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£R00403725) REDE SIRIUS [compra rermuta C1 pete «= Dep. Legal [1 Universidade Federal do Rio de Jancio Reiter lest Tenien Vie-Retra Sylia Vag Coordenadore do Forum de Citi ¢ Calan Bears Resende Baicora UFRJ Dinter Carles Nelton Courinho Coordewedone de ide Tito Lies Seance Coordenadern de Prusie Jaise Duarte Con Eaitoral Carls Nelson Coutinho (presidenr) (Cares Pestana Diane Maul de Carvalho Jost Lai or “José Paslo Nero Leandio Konder Visgaia Fontes Eduardo Granje Coutinho organ COMUNICACAO E CONTRA-HEGEMONIA processos cultureis e comunicacionais de contestagdo, pressio resisténcia Ao ve Janenno Eprrona UFRJ 2008 Copysight © 2008 by Eduatdo Granje Covxinho Ficha Caralogfia elaborada pela Divisio de Processamento Tésnico ~ STBLIUFR) C7AT Comunicagio « conrs-hegenonias procates elers © omunizaionsis de conta, presto ¢ sia | ‘oxgmizador Eduardo Grane Couto. ~ Rio de Jae ro Ediora UFR, 2006, 280 ps Mx 21 em, 1. Comunicagto de masta = Agpeto pices ~ Br si 2 Comuicgiee cular, 3. Cnn palin ~ Br 4S Hegemonis ~ Br |. Coutinho, Eduardo Gras, og cpp 302.250981 INNO ISBN 978-85-7108.319-6 Blige de Tes Lis See Jofo Sete Catnara Reviste sees 1990002343, capa 93/2008 EROOA725% Maria Araujo “ i naga CEHIA Pra Gilfea ye ~5703/200¢ ‘Alice Brito Biivragie Blerinica Ant Careio Universidade Federal do Rio de Janciso Forum de Ciéncia ¢ Cultura Ediors UPR] ‘Av Pastus, 250 I sal 107. Praia Veemelha ~ Rio de Jancico Cer 22290902 * feL/Fax: (21) 2542-7646 / 2295-0346 (21) 2295-1595 1 124 a 127, 210 «222, ups wsewcedivoraul.br Apoio WV sean SUMARIO [APRESENTAGAO Eduardo Granja Coutinho NOVAS VISIBILIDADES POLITICAS DA CIDADE E VISUALIDADES NARRATIVAS DA VIOLENCIA Jess Martin-Barbero © J0G0 CowTRA.HEGEMONICO 00 OIVERSO Muniz Sodeé COMUNICAGAO ALTERNATIVA EM REDE € DIFUSAO CONTRAEGENONICA Dénis de Moraes PROCESSOS CONTRAHEGENONICOS NA IMPRENSA CARIOCA, 1898/850 Eduardo Granje Coutinho {DEOLOGIA, HEGEWONIA E CONTRALEGENOWIA Rodrigo Dantes UNIVERSIDADE, €ALDO DE CULTURA POS-MODERNO E A CATEGORIA DE HEGEWONIA José Paulo Nerto INTELECTUAIS € mibia - QUEM DITA A PAUTAT Fontes Viret CONTRA MiDIA.HEGEMBNICA Raguel Paiva y 6 Wy Ms 18, CONTRALHEGEMONIA & RESISTENCIA JUVENIL: MOVIMENTOS. MUNDIAIS DE CONTESTAGAO DA ORDEM NEOLIBERAL Jodo Freie Filho ‘Ana Julia Cury de Brito Cabral PRATICAS MIDIATICAS & DISPUTAS POR HEGENONIA: REFLEXOES ‘A PARTIR DE ESTUDOS DE CASO NA BAIKADA FLUMINENSE Ans Lucia Enne ‘UMA GUERRA DE POSIGAO POR DENTRO OA INDUSTRIA CULTURAL BRASILEIRA: CONTRA.NEGEWONA NAS TELENOVELAS OF DIAS GOWiES Hiran Roedel AS POLITICAS PUBLICAS OF COMUNICAGKO EM BUSCA DE Novos SUIEITOS HISTORICOS Adilson Vax Cabral Filho REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS SOBRE O§ AUTORES 195 235 APRESENTACAO Eduardo Granja Coutinho Predomina, no chamado campo da comunicagio, aquele tipo de intelectual que Bertolt Brecht, em novela inacabada, chamou de “cui”, Esse era o nome que se dava na ficticia Republica de Chima (Weimar) aos membros da casta dos trabalhadores intclectuais, unindo-se as letras iniciais da expresso “telect-ual~ines”. “O nui € intelectual desta época de mercados e mercadotias. O arrendador do intelecto” (Brecht, 1991, p. 32) Cabe aos fais, em termos gramscianos, tornar orginica a visio de mundo dominante, formular 0 pensamento hegemdnico, eriar € expressar a idcologia do mercado. Seu pensamento pode assumir formas as mais diversas. Hé, entre cles, os que defendem abertamente 0 status quo.eas grandes corporagées mididticas, como os funcionalis- tas herdeicos de Lasswell e de suas técnicas de propaganda; os recnd- filos, como Wilson Dizard Jr., com sua sempre atualizada apologia da nova midia norte-atneticana; € 0s teéricos, como Dominique Wolton, que fazem o elogio irrestrito da televisto comercial (0 dis- positivo mais evidente da midia negocista) como instrumento de democratizagio. Mas hd também, na constelagio de pensadores e tedricos da comunicacéo, autores criticos € tendencialmente de es: querda, incapazes, porém, seja por seu ceticismo em relagio & possi- bilidade de superago do capisalismo, seja por seu cardter elitista ‘ou, ainda, por sua adeséo implicita as varias formas de ideologia do mercado, de apontar contratendéncias & hegemonia do grande capital e aos fendmenos da teificagio. Nessa constelagio, sobressaem-se os chamados pensadores pés-modernos. Pensadores que, no plano epistemol4gico, questionam as nogées cléssicas de sujeito, verdade, objetividade e totalidade, e, no plano politico, por conseqiiéncia, as nogbes de classe, ideologia, produgio material e histéria. Desconsiderando as contradigées s0- ciais em nome da “pluralidade” ¢ da “diferenga”, ¢ abandonando qualquer projeto de transformagio global da sociedade, os novos mis poder ser contra tudo ~ contra a opressio sexual, étnica, patriarcal, colonial e até midistica -, menos contra a opressio do capital.' Nao aro, tornam-se entusiastas da razio instrumental, acreditando na técnica como algo, por si s6, capaz de cransfotmar as relagBes sociais. Daf seu entusiasmo com as novas tecnologias de informacio e comu- nicagio. Segundo Jameson: Grande parce da euforia do pés-modernismo decorte dessa celebragio do préprio proceso de informatizagdo high-tech (sendo a prevaléncia das aquais tcorias da comunicagio, da linguagem ou dos sinais um subproduto ideol6gico desse “visio de mundo mais geral"). (1996, p, 294) Dada a centralidade da midia no processo de reprodugao da vida social, sfo hegeménicos os intelectuais que fazem a apologia — direta ow indireta ~ do existente no campo da comunicagio. Hé, no entanto, pensadores de variados matizes teéricos e politicos que, sem perder de vista as relagbes materiais dominantes, desenvolvem uma reflexdo ctitica a respeito do papel da comunicacio na cultura recnocapitalista, Entre esses, hé os que, inspirados no pensamento do italiano Antonio Gramsci, compreendem 2 cultura como uma inscincia da luta politica, e os meios de comunicagio, como in mentos de hegemonia por meio dos quais uma classe ou fragio de classe impoe sua lideranga intelectual ¢ moral sobre 0 conjunto da sociedade. Tal perspectiva admite, no entanto, a possibilidade de grupos subaltemos construirem uma visio de mundo capaz de resistirese contrapor isi cultural € que Gramsci chamaria de contra-hegemonia das dominantes, A essa resistencia politico- Tendo como refeténcia a problemética das relagdes. entre comunicagio, hegemonia e contra-hegemonia, este livro retine ensaios de autores que desenvolvem uma reflexio sobre processs comunica- cionais contra-hegembnices no mundo contemporineo, Tais autores partem do reconhecimento de que, a despeito do poder planeririo das grandes corporasies mididticas, de sua avassaladora capacidade de criat © consenso necessitio & dominaczo do capital, verificam: se, no dmmbito da sociedade civil, intimeras experiéncias culeurais © comunicacionais de contestacao, pressio ¢ resisténcia. Muitas dessas experiéncias sao analisadas nos artigos deste livro: narrativas e dispo- sitivos de visibilidade alrernativa, estratégias de afirmagio da diver- sidade cultural ¢ de apropriagio de territérios, infiluagbes de voves marginais na grande imprensa, comunicagio alternativa em rede, movimentos juvenis de contestagio & ordem neoliberal (ocupagbes, ‘macchas, bicicletadare contrapropagendas) com o respaldo das novas| tecnologias da comunicagio, ridios livres € comunicirias, poltticas piblicas de comunicagio, programas televisivos alternativos, priticas comunicacionais de grupos da periferia, resisténcia a0 pensamento tinico. E preciso ressalear, no entanco, que, embora dialoguem com © pensamento gramsciano, particularmente com a nocio de hege- monia, os ensaios aqui reunidos, vinculados a diferentes tradigbes filoséficas, expressam posig6es divergentes, o que é de todo desejavel para a construgio de um saber verdadelro. B do embate franco € qualificado de idéias que podem se desenvolver novas concepg capanes de servir de referéncia para priticas e processos comunica- Gionais minoritérios, periféricas, cidadios, alternativos, comuni- tétios, marginais, prolecirios, subalrernos