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Público 2010-01-03
http://jornal.publico.clix.pt/noticia/03-01-2010/jose-gil-o-homem-que-nao--procura-a-felicidade-18491765.htm
Onde é que nós fomos? Ao Tonio Kröger, de Thomas Mann, e ao que significava
discutir isto na adolescência. Ao Quartier Latin onde Derrida era assistente, e onde
coexistiu um grupo de excepção. À Córsega, onde a minha casa é a tua. Ao tumulto
íntimo. A Deleuze e a uma convivência decisiva. À implosão do edifício Língua
Portuguesa, há muitos anos, em Paris. À mãe, que no meio do mato, em
Moçambique, sonhava com um pouco de Paris. Ao que é ter criados e dar-lhes
ordens. Ao que constitui a identidade. Ao reconhecimento. A Portugal, onde tudo
era (ou ainda é?) interdito. Aos sonhos que não foram esquecidos. A Pessoa,
porque somos muitos. Outra vez, sempre, ao tumulto íntimo. "Eu era uma espécie
de tumultozito que andava por aí."
José Gil, o desassossegado, é muitos. Fomos a muitos.
Que importância teve na vida dele a menção do Nouvel Observateur, que o apontou
como um dos 25 pensadores mais fulgurantes do mundo contemporâneo? Foi
professor na Universidade Nova de Lisboa até ao ano passado. Dava aulas de
Estética. Nos últimos anos tem intervindo no espaço público, sobretudo nas áreas
da educação e política. Mas recusa tornar-se um comentador político. Reservado
em relação à vida privada. Irmão do filósofo Fernando Gil, falecido em 2006.
A identidade é uma questão essencial para si, é objecto do seu estudo.
Podemos começar pela descoberta e definição da sua identidade?
Nasci sem as determinações habituais - sociológicas, linguísticas - da identidade.
Se tenho hesitações quanto à minha identidade? Possivelmente. Mas a um nível
muito profundo. Sou filho de colonos. Nasci numa pequena cidade em Moçambique,
em Quelimane, onde viviam mil brancos, e ao lado vivia uma multidão de dezenas
de milhares de negros. Nós constituíamos uma ilha pequena. Não tínhamos o que
eles tinham relativamente ao espaço. Não tínhamos o nome das árvores, da terra,
das colinas.
Era uma espécie de fusão com o espaço?
Eles tinham a sua linguagem. Nós é que não tínhamos vocabulário para designar
esse espaço. Tínhamos um espaço reduzido, empobrecido. Os elementos: tudo em
África é muito forte. O calor, o sol, a chuva. Em Quelimane, lembro-me de um mês
em que choveu todos os dias, consecutivamente. O nosso vocabulário era para os
lírios do campo, que não existiam lá. Cantávamos canções na escola primária, que
eram sobre o campo, em Portugal. Portanto, vivíamos em distância.
Deslocados.
Sim. Nascemos já, de certa maneira, em estado de exílio. Mas não acho que esse
estado fosse sentido como uma falta de identidade. Compensámos isso com outras
simbolizações. Tínhamos a nossa maneira de nos sentirmos moçambicanos. Que
era à parte da maneira de um negro, um africano. Não tenho problemas de
identidade. Só tinha - só tenho - se me pergunto, semi-abstractamente, onde é que
quero ser enterrado. O ser enterrado implica um sítio a que se pertence.
Back to basics.
Exactamente. Não sei onde quero ser enterrado. Uma vez vi aqui um cemitério
lindíssimo, e pensei: gostaria de ser enterrado aqui. Mas só tem a ver com razões
estéticas, e não sentimentais. Se quis pensar o problema da identidade portuguesa
foi porque o vejo à minha volta, e ele afecta-me. Conheci bem um país pequeno
onde se discutia a questão da identidade: a Córsega. Discutiam se tinham uma
identidade própria, se tinham uma origem italiana, toscana, francesa, se tinham de
ser anexados. Li muito sobre o problema nacionalitário (é assim que se designa na
literatura). Mas essa não é para mim uma questão principal.
Porquê?
Poderá ser por uma patologia qualquer... Serei esquizoide e não terei problemas
desses? Quem sou eu relativamente aos meus compatriotas, à minha pátria, ao sol,
à História, ao meu passado? Eu, eu, eu.
Quem sou eu, é uma questão essencial em Filosofia. Depois, pode deslocar
essa questão para diversos campos.
E até posso mostrar que "quem sou eu" pode ser uma questão subordinada a
outras, mais importantes. O que me surpreende mais - e isto não é uma glosa
snobe do Fernando Pessoa - é que somos muitos. E isso todos nós vivemos,
sentimos, experienciamos.
O tal ser múltiplo.
Somos. Estamos em transformação permanente.
O sermos muitos, a transformação, é por causa do desassossego? "José
Gil, o desassossegado": serve-lhe?
Sim, absolutamente. Isso não tem uma conotação necessariamente má.
Introduzi o desassossego como gérmen de mudança.
É isso mesmo. A transformação de nós próprios é uma riqueza fundamental em
nós. Há uma frase do Kafka que adoro: "Desgraçado daquele que perdeu o poder
de se transformar." Nós é que não olhamos, julgamos que somos sempre os
mesmos. É uma maneira de viver socialmente sem tumultos. Mas numa escala
microscópica, estamos sempre a ser outros (emocionalmente, do ponto de vista da
inteligência...). Com tudo isto, há qualquer coisa que tem de se manter; senão, há
o perigo de psicose. É a identidade.
Fale-me da descoberta de si em mutação, em desassossego.
Há pessoas que aos 15 anos têm uma instabilidade, uma condensação, uma
pluralidade de emoções, de sombras... Sei lá. Passou por tanta coisa. Desde o facto
de cada experiência mínima, desde miúdo, ser uma experiência radical, crucial.
Tenho uma certa resistência - não é pudor - em falar de mim porque começo logo a
objectivar. Posso falar-lhe daquele facto, na igreja, de quando fiz a primeira
comunhão e tive aquela visão... mas para quê?