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O documento discute a relação entre as narrativas bíblicas e a historicidade, argumentando que: 1) A teologia cristã enfatiza a radicação histórica das afirmações de fé, mas estudos recentes questionam ler as narrativas como relatos históricos precisos; 2) Uma posição correta evita extremos, reconhecendo que as narrativas revelam mais sobre os autores do que o mundo descrito.
Originalbeschreibung:
Originaltitel
A palavra de Deus na narrativa dos homens SKA (1).doc
O documento discute a relação entre as narrativas bíblicas e a historicidade, argumentando que: 1) A teologia cristã enfatiza a radicação histórica das afirmações de fé, mas estudos recentes questionam ler as narrativas como relatos históricos precisos; 2) Uma posição correta evita extremos, reconhecendo que as narrativas revelam mais sobre os autores do que o mundo descrito.
O documento discute a relação entre as narrativas bíblicas e a historicidade, argumentando que: 1) A teologia cristã enfatiza a radicação histórica das afirmações de fé, mas estudos recentes questionam ler as narrativas como relatos históricos precisos; 2) Uma posição correta evita extremos, reconhecendo que as narrativas revelam mais sobre os autores do que o mundo descrito.
homens. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus na narrativa dos homens. SP, Loyola, 2005, pp. 09-14. [adaptao]
O objetivo deste pequeno texto
introduzir o vasto pblico numa leitura simples da Bblia. Por causa disso, um dos temas a serem tratados a ligao entre as "histrias" da Bblia e a "histria" como definida em um mundo moderno, quer dizer, os acontecimentos cuja "historicidade" pode ser assegurada com base em documentos e testemunhos que merecem considerao. O problema em pauta delicado. Com efeito, por um lado, a teologia tradicional afirma que o Deus da Bblia um Deus "que age na histria", ao contrrio das "divindades pags", que pertencem ao mundo imaginrio do mito. Para a teologia crist, realmente fundamental poder asseverar a radicao histrica das afirmaes de f. Compreender-se- de imediato que um dogma como o da encarnao deve possuir, necessariamente, uma forte ligao com uma histria concreta e, para aquele que cr, que seja de algum modo suscetvel de verificao. De fato, as afirmaes centrais do Novo Testamento esto fundadas sobre o que as primeiras testemunhas experimentaram, e no sobre lendas, especulaes ou teorias abstratas. "... o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mos tocaram... damos testemunho e vos anunciamos", como diz o incio da primeira carta de Joo (I Jo 1,1). Para o Antigo Testamento, a situao no muito diferente. Deus se apresenta com freqncia como "o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito" (cf. Ex 20,2). Se essa afirmao no corresponde a alguma realidade concreta, a algum acontecimento de certo modo passvel de demonstrao, a f de Israel parece estar construda sobre areias movedias. O Antigo Testamento apresenta um Deus que guia seu povo em todas as vicissitudes de sua histria. Portanto, tambm neste caso, a ligao entre f e histria essencial.
