristeza disse:
- Não sejas injusta para comigo Marta, sabes bem que sempre te
ajudo e nunca me nego a nenhum serviço, porque haveria de o fazer
hoje? Se ficasses aqui um pouco a escutar o Mestre verias como
tenho razão naquilo que digo.
As duas irmãs tinham diferenças de opinião sobre o aprender e a
azáfama do quotidiano, entre viver de acordo com o que se deve
aprender de Jesus e o cumprir meras tarefas diárias. O que é eterno e
o que tem apenas vinte e quatro horas. Isso as distinguia.
- Maria, Maria, tenho imenso trabalho para fazer, e não quero atrasar-
me na preparação do almoço, queres tu que o Mestre fique com má

3
impressão nossa, vendo que somos más anfitriãs? - Disse Marta com
alguma tristeza na voz.
- Porque diria o Mestre que somos más anfitriãs minha irmã? Acaso
achas que o Mestre está preocupado com isso? Não estará Ele mais
preocupado com o estado do teu coração e da tua alma? - Tentava
Maria fazer compreender a Marta.
- Mas que tens tu hoje Maria, que ainda não me disseste nada com
sentido? É claro que o Mestre espera que o sirvamos com o melhor…
– E a propensão de Marta para entender as coisas do espírito,
começava a ceder.
- Disseste bem minha irmã. – Interrompeu-a Maria. - Mas acredita que
o melhor para o Mestre, não é o almoço que com tanta azáfama estás
a preparar.
No decorrer desta pequena discussão entre ambas, Jesus ia avaliando
aquilo a que cada uma dava prioridade.
Finalmente, Marta resolveu pedir auxílio ao Mestre na certeza de que
Ele a ajudaria, a repreender a sua irmã. Pois já estava cansada de
argumentar e não entendia porque razão não obtinha nenhum
resultado.
- Marta, Marta estás afadiga e ansiosa com muitas coisas. Mas uma só
é necessária: e Maria escolheu a melhor parte, a qual não lhe será
tirada. - Respondeu-lhe Jesus, marcando cada palavra com a sua voz
mansa, mas firme, como um favo de mel.
Marta ficou sem palavras.
Para grande surpresa sua, Jesus não só não atendeu ao seu pedido,
como em vez de repreender a sua irmã, repreendeu-a a ela.
Silenciosa e pensativa, regressou aos seus afazeres.
Bailavam agora na sua mente muitas perguntas, devido ás palavras
do Mestre.
-Que queria Ele dizer com “uma só é necessária”? – Pensou, pensou e
só as coisas terrenas acudiam à sua mente perplexa.
Acaso o trabalho não é necessário? Se ambas permanecessem
sentadas aos pés de Jesus quem faria o serviço? Eram as questões

4
mais naturais que agora bailavam dentro das suas ideias sobre o
assunto.
Maria, apercebendo-se da agitação em que se encontrava a sua irmã,
dirigiu-se-lhe:
- O Mestre não censurou a tua dedicação e o teu zelo ao trabalho. O
problema é que tu procuraste ser-lhe útil sem primeiro buscares
compreender o que Ele deseja de ti. Minha boa irmã se a nossa alma
e o nosso coração estiverem vazios do amor de Deus e do seu ensino,
que proveito tiraremos nós da azafama desta vida?
Marta sorriu ao ouvi-la.

Conto baseado em Lucas 10: 38 - 42

Florbela Ribeiro

REPORTAGEM:
UM PRODÍGIO EM NAIM

5
«Dava tudo para estar ali, no lugar do meu filho» – murmurava a
pobre mãe. E a direcção do seu olhar apontava para o esquife, que
seguia à sua frente.
Depois dos olhos cheios de lágrimas e da boca cheia de prantos, foi o
que pude ouvir distintamente.
Uma grande multidão solidarizou-se com ela nesta dor, fazendo este
doloroso trajecto por entre lágrimas e profundos suspiros.
A desgraça que tão abruptamente batera na porta daquela pobre
viúva era em surdina comentada por todos. Ouvia os mais variados

6
discursos, mas todos eles eram unânimes na preocupação quanto ao
futuro daquela mulher.
-Coitada, não merecia… tanta desgraça…. tanto sofrimento… Como
ainda se aguenta em pé?! - gritava um pequeno grupo de carpideiras,
entre palavras e gritos.
- Sempre tão solícita e tão generosa, que infelicidade lhe estava por
fim reservada… – Reservavam-se os homens a dizer.
-Ah Zilá, Zilá, tinhas uma família tão feliz e tão unida – diziam-lhe as
vizinhas mais próximas, que se revezavam entre si, com carinhos e
abraços, tentando de alguma forma suavizar a dor que, sem piedade,
consumia aquela mulher.
No meio da multidão, entrei na sua pele.
O rosto desfigurado pela dor que dilacerava o coração daquela mãe,
era tão evidente e tão forte, que por breves momentos entrei na sua
pele… Esse sofrimento evidenciava-se claramente no seu caminhar
arrastado e na sua postura curvada.
À imagem daquela dor, que fazia deslizar pelas faces de todos os
presentes lágrimas de pesar, juntava-se até a natureza.
Um vento forte e gélido chicoteava duramente os rostos e as vestes
de toda a multidão, manifestando desta forma solidariedade para
com a viúva.
Mas a certa altura do percurso os olhares desviaram-se do ataúde.
Próximo à entrada da porta da cidade de Naim, passava um homem
jovem a quem uns chamavam Jesus, e outros chamavam Mestre.
Com Ele estavam – dizia-se ali – também os discípulos e,
visivelmente, uma grande multidão.
Todos viram que em dada altura aquele jovem homem, que
aparentava rondar os trinta anos, se moveu em direcção ao ataúde.
Eu que estava próxima, pude ver que uma íntima compaixão
assomava ao rosto daquele a quem chamavam Mestre. O cortejo
abrandou. Os homens que carregavam o esquife pararam a marcha.
- Não chores – disse Jesus à mulher. E aproximando-se tocou o
esquife, ordenando:

7
- Mancebo, a ti te digo: Levanta-te.
Elevaram-se por toda a multidão exclamações de espanto. O rapaz
que estava morto, ergueu-se e sentando-se começou a falar. - Está
vivo, ele está vivo – Gritaram todos em coros uníssonos de forma
eufórica e descontrolada.
- Um grande profeta se levantou entre nós, e Deus visitou o seu povo.
Mas o profeta de que falavam, só poderia ser o Filho de Deus
Altíssimo, e aquela mulher, do modo como se modificara, sabia-o
muito bem.
No meio de todo aquele cenário, que me parecia irreal, olhei para o
rosto transformado da viúva, que chorava convulsivamente agarrada
ao seu filho. Mas o seu choro era diferente. - Meu filho amado, oh
meu filho – balbuciava ela entre o choro e o riso.
O rapaz, que parecia ter regressado de um passado distante, um
pouco atónito, retribuía-lhe carinhos, enquanto a tentava acalmar.
Como era possível… Minutos antes, o povo desfilava em lamentos
pela aflição em que se encontrava aquela mãe, e agora jubilosos
anunciavam o acontecido pelas ruas. O ambiente de pesar
transformou-se na maior manifestação de alegria e felicidade que
alguma vez pude testemunhar, enquanto repórter social. Havia agora
motivos para a vida. Só os pessimistas falavam de morte.
As crianças, que temerosamente se refugiaram em casa quando
avistaram o cortejo fúnebre, saíram para as ruas. Pareciam
andorinhas, cantando e saltando por entre a multidão, anunciando a
chegada da Primavera.
E de certa forma era verdade.

Florbela Ribeiro

A Luz

8
Invadida por pensamentos irrequietos, Zahira varria a pequena
divisão da casa com o olhar.
As suas economias tinham desaparecido de uma forma misteriosa e
imprevisível.
- Ainda há pouco estava aqui – dizia enquanto revirava uma vez mais
o local, onde supostamente deveriam estar dez moedas. Mas o que
contava e recontava, ficava aritmeticamente nos nove.
- Onde estás tu, minha pequenina? – Perguntava com doçura.

9
Quem não soubesse do sucedido, e a ouvisse, diria que Zahira
brincava às escondidas com uma criança.
Aquela dracma representava para ela algo muito precioso, disso não
restavam dúvidas.
O seu tesouro era composto por dez dracmas…era, porque lhe faltava
agora uma.
Visivelmente preocupada, mas com prontidão, deu início aos
trabalhos de busca.
- Primeiro, preciso de luz para alumiar cada recanto da casa, depois
vou varrer o chão com muito cuidado retirando assim a sujidade –
dizia ela ao mesmo tempo que dava andamento aos seus
pensamentos.
- Sei que com boa luz, te vou encontrar mais rapidamente… – a
ternura da sua voz era tanta que parecia que a pequena dracma a
escutava.
No seu semblante não havia temor ou desespero, mas sim
determinação e empenho. Era quase palpável a força que emanava
da coragem.
O desalento não habitava ali.
Começou as buscas ao mesmo tempo que trauteava uma pequena
canção.
Habitualmente a música ajudava-a na concentração e no
desempenho metódico das tarefas. E aquela situação exigia o
máximo dela.
Sem luz, não havia, no entanto, esperança para o reencontro, e ela
sabia disso. Acendeu primeiramente a candeia, para ter a casa
devidamente iluminada.
De seguida arregaçou as mangas e deu continuidade aos trabalhos,
fazendo uma boa limpeza na casa. Boa e exaustiva.
Todos os cantos e recantos tinham que ser varridos, para poder
afirmar no fim que a sua casa se encontrava verdadeiramente limpa.
Para que a poeira pudesse sair mais rapidamente, abriu todas as
janelas e a porta.

10
A sua silhueta esguia movia-se a par com a fina poeira que se erguia
agora no ar.
- Acordaste disposta para as lides hoje, Zahira – observou uma vizinha
ao passar.
- Nem tanto minha boa vizinha, estou à procura da minha pequenina
dracma – informou ela.
-Ah… não me digas que a perdeste…
- Pois perdi, e o pior é que já revirei tudo e não a encontrei.
- Percebo, percebo… com a casa assim iluminada e com essa faxina
geral, não tardarás a encontra-la… – encorajou-a a vizinha.
- Sim, eu sei. E o Senhor também me vai ajudar.
- Claro que vai… – concordou a vizinha enquanto se afastava,
prosseguindo no seu caminho.
Animada retomou os seus afazeres.
Não tardou muito a ouvir-se um gritinho de alegria vindo do interior
da casa.
- Estavas aqui… – disse jubilosa, ao mesmo tempo que se debruçava
para levantar a sua dracma caída – Olá pequenina, com que então
estavas aqui perdida. Olha que se não fosse a luz da candeia
dificilmente te acharia.
Com um visível carinho, limpou-a cuidadosamente e foi repô-la junto
às outras nove. O seu rosto irradiava felicidade e contentamento ao
contemplar o seu pequeno tesouro.
Olhou ao redor, e soltou um sonoro suspiro de alívio.
O seu coração estava no entanto alvoraçado com tanta felicidade que
parecia querer saltar-lhe pela boca.
Fazia-se necessária a partilha daquela bênção maravilhosa, antes que
sufocasse com tanta alegria. Saiu para a rua e começou bater às
portas amigas.
-Alegrem-se comigo porque achei a dracma que tinha perdido… –
anunciava entusiasticamente.
- A forma diligente como procuraste a tua dracma foi recompensada –
disse-lhe a vizinha que momentos antes a tinha visto em grande

11
azáfama.
Todos os que foram convocados festejaram com ela, aquele
momento.
A luz que irradiava do olhar Zahira reflectia agora a emoção do
reencontro.

Florbela Ribeiro

Léia

12
Senti o golpear de um arrepio a percorrer-me todo o corpo, assim que
ouvi a ordem, decretada por meu pai.
O olhar frio e austero que me dirigiu dilacerou-me por completo a
esperança de uma possível argumentação em desabono da sua
decisão.
Fiquei petrificada de tal forma, que da minha boca saiu apenas um
pequeno som.
Foi um quase inaudível gemido, que meu pai interpretou como um
sim. Foi na realidade, o grito de dor que a minha alma não conseguiu
abafar.
O meu futuro acabara de ser traçado ali.

13
A voz do meu pai martelava incessantemente na minha mente,
deixando-me completamente atordoada.
Não me recordo do trajecto que me levou até aos meus aposentos,
mas à minha espera encontrava-se Zilpa, serva do meu pai.
Diante das novas exigências, que me foram impostas, Zilpa passava
agora a servir-me.
De forma desatenta, desviei o olhar para cima da cama, onde se
encontrava o vestido nupcial…
Era belíssimo!
Todo ele elaborado em seda pura e forrado por uma fina e delicada
renda. A soma de todos os detalhes que compunham a sua
confecção, aliada à sua brancura imaculada, tornavam-no perfeito.
Mas naquela hora, não vi nele nenhum encanto…
– Diz-me que estou a sonhar Zilpa, diz-me que nada disto é verdade –
supliquei-lhe eu por entre lágrimas.
- Lamento menina, mas terá de se conformar com a ideia.
- Conformar com a ideia? – Questionei com ironia, pela partida que o
destino me acabava de desferir – conformar-me… ou subjugar-me
totalmente à autoridade do meu pai? E ao seu domínio? – Ela
permaneceu quieta olhando-me em silêncio.
Dentro daquele quarto, não existia hierarquia.
Ali, naqueles aposentos, estavam duas servas de Labão. Zilpa e eu…
Enquanto lá fora no arraial, Jacó e Raquel ingenuamente celebravam
um casamento que não iria ser consumado, eu debatia-me pela nova
realidade que me era imposta. Ser a esposa de Jacó.
Durante sete anos fui uma amiga leal para Jacó e Raquel.
A ele, ajudei-o não só nas tarefas diárias de pastoreio, mas também
planeamos juntos os variadíssimos encontros com Raquel. Fui o
“pombo-correio” dos recados apaixonados.
Para Raquel, fui uma aliada, uma confidente e uma conselheira, dado
ser um pouco mais velha.

14
É certo que nunca tinha vivido um relacionamento amoroso, nem tão
pouco me tinha apaixonado, mas a idade e o amadurecimento próprio
desta, ajudavam-me a ver um pouco mais além.
Desempenhei com lealdade o papel de irmã e amiga, sendo cúmplice
dos olhares apaixonados, que ambos lançavam entre si. Cúmplice e
leal até aquele dia.
Eu, que tinha sido o elo de ligação dos dois durante sete longos anos,
tornava-me agora uma barreira existencial entre ambos.
Era impossível não vestir o papel da traidora, quando após o
demorado banho aromático que Zilpa me deu, enfiei o lindíssimo
vestido nupcial.
- Ah menina Leia, está tão bonita – exclamou Zilpa tentando com esta
observação, animar-me.
- Olha bem para dentro dos meus olhos Zilpa e diz-me… ainda me
achas bonita?
– Está bonita sim, a menina é possuidora de um coração cheio do
amor de Deus. A tristeza e o sofrimento que é visível agora, vai
passar em breve, porque Deus vai ajuda-la – disse Zilpa confiante.
- Disseste bem, Zilpa, só Deus me pode ajudar agora, só Ele…
Gerou-se um longo silêncio, que foi subitamente interrompido pelo
chamamento do meu pai:
- Léia, estás pronta? – Quis saber ele, de lá da cortina que impedia o
acesso aos meus aposentos.
- Sim meu pai, estou pronta – respondi com a voz embargada.
Fustigada por impulsos que oscilavam abruptamente o meu corpo,
devido ao terror daquela hora, gelei completamente.
O meu pai entrou, afastando a cortina que nos separava e mirou-me
de alto abaixo.
Foi humilhante, a sensação de poder e domínio que aquele olhar me
causou. Senti-me tal como um animal que é observado ao pormenor,
antes da compra. O pior de tudo é que estava a ser avaliada pelo
vendedor e não pelo comprador, e o vendedor era neste caso, o meu
próprio pai.

15
A sua visão e astúcia para os negócios, desconheciam limites. O
importante acima de tudo, era o lucro final. Os meios que usava para
os obter eram apenas detalhes de menor importância.
Não teceu nenhum comentário, o que me fez concluir que estava do
seu agrado.
Segurei na mão, que me conduziu aos aposentos onde Jacó
aguardava a noiva prometida.
Lancei-lhe um último olhar, todo ele suplicante, na expectativa que
ele desistisse de dar continuidade ao meu infortúnio.
Em resposta a minha súplica, obtive uma nova ordem.
- Não pronunciarás nenhuma palavra, até que tudo esteja
consumado, caso contrário Jacó saberá quem tu és, ouviste? – O tom
agressivo da sua voz, não me deu alternativa.
Sem forças para mais, limitei-me a consentir com a cabeça.
Jacó já nos aguardava ansioso. Com o meu rosto tapado pelo véu, ele
não teve como saber que não era Raquel quem se encontrava ali.
Foi perceptível a mensagem silenciosa que ambos passaram em
simultâneo
De um lado havia recomendações, do outro, agradecimentos.
O aposento estava a meia-luz, dava para definir as formas do
mobiliário, mas não os seus detalhes, e muito menos a cor.
O meu pai tinha sido meticuloso, cuidando para que nada no seu
plano saísse gorado.
Se da minha parte tivesse existido a ilusão de ser reconhecida por
Jacó, sem ir contra as ordens recebidas, ao me deparar com aquele
cenário, ela ter-se-ia desvanecido.
Não passou desapercebido a Jacó o meu estado trémulo, mas que
dado o momento, ele achou normal.
Mas de normal o momento nada tinha.
Lançou-me um abraço tímido, mas envolvente, e com uma voz suave
e meiga sussurrou-me:
- Vem… não receies, amada minha, porque não irei fazer-te nenhum
mal.

16
Ele tinha na voz o doce encanto, que só o amor é capaz de gerar.
O desgaste emocional, a que fui sujeita, naquele curto espaço de
tempo, causou em mim uma fragilidade sem tamanho.
A doçura e a suavidade da sua voz, aliada a toda a envolvência que
se seguiu, fizeram com que, desfalecesse por completo nos seus
braços.
Entreguei-me assim, sem resistência, ao meu destino.
A manhã despertou envolta em densas neblinas. A brisa que se fazia
sentir lá fora, parecia anunciar a chegada de um Outono bastante
rigoroso.
Mas bem mais inóspita do que o clima, que se fazia sentir lá fora, era
a realidade do meu matrimónio.
O olhar alucinado que Jacó em mim depositou, cravou a minha alma
de dor.
O seu semblante desfigurado e os movimentos descompassados
eram típicos de um animal traído. Traído no amor.
Fitava-me por isso com desconfiança e sem piedade.
Jacó tinha caído numa armadilha…
Eu entendia perfeitamente o quanto ele sofria, mas na altura Jacó
desconhecia isso.
Visivelmente Jacó sofria não só pela dor da traição, mas
principalmente pela dor da perda.
Foram sete longos anos em que trabalhou incansavelmente, para
aquele dia.
Durante todo esse tempo, poetizou aquela noite detalhadamente.
Mas… deparava-se agora com a cilada do seu tio e sogro. O sonho
tornou-se em pesadelo.
A dureza no seu olhar, foi uma mágoa que tive de suportar sozinha.
Afinal, o isco usado por Labão, meu pai, para a sua captura, tinha sido
eu!
Abandonou de forma repentina e violenta os aposentos e foi ao
encontro do meu pai.

