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O que diferencia os homens dos animais é o pensamento. Que diferencia os homens entre si
é a qualidade desse pensamento. E, para melhorar essa qualidade, inventamos a educação, a
psicologia, a literatura, a poesia.
Sim, temos essas ferramentas para melhorar nossa faculdade de pensar, mas, por outro lado, algo
nos atrapalha: os excessos. As mídias variadas que disputam nosso interesse, as notícias frescas e
requentadas que se acumulam em nosso buffer mental esperando a análise mais cuidadosa que
nunca virá e as informações de múltiplas faces que esperam ser analisadas e absorvidas, têm o
poder de provocar o curto-circuito que quase nos transforma em paralíticos mentais, claudicantes
nos pensamentos, vacilantes nas respostas e inseguros nas decisões.
Quando, no meio de uma confusão, alguém semicerra os olhos, olha para baixo em um pequeno
ângulo e diz “pensando bem...”, acredite, ele isolou o assunto que o interessa e se livrou dos
excessos. Nesse momento, sua capacidade de análise aumentou consideravelmente e é bom
escutar o que ele tem a dizer.
Pensar é fácil, comum e rotineiro. Pensar é biológico. Pensar bem exige consciência, serenidade,
preparo. Pensar bem é mental. Todo mundo pensa, nem todos pensam bem. Pensar bem é vestir
o escafandro do interesse e ir fundo em uma questão que até então era tratada superficialmente. E
quando mergulhamos vemos outro mundo.
Um mergulho na realidade
A metáfora do mergulho é apropriada neste caso. Lembro-me que quando me deixei, pela primeira
vez, engolir pelo mar, após freqüentar o curso de mergulho autônomo. Senti que estava entrando um
novo mundo, uma dimensão diferente, fascinante, com uma lógica própria e até então desconhecida
para mim. Ao voltar para o barco, o instrutor quis conhecer meu sentimento, e eu lhe disse: “quando
vi aquele mundo lá em baixo, tive a impressão que estive com os olhos fechados até então”. Era o
que eu estava sentindo, de verdade.
Pensar bem é parecido com isso. É abrir os olhos para uma realidade que não enxergávamos
direito porque não olhávamos só para ela. Muitas vezes teimamos em tentar entender a vida
transformando nossa atenção em um calidoscópio cujas peças formam imagens diferentes a cada
instante e não temos à nossa frente uma realidade, temos várias, e não sabemos qual escolher.
Nessa hora, pense bem.
A Razão e a Sandice
Que Machado de Assis foi um gênio ninguém duvida. Com sua obra colocou a literatura brasileira
em um novo patamar. Em 1881 publicou Memórias póstumas de Brás Cubas. O personagem central
é um homem comum que estudou direito em Coimbra, teve um cargo público, tentou ser ministro
sem sucesso, investiu tempo e dinheiro na criação de um emplasto que não deu certo, nunca se
casou, não teve filhos e morreu angustiado. Brás Cubas tinha um amigo chamado Quincas Borba,
uma namorada chamada Eugênia e uma amante chamada Virgília, morreu aos 64 anos e só
entendeu a vida depois da morte. Foi quando ele parou para pensar bem.
Com Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis inaugurou o Realismo Psicológico. O
foco central desse romance não é a vida da sociedade, a descrição da cidade, das paisagens ou das
pessoas. Não interessa quem são os personagens e sim a forma como eles sentem e como se
relacionam com suas circunstâncias. O foco de Machado de Assis, nesse livro, é o interior das
pessoas, seus dilemas existenciais, suas contradições emocionais. Não interessa o fato mundano, e
sim a vida interior, a alma humana. A marca registrada desse enredo, é que ele é contado por um
defunto. Brás Cubas dedica a obra ao primeiro verme que comeu sua carne.
Em um dos capítulos o defunto autor (e não autor defunto, esclarece) cria dois personagens
antagônicos que, segundo ele, costumam nos transformar em suas moradas: a Razão e a Sandice.
Só depois de morto Cubas consegue dar força à Razão para que esta expulse a Sandice de casa.
Disse a Razão à Sandice, quando esta lhe pede apenas um espaço no sótão da casa (um cantinho
em nossa consciência):
- Estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada. O que você quer é passar
mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao lesto.
- Está bem, mas deixe-me ficar um tempo mais, estou na pista de um mistério...
- Que mistério?
- Hás de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa...
E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice
ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a
língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...
Dentro de Brás Cubas, a Razão já tinha cedido espaço à Sandice outras vezes. Desta vez, foi como
se ela tivesse dito: “Pensando bem, chega de lhe dar guarida. Pensando bem, estou cansada de
você. Pensando bem, nossa relação termina aqui”.
Pensando bem...
O mundo moderno valoriza as pessoas que pensam melhor. A lógica aplicada à tomada de
decisões, a velocidade do raciocínio para resolver problemas intrincados e uma memória
capaz de recuperar fatos e nomes com rapidez são qualidades admiradas e até cultuadas. As
emoções são importantes, desde que estejam sob controle do pensamento – a famosa
inteligência emocional. “A vida é uma comédia para os que pensam, e uma tragédia para os que
sentem”, disse o escritor inglês Horace Walpole. Será?
Será que pensar bem significa que a razão deve escravizar a emoção, o pensamento acorrentar o
sentimento? Não, não se trata de uma disputa entre a razão e a emoção e sim entre a razão e a não
razão, que Machado chamou de Sandice. Eu prefiro Machado de Assis.
Pensar bem quer dizer organizar o pensamento. Não significa apenas pensar e não sentir. Até
porque o sentimento é o gatilho do pensamento. Pensamos nossa vida prática porque sentimos
nossa vida interior, pensamos a engenharia porque ela facilita a vida e sentimos a poesia porque ela
justifica a vida, pensamos a agenda para evitar a ira do tempo e apenas sentir as suas benesses.
Pare um pouco, apeie do bonde do motorneiro louco contratado pela mídia que define o sucesso, e
pense bem. Pense nos valores reais, na amizade, na verdade, na justiça. Pense no trabalho
porque ele dá dignidade e alegria, além de pagamento. Pense na felicidade construída pela razão a
pedido da emoção. Pense na finitude da existência e na infinitude da vida. Pense nos sentimentos
daqueles que você ama, e que amam você. Pense no amor. Pense bem...