Por outro lado, os recentes
estudos, que de quando em quando tm um eco at mesmo na imprensa, afirmam que cada vez mais difcil ler as narrativas bblicas como narraes "historiogrficas", ou seja, como relatos exatos dos fatos acontecidos. preciso defender a posio usual e afirmar a "historicidade" fundamental das narraes bblicas? Ou abandonar posies um tanto retrgradas para dedicar-se a uma crtica desregrada de toda a "histria bblica", que no incluiria nada ou quase nada de "histrico"? Como se sabe, a posio correta deve evitar os dois extremos. Isso vlido tambm no campo da exegese e dos estudos bblicos em geral. De nada adianta, tambm, polemizar sem antes haver tomado conhecimento do dossi. Posies muito obstinadas ou demasiadamente ousadas, em geral, no resistem por longo tempo. preciso, pois, encontrar um "caminho intermedirio". Para percorrer esse "caminho intermedirio", convm prover-se de alguns instrumentos que sero indispensveis para a viagem. A primeira ferramenta a ser posta na bagagem o conhecimento de quanto sucedeu no sculo passado no campo do estudo da histria bblica. Para muitos autores dessa poca, que estudaram os escritos bblicos do ponto de vista da "historicidade", as narrativas bblicas no nos revelam muito sobre o mundo que descrevem (o "mundo do texto"), mas bastante sobre o "mundo dos autores". Em outras palavras, o primeiro nvel de "histria" que podemos atingir quando lemos a Bblia o de quem escreveu. As narrativas bblicas testemunham, pois, preocupaes, interesses, debates e uma viso do mundo da poca de seus autores. Para tomar um exemplo muito simples, mas talvez um pouco ousado, os autores dessa tendncia diriam que o evangelho de Mateus no nos informa tanto sobre o que Jesus pregava na Terra Santa quanto
sobre o que e como se pregava nas
comunidades de Mateus. Um segundo exemplo ser talvez ainda mais fcil de compreender. O relato da criao em Gnesis 1 no quer descrever com exatido como Deus criou o mundo. Antes, explica-nos como seus autores, os autores sacerdotais do sculo VI antes de Cristo, viam o universo. Compreende-se desde logo que esse conhecimento dever ser utilizado com a devida cautela. Entretanto, quem se recusa a priori a tomar consigo tal "manual", no pode hoje percorrer essas paisagens sem se perder. Menos ainda poder galgar os escarpados de uma leitura inteligente da Bblia no mundo de hoje. Essa simples distino entre "mundo da narrao" e "mundo do autor" fundamental. Certamente no a adotaremos muitas vezes de modo explcito, mas estar sempre no background, a saber, no fundo de nossas pesquisas. O segundo instrumento til ser certo senso critico. O mundo hoje tornou-se "crtico" no sentido positivo da palavra. Vale dizer, nenhuma pessoa inteligente de hoje l a Bblia de modo "ingnuo" e infantil. No possvel tomar a Bblia "ao p da letra", segundo uma filosofia inspirada de modo mais ou menos consciente no fundamentalismo, sem fugir ou afastar-se dos contemporneos e principalmente do mundo que reflete com rigor e honestidade sobre os fundamentos da existncia humana. Quem busca hoje o sentido da vida, seja cristo ou nocristo, no pode contentar-se com respostas prontas, com lugares comuns e frmulas fixas, guisa de chavemestra. No se pode mais ler a Bblia do mesmo modo que se vai a um restaurante fast-food, com a finalidade de consumir um alimento j pronto, homogeneizado e padronizado, que no varia nem com as estaes, nem com o clima, nem com os pases, nem com as latitudes. A Bblia no oferece respostas "j prontas" a perguntas j homologadas. Requer a possibilidade de tomar certa distncia, exatamente a "distncia crtica", que permite ver as coisas na justa perspectiva. A Bblia foi escrita h
muito tempo, em um outro mundo,
em uma outra cultura, e para responder s perguntas desse mundo antigo, que, todavia, est na origem de nossa f e de nossa cultura crist. S depois de haver tomado essa distncia e reposto cada coisa em seu contexto adequado, pode-se comear a compreender o que a Bblia quer nos transmitir. preciso aprender a fazer perguntas justas para obter as respostas adequadas. Depois, poderse- naturalmente "atualizar" a mensagem. Seria, porm, uma iluso perigosa, e precisamente a iluso do fundamentalismo pensar que a linguagem da Bblia seja uma "lngua" contempornea e que, por exemplo, as palavras e as imagens tenham exatamente o mesmo significado. As maneiras de escrever e de contar tambm so diferentes e, para chegar ao nosso ponto mais importante, o modo de conceber a "histria" e o modo de escrev-la so diversos. No se pode deixar de levar em conta esse fato continuamente. E s quem realizar esse esforo poder comunicar a seus companheiros as riquezas descobertas quando, ao retomar, ir partilhar pelos caminhos e pelas praas de nosso mundo as riquezas de seu novo saber. O terceiro instrumento que o leitor far bem de introduzir em sua mochila antes da partida uma boa dose de gosto pela aventura. Falo do gosto pela descoberta, certa curiosidade intelectual e espiritual, o gosto de explorar terrenos desconhecidos e atravessar regies completamente novas. Isso implica tambm, com certeza, a capacidade de avaliar os perigos e calcular os riscos. Todavia, quem teme os riscos no poder degustar o sal da verdadeira vida. "Quem tiver a prpria vida assegurada perd-la-a" (Mt 10,39), diz o evangelho. E acrescenta: "Quem perder a vida por minha causa vai ach-la" (Mt 10,39). Quem no estiver disposto a perder suas aparentes garantias e frgeis seguranas no poder provar o verdadeiro banquete que a Palavra de Deus.