17
Jacó estava visivelmente enraivecido, dando-me motivos para recear
o pior.
- Zilpa, Zilpa – gritei.
- Sim menina o que aconteceu? – Perguntou-me aflita, ao ver que a
tristeza do dia anterior continuava estampada no meu rosto.
- Jacó foi ter com o meu pai, foi pedir-lhe contas… Corre, vê o que
sucede e se necessário for chama por ajuda. Vai, anda…! – Gritei-lhe
ansiosa.
Atrapalhada e atónita saiu a correr da minha presença.
Com o olhar fito no nada, e tendo por companhia a minha desventura,
aguardei por notícias. Não demoraram muito.
- Está tudo bem menina, o senhor é muito sábio e rapidamente
acalmou Jacó seu marido – informou-me Zilpa com um ar abatido.
- Acalmou, como? – Perguntei estupefacta, ao mesmo tempo que me
erguia do leito onde me encontrava.
- Sim menina – pronunciou ela, abaixando a cabeça – dentro de sete
dias teremos nova celebração cá em casa
- Nova celebração? De que falas tu Zilpa? Inquiri de novo.
- Labão seu pai, vai dar Raquel em casamento, a Jacó seu marido,
dentro de sete dias.
- Ah?! Diz-me que ouvi mal? – Mas não ouvi. Mais uma vez o destino
me pregava um duro golpe.
A minha reacção causou uma geral apreensão. Até eu me surpreendi
com ela.
Inicialmente submetida a um conúbio por exclusiva submissão às
ordens do meu pai, padeci mais por Raquel, por Jacó do que por mim.
Algo mudara entretanto. Algo completamente novo e desconhecido.
Eu amava Jacó, e só agora tomava consciência disso.
Tornei-me então aborrecida e comecei a olhar Raquel de forma
diferente. Ela era agora para mim uma adversária, detentora de
atributos que me colocavam em desvantagem.
Raquel era possuidora de um formoso semblante e formosa à vista,
isso era inegável.

18
A ajudar a tudo isso, tinha também o facto de ser a mais nova, a
ovelhinha mansa, como carinhosamente meu pai lhe chamava.
Já eu, não tinha sido bafejada pela mesma sorte. A minha beleza, se é
que assim se pode chamar era, simples e desprovida de qualquer
atractivo.
Sempre fora valorizada pelo meu trabalho, e pela minha dedicação ao
pastoreio. Amava o que fazia, não havendo nenhuma tarefa ainda
que braçal que me causasse afronta.
A minha robustez física contracenava com a delicadeza do porte de
Raquel.
Raquel tinha beleza, juventude e principalmente… o amor de Jacó.
Eu estava em desvantagem…
Mas Deus na Sua infinita bondade e compaixão concedeu-me a divina
graça de ser mãe.
Inicialmente tentei tirar partido dessa mesma graça, fazendo uso dela
para conquistar Jacó, meu marido. Jeová foi misericordioso e olhou
para a minha angústia. Ao meu primeiro filho dei o nome de Ruben.
Sendo que agora meu esposo iria começará a amar-me. Mas tal não
sucedeu.
Nasceu depois Simeão, Levi e Judá. Em cada nascimento renascia a
esperança de ganhar o amor de Jacó, mas era patente que Raquel
continuava a ser a mais amada.
Ainda assim, Raquel foi acometida de um forte sentimento de inveja,
ao ver que no seu ventre não se gerava vida. Não havia frutos desse
grande amor.
Quando a emoção se sobrepõe à razão, gera-se a impaciência aliada
à imprudência.
Raquel na sua ansiedade de ser mãe, não esperou que Deus lhe
abrisse a madre e entregou a Jacó a sua serva de nome Bilha, que lhe
deu dois filhos, Dã e Naftali.
Deparava-me agora não com uma, mas duas adversárias, minha irmã
e sua serva.
Acometida da mesma imprudência, e não querendo ser mais

19
humilhada, também eu entreguei Zilpa a Jacó, para que concebesse.
Tal como Bilha, minha serva Zilpa gerou dois filhos de Jacó. Foram
eles Gade e Aser.
Mas apesar de tudo eu permanecia sem o amor de Jacó. Meu único
contentamento era ser a geratriz do seu maior número de filhos.
Deus sabia o quanto eu amava Jacó, e por mais três vezes me
renovou a graça, permitindo-me conceber mais Issacar, Zebulom e
Dinã.
A esperança de que cada nascimento trouxesse o amor de Jacó por
mim, desvaneceu-se completamente. Nada que eu fizesse iria altera
isso.
Desengane-se pois quem pensa que pode escolher a quem amar… o
coração é o senhor dessa decisão. É através do seu olhar que nasce
ou não o amor. E o coração de Jacó escolheu Raquel, não havia volta
a dar.
Desisti de esperar e canalizei todo o meu amor e atenção nas minhas
bênçãos. De personalidades distintas, eram eles, o meu orgulho e a
minha alegria.
Uma tarde porém, não resisti à dúvida que incessantemente me
assaltava a mente.
Eu queria saber de forma clara e objectiva quais eram os sentimentos
que meu marido tinha por mim. Chegara a hora de encarar de frente
o meu destino.
Estava um fim de tarde ameno. Vislumbrava-se no horizonte que o
dia se aproximava do fim. As crianças aproveitando a claridade que
ainda se fazia sentir, brincavam alegremente aos pastores. Corriam
de forma sonora atrás das ovelhas, que pareciam pactuar com elas
na brincadeira. Jacó observava-as deliciado. Calmamente, abeirei-me
dele, e lado a lado apreciávamos os risos das crianças. Havia
harmonia entre elas, o facto de serem geradas em quatro barrigas,
não tinha nenhuma importância. Jorrou finalmente da minha boca a
inquietação que desde sempre morara no meu coração.

20
- Jacó poderás tu, dizer-me algum dia que me amas? –
Permanecíamos lado a lado, com o olhar fixo ora nas crianças, ora no
horizonte.
Após um longo silêncio, que me pareceu excessivo, e sem desviar o
olhar, respondeu-me:
- Amo… a ternura do teu olhar.

Florbela Ribeiro

21
POR UM FIO

22
Submersa num revolto mar de silêncios, permanecia a fatídica onda
que a lançou naquela vida. Com os olhares do povo cravados nas
costas, deslizava pelas ruas da cidade de Jericó com o rosto
escondido por uma burka negra. Todos sabiam quem ela era, e
principalmente o que fazia.
Durante muito tempo agonizou, pela facada traiçoeira do destino.
Chorou amargamente a dor do infortúnio que arrombara a sua porta,
lançando-a na lama juntamente com o nome do seu pai. Mas toda a
família permanecia unida, sofrendo com ela e por ela.
Ao contrário da sua inocência, os laços do amor que os unia,
mantinham-se intactos.
- Minha filha, que adianta passares o resto da tua vida aqui a chorar?
Não foi já o leite derramado? – Sua mãe tentava, desesperadamente,
faze-la reagir, ao mesmo tempo que lhe ocultava o coração desfeito
pela dor.
A sua menina não morrera por um fio, tamanho fora o desgosto que
se abatera sobre a sua alma.
Siza, sua mãe tinha razão. O mal já havia sido feito. Era agora a hora
de levantar a cabeça e seguir em frente.
Para isso ela precisava de se despojar do passado, e entrega-lo nas
mãos de Deus.
Resolveu então esperar pela justiça Divina, e afastou do seu coração
o desejo de vingança.
A justiça de Deus poderia tardar, mas falhar nunca!
Essa certeza morava no seu peito e dava-lhe alento para seguir em
frente.
Uma força impulsionadora, mas desconhecida não lhe permitia baixar
os braços.
Os dados da vida estavam agora lançados.
Chegava a sua vez de jogar, e fazia-se necessário encontrar
alternativas, para sair vitoriosa. Ela e toda a família, com ela!
E era precisamente isso que procurava nas saídas fugazes que fazia
pela cidade. Alternativas em jeito de notícias!

23
Por debaixo do manto negro que a envolvia, os seus cinco sentidos
estavam em alerta máxima, captando toda a informação possível e
inimaginável.
Depois… bem depois necessitava gerir cada informação, e recolher
dela o melhor proveito.
Mas a máscara da honra e da respeitabilidade que a sociedade
hipocritamente colocava, obrigava Raabe a viver em 24 horas, duas
realidades completamente antagónicas.
O dia cravava-lhe na carne o ódio de muitos e o desprezo de quase
todos.
A noite trazia com ela a envolvência dos abraços amantes. Onde o
amor de alguns, o carinho de outros e a admiração de quase todos,
lhe davam coragem, para superar as dores da sua existência.
Desenganem-se aqueles que pensam que a sua vida era fácil, porque
não o era de todo! No seu coração cravado de cicatrizes, habitava
ainda a inocência do amor, que a onda maldita não conseguiu matar.
E essa inocência não coabitava pacificamente no seu corpo. Essa luta
diária, essa repulsa que sentia por ela mesma causava-lhe imensas
dores. Durante os 13 meses do ano, Raabe padecia.
Havia no entanto um factor curioso, uma ironia do destino…
Raabe, a prostituta da cidade de Jericó conhecia, com rigor, a grande
maioria dos seus habitantes.
Afinal, todos os que se passeavam deleitosamente nos seus braços,
eram subtilmente aliciados, a confessar-lhe as informações que
possuíam e sabiam.
Fosse o que fosse, e sobre quem fosse.
Raabe era uma mulher inteligente, e apesar das agruras da vida, ela
soube preservar a serenidade e a meiguice que a todos encantava.
A calmaria do seu olhar aliado à ternura da sua voz, apaziguava
inúmeras vezes o génio que levavam ao entrar. Os seus amantes
viam nela uma confidente e uma conselheira.
Ela sabia sempre quando deveria escutar ou falar.

24
Eram no entanto mais as vezes que ouvia atentamente do que se
pronunciava. E isso agradava-lhes, e assim, com facilidade ganhou
não só a confiança, mas também o seu respeito.
Obter informações era fácil para Raabe.
A ela todas as notícias interessavam, se não precisasse delas naquele
momento, guardava-as para mais tarde.
- Eu não sei quando, mas eu sinto que um dia – confessou ela certa
vez a sua mãe – vou saber algo que nos vai tirar a todos deste
infortúnio.
- Eu sei minha filha, eu sei – assentiu a sua mãe, que apesar de não
ter a mesma esperança, não quis apagar o brilho intenso que faiscava
dos olhos da sua menina.
Para Siza, Raabe continuava a ser a menina alegre e inocente de
outrora.
Era o seu coração de mãe que lho dizia e não se enganava.
Corria já pela cidade a notícias de um povo protegido por um Deus
capaz de grandes maravilhas. As chefias do povo comentavam isto
em surdina, mas era visível que tais novas não agoiravam nada de
bom.
E apesar dos cuidados tomados, as novas espalhavam-se com a
mesma facilidade que a poeira se erguia dos caminhos, causando um
pasmo generalizado.
Raabe escuta e guardava em si estas informações.
O general Aczibe visitava Raabe com relativa frequência. Era um
homem por natureza alegre, bem disposto e muito optimista.
Raabe sempre o recebia com agrado. Os serões na companhia do
general eram sempre agradáveis. Mas o que realmente a fascinava,
era a frescura das novidades que ele lhe levava. Naquele dia porém o
general estava diferente. A sua expressão estava demasiado
carregada. Era a primeira vez que Raabe o via de semblante caído.
Mas ela sabia o que o estava a preocupar. Tinha ouvido rumores na
cidade naquela tarde.

25
- Que Deus será este, capaz de abrir as águas do Mar Vermelho
diante do seu povo, após tê-lo liberto da opressão de Faraó? –
Perguntou-lhe ela para quebrar o silêncio que se instalara no quarto.
- Não sei Raabe mas é certamente um Deus muito poderoso. Hoje
soubemos que o Rei Ogue e o Rei Siom caíram nas suas mãos.
- Não?! – Exclamou ela com o rosto assombrado.
- Foram totalmente destruídos – confirmou o general – Que povo é
esse afinal? Até há pouco tempo eram apenas escravos do Egipto, e
agora…
- Deve ser um povo eleito, para ter um Deus que peleja por eles –
atreveu-se Raabe a dizer.
- O Capitão já mandou reforçar a vigilância envolta dos muros de toda
a cidade. A informação que temos é que eles se dirigem para cá!
Raabe escutava atenta.
- Aconselho-te a teres cuidado Raabe, morando tu sobre o muro da
cidade, é natural que sejas visitada. Não abras pois a porta a nenhum
estrangeiro. Se o fizeres pões em risco não só a tua vida mas a de
toda a tua família – ordenou-lhe Aczibe.
- Não fiqueis inquieto meu general. Farei tudo como me ordenais –
disse Raabe de forma terna mas submissa.
Ele tinha por ela um extremo carinho e dadas as notícias, estava
visivelmente preocupado com a sua segurança. Viviam-se na cidade
momentos de grande tensão.
No entanto a sensibilidade de Raabe interceptava outra informação.
Os seus cinco sentidos captavam o prenúncio de que algo estava para
acontecer.
Algo de bom, muito bom. O oposto do que o general lhe dizia.
No peito, o coração de Raabe ardia com intensidade.
Por tudo isso permaneceu em silêncio.
Pouco tempo depois do general sair, bateram-lhe à porta. Era já
tarde, o que fez com que Raabe hesitasse em abrir.
- Pode ser novamente o general – Pensou ela em voz alta enquanto se
dirigia para a entrada – talvez se tenha esquecido de algo.

26
Mas não era o general Aczibe.
Eram dois mancebos e pela fisionomia rapidamente constatou que
eram estrangeiros.
Raabe nunca os tinha visto na cidade. Mas havia algo nos seus
semblantes que lhe inspirou confiança. O olhar deles era franco e
honesto. Não vinham à procura dos seus serviços, quanto a isso
estava segura.
Sem pronunciarem uma só palavra, entraram na casa da Raabe, a
meretriz.
Subitamente lembrou-se das palavras do general.
- Serão estes mancebos os espias de que Aczibe falara? – Pensou.
Eram-no de facto. Aqueles dois mancebos eram espias do povo
israelita, do povo de quem tanto se falava ultimamente na cidade.
O povo elegido por Deus e pelo qual Ele pelejava.
Aquele calor que lhe ardia no seu peito permanecia, transmitindo-lhe
uma sensação de bem-estar, para a qual ela não tinha explicação.
Sabendo ela que a segurança em volta dos muros da cidade tinha
sido reforçada, previu que a chegada destes dois homens não tivesse
passado despercebida. E estava certa.
Encaminhou-os de seguida para o telhado, alinhou as canas de linho e
ali os escondeu.
Novamente bateram à porta. Era agora um emissário do Rei que se
fazia acompanhar por vários soldados.
- Ao Rei chegaram notícias que recebeste em tua casa dois homens.
Fá-los sair de imediato porque vieram aqui com a missão de espiar
toda a terra – falou o emissário.
- É verdade que vieram a mim dois homens, mas eu não sabia de
onde eram. Porém ainda pelo escuro se foram. Ide após eles
depressa, porque vós os alcançareis!
Sem perderem tempo, afastaram-se dali velozmente, iniciando as
buscas.

27
Raabe fechou a porta e respirou de alívio. Fora convincente. Contudo
manteve-se atenta aos movimentos da rua, certificando-se que
tinham realmente partido.
Sentia-se um pouco ansiosa. Antes que os dois homens
adormecessem, subiu ao telhado para lhes falar.
- Sabeis vós porque motivo estamos aqui? – Antes que ela fizesse
alguma pergunta, disparou-lhe um dos mancebos.
Ela acenou afirmativamente.
- Perdoai-me por interromper o vosso descanso – disse – Bem sei que
o Senhor vos deu esta terra, e que o pavor de vós caiu sobre nós, e
que todos os moradores da terra se derretem diante de vós. Temos
ouvido que o Senhor secou as águas do Mar Vermelho, quando saíste
do Egipto. Também o que fizestes aos dois reis dos amorreus, Siom e
Ogue, que estavam além do Jordão, os quais destruístes totalmente.
- Estais bem informada – disse um deles.
- Sim, é verdade. Quando a notícia chegou a Jericó, os nossos
corações se derreteram, e em ninguém mais há animo algum, por
causa da vossa presença; porque o Senhor vosso Deus é Deus em
cima no céu e em baixo na terra.
- É verdade mulher. Credes vós num Deus assim? – A pergunta foi
directa e frontal.
- Creio sim, de todo o meu coração – respondeu Raabe visivelmente
emocionada – agora pois, jurai-me, peço-vos pelo Senhor, pois que
vos fiz beneficência, que vós também fareis beneficência à casa de
meu pai.
- Dai-me pois um sinal certo, de que dareis a vida de meus pais e
irmãos, com tudo o que têm, e de que livrareis as nossas vidas da
morte.
Eles então responderam-lhe:
- Seja como dizes. A nossa vida responderá pela vossa, se não
denunciardes este nosso negócio. E quando o Senhor nos entregar
esta terra, usaremos para contigo de bondade e fidelidade.

28
O olhar de Raabe ganhou um novo brilho, quando ouviu estas
palavras.
Pela primeira vez o facto de ser meretriz não trouxe impedimentos.
Aproximava-se então o raiar de um novo dia.
Por precaução, fê-los descer pela janela, usando uma corda e
recomendou-lhes que se escondessem por três dias no monte. Aí
deveriam aguardar que os perseguidores desistissem da busca.
Passado esse tempo, eles poderiam seguir o seu caminho.
Eles assentiram, mas antes disseram-lhe:
- Eis que quando nós entrarmos na terra, atarás este cordão de fio
escarlata à janela pela qual nos fazes descer. Recolherás em tua
casa, teu pai, tua mãe, teus irmãos e toda a família de teu pai. Se
assim não fizeres, nós seremos inocentes no tocante a este
juramento, que nos fizeste jurar.
- Conforme as vossas palavras, assim seja – respondeu Raabe.
Despediu-se deles e atou o cordão de escarlata à janela.
O dia começava a despontar no horizonte e Raabe sentia-se exausta
mas ao mesmo tempo feliz. Sem levar o corpo ao descanso,
apressou-se em ir à casa do seu pai. Tinha que ser ligeira e levar as
boas novas. Havia muitas coisas para tratar e o tempo escasseava. A
notícia foi recebida por toda a família com assombro, pois o caso não
era para menos.
Como seria possível, precisamente na hora em que sobre a cidade de
Jericó pairava a ameaça de uma guerra, eles receberem libertação?
Humanamente era difícil acreditar, mas Raabe recordou-lhes as
maravilhas que antes ouviram. A forma como Deus tinha resgatado o
povo israelita do Egipto, não deixava dúvidas. Após se recomporem
do choque que a notícia lhes causou, partiram, refugiando-se em casa
de Raabe.
Nos olhares expectantes, pairava a ansiedade. Viviam uma mistura
de sentimentos inigualáveis. Os seus corações estavam inundados da
mais pura felicidade pela graça que Deus lhes concedia, mas… E os
amigos e vizinhos por quem nutriam tanta estima? O que lhes iria

29
suceder? Os mesmos corações choravam por eles. Depositaram toda
a fé no Deus de Israel, e pacientemente aguardaram pela libertação.
Eis que de repente se ouviu na cidade um tremendo estrondo. Tudo
estremeceu. O muro de Jericó acabara de ruir e uma onda destruidora
varria agora a cidade. A aflição dos moradores, era sentida com
profundo pesar dentro da casa de Raabe.
De súbito alguém gritou:
- Raabe, abre, somos nós, os mancebos que recebeste naquela noite
– o pedido em forma de grito era urgente. Apressadamente abriu-lhes
a porta e toda a gente da casa foi levada para o exterior da cidade
juntamente com os seus pertences. Durante a marcha da retirada
puderam ver que o cenário de guerra acampara ali. Raabe fechou os
olhos por mais que uma vez, tal era a dimensão do sofrimento que
via! Por fim, a noite abateu-se sobre o que fora a cidade de Jericó. No
céu, a Lua Cheia querendo ser testemunha fiel do sucedido, brilhava
com intensidade sobre os escombros. Do alto do monte os rostos
banhados por lágrimas observavam o fumo que subia de Jericó. A
cidade estava irreconhecível.
- Por um fio te livrou o Senhor duas vezes – disse Siza enquanto
envolvia com ternura Raabe num abraço.
- A justiça de Deus pode tardar minha mãe, mas falhar nunca! -
Na envolvência daquele gesto de amor, e por entre lágrimas e
soluços renascia agora uma nova mulher.