ou contra-hegemdnicos, como queiram. Pye enn ng eee a 10 COMUMIEAGRO F COMTRE-HEDEMONIA | Nota NOVAS VISIBILIDADES POLITICAS DA CIDADE E VISUALIDADES NARRATIVAS * Para uma critica do sistema de pensamento pés-modemo, DA VIOLENCIA™ ver Eagleton, 1998. ee Jess Mattin-Barbero A membria de Milton Santos e Norbert Lechner Duas leituras do contex spagos @ tempos da nossa situagao Da Colémbia observo a situapto latino-americana, maccada, a tragos latgos, por uma caracteristica muito animadora: a volta da politica 20 primeiro plano do censrio apés quase vince anos de se viver com a perversio de ter a economia — travestida de ciéncia pura ¢ inflexivel ~ atuando como tinico ¢ inapelavel protagonista, Des- bancando a economia politica, a macrocconomia nao s6 relegou a politica a um lugar subalterno na romada de decisées, mas contribuitt enormemente, em noss0s paises, para 0 esvaziamento simbélico da ‘mesma, isto & para a perda de sua capacidade de nos mobilizar ¢ nos fazer sentit unidos ~ com as seqiielas de desmoralizagao que esse (0 produziu, ao se traduair em uma crescente percep¢io de humilhaggo e em uma sensagio de impoténcia individual ¢ coletiva, © seqiiestro da politica pela macroeconomia contribuiu também para a deslegitimagéo do Estado, convertendo-o em incermedidcio das decisées do Fundo Monetitio Internacional, do Banco Mundial ¢ da Organizagio Mundial do Comércio para uma sociedade a cada dia mais desigual ¢ excludente, com porcencagens crescentes da populacéo vivendo abaixo dos niveis de pobreza e com milhdes de pessoas sendo forcadas a emigrar para os Estados Unidos esvaziamen - a Europa. Isso porque, a0 se erigit em agente organizador do * Tradugéo Lisa Stuart BEE Ee Eee Ee Ee ee ee ee ee eee eee eee ete a2 JeS0s mARTIN-BARBERO conjunto da sociedade, o mercado procura redefinir a prOpria carefa do Estado mediante uma reforma adminisrativa, com a qual, a0 mesmo vempo em que sio definidas meras de eficiéncia para o Esta- do — cujos parimerros, eminentemente quantitativos ¢ imediad tas, provém do paradigma empresatial privado ~, esse € des-centrado, mas nfo em decorréncia do aprofundamento da democracia sim como resultado de seu enfraquecimento como ator simbélica da coeso nacional. Por tudo isso, a volta da politica ao cendtio oxigena o ambiente, ampliando o horizonte nao 56 da ago, mas também do pensamento, fo qual cstava gravemente asfixiado pela alianga entre pensamento tinico e determinismo tecnolégico. Volta a politica com tudo 0 que cla implica de inércias ¢ vazios, mas também de esforgos para recu- petat sua densidade simbdlica e para descobrir novos angulos e nar- rativas pelos quais pensar e contar a politica. Desse pensamento re- novador sio exemplo as /eituras mais importantes do contexto que nos chegaram de dois dos nossos maiores cartégrafos da politica, antes que mortessem jé iniciado 0 novo século: o gedgrafo brasileiro Milton Santos, ajudando-nos a pensar as eransformagies do espago, € 0 cientista politico chileno Norbert Lechner, convidando-nos a decifrar as mutagSes que © nosso tempo atravessa. Liicido come poucos entre nés, Milton Santos tragou, no tl timo livro que publicou antes de morrer, Por wma outra glabalizagio (2000), 0 exbogo de um mapa politico no qual nossas sociedades se encontram pressionedas, dilaceradas e, ao mesmo tempo, mobi- lizadas por dois grandes movimentost-o das migragies socials ~ em scala estatistica ¢ envergadurs intercultural munca ances vistas — 0 dos fluxor técnico-informacionais, cuja densidade esté alterando tanto os modos de producio quanto os de convivéncia. Sob essa luz, a globalizagfo aparece ao mesmo tempo como perversidade e como possbilidade, wm paradoxo cuja vertigem ameaca paralisar nfo apenas ‘© pensamento mas também a aco capaz de transformar © curso esse pensamento, Pois a globalizagio inventao processo avassalador NOVA VisigiLivazes POLITICAS BA CIDADE. 