Esse gosto pela aventura comporta
ainda outro elemento: a gratuidade. Quem quer descobrir no deve procurar desfrutar imediatamente sua descoberta. Se algum pergunta a si prprio a cada minuto "qual o proveito?" e quer a todo custo que as coisas "tenham serventia", se busca apenas coisas teis, ainda que para sua prpria vida espiritual ou em seu prprio beneficio, deve, antes, permanecer em casa. No deve tomar em mos esta tarefa de estudar seriamente a Bblia, porque o obrigar a um percurso demasiado exigente, a um percurso deveras extenuante. A aventura, ao contrrio, est aberta a quem quer compreender "gratuitamente", porque uma alegria, um "prazer verdadeiro" descobrir o sentido de um texto bblico, poder corrigir vises parciais e superadas, poder aprofundar o sentido da prpria f e dos ideais de uma comunidade crist. A aventura est aberta para quem sabe que a Palavra de Deus tem um valor em si, e no s porque " til para mim". As coisas verdadeiras deste mundo so coisas que tm um valor em si mesmas. O amor, diz so Bernardo de Claraval, recompensa para si mesmo. Pode-se dizer o mesmo do esforo da inteligncia reta, leal e honesta. Por fim, ser muito til fazer uma generosa proviso de confiana. Confiana na Palavra de Deus, em Deus mesmo e no "sentido da f", que o patrimnio da comunidade dos cristos e da Igreja de Deus. "Procurai, e encontrareis" (Mt 7,7), diz ainda o evangelho. Quem busca a verdade no poder estar iludido. E acrescenta o evangelho de Joo: "a verdade far de vs homens livres" (Jo 8,32). Quem se aventura no mundo da exegese sabe que algumas convices bastante comuns podem ser abaladas. Que aquilo que parecia intocvel mostra-se repentinamente frgil. A verdadeira f, porm, uma busca permanente. No pode ser confundida com certezas imutveis, especialmente com formulaes que no podem nunca exaurir o contedo da experincia em geral e da experincia de f em particular. Se o nosso Deus o Deus da
verdade e o Deus da liberdade, no
h motivo para temer "perder" algo essencial durante a viagem. S se pode perder o que se tornou intil ou que o era h muito tempo. A f s se refora nesse exerccio de leitura rigorosa e nessa busca de uma verdade slida. Nossa f como nosso corpo. Tem necessidade de exerccios para fortalecer-se. Se faltarem os exerccios, tal como ocorre com o corpo, a f se enfraquece. Um dos exerccios que fortalecem a f o que consiste em enfrentar com franqueza e serenidade as perguntas que o mundo cientfico e tcnico de hoje lhe dirige. Resta-me apenas uma coisa a fazer: desejar ao estudante, munido desses instrumentos e provises, que faa uma agradvel viagem de explorao ao longo das pginas de um livro velho, de mais de dois mil anos, porm sempre jovem. E desejar que volte para casa, aps as fadigas do percurso, com lembranas inesquecveis.