Florbela Ribeiro

A escrava egípcia

30
Eu sei que não devia ter agido daquela forma.
Sei que falhei.

31
Mas eu estava farta. Farta e cansada de ser olhada por todos como
uma mera serviçal.
- É somente uma escrava, coitada – eu ficava tão arreliada quando
ouvia este comentário…
Esqueceram-se todos de que sob a aparência da escrava egípcia,
estava a mulher.
Uma mulher que vive, que sente e que sonha…
Obviamente que sendo eu mulher e escrava não tinha direito a
quaisquer regalias. E sonhar estava fora de questão.
Tenho plena consciência do meu papel de mulher na sociedade.
Enganam-se aqueles que pensam o contrário. Todas as mulheres
devem primeiramente obediência e submissão ao poder paternal e
posteriormente ao marido. Mas uma mulher que é escrava e
estrangeira deve obediência e submissão a todo o mundo.
Nasci predestinada a servir. Foi unicamente para isso que a minha
mãe me gerou.
Ainda assim e apesar de não gostar da minha condição de escrava,
fui dedicada à minha senhora, dispondo-me a fazer-lhe todas as
vontades.
Com o decorrer dos anos ganhei-lhe afeição e agradava-me até
surpreende-la. Encantava-me ver o seu sorriso quando de surpresa
lhe confeccionava o seu prato favorito, ou lhe levava “olesh” pela
manhã! A sua flor preferida.
O meu salário era o seu sorriso. Esta pequena manifestação de
gratidão adoçava-me vida.
Mas com o passar dos anos, o meu salário cessou.
A tristeza fez morada no semblante dos meus senhores.
Tardava em chegar a promessa que Deus fizera a Abrão. Sua esposa
Sarai envelhecia e o seu ventre não gerava vida.
Cansada então de esperar, resolveu ela por si mesma dar a Abrão o
filho que ele tanto ansiava.
Deu entrada então uma nova Primavera. Entrou envolta num manto
colorido e perfumado pelas mais doces fragrâncias. Os campos que

32
circundavam o acampamento pareciam imensas tapeçarias bordadas
com mil cores. Na beleza daquele tema floral, destacava-se o “olesh”.
Levantei-me pela manhã mais cedo do que o habitual. Como o jardim
dos meus senhores permanecia árido, presenteei-os com uma nova
decoração.
No intuito de os alegrar, levei a Primavera para dentro de portas.
Mas Sarai nem sorriu, não reparou.
Despertou naquele dia com um ar profundamente abatido. Parecia ter
passado a noite em claro.
E a avaliar pela ordem que me deu, verifiquei que estava certa. Na
tentativa de arranjar uma solução, Sarai tinha tomado uma decisão.
Uma decisão que não era nada fácil.
Resolvida a não esperar mais pelo cumprimento da promessa,
ordenou-me que nessa mesma noite me entregasse a meu senhor
Abrão.
Confesso que fiquei tão estupefacta com aquela ordem, que deixei
cair por terra o jarro que transportava nas mãos. Fiquei atónita.
Mas depois de reflectir um pouco, entendi as suas razões. A verdade
é que a incredulidade de Sarai fazia sentido.
Abrão tinha agora 85 anos. E Sarai não sendo muito mais nova, tinha
uma agravante. A madre, a madre estava fechada e havia muito
tempo que as suas regras lhe tinham cessado.
À Sarai levaram-lhe os anos a força da sua juventude e os ventos
arrancaram-lhe do coração a esperança de ser mãe.
Seria então eu a progenitora da descendência de Abrão.
Eu? A mãe do grande povo de Israel? Era inacreditável!
Analisei a situação friamente, e devo confessar que após reflectir bem
sobre assunto, a ideia não me desagradou totalmente. Não me
aliciava nada a ideia de ser entregue a Abrão, mas…
Era a minha oportunidade.
Finalmente iria deixar de ser olhada como uma mera serviçal.
E sem pestanejar, dei largas aos meus sonhos… e voei!

33
Não tardei muito em fazer a vontade aos meus senhores. De início
Sarai ficou radiante e passou a tratar-me como a uma filha… a filha
que nunca teve e tanto ansiava.
A realidade é que comecei a sentir-me mesmo assim, uma filha. Mas
não tardou muito a tudo se alterar. Com o passar dos meses a minha
barriga ganhava volume e o entusiasmo de Abrão também.
Alterou-se o brilho no olhar de Sarai.
A calma e a doçura que tanto a caracterizavam, desapareceram.
Irritava-se com a maior das facilidades, e nada mais parecia agradar-
lhe.
E como se isso não bastasse, começou a impor-me restrições
completamente absurdas. A primeira delas foi a exigência de me não
apresentar quando meu senhor Abrão estivesse por perto.
Este exagero da sua parte, veio confirmar as suspeitas do povo. Sarai
estava deveras enciumada com as atenções que seu esposo me
dispensava.
O ciúme instalou-se no seu coração, e provocou um clima de tensão
generalizado em todo o acampamento.
Ela não via que os seus ciúmes eram infundados. Eu não pretendia
roubar-lhe o amor de Abrão, seria inútil fazê-lo, eu bem sabia o
quanto eles se amavam. Eu só pretendia um pouco de prestígio, só
isso, nada mais. Mas os ciúmes cegaram-lhe o entendimento.
As suas atitudes causaram-me uma imensa revolta. Ela só pensava
nela e isso não era justo. Mais uma vez eu desempenhava o papel de
uma mera serviçal, eu era apenas um utensílio, o transporte de um
filho.
No meu ventre crescia o primogénito de Abrão, e no meu coração a
revolta.
Houve mudança na fase lunar. Era o anúncio da chegada de Ismael.
Era saudável e muito lindo o meu menino…
Naturalmente que sendo criado por duas mães zelosas e sendo Abrão
um pai extremoso, Ismael tornou-se uma criança mimada e insolente.

34
Gostava de receber todas as atenções e de ser elogiado em tudo o
que fazia.
Abrão sempre lhe dizia:
- Ismael meu filho, deves dar graças a Deus pela força e sabedoria
que Ele te dá. – Mas logo ele o contrariava dizendo:
- Fui eu que me esforcei, e treinei durante horas. Não tenho pois que
agradecer a ninguém…
Estas palavras magoavam o coração do seu pai, e confesso que nem
eu gostava de as ouvir.
Cedo me apercebi que a revolta que em mim germinava, durante os
meses de gestação foram absorvidos por Ismael.
Fazia agora parte do seu carácter e quanto mais o repreendíamos,
mais ele se rebelava.
Pouco tempo depois dele fazer 14 anos, Sara concebeu. A promessa
de Deus chegava finalmente.
A notícia correu veloz e foi motivo de júbilo e de riso no
acampamento.
Numa mulher da sua idade o acto de dar a luz, era algo sobrenatural.
Somente o Deus de Abraão poderia fazer tamanho milagre. E fez!
Ao contrário de todos, não me alegrei nada com a notícia.
Após o nascimento Ismael, voltei a ser tratada como serva e a
executar as minhas tarefas de sempre. Além disso a chegada desta
criança, iria desviar as atenções do meu filho. Sara era a esposa
legítima de Abraão, como tal o seu filho iria com toda a certeza ser o
seu preferido.
Dizia-mo a minha intuição, e estava certa.
Esperou Abraão 100 anos para ver o rosto cândido daquela pequenina
criatura. No seu semblante transparecia a doçura de Sara e a
quietude de Abraão. Era impossível não ama-lo logo na primeira
mirada.
O contraste entre ambos os irmãos saltava aos olhos do
acampamento.
De um lado a candura, do outro a arrogância.

35
Piorando a situação, e apercebendo-se Ismael que as atenções de
Abraão se centralizavam em Isaque, começou a humilhá-lo.
Implicava com ele constantemente, fazendo-lhe as maiores
travessuras.
Eu não concordava com os suas atitudes, mas acabei tornando-me
conivente, dado que nem sempre o repreendia. Só o fazia quando
Sara ou Abraão estavam presentes.
Eu não gostava de Isaque. O meu Ismael era o primogénito de Abraão
e ninguém parecia lembrar-se mais disso.
Claro que a criança era adorável e não tinha culpa, mas veio desviar
as atenções, e tirar a herança que só ao meu filho pertenciam. Apesar
de não me agradar, era eu quem tinha que tomar conta do pequeno
todos os dias. Já não me bastavam as tarefas normais, e cuidar do
meu filho. Tinha agora que andar também a correr atrás do filho de
Sara.
Um dia porém as coisas alteraram-se.
Inadvertidamente condicionei o meu futuro e o de Ismael.
Lavava eu umas peças de roupa junto ao rio Jordão, quando o
pequeno Isaque se meteu na água. De início chamei por ele,
alertando-o do perigo mas depois… calei-me.
Confesso que não sei o que me deu, nem o que me passou pela
cabeça para agir tão erradamente. Apesar de não gostar do menino
não o odiava, nem lhe desejava nenhum mal, mas naquele momento,
só pensei em Ismael.
Se Isaque não existisse tudo seria diferente…
Abstraí-me por completo com aqueles pensamentos. Enquanto isso, o
menino entrava mais pelo rio a dentro, até que começou a perder pé.
Sara surpreendeu-me naquele instante com a sua presença.
- Isaque, Isaque – gritou ela enquanto o resgatava.
De súbito, tentei arranjar uma desculpa. Mas o que podia eu inventar?
Foi tudo muito óbvio para Sara. Ela teve a confirmação, de que eu
não nutria nenhum afecto, por aquela criança.
E sabia bem a razão desse desamor.

36
Depois de todas as tropelias que Ismael fez com Isaque e daquele
meu acto irreflectido, o meu destino ficou marcado.
Sara foi contar tudo a Abraão. E eu fui de imediato chamada à
presença de ambos.
Na mesma hora os meus serviços foram dispensados.
Como castigo, seria expulsa do acampamento juntamente com o meu
filho.
Não podia ser!
Chorei amargamente ao ouvir aquela sentença… eu estava
arrependida. Deus sabe que sim. Não foi minha intenção fazer mal a
Isaque, não sei o que me passou pela mente. Tentei explicar-lhes
isso, consciente de que tinha de pagar um alto preço pelo meu erro.
Supliquei-lhes não por mim, mas por Ismael. O meu filho estava
inocente.
- Meu senhor, tende compaixão de Ismael, ele é apenas uma criança,
e é vosso filho – gritei eu desesperada enquanto me prostrava em
prantos aos seus pés.
- Lançai-me só a mim fora do acampamento. Por favor, rogo-vos!
- Ismael é portador dos mesmos sentimentos malignos que tu. O
vosso coração está cheio de ódio e rancor por Isaque. Não podeis
ficar nem mais um dia no acampamento – decretou-me severamente
Abraão.
- Parti e levai convosco um pedaço de pão e um odre de água –
ordenou-me friamente.
Aquela posição do meu senhor deixou a minha alma profundamente
amargurada. Como sobreviveria eu e o meu filho em pleno deserto
apenas com um pedaço de pão e um odre de água?
Com o olhar completamente nublado, fitei-os pela última vez. Não
encontrei neles a bondade que os caracterizava. Retirei-me dali com
profundo pesar…
Eu que queria apenas ser olhada como uma mulher que vive, que
sente e que sonha, acabava agora de ser escorraçada como um

37
animal peçonhento. Tanto eu, como o meu filho Ismael saíamos de
Canaã sem nenhum prestígio.
Mas uma dor maior que aquela aguardava-me no deserto de
Bersabéia.
Durante a caminhada Ismael reclamou contra seu pai Abraão, por nos
ter expulso do acampamento. Tentei sem sucesso fazê-lo entender
que a culpa era somente minha.
Eu tinha sido irresponsável, e a minha atitude irreflectida poderia ter
causado a morte do pequeno Isaque. Foi isso que nos conduziu
aquela situação. Mas o meu filho não me ouviu.
Acabou entretanto o pão e a água, e Ismael começou a desfalecer.
Que injustiça meu Deus! Tudo por minha culpa.
Eu olhava agora para um jovenzinho inanimado.
O brilho dos seus olhos apagava-se, a bravura dos seus gestos
esvaía-se e dos seus lábios secos e gretados, quase não saía som.
O meu Ismael morria pouco a pouco na minha frente.
Uma sensação horrível de impotência apoderou-se do meu coração
de mãe.
Não tive coragem para vê-lo morrer.
Com o coração totalmente desfeito, rastejei pelas areias escaldantes
do deserto de Bersabéia e afastei-me fisicamente dele. Eu, a serva
egípcia de Sara, e concubina de Abraão, morri no momento da
expulsão do acampamento. Mas era naquele areal escaldante que os
nossos corpos ficariam, mortos sem sepultura.
Prostrada, atormentada e no limiar das minhas forças, clamei ao Deus
de Abraão.
Só Ele poderia salvar-me. A mim e a meu filho.
Contudo, Deus foi misericordioso e compadeceu-se desta mulher
miserável. Enviou até mim um anjo que me abriu os olhos, e me fez
ver um poço com águas frescas.
Oh que bênção tremenda… Desatei a rir e a chorar ao mesmo tempo
como se tivesse enlouquecido. Um poço no meio do deserto!
- Que Deus maravilhoso é o meu Deus! – Exclamei jubilosa

38
Ergui-me do solo num impulso, enchi o odre, e corri até Ismael para
lhe dar a beber daquela água.
Aos poucos começou a recobrar os sentidos e voltou a ele.
Mas o Senhor na sua infinita graça e misericórdia tinha algo mais para
nós.
O Deus de Abraão e de Isaque deu-nos a promessa que de Ismael
sairia uma nação numerosa.
Nessa hora saiu de cima de mim o peso da revolta, desapareceu
também o azedume do meu coração.
Era agora uma mulher duplamente livre, porque tinha nascido de
novo.
Ismael seria para sempre chamado o pai de uma nação valente.
Acalentando um novo sentimento no meu peito, dei largas aos meus
sonhos e voei nas promessas do Deus de Israel!

Florbela Ribeiro

39
A FILHA DA CANANEIA

Saboreávamos os primeiros dias de Primavera.

40
Porém o calor intenso que se fez sentir durante todo o dia, forçou-nos
a um recolhimento quase que obrigatório.
Não era habitual, viverem-se dias tão quentes durante a época
primaveril.
Parecia estarmos em pleno Verão.
Mas o entardecer brindou-nos com uma brisa fresca, que nos
convidou a um passeio até ao campo.
Depois de tantas horas fechada em casa, Ana abraçou com alegria
aquele convite.
Deixei a minha pequena pomba voar feliz ao abrir-lhe as portas da
gaiola.
O campo encontrava-se quase todo coberto por pequenos e delicados
malmequeres brancos. Por entre eles, brotavam enormes papoilas
vermelhas que, agitadas pelo vento, mais pareciam bailarinas. Ana
enquadrava-se harmoniosamente na beleza daquele cenário natural.
Os longos cabelos negros brincavam ao sabor do vento, criando um
perfeito contraste com a palidez do seu rosto. Estes dois elementos
salientavam ainda mais a cor esmeralda do seu olhar…
- Como estás crescida e bonita minha filha. - Comentei eu ao observá-
la.
Ana que já desfilava pelo tapete colorido ouvindo-me, voltou o seu
olhar na minha direcção e ofertou-me um belo sorriso.
Era uma forma graciosa de manifestar o seu amor.
Sentei-me debaixo de uma enorme oliveira, enquanto Ana iniciava a
colheita dos mais belos malmequeres. Era sempre assim. Após uma
criteriosa e exaustiva selecção, Ana elaborava lindas grinaldas de
malmequeres. Mais tarde, iria ofertá-las às suas melhoras amigas, ou
seja, a todas as moças do povoado!
- Mãezinha – gritou Ana – há aqui muitos malmequeres, e são todos
tão lindos!
- Está bem Ana, mas não os cortes todos – pedi-lhe eu entre risos –
Por favor não me estragues a paisagem…
Ana sorriu ao mesmo tempo que me acenava que não com a cabeça.

41
Enquanto saboreava a brisa fresca daquele fim de tarde, abri a minha
caixa de memórias e mergulhei num passado ainda recente.
Recuei ao tempo em que Ana se encontrava possuída por um espírito
imundo.
Confesso que ainda não me é fácil recordar essa época, dado que
foram tempos muito dolorosos para nós.
Os meus olhos negros brotavam constantemente um mar de
lágrimas. Era o reflexo evidente de uma mãe em desespero.
A escuridão reinava na minha vida.
Apesar de bater a muitas portas, não encontrava nem saída nem
respostas para o meu problema.
Ana, ou melhor, o demónio que nela habitava, transformava os
nossos dias num verdadeiro tormento.
As janelas de Ana, sob sobrancelhas de um negro muito belo,
reflectiam-me dois cenários. Quando o espírito imundo dormitava eu
via nos seus olhos uma profunda tristeza. Quando desperto via a
manifestação de uma profunda revolta.
As noites eram para nós um verdadeiro suplício…
Ana percorria toda a casa incansavelmente. Deitava tudo o que
encontrava ao chão, e ao mesmo tempo lançava-me todo o tipo de
escárnios jurando-me vingança.
A sua revolta, o seu ódio, a sua arrogância e toda a sua maldade
eram lançadas principalmente contra mim. Ele bem sabia que eu
procurava libertar a minha filha das suas garras.
Nas manhãs seguintes a este suplício, e a esta afronta directa, eu
tinha como tarefa principal o limpar dos cacos. Os restos das louças e
objectos decorativos que ele tinha quebrado.
A cada dia que passava eu tinha menos que limpar… a minha casa
estava tão destruída quanto nós as duas, já pouco restava.
A minha vida era pautada sempre pela mesma sequência; limpar as
lágrimas, apanhar os cacos e lavar o chão.
Depois ia vigiar Ana, estirada no chão do quarto, com o corpo coberto
de hematomas.

42
Eram tantos, tantos que em alguns locais do corpo já não se
vislumbrava a cor branca da sua pele.
Aquele ser vil, massacrava e torturava a minha filha, diante de mim,
dos meus olhos, e eu nada podia fazer.
Era como ver Ana a cair lentamente por um precipício, e não
conseguir salvá-la.
A sua vida escorria-me por entre os dedos como a água, que eu não
consigo reter!
A minha dor e o meu desespero eram tão grandes que quase me
sufocavam.
Mas um coração de mãe sofre, mas não desiste de lutar!
Uma mãe jamais baixa os braços pela sua cria. Uma mãe luta até à
morte se preciso for!
Eu lutei e corri em direcção a muitos lugares.
Por ignorância e puro desespero, bati a muitas portas erradas.
Deus é conhecedor disso.
Mas não desanimei, nem desisti de lutar! Não!
Aquele demónio, aquele ser vil que entrara na vida de Ana e em
minha casa, sem ser convidado, tinha que sair de forma clara e
definitiva.
Após uma noite tenebrosa em que vi Ana, lançar-se inúmeras vezes
contra os móveis e as paredes da casa, deixando gotas de sangue
espargidas por todo o lado, eu cai no chão da minha cozinha e gritei
em grande aflição e angústia.
Gritei alto e clamei ao Deus que ainda desconhecia.
Era Ele o meu último recurso, não tinha mais a quem recorrer. Não
havia mais portas onde eu bater.
Lídia, a minha boa amiga e vizinha era conhecedora do sofrimento do
meu dia-a-dia, e ouvindo-me, abeirou-se de mim e abraçou-me.
Soube-me tão bem a envolvência daquele abraço.
Eu encontrava-me naquele momento muita fraca e destruída das
minhas esperanças. Havia muitas noites que não dormia…

43
Mas Lídia não se ficou só pelo abraço! Ela contou-me a notícia da
vinda de Jesus o Nazareno a Tiro. Aquele de quem se dizia ser filho de
um tal José, o carpinteiro.
-Sara, temos ouvido dos grandes milagres e das grandes maravilhas
que ele tem feito – contava-me ela – vai ter com Jesus minha boa
amiga.
- A minha Ana não aguenta muito mais tempo assim – solucei eu – o
corpo dela esta manhã, encontra-se todo coberto de nódoas negras e
há marcas de sangue por toda a casa. Ele não lhe dá sossego…
- Eu sei minha querida, eu ouvi tudo – disse-me ternamente Lídia
entre carinhos e afagos – A tua Ana esta muito débil, por isso te digo,
vai ter com o Mestre hoje, antes que seja tarde demais.
- Sabes tu quando ele chega? – Perguntei enquanto me assoava e
tentava me recompor.
- Sim, será mais para o final da tarde. Consta na aldeia que vai para
casa de um amigo seu. Talvez procure um pouco de sossego, mas
estou certa que te atenderá.
- Eu irei sim. Por Ana eu irei sim… – confirmei-lhe.
Levantamo-nos e acertamos tudo com um olhar e um acenar de
cabeça.
Lídia já me tinha falado muitas vezes de Deus, mas eu fora ensinada
a crer somente no que meus olhos viam, as minhas mãos apalpavam
ou os meus ouvidos ouviam.
Por isso o facto de não poder visualizar a Deus, não poder sentir o seu
toque nem ouvi-lo impedia-me de aceitar as suas palavras.
A verdade é que Deus bateu a minha porta muitas e muitas vezes,
mas eu nunca o atendi.
Chamou-me, mas eu não escutei a sua voz amorosa em tempo de
paz.
Nessa manhã Ana despertou melancólica como era costume.
A noite tinha sido uma verdadeira tortura física e mental.
A sua magreza era evidente, os seus olhos vermelhos e marcados por
profundas olheiras denotavam o horror daquela noite.

44
Mais uma noite de sofrimento se adicionava ao rol de tantas outras.
Coloquei o seu pequeno-almoço sobre a mesa para que se
alimentasse, ele foi brutalmente disparado contra o armário da
cozinha.
Não reagi… apanhei tudo do chão e limpei.
Preparei um novo pequeno-almoço e coloquei sobre a mesa.
Teve o mesmo destino do anterior.
Numa sequência de 7 vezes, foram quebrados 7 pratos.
Eu não tinha mais pratos para ele quebrar.
Calmamente olhei para Ana e disse:
- Minha querida, a mamã não tem mais pratos para te servir o
pequeno-almoço.
Ana, ou seja ele, soltou uma sonora gargalhada
- Não te rias – disse a plenos pulmões. Zangada. – Não tarda muito
para que nos deixes em paz, ouviste! – As minhas fiéis companheiras
caíam-me pelas faces.
- Estás muito enganada, eu não sairei daqui nunca! – Ao ouvi-lo tremi
dos pés à cabeça. A fúria que saia dos olhos de Ana, eram flechas que
ele, o demónio, me cravava no peito.
Ele está a sentir-se ameaçado – pensei – não posso recuar agora.
- Ouviste o que eu te disse? – Gritou ele aos meus ouvidos – nunca
sairei daqui, nunca. A tua filha pertence-me!
Ah como me doeu ouvir aquelas palavras.
Não era verdade o que ele dizia, eu não queria nem podia acreditar
nelas, mas confesso que por momentos vacilei.
Estava fraca, tão fraca quanto Ana, só que as minhas mazelas eram
interiores.
Não eram visíveis aos olhos do mundo, mas eram aos dele. Ele bem
sabia o meu estado de fraqueza e aproveitou-se disso.
Passado algum tempo, recuperei o ânimo e calmamente disse-lhe:
- Veremos se é como dizes – naquele momento não queria provocá-lo,
porque temia que ele procurasse vingar-se nela.
As horas tardavam. Ana andava inquieta, mais do que o habitual.

45
Aquele ser desprezível que invadira e arruinara a vida da minha filha
pressentia que algo estava para acontecer. E estava!
Chegou finalmente a hora prevista da entrada do Mestre na cidade.
Muitos vizinhos e conhecidos me acompanharam até lá. Cada qual
com o seu motivo.
Alguns iam por mera curiosidade. Outros, assim como eu, iam porque
necessitavam de ajuda.
Devido à grande multidão que me acompanhava eu receei que Jesus
não me visse nem ouvisse. E sendo eu grega, não seria certamente
alvo das suas atenções.
Durante aquele percurso, revi todos os momentos desde a entrada
daquele espírito imundo no corpo de Ana… Quanto sofrimento ele
causava a minha princesa.
As lágrimas que caíam incessantemente do meu rosto, lavavam a
poeira do caminho.
Chegada ao destino, vi que uma grande multidão se ajuntara já a
entrada da casa onde Jesus estava.
Como iria eu agora romper aquela barreira de gente e aproximar-me
dele?
Um coração em aflição não hesita diante de nenhum obstáculo, mas
vai a luta até conseguir fazer-se ouvir!
Assim fez o meu coração despedaçado de mãe. Reuni todas as forças
que tinha e gritei bem alto o meu desespero.
Não me importei se iria dar escândalo ou azo a comentários. Nada
disso. A vida da minha filha estava em jogo.
No desespero não há tempo para vergonhas … há determinação em
acção!
Ao som da minha voz a barreira humana abriu caminho e quando vi
Jesus diante de mim, todas as minhas forças se esvaíram e prostrei-
me aos seus pés.
- Mestre, tende compaixão da minha filha. Um espírito imundo entrou
na sua vida e mantém-na aprisionada em trevas. Suplico-vos tende
misericórdia dela… – a minha voz saía por entre lágrimas e soluços.

46
Ali estava toda a minha esperança, a minha fé e a minha
determinação.
Depositei aos pés de Jesus o meu coração desesperado.
Lembro-me perfeitamente do timbre da sua voz. Era firme, suave e
meiga.
- Deixa primeiro saciar os filhos; porque não convém tomar o pão dos
filhos e lançá-lo aos cachorrinhos – respondeu-me Jesus.
- Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da
mesa, as migalhas que caem dos filhinhos – declarei eu, enquanto me
mantinha prostrada aos seus pés.
E o Senhor me declarou:
- Por essa palavra, vai, o demónio saiu da tua filha.
A multidão abriu a boca de espanto e admiração. Nunca tal se vira
até aquele dia.
Analisando agora de longe as suas palavras, eu poderia tê-las
interpretado como uma humilhação por ser grega, ou até uma má
vontade em me atender.
Mas não era assim. Jesus estava sim a confirmar se na verdade eu
estava convicta de que ele era a porta da verdadeira salvação.
Eu estava. Jesus sabia que eu estava, mas o povo que assistia a tudo
não.
Era por isso necessário que eu provasse aquela multidão a minha fé
nele.
- Obrigada… – foi a única palavra que o meu coração agradecido
conseguiu pronunciar.
Não era preciso mais, Jesus bem sabia a dimensão da minha gratidão.
O olhar repleto de amor afastou-se e eu ergui-me finalmente do chão.
Senti-me renascer naquele momento.
O povo em grande euforia ia tecendo comentários ao que acabava de
presenciar.
- Jesus expulsou um demónio sem que a endemoninhada estivesse
presente – comentavam alguns.

47
– Um grande milagre se viu aqui hoje! – A voz do povo era unânime.
Jesus acabava de fazer um prodígio maravilhoso.
Só que Jesus não fez um, mas sim dois prodígios maravilhosos.
Ana estava livre, e eu nascia de novo.
- Provaste não só a tua grande fé em Deus, mas também o teu
grande amor por Ana – concluiu Lídia enquanto me lançava um
abraço
- A minha Ana está livre, livre! Louvado seja Deus! – Eu chorava de
alegria ao mesmo tempo que anunciava a libertação da minha filha.
Ansiosa por apertar a minha princesa nos braços, tornei a casa. Pelo
caminho meditei na minha vida até ali…
- Quem sabe se eu tivesse dado ouvidos ao que me falavas, e não
tivesse sido tão teimosa…
- Deus escreve direito por linhas tortas – respondeu-me Lídia – o
passado só serve para dele tirarmos ensino, Sara. - Lídia estava certa.
Os meus olhos espirituais estavam agora abertos e no meu peito
batia um novo coração. Um coração que me confirmava o milagre do
resgate
- Eu sei Lídia, eu sei que a minha vida começa hoje.
- Mãezinha, mãezinha – Ana despertou-me das minhas recordações,
ao ofertar-me um lindo ramo de malmequeres.
- Oh que lindos Ana. Obrigada… – disse emocionada.
- Está na hora de regressarmos a casa princesa… o sol já se está a
despedir.
- Sim, mãezinha – concordou ela – já tenho aqui malmequeres
suficientes para fazer as grinaldas.
Sorridentes e de mãos dadas, regressamos ao nosso ninho.
Com o meu olhar alagado da mais pura felicidade, declarei a Deus em
silêncio as mais belas palavras de amor e gratidão…

Florbela Ribeiro

48
Redemoinhos

49
A dor que me inundava naquele momento era indescritível.
Um redemoinho vindo ninguém sabe de onde, destruiu por completo
a minha vida.

50
Arrombou subitamente a porta do meu lar, lançando para bem longe
a quietude e a paz.
No rasto da sua passagem ficaram para além da dor, muitas outras
aflições.
- Tinha ainda tanto para dar à vida…
- Sim…era tão jovem, mas a morte não escolhe idades.
Eram estes os comentários feitos durante o trajecto daquele cortejo
fúnebre.
O coral de mulheres carpideiras, todas vestidas de negro,
assemelhava-se a um quadro imaginário.
Era como se tudo aquilo não passasse de um sonho, ou melhor, de
um pesadelo, onde eu não me enquadrava.
- Está em estado de choque a pobrezinha – diziam algumas vozes
amigas.
- Não admira, sendo ainda tão nova, e os meninos tão pequenos…
que Deus tenha misericórdia dela…
O eco das suas vozes chegava até a mim como algo estranho e
irreal…
Seria de mim que falavam? Era o meu infortúnio que lamentavam?
Desgraçadamente era, mas a dor do momento deixou-me
completamente anestesiada.
Não recordo ainda hoje com clareza o trajecto, e as palavras
proferidas por Eliseu na cerimónia fúnebre de Ami.
Lembro-me, isso sim, de regressar ao meu lar com o corpo dorido até
as entranhas…
Mas sem lhe dar descanso, vagueei toda a noite pela casa como uma
moribunda, percorrendo com o olhar cada recanto.
Revivi em cada um, belos momentos passados com o meu Ami, e
chorei amargamente a minha perda. Permaneci porém, por longos
dias, com as janelas da minha alma abertas, como que aguardando a
sua chegada. Mas o meu amor nunca mais voltou…

51
Aos poucos, fui despertando daquela nostálgica apatia em que
inconscientemente mergulhei, e confrontei-me com a minha nova
realidade. E que dura realidade aquela, meu Deus...
A morte de Ami veio sem aviso prévio. Via-me agora sozinha, com
duas crianças pequenas que precisavam urgentemente de mim.
Noam tinha 5 anos e Zamir acabara de completar 8 primaveras.
Ami era um homem por natureza optimista e até um pouco sonhador,
mas eu adorava ouvi-lo projectar as suas ideias e os seus sonhos para
o futuro.
Ele tinha tantos planos…, mas o destino cancelou-lhos todos.
- Mamã, o papá vai demorar muito para chegar a casa? - Perguntou-
me Noam com a voz cheia de ternura.
Os seus olhitos ansiosos aguardavam por uma resposta contrária
aquela que o seu coraçãozinho lhe ditava.
- Vai meu amor – respondi-lhe esboçando um sorriso apático – o papá
foi fazer uma longa viagem. Mas um dia nós vamos ter com ele, sim?
- Porque não vamos já mamã? – Perguntou amuado.
- Não podemos ir agora meu amor. – Magoou-me tanto ver a dor
invadir o seu rostinho inocente.
- Oh, mas eu quero ir agora com o papá… – agarrou-se ao meu
pescoço com toda a força, e chorou convulsivamente.
Zamir, o meu filho mais velho, que assistia em silêncio disse:
- Não sejas choramingas. O papá conta connosco para cuidar da
mamã e da casa enquanto está em viagem. – As lágrimas que
rolavam pelo seu rosto, e que ele teimava em limpar
disfarçadamente, eram as únicas a atraiçoar a sua postura forte.
- Meus pequenos homenzinhos – disse comovida ao envolve-lo
também naquele abraço.
Foi nesta salinha minúscula, e no calor de um abraço a três que nos
despedimos de Ami.
Mas, não tardou muito tempo até que outro redemoinho arrombasse
a nossa vida. Há quem diga que a desgraça nunca vem só, e é
verdade.

52
Despertei com a claridade que diariamente entrava pela frincha da
janela do meu quarto, e anunciava o despontar de um novo dia.
Sempre gostei de acordar cedo para fazer a minha oração matinal, e
depois com o silêncio ainda a reinar pela casa, preparar o pequeno-
almoço das crianças.
Mas naquela manhã, tudo foi diferente. Após terminar o meu tempo
de oração, soaram na porta, umas pancadas desconhecidas e
violentas.
Não era normal por aquelas horas receberem-se visitas, e eu muito
menos, dado que era uma mulher viúva. Receosa e com o coração
alvoraçado abri a porta.
Deparei-me com um homem alto de meia-idade, e semblante
carregado.
- Venho fazer a cobrança – disparou ele sem ao menos me saudar.
- Cobrança? – Disse meio a gaguejar – Mas, a que cobrança se refere?
- A esta – disse lançando-me em rosto um papel repleto de números e
com duas assinaturas.
- Tudo isto? – Perguntei com o olhar arregalado – Mas é muito
dinheiro, o senhor deve saber que o meu marido faleceu e ….
- Não estou interessado nos seus problemas – a sua voz soava como
um trovão nos meus ouvidos – ou me paga o que deve dentro de 8
dias, ou levarei os rapazes comigo!
- Meu Deus, valei-me… – foi a única coisa que consegui articular.
Olhou-me sem piedade de alto a baixo, antes de desaparecer.
Nas minhas mãos estava agora uma dívida enorme, que eu não sabia
como, nem quando poderia pagar.
- O que faço agora meu Deus? Eu não tenho nem dinheiro nem bens a
que possa recorrer, e aquele homem não veio aqui disposto a
negociar – percorrendo a pequena divisão da casa de um lado para o
outro, dialogava em voz alta com Deus.
- Oito dias, ele disse que se em oito dias eu não pagasse, viria buscar
o que de mais valioso eu tenho na vida, os meus dois filhos. Ah meu

53
Senhor tu não podes permitir que esta desgraça se abata sobre
mim…
- Mamã está a conversar com alguém? – Zamir observava-me meio
assustado.
- Não meu amor estava a pensar alto, só isso!
Ambos tinham acordado, provavelmente, com o bater da porta.
Tentei aparentar uma calma que não sentia e preparei-lhes o
pequeno-almoço.
De seguida solicitei ajuda a uma vizinha minha amiga.
Pedi-lhe que ficasse com os pequenos por algum tempo, dado que
tinha um assunto importante a resolver.
Sabendo eu que deixara as crianças em boas mãos, refugiei-me nos
meus aposentos e derramei a minha alma desesperada, aos pés do
Senhor.
Só Ele me poderia socorrer e libertar de tão grande aflição.
Ali fiquei por muito tempo…. Clamando, suplicando e implorando
ajuda e misericórdia.
Lavei com lágrimas o meu desespero, e depositei-o no altar do
Senhor.
Depois fiquei atenta à Sua voz, permanecendo ali por um longo
tempo de joelhos, e em silêncio.
- O profeta Eliseu – disse em voz alta, quando o seu nome assaltou
subitamente a minha mente. Eis a resposta de Deus ás minhas
súplicas.
Sem mais demoras fui ao seu encontro.
Encontrei-o na escola, rodeado de rostos que Ami tão bem conhecia.
Vendo ele o desespero estampado no meu rosto, dirigiu-se ao meu
encontro.
- O que é que aconteceu Bartira, para vires aqui nessa aflição?
- Peço que me perdoe pelo atrevimento de vir aqui incomoda-lo, mas
estou realmente muito angustiada. - As lágrimas que me corriam pela
face eram mais velozes do que as palavras.

54
- Ami era um bom marido, um bom pai, e um servo fiel e dedicado,
como bem sabe, mas aprouve a Deus chama-lo cedo.
- Sim é verdade … – confirmou o Profeta Eliseu.
- Era tão dinâmico e optimista… A sua mente estava sempre povoada
por inúmeros planos – Continuei com a voz embargada pelo
sofrimento – mas hoje pela manhã foi um credor lá a casa, e avisou-
me que se eu não pagar esta dívida em 8 dias, leva as crianças.
Ao contemplar aquele rol de números, exclamou:
- Oh valha-me Deus! E agora o que vamos fazer? – Olhava-me
perplexo e pensativo – O que tens lá em casa de valor?
- De valor… apenas um pouco de azeite numa garrafa, nada mais.
- Então vais fazer o seguinte. Percorre todas as tuas vizinhas e pede-
lhes emprestadas muitas vasilhas vazias! Depois em casa com a
porta fechada e na companhia dos teus filhos, enche todas as
vasilhas que conseguiste com o azeite que tens na garrafa.
- Santo Deus – Pensei para comigo. A ordem do profeta Eliseu não
fazia qualquer sentido. Eu tinha um pouco de azeite numa garrafa,
como poderia eu encher muitas vasilhas com ele? Olhei-o nos olhos, e
sem o questionar despedi-me para obedecer à sua ordem. No
caminho para casa, fui solicitando as vasilhas.
Grandes ou pequenas não importava, o que tinham era de ser muitas.
Fui buscar Noam e Zamir, fechei a porta atrás de nós, e comecei a
verter o azeite na primeira vasilha.
Aquele líquido precioso jorrava agora da minha garrafa sem parar, e
com ele fui enchendo, enchendo as vasilhas, uma a uma até que se
acabaram.
- Não há mais mamã – soltou num gritinho jubiloso Noam.
- Nem há espaço para mais – concluiu Zamir.
Os nossos corações não cabiam em nós de contentes. Tinha
acontecido diante dos nossos olhos um milagre maravilhoso.
- Não faz mal meus amores – disse eu – vamos comunicar esta
bênção ao Profeta Eliseu, e ele nos dirá o que fazer com tanto azeite.
A angústia desapareceu do meu rosto, e deu lugar a fé.

55
- Fiz tudo como o Profeta Eliseu mandou. E só quando acabaram as
vasilhas é que o azeite parou de jorrar da minha garrafa.
- Fizeste bem em ser obediente Bartira. O Senhor se alegrou e
abençoou a tua fé. Agora vende o azeite, e com o dinheiro dessa
venda, paga a tua dívida e vive tu e os teus filhos do resto.
E assim fiz, vendi o azeite, saldei a minha divida e sigo vivendo do
restante.
A emoção que senti naquele momento foi tanta que só através das
lágrimas a pude expressar. Era tanta a gratidão que brotava do meu
coração…
Foram duras as provas pelas quais passei, naquela época atribulada.
Mas o Senhor tem os seus propósitos. Hoje sei porque motivo Ele
permitiu que aqueles redemoinhos invadissem a minha vida.
Aqueles redemoinhos obrigaram-me a uma maior dependência de
Deus, e isso reverteu em maturidade e crescimento espiritual.
A Deus toda a Glória!

Florbela Ribeiro

Abençoado descuido

56
A Primavera chega à aldeia, ao som do chilrear que as aves trazem
nos bicos sorridentes. As flores, que desabrocham pelas bermas do
caminho, perfumam a brisa suave que, delicadamente, também as
beija ao passar.
É o renascer da natureza após um rigoroso Inverno.
Nesta época do ano, o Sol desempenha um papel muito importante
na vida de Ana. Vai acordá-la todas as manhãs.

57
Mas para o fazer, tem de se esgueirar sorrateiramente, através duma
pequeníssima frincha da janela do quarto de Ana. De seguida,
projecta sobre o seu rosto uma subtil luminosidade que a faz
despertar.
É a envolvência daquele toque morno na sua pele, que a desperta e
faz aflorar nos seus lábios um meigo sorriso.
É o seu jeito doce de lhe agradecer, porque é assim que ela gosta de
acordar todas as manhãs.
Mas naquele dia isso não aconteceu.
Ana, ao pressentir uma fraca luminosidade entrar-lhe pelo quarto,
ergueu-se imediatamente da cama.
Era necessário arrancar das paredes da casa os odores do último
Inverno.
Lá fora, o rouxinol madrugador, desafiava os mais dorminhocos a
despertar…
Ana abriu a janela de par em par, e respirou com sofreguidão o ar
fresco daquela manhã primaveril.
- Que dia magnífico – pensou – excelente para realizar as tarefas que
tenho em mente.
Olhou em volta, e no seu raciocínio arquitectou a sequência de todos
os trabalhos. Estava tão entusiasmada que quase se esquecia de
tomar o pequeno-almoço.
- Ana, Ana… tem calma contigo, mulher! O dia ainda mal nasceu, e
antes de iniciares as tuas tarefas, precisas de fazer uma coisinha…
Era como que um ritual, do qual ela jamais abdicava.
As suas orações matinais estavam em primeiríssimo lugar mas… a
excitação daquela manhã fez esquecer, ainda que por breves
segundos, aquele precioso compromisso.
- Primeiro tens que conversar com o teu Amigo! - Era interessante
observar a forma como se exortava. Fazia-o com simplicidade e com
graça, revelando um espírito de reverência muito acima da média.
Mas a concentração naquela manhã não foi muita… estava
demasiado alvoraçada.

58
Articulou apenas algumas palavras de agradecimento, dirigindo de
seguida o olhar até à cozinha. Não estava com apetite, mas iria
precisar de energia, para colocar em prática a missão a que se tinha
proposto. Engoliu à pressa um pouco de leite, pegou numa maçã, e
deu início aos trabalhos.
Ana é, por natureza, uma mulher prática e inovadora, que se recusa
terminantemente a aceitar a rotina do dia-a-dia.
E sempre que faz a já habitual limpeza semanal na casa, gosta de
alterar a decoração. Nem que seja apenas a troca de posição de um
ou outro bibelô. Mas há sempre algo a denunciar que Ana passou por
ali.
Esta característica não passa despercebida aos olhares vizinhos, que
lhe tecem elogiosos comentários mas… existe na casa um objecto
que provoca em todos, um torcer de nariz.
- Tens a casa sempre tão bonita e bem decorada Ana, mas aquele
pote de barro ali, não dá com nada! – Ana limita-se a sorrir perante
esta constante observação.
- Se vocês soubessem o que ele contém… – pensava.
Aquele pote era um enigma que todos tentavam descobrir, mas Ana
dava-lhes sempre a mesma resposta. Um sorriso tímido, porém mudo.
Não faz muito tempo, que o Sr. José, merceeiro do bairro, lançou a
seguinte aposta:
- O vizinho que conseguir arrancar alguma informação sobre o
misterioso pote, e o que ele tem lá dentro, fica com a despesa do mês
liquidada! Palavra de Zé da loja – Assegurou ele, mas o facto é que
ninguém conseguiu arrancar-lhe nada. O mistério persistiu, e dava
cada vez mais que pensar.
Passando para segundo plano estas lembranças, Ana arregaçou as
mangas e, com determinação, lançou-se ao trabalho.
Iria dar uma reviravolta completa em toda a casa. Ela já tinha
visualizado tudo na sua mente, e estava radiante com o resultado.
- A casa até vai parecer outra, oh se vai – pensou com um grande
sorriso.

59
As horas passaram a correr, e Ana não parou um minuto. Lavou
janelas, paredes, tectos, cortinas, carpetes, limpou os móveis, trocou-
lhes a posição, e lavou as suas decorações. A tarde já ia longa, e Ana
estava completamente esgotada, mas feliz. Por fim sentou-se no chão
da sala, bem no centro, e olhou à sua volta.
- Está tudo exactamente como idealizei, estás de parabéns, Ana! – um
sorriso de contentamento iluminava-lhe o rosto cansado.
- Oh não! – exclamou, erguendo-se num pulo. – Esqueci-me por
completo de limpar o pote…. Que cabeça a tua, Ana – repreendeu-se
ela, como já era hábito.
De repente, ouviu-se um grande estrondo…sprach!
- Meu Deus, oh meu Deus, isso não…. – as lágrimas caíam-lhe pelo
rosto.
- O meu pote de barro…. Oh meu Deus e agora? – sem forças e
completamente esmorecida deixou-se cair sobre os joelhos, na fina
carpete, coberta de cacos.
Mas o pior foi ver aquele precioso líquido desaparecer-lhe diante dos
olhos. Parte dele era absorvido pelo soalho, e outro evaporava.
Ana tentava desesperadamente agarrar aquele aroma, mas não
conseguia.
- Como pudeste ser tão descuidada, Ana… Oh Meu Deus… todas as
tuas poupanças, todo o teu investimento….
- Perdi tudo, tudo… – Ana reflectia agora a imagem do desespero e da
desolação.
O pote de barro que tinha originado tanto mistério e alguma crítica…
estava agora fragmentado pela carpete… e o unguento, que
secretamente se encontrava nele guardado… erguia-se no ar, ao seu
redor.
Através da janela da sala, que Ana mantivera aberta, entrava uma
fraca claridade, que anunciava a chegada do anoitecer.
Do meio dela irrompeu uma voz:
- Ana, oh Ana, estás aí?

60
- Sim, tia Amélia, estou aqui – Ana estremeceu ao ouvir a voz da
vizinha.
A tia Amélia é a moradora mais antiga da aldeia. Muito respeitada e
admirada por todos, mantém, apesar dos seus 94 anos, um
dinamismo e uma jovialidade fora do comum.
- Estou farta de bater à porta e não me ouviste! – os seus olhitos
fitavam atentamente o semblante desfigurado de Ana.
- Desculpe, tia Amélia, estava ali mergulhada nos meus pensamentos,
e não me apercebi que tinham batido à porta.
- Hum… mergulhada em lágrimas pelo que vejo.
- Sim… – respondeu Ana, com tristeza.
- Mas eu vim dar-te uma boa notícia, rapariga.
- Ai sim? – perguntou num fio de voz, que para os ouvidos cansados
da Tia Amélia foi quase inaudível.
- Anda aqui à rua e diz-me o que vês? – Segurou-lhe com firmeza na
mão, e puxou-a para fora.
- Mas tia Amélia, eu não estou em condições de… – mas assim que
desceu a soleira da porta, reparou que os seus vizinhos estavam
todos na rua.
- O que se passa aqui, tia Amélia? Porque estão todos na rua a esta
hora?
Àquela hora, era habitual estarem já quase todos recolhidos em casa,
principalmente as mulheres e as crianças.
Mas naquele fim de tarde não acontecia assim… estavam todos na
rua: homens, mulheres e crianças, e… com os narizitos erguido para
o ar.
- Não sentes este delicioso aroma? Está espalhado por toda a aldeia,
até mesmo dentro das casas se sente de forma intensa.
- Ah! É o meu unguento, tia… fui tão descuidada – as lágrimas que
teimosamente se mantiveram nos olhos, deslizaram novamente pelas
faces pálidas.
- Achas mesmo que foste descuidada, Ana? - A voz da tia Amélia soou
com tanta ternura que parecia abraçá-la.

61
- Fui sim, tia! Hoje, levantei-me bem cedo para fazer uma limpeza
geral na casa, e com a correria nem me lembrei de almoçar. E
depois…bem… depois eu estava a verificar se tinha tudo em ordem, e
reparei que me esqueci de limpar o lugar onde tenho… onde tinha… o
pote de barro.
- E o que aconteceu? – insistiu a tia.
- Creio que tive uma ligeira tontura quando me levantei apressada,
talvez devido ao cansaço ou fraqueza, não sei bem. O facto é que o
pote escorregou-me das mãos… e derramei todo o unguento.
- Vou dizer-te uma coisa que talvez te vá desagradar Ana, mas tu
precisas de ouvi-la com muita atenção. – o semblante da tia Amélia
estava agora carregado.
- Diga, tia Amélia… – nada do que lhe pudesse dizer, a iria magoar
mais do que já estava. Ela já se recriminava tanto…
- Estás a ser demasiado egoísta Ana, e isso não é nada bom – Ana,
arregalou os olhos até não poder mais.
- Eu, egoísta? Não estou a perceber, tia! Acabo de lhe dizer que perdi
todo unguento, comprado com as minhas poupanças, e a tia diz-me
que sou egoísta?
- Claro! Tu achas justo ter escondido este unguento delicioso somente
para ti?
- E porque não, tia? O seu valor é elevadíssimo, e fui eu quem
trabalhou para o comprar… era meu!
- Ai, ai, ai, Ana! Então tu não sabes que nós nunca devemos esconder
as bênçãos que recebemos de Deus? As bênçãos são para ser
repartidas com todos aqueles que nos rodeiam… Repara como o teu
descuido perfumou a aldeia… o seu aroma invadiu os quatro cantos
do povoado, trazendo a vizinhança para a rua!
- E isso é assim tão bom, tia?
A tia Amélia sorriu ao ver a inocência estampada no rosto de Ana.
- É mais do que bom, minha filha, é maravilhoso! Não voltes a
esconder as tuas bênçãos, mas reparte-as com os demais. Deixa que
vejam em ti a diferença de teres uma dádiva especial… O aroma

62
deste unguento deverias tê-lo espargido à tua volta, deverias ter-te
perfumado com ele, assim como perfumado a tua casa, e os que
moram contigo, por isso é que eu disse que foste egoísta. Pensa
comigo, Ana… que proveito teve esse unguento dentro do pote de
barro? Nenhum… foi apenas uma vaidade pessoal, nem mesmo tu
fizeste uso dele, e isso está errado.
- Ana, atenta bem para o que te vou dizer! Quando tiveres algo de
valioso, seja uma bênção ou uma dádiva especial, permite que
aqueles que te cercam se apercebam dela e a sintam através da tua
felicidade. Só assim poderão desejar alcançar a mesma graça que tu.
- Recordas-te como foi quando encontraste a Salvação? Houve uma
mudança na tua vida; o teu semblante mudou, a tua maneira de falar,
de pensar e de agir mudaram radicalmente.
- Sim, tia, recordo perfeitamente, como poderia esquecer… – Ana
sorria ao recordar o dia em que nasceu de novo.
- Percebes agora o que quero dizer? A tua salvação foi uma bênção
visível a todos. Se assim não fosse, não terias tido um verdadeiro e
real encontro com Deus.
- Então este meu descuido ao derramar o unguento, não foi uma
tragédia? – perguntou Ana, tímida e muito apagada.
- Não, minha querida, eu diria até que o que aconteceu foi um
abençoado descuido. – disse a tia, convictamente, com o olhar e as
mãos erguidas para o céu.
- Um abençoado descuido… – Ana meditava naquelas palavras,
enquanto a tia Amélia via que o seu semblante se ia abrindo – Um
abençoado descuido...
Naquele dia, Ana aprendera uma grande lição.
Lição essa que ficaria gravada na memória de toda aldeia.
Anos depois, quase todos aqueles que estiveram presentes nesse fim
de tarde, ainda retinham no mais fundo do olfacto, que num dia
distante, de uma Primavera distante, pelo entardecer, a aldeia
respirara a mais doce fragância alguma vez sentida...

63
Florbela Ribeiro

O auto-retrato

64
Jéssica repousava a excessiva magreza do seu corpo cansado e
doente. Na cama adornava a silhueta esguia com uma nobre e
delicada colcha de linho, bordada à mão. Mas permitiu que o seu
olhar baço pela dor se ausentasse dali.
Através da janela entreaberta, entrava uma brisa fresca, que fazia
esvoaçar com subtil leveza a brancura da cortina de organdi.

65
Havia um sinal de que o calor intenso que se fizera sentir ao longo de
quase todo o dia, começava finalmente a dar tréguas.
Em frente, e por cima da cómoda de carvalho maciço, o auto-retrato,
pintado por um conceituado artista israelita, observava-a
atentamente, parecia perceber quais os caminhos por onde vagueava
o pensamento.
Percorria mentalmente as ruas e os becos, tantas e tantas vezes
calcorreadas, para levar auxílio, cuidado ou simplesmente afectos.
Cruzaram-se com ela inúmeras histórias de vidas, onde a tragédia,
sem ser convidada, batera à porta. Histórias que se mantinham bem
presentes na sua memória, ao ponto de sentir a miscelânea de
aromas provenientes daqueles caminhos, invadirem-lhe o quarto…
- Que saudade… – murmurou.
As gotículas que lhe desciam suavemente pelo rosto, não eram
apenas saudade. Havia nelas muito de desespero, de desânimo, de
amargura, e revolta, e toda essa mistura resultou numa rendição
total.
O optimismo era uma das muitas qualidades na personalidade de
Jéssica, mas nas circunstâncias actuais, tal era de todo impossível.
O destino desferira-lhe um duro golpe, ao traí-la daquela maneira.
Jéssica sabia que o seu fim se aproximava, e não havia nada, nem
ninguém que a pudesse salvar.
Recuar no tempo, remexer nas memórias, era a única maneira de
escapar à dura realidade. Era uma fuga momentânea, mas que
amaciava, tal como um bálsamo, os golpes profundos, desferidos pela
fatalidade.
Foi notório o brilho que por breves instantes lhe iluminou o rosto, ao
recordar o apelido pelo qual o seu pai era conhecido na cidade:
- “ O VI-SI-O-NÁ-RIO” – soletrou baixinho.
Fora assim “baptizado”, depois de muito insistir na “loucura” de dar à
sua filha Jéssica, a mesma educação que recebia todo e qualquer filho
varão.

66
Uma opinião que foi prontamente contestada e encarada como
absurda, além de uma verdadeira afronta para a cultura e a
mentalidade da época.
Mas seu pai, possuidor de uma visão que via o futuro, asseverava que
os rapazes e as raparigas deveriam ter direitos iguais, no acesso aos
estudos.
- A mulher deve ser instruída, quanto mais não seja, para criar um lar
mais acolhedor e atractivo para o seu marido e filhos. Isso não irá
afectar em nada os seus afazeres domésticos, bem pelo contrário, irá
valoriza-lo. Pensem nisso! – argumentava ele a plenos pulmões.
Era um dos homens mais respeitados da cidade, mas o seu prestígio
não derivava da posição socioeconómica que ocupava, e sim da
forma atenciosa e afável com que tratava toda a gente.
É claro que a juntar a este rol de qualidades, estava também o
geniozinho com que defendia as suas convicções. E não abdicava
delas a favor de ninguém.
- Nem a favor do Imperador – afirmou ele certo dia com ironia.
Ao ouvir a argumentação cerrada, e por vezes irada dos
conservadores, estava sozinho, mas mesmo assim não desistiu.
- Mas que raio… – vociferou ele, no último debate – a filha é minha,
portanto sou eu quem decide como é que ela será educada e ponto
final!
Não conseguiu alterar as regras do sistema de educação, em
benefício das raparigas, mas jamais permitiria que alguém se
intrometesse na educação da sua filha.
A sua esposa Maria, Avi o seu primogénito e a sua filha Jéssica, eram
os seus únicos apoiantes, e isso bastava-lhe.
O orgulho que aqueles três pares de olhos evidenciavam por ele,
dava-lhe a força necessária para avançar.
E foi essa perseverança paterna que permitiu que Jéssica recebesse
um ensino completo.
Com o passar dos anos Jéssica transformou-se numa mulher culta,
inteligente porem sóbria. Mas tal como o seu pai, era determinada

67
quanto às suas convicções e nem a timidez característica da sua
personalidade a fazia recuar.
Jéssica possuía uma alma extremamente bondosa, que a impedia de
ficar de braços cruzados diante dos problemas e das carências do
povo.
Era movida pela compaixão, nutria um carinho especial tanto para
com as crianças, como para com os doentes, os pobres ou
necessitados.
Sofria ao ver uma mãe que agonizava na dor de perder um filho.
Revoltava-se com o desprezo e o abandono que eram infligidos aos
cidadãos mais vulneráveis. E com o regime governamental, onde as
leis aplicadas eram cegas, imparciais e desumanas diante do
sofrimento do povo.
A sua faceta solidária enchia de orgulho todos os membros da família
e, rapidamente, tornou-se numa defensora acérrima dos mais
carenciados.
Onde houvesse algum tipo de carência, aí estava Jéssica.
Prestativa e afável, auxiliava tudo e todos, o quanto podia, e sempre
que a situação a transcendia buscava ajudas externas, sem poupar
nem medir esforços. Deparou-se inúmeras vezes com situações
delicadas e problemáticas, como crianças que perdiam
acidentalmente os seus pais, ou que eram largadas ao abandonado,
ou outras que eram maltratadas pelos próprios familiares.
Nas duas primeiras situações, e sempre que estas sucediam, ela não
descansava até lhes arranjar um novo lar. Elegia casais
impossibilitados de ter filhos, ou lares onde a desgraça se tivesse
instalado, ao levar-lhes um filho.
Era uma maneira de atenuar simultaneamente dois sofrimentos de
uma vez. E a garantia de que as crianças seriam mais facilmente
acolhidas e bem cuidadas, era maior.
Cuidava igualmente dos idosos, prestava-lhes os cuidados básicos
essenciais, principalmente quando se encontravam acamados. Para
os mais activos e ainda saudáveis arranjava algumas actividades de

68
modo a incorporá-los na sociedade. Uma maneira simpática e
inteligente de fazer com que se sentissem úteis.
Também angariava bens de primeira necessidade, que distribuía
pelos mais pobres e carentes. Recorria aos ilustres senhores da
sociedade, mas contava com a preciosa ajuda da sua mãe. Era ela
quem confeccionava os deliciosos almoços ou lanches, onde o
requinte e sofisticação marcavam presença.
Era nesses encontros que Jéssica aplicava todo o seu potencial
argumentativo com uma eloquência oratória de fazer inveja.
Descrevia o sofrimento das histórias de vida com tanta clareza e
pormenor, que os convidados ficavam com a sensação de estar
diante delas.
Agora todos podiam finalmente comprovar que o seu pai tivera razão.
A educação que Jéssica recebeu não a desvirtuou em nada, pelo
contrário.
Obviamente que os mais tradicionalistas e conservadores não
admitiam publicamente o facto de terem errado nas suas alegações,
mas faziam-no em privado. Não foram poucas as vezes que, com
palmadinhas nas costas, o felicitaram, pela preciosidade que tinha em
casa.
O empenho e o dinamismo que Jéssica impunha em defesa das
causas sociais, e no voluntariado, contribuiu para que a sociedade a
olhasse com um profundo apreço e respeito.
A sociedade da época nunca se preocupava com os estados de
miséria que a rodeava, nem tão pouco se sensibilizava com os
problemas dos mais desfavorecidos.
Mas Jéssica era a excepção à regra, ela era sem dúvida uma alma
fora do comum.
- Que razão tem o destino para ser tão cruel connosco? - perguntou
Jéssica – dedicamos a nossa vida ao serviço dos outros, enquanto que
a nós… ninguém ajuda.

69
Passava em revista todas estas lembranças, mantendo o olhar preso
à imagem do passado, no seu auto-retrato. E ambas se interrogavam.
A diferença que existia entre as duas era abismal.
A Jéssica actual não transparecia bondade, nem ternura, nem
esperança. Não havia nela nada da mulher de outrora. Encontrava-se
ressequida, tudo se esvaíra de dentro dela. Tudo menos aquela
maldita enfermidade.
As últimas palavras que o responsável da equipa médica lhe proferira
nessa mesma manhã, martelavam ainda na sua mente.
- Lamento muito, mas não há nada que possamos fazer por si.
Que ironia meu Deus.
- Não há nada a fazer – recalcava aquelas palavras sem desviar o
olhar do quadro.
Não havia nada a fazer nem a ninguém a quem recorrer, e ainda que
houvesse, ela já não possuía dinheiro nem bens.
A herança que os seus pais lhe deixaram e as poupanças que
amealhou ao longo dos anos tinham sido gastas nas inúmeras
consultas e tratamentos que fez. Bateu a todas as portas possíveis e
imagináveis, desde médicos a curandeiros. E encontrou de tudo um
pouco. Charlatães e vigaristas que lhe extorquiram tudo quanto
puderam, em troca de falsas esperanças.
Outros, tal como o último médico, eram honestos, mas tinham os
prognósticos desfavoráveis.
Dado que não havia mais nada a fazer, iria aguardar ali pelo
inevitável desfecho.
Aguardaria com tranquilidade a chegada da morte, porque só ela
tinha o poder para a libertar de todo aquele sofrimento.
Subitamente uma forte rajada de vento Norte invadiu-lhe o quarto,
abrindo a janela entreaberta de par em par. A cortina era agora
sacudida violentamente.
Desperta que foi dos seus pensamentos, Jéssica ergueu-se
lentamente do leito para fechar a janela, mas não conseguiu.
As suas forças não eram muitas, mas o vento era realmente forte.

70
- De onde saiu este vento? – Jéssica esforçava-se ao máximo mas de
nada valia.
Cansada, preparava-se para regressar ao leito quando ouviu vozes
vindas da rua.
- O Nazareno vem aí! O Nazareno e os seus discípulos. Venham ver os
milagres que opera. – anunciava uma desconhecida voz, ao percorrer
a rua.
- Milagres? – repetiu Jéssica – não há milagres para quem está como
eu condenada a morte. Milagres…
Reparou com espanto que o vento tinha acalmado por completo.
- Que estranho – pensou ao mesmo tempo que fechava a janela.
Aquela súbita rajada de vento que a obrigou a emergir dos
pensamentos, a erguer-se do leito, e a impediu de fechar a janela
parecia querer chamar a sua atenção.
- O Nazareno… já ouvi falar deste Nazareno – o nome não lhe era
estranho – mas onde?
Sentada na beira da cama, Jéssica começou a revolver as suas
memórias.
- Nazareno… Ah… já sei! É o filho de um carpinteiro de nome José. –
recordou-se então de um velhinho muito doente, que tinha sido
abandonado pelos filhos durante a festa da Páscoa. Ele contou-lhe
que uns anos antes, pouco tempo depois de ela vir ao mundo, tinha
nascido em Belém um bebé de nome Jesus, o qual se dizia ser o
Messias aguardado e pelos profetas anunciado.
Esse velhinho estava convicto de que assim era, e antes de morrer
disse-lhe que só Jesus, o Nazareno tinha poder para salvar a
humanidade.
Depois disso ouviu vários relatos de milagres, mas nunca ligou.
Estava mais preocupada em ajudar aqueles que dependiam do seu
auxílio, porque se não fosse ela, passariam bem pior.
Jéssica era prática e objectiva, e não acreditava em fábulas ou contos.
Tinha que ver para crer, e o que via era desgraça e tragédia.

71
E o povo aumenta sempre um ponto nos relatos que faz… quantos
pontos não teriam sido já acrescentados desde a data do seu
nascimento?
- Venham todos ver o Nazareno – a voz bateu-lhe com tanta força à
janela que Jéssica quase caiu da cama, com o salto que deu.
- Santo Deus – soltou com a voz enfraquecida – o homem está doido.
Não lhe interessava para nada aquelas notícias, só queria ficar ali
sossegada.
Já que ninguém tinha solução para o seu problema de saúde, ao
menos deixassem-na morrer em paz.
Ou será que também não tinha esse direito?
Estava zangada com tudo e com todos, mas principalmente com a
vida.
Deitou-se novamente sobre a cama e tentou adormecer. Não queria
pensar em nada, nem nas lembranças. Apesar de balsâmicas também
se tornavam dolorosas quando chegava a realidade.
Rendia-se por completo e agora achava mesmo que queria morrer,
sim era isso.
- Quero morrer em paz e acabar de vez com este tormento que me
persegue à doze anos. Já basta. – cerrou os olhos com força.
Aquela voz desconhecida, que momentos antes gritava pelas ruas,
continuava a ouvir-se na mente.
Jéssica revirava-se de um lado para outro mas a voz permanecia ali.
Por fim, cansada de tanto se remexer, sentou-se na cama e fixou o
olhar no auto-retrato.
- Queres explicar-me o que se passa? Porque razão não consigo
dormir e morrer em paz? – questionou-se ela.
- Não estás a espera que eu me levante e vá atrás desse Nazareno,
pois não?
Na imagem daquela que fora a Jéssica de outrora, transparecia o
brilho característico da sua bondade. O seu sorriso, era todo ternura e
esperança…
- Mau… – proferiu com um levantar de sobrolho.

72
Gerou-se um diálogo entre ambas… Jéssica e o seu auto-retrato, que
só era perceptível através das respostas e perguntas que iam sendo
proferidas por ela.
- Sabes bem o quanto estou cansada – disse – por isso não vou a lado
nenhum.
- Sim, eu sei que já recorri a muitos sítios, por isso mesmo é que
estou farta de acender a nossa lamparina da esperança, para depois
ter de a apagar.
- Não insistas – disse num grito abafado pelas lágrimas que voltavam
a cair-lhe com abundância. – Não vou, desiste… por favor!
Jéssica travava uma luta violenta. A sua esperança recusava-se a
baixar os braços e contendia insistentemente com ela.
- Tu não vês como estou? – questionou por entre os soluços que a
sacudiam – Acabaram-se-me as forças, o optimismo, o dinheiro, a
coragem, a esperança… acabou tudo, tudo…
Enrolada sobre si deixou que as lágrimas que ainda lhe restavam, lhe
lavassem as dores provocadas pela amargura e revolta que sentia.
Ficou assim durante tanto tempo, que acabou por adormecer.
Despertou ao som do chilrear alegre de um pássaro, que ela nunca
ouvira antes.
- Que pássaro é este? – ergueu-se muito devagar, dirigindo-se de
seguida para a janela do quarto. Abriu-a, lentamente, para não
espantar o passarinho cantante.
- Uau! Que lindo – exclamou. Era uma ave pequena com a plumagem
em tons de azul e cinza, e o peito era de um laranja fogo.
A ave parou de cantar e deixou que Jéssica a observasse, de seguida
levantou voo e partiu dali.
- Nunca vi esta espécie de pássaros por aqui – comentou de si para si
– Que estranho…
Ao retornar à cama prendeu o olhar no auto-retrato.
- Continuam os mistérios, não é? Será que tens razão quando dizes
que devo ir ter com Jesus o Nazareno?
De repente soa da rua uma voz de criança que grita:

73
- Ele já chegou, ele já chegou!
Jéssica abeirou-se da janela e com a voz meio enfraquecida, e meio
rouca, perguntou à criança:
- Quem é que chegou, rapazinho?
O miúdo olhou para trás e ao vê-la fez uma pequena careta, mas de
imediato sorriu-lhe:
- Foi Jesus, o Nazareno. Chegou a aldeia e uma multidão já está lá
para o receber, venha.
Aquele convite soou-lhe diferente, porém especial, tal como o
semblante daquele rapazinho. Havia algo na sua expressão que ela
não conseguia definir e, sem oferecer resistência respondeu:
- Sim, eu já lá vou ter. Obrigada.
- Vou estar à sua espera – disse a criança com um largo sorriso e
desapareceu.
Não podia voltar com a sua palavra atrás, dissera ao rapazinho que ia
e apesar de lhe custar imenso faze-lo iria cumprir com a palavra
dada.
Regressou ao interior do quarto olhou para o quadro e disse:
- É verdade, ganhaste… eu vou lá – sorria ao dizer aquilo – o
rapazinho diz que está lá uma grande multidão, mas eu creio que se
tocar apenas na orla das suas vestes, serei curada.
Se o quadro pudesse expressar o seu espanto…
Havia anos que não se via aquele brilho no rosto de Jéssica. Essa era
uma das razões porque não havia um espelho naquele quarto, nem
ela suportava olhar para a sua decadência gradual.
Mas algo mudara em Jéssica, havia um renascer de esperança, vindo
não se sabe de onde, mas também não era importante.
Foi com algum custo que Jéssica se preparou para sair, mas antes
ainda olhou para o quadro, com o dedo indicador apontado e disse:
-Fica desde já a saber que esta é a última vez que te dou ouvidos. A
última!
E saiu, batendo a porta atrás de si.

74
A movimentação nas ruas denotava que algo de anormal se passava.
As pessoas falavam e gesticulavam de modo exagerado e nem a
cumprimentavam de tão distraídas que iam.
Durante o trajecto ouviu que a filha do príncipe da sinagoga, de nome
Jairo, estava às portas da morte. Diziam que Jairo pretendia que Jesus
fosse até sua casa para curar a menina.
- Se até o príncipe da sinagoga crê que Jesus pode curar a sua filha,
fazendo um milagre, então também me poderá curar a mim – disse
Jéssica de si para si com renovada esperança e maior convicção.
O resto da viagem pareceu-lhe uma eternidade, queria tanto ver esse
Jesus de perto e poder tocar na orla das suas vestes…
Mas ao chegar lá, deparou-se com um tremendo obstáculo. A
multidão que cercava Jesus era tanta que ela nem conseguia
visualizá-lo.
- Se não consigo vê-lo, como vou poder aproximar-me e tocar-lhe? – o
desânimo voltava a instalar-se.
- Vai desistir agora? – era o rapazinho, que a observava de cima do
telhado de uma casa – Vai desistir agora? – insistiu ele sem desviar os
olhos do rosto de Jéssica.
- Achas-me capaz de desistir assim tão facilmente? – perguntou ela
tentando aparentar uma coragem que não tinha.
- Claro que não. Quem desiste não alcança vitória!
- Exactamente – anuiu Jéssica.
Olhou a sua volta na tentativa de encontrar uma brecha para chegar
até Jesus, e como não conseguia ver, resolveu perguntar ao
rapazinho. Ele de cima do telhado poderia ajudar a escolher o melhor
trajecto.
Mas quando se voltou para o lugar onde este se encontrava, já ele
tinha desaparecido.
- Que rapazinho estranho, aparece e desaparece como o vento.
Ao mesmo tempo que pensava no rapazinho misterioso, era engolida
pela multidão que a apertava de um lado para o outro. Sem saber
muito bem por onde ir, Jéssica tentava furar ora pela esquerda, ora

75
pela direita, em direcção à voz que ela julgava ser de Jesus. O povo
chamava o seu nome, suplicando por bênçãos e milagres, enquanto
outras vozes tentavam acalmá-los mas sem sucesso.
A distância que a separava de Jesus, o Nazareno, não era muita,
talvez umas dezenas de metros mas percorre-los foi uma autêntica
maratona. Tão dolorosa como a que a história regista.
É visivelmente esgotada e no limite das suas forças que Jéssica,
ergue o seu braço por entre o povo, e toca na orla do vestido de
Jesus.
Ela sente de imediato, que a hemorragia que há doze anos a
atormentava, estanca.
Mas Jesus apercebendo-se do que lhe sucedera pergunta:
- Quem é que me tocou? – gera-se de imediato uma enorme
confusão, e um dos discípulos que o acompanhava, Pedro diz:
- Mestre a multidão que te cerca aperta-te e comprime, e tu
perguntas quem te tocou?
- Sim, Pedro – respondeu-lhe Jesus – alguém me tocou, porque bem
sei que de mim saiu virtude.
Jéssica fora apanhada, e sabendo que não podia ocultar-se, resolveu
confessar:
- Fui eu Mestre – confessou-lhe Jéssica, enquanto se aproximava
tremendo, e prostrando-se diante de Jesus, relatou-lhe toda a sua
história.
Jesus ouviu-a atentamente, e também o povo que os cercava e que
entretanto se silenciara.
A voz embargada de Jéssica denunciava com clareza a comoção, pela
qual foi subitamente invadida.
O ar carregado de expectação ouvia atentamente o relato sucinto dos
seus doze anos, e a forma como se abeirara de Jesus para receber a
cura.
Não sabia que tipo de reacção, o seu atrevimento, iria merecer por
parte de Jesus, o Nazareno, e por isso temia…

76
Foi com manifesta surpresa que ouviu Jesus dizer-lhe que tivesse bom
ânimo, a sua fé salvara-a, podia partir em paz. Em sequência, o seu
auxílio, ergueu-a do chão. Jéssica atónita e sem palavras, deixou que
as lágrimas falassem por si.
Mas a desgraça rondava a multidão e não permitiu que houvesse
celebração.
Abeirando-se de Jairo, um dos príncipes da sinagoga, comunicou-lhe
que a sua filha tinha acabado de falecer.
O pranto instalou-se de imediato no meio da multidão agitada pela
notícia.
Na posse do milagre, Jéssica albergava agora no seu coração toda a
humanidade.
Jairo, visivelmente açoitado pela dor, exercia uma forte pressão nos
seus maxilares. E um manto rubro cobriu-lhe subitamente as janelas
da alma.
Jéssica observava o semblante de Jairo comovida, e sentiu uma dor
implacável a trespassá-la também.
A voz revestida de compaixão, disse àquele pai que não temesse,
mas cresse que a sua filha seria salva.
Jairo limitou-se a acenar em concordância com Jesus.
- É verdadeiramente um homem de fé – afirmou alguém do meio do
povo.
Jéssica sentia-se exausta, o corpo suplicava-lhe por descanso mas o
seu coração não o escutava. Em vez disso, juntou-se ao grupo que
acompanhou Jesus e os discípulos até a casa de Jairo.
Era-lhe necessário saber o desfecho daquela história e conhecer mais
do homem que a curará.
Durante o trajecto foram-se erguendo no ar nuvens de choro e pesar,
mas as críticas ao comportamento de Jesus, o Nazareno, não se
fizeram esperar.
- A menina podia estar viva se ele tivesse atendido ao pedido de Jairo.
– dizia uma voz – e tanto que o pobre homem lhe suplicou para que
fosse a sua casa. Eu ouvi!

77
- Sabes lá tu o que dizes mulher – ironizou outra – achas mesmo que
o Nazareno possui assim tantos poderes?
Jéssica não se conteve diante de toda aquela incredulidade, e
disparou:
- Hipócritas! Contemplastes os milagres com os vossos olhos, e já os
maldizeis com o coração?
Os olhares silenciaram a sua descrença perante a questão pertinente.
O sol escaldante que se fazia sentir aquela hora do dia, incidia de
forma impiedosa sobre os seus corpos cansados. E a poeira que, se
erguia das passadas lentas da multidão, cobria com intensidade a
visão daquele povo descrente.
- É a mulher do milagre que vimos a pouco – sussurrou alguém.
- Ah pois é… – exclamou uma voz – mas olhem… já nem parece a
mesma.
Jéssica não tinha a menor noção da transformação que ocorrera no
seu rosto.
Sabia o que acabava de suceder no seu corpo. O contínuo esvair de
sangue, o mal-estar e aquela sensação de extrema fadiga, que a
perseguiu durante doze longos anos, tinham desaparecido. Mas
desconhecia que a palidez que antes lhe cobria as faces, se tinha
igualmente dissipado.
- Um simples toque – disse Jéssica com o sorriso nos olhos – tudo
aconteceu com um simples toque de fé.
- Como ousas afirmar com tanta convicção que estás curada? Acaso
já to comprovou algum médico? – Jéssica apercebeu-se que aquela
pergunta era feita com um único objectivo. Desacreditar a Jesus o,
Nazareno.
- Vedes estas pedras do caminho? Assim sois vós e os vossos
corações, duros e revestidos da imundície que vos cega o
entendimento.
- Porque vos recusais a ver o que está diante dos vossos olhos? Ouvis
falar dos prodígios e das maravilhas que o Mestre opera. Contemplais

78
as mesmas, e ainda assim teimais em pedir mais provas? E tudo
porque dais guarida á incredulidade.
Jéssica falava com uma autoridade e convicção fora do comum.
- Não será esta a filha do falecido visionário? – a pergunta era-lhe
lançada por um homem de meia-idade. A sua roupagem denunciava
pertencer aos principais da sinagoga.
Ouvira-a com atenção e, secretamente, admirou a eloquência
defensiva daquela mulher.
- Sim, sou eu mesma – disse com manifesto orgulho.
Como era bom saber que alguém se recordava do seu pai...
- Faz muito tempo que ninguém sabia de ti, pensávamos que tinhas
partido com o teu irmão para Jaffa. – denotava conhecimento sobre a
sua família.
- A doença, que sobre mim se abateu durante mais de uma década,
condicionou-me os movimentos. As minhas saídas restringiam-se,
unicamente, na busca de cura.
- Compreendo – caminhavam lado a lado, em conversa aberta e sob
os olhares atentos das carpideiras.
- Mas diga-me, conheceu o meu pai? – questionou curiosa.
- Sim, conheci. E ao ouvir a exposição acalorada das tuas convicções,
pareceu-me estar novamente diante dele.
- O Visionário – pronunciou com tom subtil de provocação, e Jéssica
sorriu – eu era um bom amigo do seu pai, e isso deu-me me o
privilégio de escutar algumas das suas ideias mais avançadas.
- As mesmas que eu vou continuar a defender – assegurou ela
prontamente.
Não restava a menor dúvida, aquela mulher era filha do famoso
visionário.
A segurança, com que proferiu aquelas palavras, demonstrou
claramente a sua origem.
- E faz muitíssimo bem, embora ache que as mentalidades continuam
tão fechadas como há doze anos atrás.

79
- Não faz mal, elas hão-de abrir-se algum dia. Não podemos é baixar
os braços quando temos a certeza de estar certos.
- Concordo. – estava fascinado com a força e a determinação que
soavam de uma mulher aparentemente tão frágil.
O pranto intensificava-se à medida que se aproximavam da casa de
Jairo. Os amigos e vizinhos aguardavam a sua chegada com o rosto
manchado de dor.
Jairo percorreu o sinuoso caminho ao lado de Jesus, e a paz que
dimanava dele acalmara-o.
Somente Pedro, Tiago e João entraram com o Mestre na habitação de
Jairo.
O espírito irrequieto de Jéssica abeirou-se da entrada da casa, de
onde pôde ver que a menina repousava o corpo sem vida nos braços
inconsoláveis da sua mãe.
O ar encontrava-se impregnado de fluidos lacrimais.
Jesus aproximou-se da menina e pediu-lhes que não chorassem
porque ela apenas dormia, não estava morta.
Ao ouvir as suas palavras, os familiares e amigos que se encontravam
presentes no interior da habitação riram-se dele.
Eles sabiam melhor do que ninguém que menina estava realmente
morta.
Jesus, indiferente aos seus comentários, ordenou-lhe que se
retirassem dali, com excepção dos discípulos e os pais da criança.
Um após outro, foram saindo e reclamando contra o visitante.
Jairo não se deixou perturbar e, deu seguimento, à ordem do Mestre.
O vermelho que havia em seus olhos cruzou-se com a mulher que,
pouco tempo antes, tinha sido curada pelo Nazareno.
Com um ligeiro movimento de cabeça e sem erguer a voz, pediu-lhe
permissão para fechar a porta, ao que Jéssica anuiu.
Ninguém sabe o que aconteceu, mas não tardou muito a ouvir-se
uma ruidosa manifestação de júbilo, vinda do interior da casa.

80
A expectação que se vivia cá fora era tanta como a ânsia de saber
tudo quanto sucedia na casa de Jairo. Mas os corações aguardavam
silenciosamente pelo abrir daquela porta.
Ao fim de um tempo, que lhes pareceu uma eternidade, surgem
diante deles Jairo, sua esposa e… a menina.
A emoção apoderou-se dos corações amigos a qual por entre lágrimas
de alegria e espanto, grita entusiasticamente:
- Milagre! Milagre!
Jéssica permanecia imóvel junto a ombreira da porta. Olhava aquela
família e sentia a mesma comoção, que horas antes a invadira.
Bastou uma simples troca de olhar para gerar uma sintonia perfeita
entre a pequena e ela.
- Alegrai-vos e celebrai connosco – convidou Jairo – porque onde
abundavam o pranto e a dor, há agora abundante vida.
- Viva! Viva! – gritavam em uníssono.
O Mestre afastou-se, discretamente dali, juntamente com os seus
discípulos, levando consigo a gratidão daquelas quatro almas.
Enquanto isso, o povo prosseguia com as manifestações de regozijo e
na troca de abraços.
Era altura de Jéssica regressar a casa.
Tinha-se negado em dar ouvidos ao corpo que lhe suplicava por
descanso, mas já nada a prendia aquele local. Era-lhe necessário
recuperar do impacto, que toda aquela emotividade lhe causara.
O casal ao aperceber-se que ela partia, chamou:
- Mulher! Espera…
Com o corpo moído voltou-se na sua direcção:
- Sim… – respondeu ela.
- Não queres ficar um pouco mais para festejar connosco? -
perguntou-lhe com amabilidade a mulher de Jairo.
- Gostaria muito de ficar, e agradeço o vosso convite – respondeu
fixando-se na pequena – mas o cansaço pede-me que regresse a
casa.
- É natural, o dia foi demasiado longo e cansativo – disse Jairo.

81
- Espera-te alguém? – perguntou-lhe a esposa de Jairo.
- Não, ninguém. – respondeu-lhe Jéssica com tristeza.
- E voltas cá? – perguntou-lhe a menina que entretanto largara a mão
da mãe para se aproximar Jéssica.
- Se puder… volto – respondeu-lhe ao segurar-lhe nas suas mãozinhas
delicadas – queres que volte?
- Quero, podes voltar amanhã?
Os olhos de Jéssica ergueram-se na direcção dos pais que assistiam a
tudo.
- Será um prazer receber-te em nossa casa. – disse a mãe da
pequena.
- Encontrarás as portas abertas como se fosses da família. – reforçou
Jairo.
O olhar revestido de ternura envolveu a menina com um abraço, que
prometia voltar no dia seguinte, mas antes disso, perguntou-lhe:
- Gostaria de saber o teu nome antes de ir embora. Queres dizer-mo?
- Sim, chamo-me Ana como a minha mãe – respondeu com um largo
sorriso.
- Têm ambas um lindo nome, o meu é Jéssica.
- Também é lindo, não é mamã?! – todos sorriram perante a
espontaneidade da pequena.
A vizinhança unia-se para elaborar uma ementa digna daquela
celebração. As mulheres atarefadas combinavam entre si a
preparação de saborosos manjares e doçarias. Ninguém se queria
abster de participar num tão grande acontecimento. Jéssica despediu-
se da família de Jairo com um sorriso no rosto.
- Se precisar de apoio para a sua causa, não hesite em procurar-me –
gritou-lhe uma voz alegre do meio dos festejos.
Não conhecia o homem com quem trocara umas quantas palavras
momentos antes, mas o facto de saber que este convivera com o seu
pai, e manifestava apoio publicamente, agradou-lhe.
- Obrigada – agradeceu ao afastar-se.

82
Ao chegar a casa, direccionou-se de imediato para o quarto. Abriu a
porta muito devagarinho, e espreitou sorrateiramente para dentro.
Olhou para o auto-retrato e com um ar maroto estampado no rosto,
disse:
- Vou tomar um banho para tirar toda esta poeira e já venho
conversar contigo. Não saias daí, ouviste? – encostou a porta, para
regressar algum tempo depois.
Envergava uma camisa de noite, branca, que a cobria até aos pés,
tecida em linho puro mas com uma textura tão fina que mais parecia
seda.
O cabelo solto e ondulado cobria-lhe por completo as costas, e
decorava com simplicidade a maciez da sua veste. Saltou com
agilidade e desenvoltura para cima da cama e olhou para o quadro.
- Ficaste zangada, foi? – perguntou ao soltar uma gargalhada – Eu
estava a brincar contigo… é claro que tu não ias sair daqui.
- Antes de mais, quero agradecer a tua persistência. Ainda bem que
me moeste tanto o juízo… e para demonstrar como te estou
agradecida – dizia com o dedo indicativo erguido no ar - vamos
remodelar a decoração do nosso quartito, que dizes?
Olhava em volta como que arquitectando na mente as alterações que
tinha a fazer.
- Ah, eu sabia que ias gostar da ideia. É claro que primeiro temos de
arranjar dinheiro, e para isso há que começar a trabalhar.
- É verdade – exclamou – recordas-te daquele espelho enorme que
tínhamos aqui? Aquele que tu tanto gostavas, lembras-te dele? – o
brilho do seu rosto coado, deixava transparecer uma mente em
erupção.
- Amanhã de manhã vou buscá-lo aos arrumos, e depois vou ao
campo buscar flores silvestres – ergueu o sobrolho em direcção ao
quadro – sei que não são as tuas favoritas, mas verás como alegrarão
o nosso quarto.
- Nada de exigências requintadas por agora… os lírios virão mais
tarde.

83
Os planos e os projectos interrompidos pela doença invadiam em
catadupa a mente alvoraçada. Queria retomar todas as actividades
que foram embargadas pela enfermidade. O sofrimento pelo qual
passara nos últimos doze anos, não lhe roubou a determinação, a
jovialidade nem o vigor de outrora.
O auto-retrato revia com emoção a Jéssica de outros tempos.
- Viste como saltei para a camita? Já não preciso de me encolher… –
iniciou o extenso relato, e partilhou com detalhe as emoções vividas:
- Sabes… hoje tomei consciência de uma realidade que nos passou
completamente ao lado – disse num tom sério e compenetrado.
- Esquecemo-nos de viver a nossa própria vida – deitada sobre a
cama, olhava agora para o tecto do quarto amarelecido pelo tempo.
- Não que me arrependa do que fiz, mas… aquela menina despertou-
me um desejo tão grande de ser mãe…
- Já imaginaste o que é carregar dentro de ti o fruto de um grande
amor? Colocá-lo no mundo, transportá-lo no teu regaço… ensinar-lhe
as primeiras palavras, os primeiros passos…
- Achas que estou a delirar não é? – questionou-se ao fixar novamente
o quadro – se calhar estou… A verdade é que se tivesse pensado
nisso antes, não tinha conseguido ajudar tanta gente.
- Não me faltaram pretendentes mas tu bem sabes que nenhum deles
me permitiria seguir o meu trabalho de voluntariado. Eram todos,
umas cabeças duras… e se calhar agora também são.
- Pelo menos aquele homem de quem te falei há pouco, disse que as
mentalidades não tinham mudado tanto assim.
De repente, ergueu-se da cama e disparou:
- Estás tonta ou quê? Olha que para a próxima não te conto nada… –
parecia zangada com a ideia que o seu auto-retrato denunciou.
Zangada ou envergonhada…
- Nem pensar. Se algum dia o procurar será exclusivamente para
solicitar algum tipo de apoio, como ele mesmo me ofereceu. E nada
mais que isso, ouviste? Deixa-te de ideias tontas!

84
O sorriso expresso no quadro, denotava saber algo que ela própria se
negava a admitir.
Enterrou novamente o corpo na delicada e nobre colcha de linho
bordada à mão, estava extenuada física e psicologicamente.
Olhou a sua volta e recordou que 24 horas antes suplicara por
sossego, enquanto aguardava a sua morte.
Mas aquele simples toque de fé nas vestes de Jesus o Nazareno,
alterou o seu destino.
Iria seguir o Mestre, nome pelo qual o chamavam os seus discípulos,
queria saber e conhecer mais da mensagem que anunciava.
Sentia que o voluntariado que antes fizera, estava incompleto. A
humanidade precisa ver saciada a fome do corpo, mas também a da
alma.
- Se de graça recebi, de graça vou dar… – disse por fim.
E sob o olhar atento do seu auto-retrato adormeceu.

Florbela Ribeiro

85
O Cavalo Branco

A forte probabilidade do País entrar em guerra, desassossegou a


pacatez da pequena aldeia.
Os ventos que chegavam de longe e traziam a notícia, não agoiravam
nada de bom.
- Avizinham-se tempos difíceis meus amigos… – Tomé, o dono do
pequeno café, sentenciava com alta voz o que toda clientela temia.
Esta informação gerava grande apreensão e inquietação,
principalmente aos chefes de família.

86
O assunto demasiado sério gerou um debate aceso que se estendeu
por toda a manhã.
No entanto Alexandre parecia completamente alheado de tudo...
Sentado numa mesa ao fundo, olhava para o exterior, enquanto bebia
o seu café.
Lá fora um pequeno pardal saltitava por entre flocos de neve que
caíam naquela manhã de Outono.
- Então Alexandre, não dizes nada? – Fazia tempo que Tomé o
observava.
Existia um laço de amizade muito forte entre ambos, nascido na
meninice, o que fez deles “amigos inseparáveis”.
Cresceram e amadureceram juntos, e bem cedo todos se
aperceberam que havia uma cumplicidade entre eles.
Podia ser uma brincadeira inocente ou a pior das traquinices, mas
onde estava o dedo de um, estava também a mão de outro, isso era
garantido!
Eles eram verdadeiramente irmãos de alma e coração.
Bastava uma troca de olhares para decifrarem entre si o que sentiam
ou pensavam. Naquele exacto momento Tomé sabia que Alexandre
pensava em Maria, por isso arranjou maneira de o trazer de volta.
- Enquanto lá fora cai a primeira camada de neve, aqui o calor está ao
rubro – constatou Alexandre em jeito de brincadeira, para aliviar a
tensão que pairava no ar.
- Ora aí está uma boa maneira de aquecer os corpos gelados que aqui
chegam. – Soltou Tomé com uma risada estridente.
Toda a clientela o acompanhou, aliviando assim o clima pesado que
se ali se formara. Alexandre não era um homem de muitas palavras,
embora fosse bastante observador.
As vezes dava mesmo a sensação de estar totalmente alheado, mas
tal não era verdade.
A realidade é que ele não gostava nem de opinar sobre assuntos dos
quais não tinha um conhecimento aprofundado, nem de rumores.

87
E a notícia da guerra que ali se debatia naquela manhã, não passava
disso mesmo, rumores. Pelo menos por agora…
Nutria por todos os presentes uma grande estima, mas havia um
detalhe com o qual Alexandre não se identificava.
Aqueles homens gostavam de passar horas e horas em grandes
debates, a tecer os mais variados comentários independentemente
do tema ou da veracidade do mesmo.
Para eles não era relevante se o mesmo era ou não verdade.
Se fosse boato mais tarde ou mais cedo se viria a saber, mas até lá...
Isso deixava Alexandre profundamente irritado, e quando assim era,
não compactuava com eles em divagações e em meras
probabilidades.
Era no entanto muito respeitado e admirado por todos, e sempre que
ele tecia algum comentário, prestavam-lhe a devida atenção.
Naquela manhã não lhe apetecia falar na eventualidade de uma
guerra. Também ele tinha um filho, assim como a maioria dos que ali
se encontravam, por isso recusou pensar na hipótese do seu rapaz
ser levado para um campo de batalha.
Fazia anos que o destino lhe tinha pregado uma valente partida,
levando-lhe a sua doce Maria, quando ela deu a luz o seu
primogénito. Daí que nem hipoteticamente ele queria pensar numa
repetição do destino.
A vida já tinha sido madrasta ao deixa-lo viúvo com um recém-
nascido nos braços…
Ainda assim e apesar do grande infortúnio, e das suas consequências,
no semblante de Alexandre nunca se avistou uma nuvem de revolta.
- Deus sempre sabe o que faz – Era esta a convicção de Alexandre.
Mas bastava de sofrimento... até porque a dor da saudade tinha feito
morada no seu peito. O seu olhar sereno era um misto de dor,
resignação, fé e esperança.
Esperança essa que ele não iria deixar desvanecer pelos rumores de
uma guerra.
André era o seu orgulho e a razão da sua existência!

88
Foi ele a alavanca que Deus usou para o erguer no meio de tanto
sofrimento.
Há quem diga que a tribulação amansa ou embravece o coração.
No caso de Alexandre, ela não só amansou com também adocicou.
Esta era a opinião dos seus amigos e vizinhos.
O dia em que tudo aconteceu ainda estava bem presente na sua
memória…
- Complicações Sr. Alexandre… – anunciou a parteira banhada em
suor e lágrimas.
Pobre mulher… fez o que pode mas… a Deus aprouve leva-la.
Não existe nenhum antídoto para atenuar a dor causada por uma da
tragédia, tenha ela um culpado ou não, e neste caso não tinha.
A serenidade que transparecia hoje do seu olhar era pois fruto das
muitas vicissitudes sofridas ao longo da vida.
Não é fácil ser-se pai, muito menos pai e mãe ao mesmo tempo.
Claro que a mão de Deus esteve presente para lhe dar graça e a
sabedoria, ajudando-o assim a ultrapassar os obstáculos do dia-a-dia.
Os seus pensamentos foram despertos pela entrada abrupta de André
no café. Vinha completamente ofegante por tanto correr.
- De certeza que houve problemas na quinta – pensou Alexandre –
para que André se tenha aventurado a vir aqui com este frio.
E assim era… o cavalo branco tinha desaparecido.
- Pai… o cavalo desapareceu – balbuciou André completamente
exausto.
- Desapareceu como? A porta do estábulo não estava fechada? –
Questionou Alexandre.
- Pois estava, mas ele não está lá – os olhos de André reflectiam bem
a imagem da preocupação.
O cavalo branco era o que de maior valor patrimonial possuíam.
Por ele a sua fama correu por todos o país. Nunca até então ninguém
vira um animal mais belo que aquele, e agora tinha desaparecido.
- Oh não querem ver que te roubaram o cavalo? - Disse um dos
presentes.

89
- Só pode, se a porta estava fechada como disse o André! – Concluiu
outro.
- Mas que desgraça agora roubarem o teu cavalo branco! – O debate
sobre a guerra foi completamente esquecido.
O tema central no pequeno café da aldeia passou a ser então o roubo
do cavalo.
- Calma, meus amigos, tenham calma. Não cheguem a tanto.
Simplesmente digam que o cavalo não está mais no estábulo. O resto
é julgamento vosso. – Atalhou de imediato Alexandre.
Pai e filho despediram-se, saindo dali apressadamente. Os dois vultos
embrenharam-se na neve que caía agora com mais intensidade,
Atrás deles ficou a agitação do novo acontecimento:
O roubo do cavalo branco de Alexandre.
Passaram-se vários dias sem que o animal desse algum sinal de vida.
Alexandre e André, o seu rapaz, prosseguiam com a sua vida
rotineira.
O trabalho da quinta não era leve, apesar de esta ser pequena, mas a
única mão-de-obra existente era a de ambos e nada mais.
André não tocou mais no assunto, até porque o seu pai já andava
cansado de ouvir os constantes comentários que se faziam na aldeia.
Ele tinha uma profunda admiração pela forma como o pai lidava com
aquela situação. Sendo o cavalo uma perda tão avultada ele confiava
tudo nas mãos de Deus e esperava tranquilo.
Era sempre assim, às vezes essa mesma tranquilidade mediante as
mais duras provas chegavam a arreliar André. Mas no fim ficava
provado que era o pai que estava certo.
Deus nunca os deixara ficar mal até aquele dia, e agora não iria ser
diferente.
- Deus sabe o que faz meu filho, e se Ele permitiu que o cavalo se
fosse embora, lá terá os seus motivos.
- Não vejo quais meu pai – foi a única coisa que André se atreveu a
dizer no dia a seguir ao sumiço do animal. Depois disso nenhum dos
dois tocou no assunto.

90
Cada qual à sua maneira entregou o problema no altar de Deus e
esperou.
Mediante a calma que Alexandre demonstrava, os vizinhos,
começaram a fazer troça.
- Passados já estes dias, tu ainda esperas o cavalo? – Perguntou-lhe
um deles com ironia.
- Oh homem, o animal nunca mais vai aparecer... – Ironizou outro.
- Veremos meus amigos, veremos. - Era a resposta branda de
Alexandre às ironias vizinhas.
O tempo foi passando, até que ao fim de duas semanas e contra
todas as previsões da aldeia, o animal apareceu na quinta.
O cavalo tinha fugido para a floresta. Mas agora não regressava
sozinho, trazia com ele doze cavalos selvagens.
E que belos cavalos selvagens aqueles!
A notícia espalhou-se como moinha ao vento, originando uma grande
animação na aldeia.
Vizinhos e amigos apresentaram-se então de imediato na quinta, não
só para os felicitar mas também para poderem apreciar a beleza dos
animais.
- Tinhas razão Alexandre, não é que o bicho apareceu mesmo? – Dizia
um dos presentes.
- Até parece que adivinhavas. Mas que grande fé a tua homem! –
Dizia outro enquanto lhe dava leves palmadinhas nas costas em jeito
de celebração.
- Isto é que é uma bênção, agora em vez de um cavalo tens uma
manada! - Atestou outro.
- Exactamente, que grande bênção homem! - O comentário era
unânime.
- E nós que dizíamos que o sumiço do animal tinha sido uma
desgraça, vejam lá bem.
Dias antes, teciam variadíssimos comentários irónicos à situação de
Alexandre, agora comemoravam o recebimento de uma bênção
tremenda.

91
- Obrigado, meus amigos – agradeceu Alexandre – mas vocês estão
de novo a precipitar-se. Quem poderá afirmar se o facto de o meu
cavalo ter voltado com companhia, é ou não uma bênção?
Digam apenas que o cavalo está de volta... não estejam sempre a
fazer julgamentos.
- Oh Alexandre não digas disparates, então não se vê logo que é uma
bênção? –
- E que bênção, e que bênção. Pará lá com a tua mania das
modéstias.
É claro que Alexandre estava feliz com a volta do animal, Deus não só
ouviu como atendeu às suas orações. Mas a insistência destes
homens, em fazer julgamentos precipitados, incomodava-o.
Tomé, o seu inseparável amigo aproximou-se dele e segredou-lhe:
- Tu já sabes como este povo é, não lhes ligues.
Alexandre encolheu os ombros com desalento.
Quem ficou completamente eufórico com o regresso do cavalo branco
foi André.
No dia seguinte levantou-se bem cedo para dar início aos trabalhos.
A domesticação dos doze animais selvagens.
Tinha uma árdua tarefa pela frente, mas iria valer a pena.
Alexandre constatou isso mesmo nos dias seguintes, os progressos
eram notáveis.
O seu rapaz estava a fazer um belo trabalho.
Isso iria reverter num acréscimo patrimonial para ambos!
No entanto e contrariando a animação que se vivia na quinta, as
notícias que chegavam de longe eram as piores.
O País ia mesmo entrar em guerra.
- Meus amigos, agora já não falamos em meros boatos ou suposições.
É uma realidade e temos de a encarar de frente – Disse Tomé.
- Falas bem porque não tens filhos – argumentou com agressividade
um dos homens. Estavam todos extremamente pesarosos e tendo em
conta isso mesmo, Tomé não se ofendeu.
- Não é bem assim… – Limitou-se a responder.

92
É verdade que ele não tinha constituído família. Comentava-se em
surdina que o medo o levou a casar-se com o café. Não quis correr o
risco de ser atropelado pelo destino, como o foi Alexandre, o seu
amigo.
A morte prematura de Maria e o sofrimento que a mesmo causou
traumatizou Tomé.
Mas a verdade é que ele amava André como a um filho.
Ele não era só seu afilhado…não. Aquela criança foi o elo de ligação
que Maria lhes deixou antes de partir. A ele e a Alexandre.
O rapaz não teve um pai e uma mãe como é supostamente normal,
mas em contrapartida teve ao seu lado dois homens que
desempenharam com destreza o papel de pais.
Capazes de dar a vida por ele, se preciso fossem.
Daí a notícia o abalar tanto como a qualquer pai de família que ali se
encontrava.
- É verdade, o tempo dos rumores já lá vai. – Concluiu Alexandre.
- Dizem que todos os rapazes da aldeia terão de se alistar. Têm que ir
defender a pátria – disse com profundo pesar um dos fregueses.
- Vamos ficar sem os nossos rapazes, é o que é… – o desânimo era
total.
- E agora meus amigos, como vamos nós levar esta notícia para casa?
– A pergunta que vinha do balcão era pertinente.
- Valha-nos Deus… – Suspirou um deles.
As informações chegavam primeiramente ao café, onde eram
analisadas e debatidas e só depois levadas à população.
Eles faziam o trabalho de pombo-correio, uma tarefa que lhes dava
imensa satisfação, mas esta… era demasiado dolorosa.
Todas as famílias iriam ser afectadas.
-Queres que te acompanhe a casa para dar a notícia ao rapaz? –
Perguntou-lhe Tomé.
- Agradeço-te, mas não há necessidade – o semblante de Alexandre
estava carregado de lembranças – Logo agora que ele anda tão

93
entusiasmado com os cavalos… – Mas não era essa a razão do seu
pesar.
Foi com um suspiro que as dores da memória se ergueram e dirigiram
para casa.
Nunca o caminho até a quinta lhe pareceu tão longo.
No trajecto ensaiava vários discursos, na tentativa de aligeirar a
notícia o mais possível. Mas conseguiria ele transmitir a mesma sem
destroçar o coração do filho?
Uma má notícia causa sempre sofrimento, isso é inevitável e ele
sabia-o.
Era mais um duro golpe do destino nas suas vidas.
O ar encontrava-se gélido naquela tarde, e o vento soprava com
demasiada força.
Estes dois elementos da natureza foram os companheiros dos seus
pensamentos.
Chegou por fim à quinta.
Na frente da casa a pequena palmeira que André plantara na
Primavera anterior, debatia-se com o vento. Era um arbusto ainda
jovem mas lutava com bravura.
Sacudida violentamente por ele torcia-se e contorcia-se mas…
mantinha-se firme no seu lugar.
Alexandre parou a contemplar aquele cenário. Aquela frágil palmeira
transmitiu-lhe uma forte mensagem. Acabava de receber o alento
necessário para enfrentar aquele momento.
- Obrigado. – Disse de coração agradecido e de olhos postos no céu.
Com a passada firme, dirigiu-se para o interior da sua casa e chamou
pelo filho. Aguardou alguns segundos, mas não obteve qualquer
resposta.
Com aquela ventania era impensável que o rapaz não estivesse em
casa.
Ergueu um pouco o tom de voz e voltou a chamar:
- André… onde estás? – Só o silêncio lhe respondeu.
Visivelmente arreliado, dirigiu-se até ao estábulo.

94
- Que irresponsabilidade da sua parte sair de casa com este tempo –
pensava Alexandre.
Faltavam poucos metros para chegar ao estábulo, quando ouviu um
gemido.
- André, André – chamou ao percorrer apressado a pouca distância
que os separava.
- Pai… pai! – Havia dor na sua voz.
Alexandre abriu violentamente o portão.
A sua frente, deitado no chão, o rapaz contorcia-se com dores.
- O que aconteceu rapaz? – Perguntou-lhe aflito.
- Como estava frio, resolvi fazer o treino dos cavalos aqui, e o pardo…
lançou-me ao chão… – Relatou com dificuldade ao mesmo tempo que
do seu rosto corriam gotas de suor. Estava cheio de dores.
- Tem calma André e não te mexas, enquanto vou buscar ajuda. –
Alexandre não tinha grandes conhecimentos médicos, mas a avaliar
pela posição do rapaz, as suas pernas não se encontravam em muito
bom estado.
- Desculpe pai… – disse André com a voz trémula.
- Vou chamar o Dr. Mauro, e tu fica quieto, e não te mexas.
Prendeu o cavalo pardo e foi chamar o médico.
Não tardaram muito em chegar, embora a André lhe tenha parecido
uma eternidade.
O médico avaliou com cuidado o seu estado.
O diagnóstico, tal como o pai previra, não foi bom.
- Lamento meu rapaz, mas tens as duas pernas fracturadas. –
Concluiu ele.
- Lindo serviço André! – O tom da voz paterna denotava preocupação,
mas não denunciava que estivesse zangado.
Isso aliviou um pouco a dor emocional de André.
- Vais ter uns valentes dias de repouso, e os teus cavalinhos vão ter
que esperar.
- Repouso absoluto? – Perguntou André entre gemidos.
- Claro! Achas que consegues fazer alguma coisa nesse estado?

95
André limitou-se a acenar que não com a cabeça.
O seu projecto com os cavalos teria que ser adiado.
- Quanto tempo é que vou ter de ficar em repouso absoluto?
- Bem se não houver complicações entre 2 a 3 meses, mas depois
terás de fazer fisioterapia durante um bom tempo.
- Tanto assim? – Questionou Alexandre.
- Isto se não houver mais que uma fractura nos ossos de ambas as
pernas… – disse ao mesmo tempo que lhe administrava uma injecção
de «cavalo» para aliviar um pouco as dores.
Alexandre soltou um sonoro suspirou de alivio, deixando o Dr. Mauro
intrigado.
- Esperavas um diagnóstico pior? – Perguntou ao mesmo tempo que
franzia as suas fartas sobrancelhas.
- Não, não esperava. Mas este acidente vai impedir que André tenha
de se alistar para Guerra – esclareceu ele.
- É verdade. Tens toda a razão em suspirar de alívio – concordou o
médico – Até o André o fará logo que as dores o larguem um pouco.
Assim que o analgésico começou a fazer efeito, André foi imobilizado,
para que os dois homens o pudessem levar para o hospital na vila
mais próxima.
Depois de feitas as radiografias e já no seu quarto foi confrontado
com o diagnóstico final.
- As minhas suspeitas confirmam-se – começou por dizer o Dr. Mauro,
com os olhares de pai e filho cravados nele – há na perna esquerda a
fractura do fémur, mas na direita o estrago é maior. A tíbia esta
fracturada em dois sítios…
O médico ia analisando por cima dos óculos, o impacto que a notícia
causava nos dois.
- Isso trocado em miúdos quer dizer o quê doutor? – Perguntou
Alexandre.
- Bem… quer dizer que a recuperação vai ser lenta e terá de haver da
tua parte – dirigia-se agora para André – muita paciência e
cooperação.

96
- Quais são as suas previsões doutor até a minha recuperação total? –
Perguntou André com um profundo suspiro.
- Talvez 1 ano, ou talvez menos. Depende de como a cicatrização
corre e do teu empenho na fisioterapia.
- Vê o lado bom das coisas rapaz – disse-lhe o pai por fim – ficarás
livre da guerra por um bom tempo.
Na realidade e dada a imaturidade própria da juventude, era
Alexandre quem mais valorizava este “lado bom” do acontecimento.
- Que bom pai … – Respondeu-lhe desanimado.
- Sr. André vamos dar um passeio até ao bloco operatório? – O
enfermeiro Gomes tinha um ar simpático e descontraído. Foi com
grande a vontade que entabulou conversa com o novo paciente, e o
levou para fora do quarto.
Era um profissional competente que demonstrava amar o seu ofício.
Alexandre soltou um suspiro ao ver o filho afastar-se.
- Há males que vêem por bem e este parece-me um deles. – Disse o
Dr. Mauro – E tu vê se ficas tranquilo – colocava-lhe agora a mão de
amigo no ombro – porque o rapaz está em boas mãos.
Alexandre esboçou um leve sorriso em sinal de concordância.
- Tenta descansar um pouco, que não tardará nada a ele estar de
volta – Recomendou o médico ao retirar-se.
- Não vou conseguir descansar, mas obrigado doutor.
Aquela tarde tinha sido desgastante, principalmente do ponto de vista
emocional.
Primeiro a notícia que o país entrara em Guerra.
Depois as recordações que a mesma trouxe, devido à obrigatoriedade
do alistamento dos rapazes.
E como se isso ainda não bastasse, o acidente do filho com
intervenção cirúrgica e tudo. Sentia-se mesmo cansado quando se
afundou no cadeirão da sala de espera.
- Eu sei que o meu filho está em boas mãos. – Pensava Alexandre em
voz alta – Porque está nas mãos de Deus.

97
Como bom aldeão que era, o Dr. Mauro tratou logo de espalhar a
notícia do sucedido por toda a aldeia.
Um a um todos foram comparecendo na quinta, para prestar
solidariedade e colocarem-se ao dispor para o que fosse
eventualmente necessário.
- Outra desgraça te bateu à porta Alexandre. Oh valha-me Deus.
- Bem dizias tu, que não devíamos afirmar que a volta do cavalo
branco era uma bênção.
- Pobre rapaz, logo as duas pernas. É preciso ter azar! – Opinavam
eles.
O cansaço de Alexandre era bem visível… acabava de chegar do
Hospital e não tinha pregado o olho toda a noite.
Ficou a velar o sono do filho, como quando ele era pequeno.
A informação que lhe deram da cirurgia, foi a melhor possível, mas
mesmo assim ele não arredou pé dali.
Estava pois exausto quando na manhã seguinte regressou a casa e
aquela insistência dos amigos em fazer julgamentos estava a tirar-lhe
a paciência.
A ele que era extremamente calmo…
- E vocês insistem em fazer julgamentos. Parem lá com isso homens
de Deus. Os acidentes acontecem todos os dias, não são desgraça e
sim percalços da vida.
- Como não Alexandre? Foram logo as duas pernas.
- Eu sei… Mas a situação até podia ser bem pior se ele ao cair tivesse
batido com a cabeça ou não?
- Podia estar morto a esta hora – concluiu um deles com visível pesar.
- Pois… lá isso podia – disse outro ao mesmo tempo que coçava a
cabeça.
- Então parem lá com os julgamentos meus amigos! Deus sabe o que
faz e se ele permitiu que esta queda acontecesse lá terá as suas
razões. Eu já vos disse que aqueles que são obcecados por julgar,
facilmente caiem na armadilha de basear os seus julgamentos por
pequenos acontecimentos. O que os leva a conclusões precipitadas.

98
Nunca encerrem uma questão de forma definitiva. Quando um
caminho termina, Deus começa outro, e quando uma porta se fecha,
Deus sempre abre outra, lembrem-se disso...
- Será que tu nunca questionas Deus, Alexandre? Concordas sempre
com o que Ele faz? – A sua passividade perante os problemas,
arreliava os demais.
- Claro que questiono – respondeu ele – e nem sempre concordo com
os Seus métodos, mas quem sou eu para saber o que é melhor ou
pior para mim?
- Acaso deve a criatura interpelar ao Criador? – O silêncio instalou-se
na sala.
Que argumentos poderiam usar eles para contra atacar esta grande
verdade?
Nenhuns obviamente, todos ali tinham conhecimento da Soberania de
Deus.
Bem… lá ter até tinham mas as vezes… esqueciam-se!
Os dias que se seguiram ao acidente foram de grande angústia para
toda a aldeia.
No hospital André exasperava-se, não só pelas dores, mas porque se
encontrava totalmente imobilizado. O facto de estar deitado sempre
na mesma posição mexia-lhe com o sistema nervoso. Foram 10 dias
no Hospital difíceis de suportar.
Na aldeia os rapazes com mais de 18 anos foram obrigados a partir
para a guerra.
O ambiente que pairava era de grande pesar e consternação.
Ao fim de três meses André iniciou os tratamentos de fisioterapia em
ambas as pernas.
Para fisioterapeuta o Dr. Mauro elegeu Tomé, o seu padrinho.
Esta nova responsabilidade obrigava-o a fechar o café todas as
tardes, mas ele não se importava.
Bem pelo contrário, assim os homens não iam para lá afogar as suas
mágoas.

99
É que aturar bêbados nunca fora o seu forte, ainda para mais agora
que a alegria se tinha apagado no rosto da população…
Com os ânimos abatidos, não havia disposição para conversas nem
debates.
Era sozinho e num silêncio solene que Tomé afixava as notícias que
os pombos-correios se recusavam a levar. A lista dos mortos na
Guerra.
Um a um, todos os rapazes morreram deixando a aldeia sem
juventude.
O rigor do Inverno e a inaptidão em lidar com armas de Guerra foram
fatais.
O luto parecia ter feito morada por aquelas paragens. Por todo o lado
se chorava a perda de filhos, sobrinhos, netos, primos, amigos…
- Maldita guerra que nos levou os filhos todos… – era o grito dos
corações amargurados.
Injustas ou não, as leis decretavam que eles tinham de contribuir com
o que de mais valioso possuíam, os seus rapazes.
Alexandre foi o único que não chorou a morte do seu filho… mas
sofria com a população. Sendo a aldeia tão pequena era impossível
não se ganhar laços de afecto pelos habitantes. Ali todos se
conheciam, estimavam e respeitavam, tal como uma grande família.
As recomendações do médico foram respeitadas ao milímetro, até
porque Tomé estava empenhado na rápida recuperação do rapaz.
Era no entanto necessário anima-lo. Assim e durante os tratamentos
ele inventava mil e uma história na tentativa de lhe arrancar um
sorriso mas… sem sucesso.
André perdeu em pouco mais de três meses, todos os seus amigos e
a lembrança que tinha deles não lhe permitia sorrir.
- Ele tem perguntado pelos cavalos? – Questionou certo dia Tomé.
- Não. Nem toca no assunto. – Respondeu Alexandre.
- Que raios… a vida continua, o rapaz tem que reagir.
- Tem calma meu amigo… ele precisa de tempo digerir a sua dor.

100
- Quem sabe se com a chegada agora da Primavera ele não arrebita?
– Disse com ar esperançado.
- Quem sabe, Tomé, quem sabe – suspirou Alexandre.
Aquela nuvem negra que pairava sobre a aldeia tinha de se dissipar
algum dia, e todos desejavam que fosse em breve.
- Não está mal não senhor. Agora que o pior já passou posso
confessar-te que receei o pior. – Disse o médico.
- O pior? – Perguntou André com o olhar arregalado.
- Sim. O tipo de fracturas levavam-me a crer que ficarias coxo da
perna direita para o resto da vida, mas vejo agora que estava
enganado.
- Mas ele ainda coxeia Doutor – disse o pai.
- Eu sei mas verás que lá para o final do Verão isso deixará de
acontecer.
- Ufa já não era sem tempo… não vejo a hora de largar de vez esta
muleta – disse Abel fazendo-lhe uma careta.
- Olha que ingrato me saíste, a desprezares assim a tua amiga… –
disse Tomé em defesa do objecto.
A gargalhada foi geral, o pior tinha realmente passado.
Uma etapa estava ultrapassada, eis que uma nova iniciava. Era
urgente arranca-lo da tristeza em que mergulhara no último ano.
- Agora que já tens alta médica, não queres ir visitar os cavalos? –
Este convite do pai, deixou todos em suspenso.
O brilho que por momentos se viu nos olhos do rapaz apagou-se o
que fez recear o pior.
Permaneceu calado por alguns minutos, causando uma arritmia nos
corações presentes.
Com um encolher dos ombros e um suspiro respondeu:
- Pode ser…
Os três homens respiraram de alívio.
Mais um passo fora dado em direcção à luz.
- Então de que é que estamos a espera? – Perguntou o médico – eu
também quero ir ver os bicharocos.

101
No decorrer daquele Inverno os dois homens prepararam-lhe uma
surpresa.
Construíram um enorme cercado, onde ele iria, logo que pudesses,
treinar os cavalos.
E era lá que os animais se encontravam quando os quatro se
dirigiram para o exterior da casa.
O dia tinha amanhecido com um bonito céu azul onde não se
vislumbrava uma única nuvem. A luz do sol brilhava por isso sem
impedimentos.
E essa luminosidade acentuava ainda mais as cores do campo
verdejante.
Segurando ainda a sua muleta André deu os primeiros passos em
direcção ao estábulo. Mas ao erguer os olhos para o horizonte
perguntou:
- O que é aquilo? - Apontava em direcção ao cercado.
- É uma surpresa. – Há meses que ambos ansiavam por aquele dia.
- Agora entendo as vossas conversas em surdina – disse o rapaz com
um sorriso que ia de orelha a orelha. – Era isto que me escondiam não
era?
- Pois era – Tomé não cabia em si de contente por ver a alegria do
afilhado.
- Aleluia! – Exclamou Alexandre – até que enfim que te vejo sorrir
filho!
- Uau! … É enorme pai – os seus olhos pareciam explodir de
felicidade.
Os cavalos encontravam-se afastados a pastar, mas ao som das
vozes amigas aproximaram-se.
A manada vinha completa mas era o cavalo branco que a liderava.
Os três homens aperceberam-se da reacção e mantiveram-se
ligeiramente afastados. Era um momento importante para André e os
animais e eles sabiam-no.
Nada nem ninguém deveria atrapalhar aquele reencontro.

102
André afastou-se deles, aproximou-se da cerca e ao debruçar-se nela,
largou a muleta.
- Estão magníficos – disse num fio de voz.
A manada parou a uns 50mt de dele. O cavalo branco soltou um
relincho e do meio do grupo salientou-se o cavalo pardo, aquele que o
lançara violentamente ao chão.
Dirigia-se agora para o local onde André estava debruçado, enquanto
os restantes permaneciam parados.
Havia um assunto a ser resolvido entre o rapaz e o animal e os
restantes companheiros sabiam disso. Iniciou-se o frente a frente.
O silêncio era total, a natureza aguardava ansiosa, o desfecho
daquele acerto de contas.
O cavalo começou por bater com o casco dianteiro no chão, fazendo
com que o pó se ergue-se no ar.
Ao mesmo tempo relinchava e sacudia a cabeça de um lado para o
outro.
André permanecia imóvel enquanto o observava.
A atitude do animal foi entendida por todos como um pedido de
desculpas.
Mas o rapaz não reagia. Resolvido, o animal deu mais um passo em
frente, ficando bem próximo do rosto de André.
Balançava cabeça de um lado para o outro, enquanto aguardava a
resposta do amigo. Com estes movimentos suaves parecia que
marcava os compassos de uma música.
Era com os olhares fixos e em silêncio que tudo se resolvia.
- Está tudo bem pardo – declarou André ao fim de um tempo – está
tudo bem.
Ao afaga-lo ternamente, o cavalo colocou a cabeça no seu ombro.
Era o abraço da reconciliação.
O líder da manada ergueu-se então nas patas traseiras e começou a
soltar fortes relinchos. Tinha chegado a hora dos restantes animais
irem cumprimentar André.

103
- Tiveram saudades minhas, não tiveram meus malandrecos? –
Perguntava-lhes André bastante emocionado.
Nenhum dos homens conseguiu reter as lágrimas diante da ternura
que presenciaram.
- Isto até parece a cena de um filme – Disse o médico – Inacreditável!
- Os filmes são baseados em factos reais doutor – disse Tomé com ar
de troça.
- É verdade, mas eu não acreditaria que tal fosse possível, se não
visse. – E o doutor tinha razão.
A afectividade que existia entre o rapaz e os animais foi ali
demonstrada de forma inequívoca … e isto não acontece todos os
dias.
O ar que se respirava no cercado, estava agora repleto de encanto e
ternura.
E aquele abraço iria ficar gravado nas suas memórias para sempre.
- Que tal uma montada para celebrar? – Perguntou Tomé ao mesmo
tempo que limpava o rosto.
- O pardo não está apto ainda para montadas padrinho – disse André
com a voz ainda embargada – Só se for no cavalo branco…
- Mas tem que ser mesmo no líder da manada. Não nos podemos
esquecer que o cavalo branco é o grande protagonista desta história
– A gargalhada foi geral.
E que história pensou Alexandre de si para si.
Enquanto os dois homens ajudavam André a selar o animal,
Alexandre recordou a sequência de todos os acontecimentos.
Tudo se iniciou numa manhã fria de Outono, quando no café do seu
amigo se debatiam os rumores de uma entrada do País em guerra.
Os mesmos foram esquecidos, quando o sumiço do animal invadiu o
espaço.
Dias depois e contra todas as previsões o animal regressou escoltado
por doze belos animais selvagens.
André ficou tão entusiasmado que mal dormiu nessa noite.

104
Semanas depois, e no mesmo dia, veio a confirmação de que o País
entrava em guerra e o acidente.
Os meses que se seguiram foram terrivelmente dolorosos e
marcantes para todos.
Dos quatro cantos da aldeia soavam os corações em luto.
Nos olhares do povo habitava uma profunda tristeza e no peito
morava a dor imensa da saudade.
Ao mesmo tempo que decorria a primeira etapa da recuperação de
André, chegavam à Estação de Caminho de Ferro, os corpos de todos
os seus amigos.
Alexandre contraía os músculos faciais ao recordar aqueles dias.
O desgaste emocional foi tão grande que levou André mergulhar
numa profunda tristeza.
Mas hoje voltou a sorrir.
O relinchar do cavalo branco despertou Alexandre das lembranças…
estava pronto para a montada.
Era agora preciso, ajudarem o rapaz a subir para o seu dorso. André
ainda se encontrava com poucas forças nas pernas, mas amparado
pelo padrinho, rapidamente ocupou o seu lugar na sela.
Envolvido pela doce fragrância da felicidade André deu início ao
passeio.
Tomé permaneceu na cerca a conversar com o Dr. Mauro. Contava-
lhe que devido ao acidente do afilhado, descobriu a sua verdadeira
vocação.
- Assim que a guerra termine vou inscrever-me numa boa escola e
tirar o curso de Fisioterapeuta. – Disse com convicção.
O Dr. Mauro ficou encantado com a ideia, e dispôs-se a ajuda-lo no
que fosse preciso.
Ao mesmo tempo que os ouvia, bailava na mente de Alexandre
aquele versículo: “Esperei com paciência no Senhor, e ele se inclinou
para mim, e ouviu o meu clamor”.
Sorria enquanto saboreava cada palavra …

105
Os ventos que tempos atrás ditaram a entrada do país em guerra,
anunciavam já a alguns dias que a mesma se aproximava do fim.
Ele aguardava pacientemente que a mesma se confirmasse.
Ao longe e a galope no seu cavalo branco, André expulsava os medos
e as dores que o atormentaram durante os últimos meses.
Ao mesmo tempo, no céu um enorme bando ondulante de aves
agitava-se em direcção à sua quinta…
Em animados voos picados, aquelas pequenas aves vinham anunciar
a toda a aldeia a chegada de uma nova estação….

Florbela Ribeiro

106

Das könnte Ihnen auch gefallen