13 do mercado, um processo que uniformiza o planeta mas aprofunda as diferengas locais, desunindo-o, portanto, a cada dia. Disso, a per- versidade sistemica (Santos, M., 2000, p. 46 ss.), que implica e pro- duz aumento da pobreza e da desigualdade, do desemprego, que ja © tomou crBnico, e de doengas que, como a Aids, transformam-se em epidemia devastadora nos continentes néo mais pobres, mas sim mais saqueados, Contudo, a globalizagéo'também traz.em si um conjunto ex- traordindrio de posibilidades, de mudancas agora possiveis e que se baseiam em fatos radicalmente novos: a enorme ¢ densa amélgama de povos, ragas, culturas e gostos criada hoje ~ ainda que com suas muitas diferengas ¢ assimetrias — em todos os continentes, uma amélgama que 56 é possivel na medida em que emergem com grande forca diferentes filosofias, as quais péem em crise a hegemonia do racionalismo ocidental; e também a significativa reconfiguracio na relagio entre populagdes ¢ territérios: a maior parte da populagéo se aglomera hoje em Areas cada dia menores, © que imprime um dinamismo desconhecido & mesticagem de culturas ¢ Alosofias. ‘Com isso, “as massas de que falou Ortega y Gasset no comego do séeulo XX” (Santos, M., 2000, p. 118) assumem, agora, em virtude de sua aglomeragio e diversificacio, uma nova qualidade, Outro Faro profundamente novo ~ mas principalmente inovador ~ ¢ apropria- «fo crescente de novas tecnologias por grupos das camadas subalter- nas, 0 que Thes permite uma verdadeira “revanche sociocultural”, isto 6, a construgio de uma contra-hegemonia mundial Esse conjunto de possibilidader permite que a humanidade se abra, pela primeira vez na hist6ria, para uma “universalidade empirica” © para uma nova narrativa histérica, No entanto, a construgao dessa narrativa exige uma “mutacio politica”, um novo tipo de ssopia ca paz de assumir a envergedura de seus desafios. Primeito, a exisréncia de um novo sistemna téonico em escala planetéria que transforma 0 uso do tempo, a0 produzir a convergéncia ¢ a simultaneidade dos mo- ‘mentos em rode 0 mundo. Como resultado, as velhas tecnologias so transpassadas pelas novas, levando-nos de uma influéneia po: tual — decorrente do papel isolado que cada técnica havia assurnido até entio ~ a uma influéncia ¢ uma conexo transversais que afecam, diceta ou indiretamente, a totalidade de cada pals, e de todos os paises. Segundo, uma nova mediagito da politica no momento em que @ produgio se fragmenta como nunca em conseqiiéncia da céenica, 0 que esté demandando enorme unidade politica para que seja possivel arcicular as fases ¢ comandar o conjunto mediante @ “unidade do motor”, ¢ deixar para crés a pluralidade de motores ¢ ritmos com que o velho imperialismo trabalhava, © novo tipo.de motor que move a globalizacdo ¢ a competitividade exponencial entre empresas de rodo 0 mundo, “exigindo a cada dia mais ciéncia, mais tecnologia e melhor organizagio”. Terceiro, « peculiaridade da crise que ocapitalismo atravesia reside, entio, no entrechogue continuo dos fasores de mudanga, que, agora, ulteapassam as antigas gradagbes e medidas, transbordando por territérios, palses e continentes. Pois, 20 se achar conformado por uma extrema mobilidade das relapbes © uma grande adaptabilidade dos atores, esse entrechogue reintroduz “a centralidade da periferia’ (Santos, M., 2000, p. 149), néo s6 no plano dos paises, mas também no plano social, marginalizado pela economia e agora re-centrado como a nova bate na afirmagao do reino da politica. Passando da reflexio do gedgrafo sobre 0 espago a estudar as tramas do tempo, Norbert Lechner também nos deixou, pouco antes de morter, uma valiosa e prenunciadora meditagio sobre os contornos que As sombras do amanha'(Lechner, 2002) ja projetam sobre o nosso tempo, inscalados que estarnos em um presente continuo, ‘em “uma seqiiéncia de acontecimentos que nfo chega a se cristalizar em duragfo, sem o que nenhuma experitneia pode criar, para além da retdtica do momento, um horizonte de futuro” (Lechner, 1995, p. 124). H& projegSes mas néo hé projetos, insistia Lechnet, pois, ainda que alguns individuos consigam se projetar, as coletividades nfo tém de onde extrair projetos. E sem um horizonte minimo do oVAG VisiSiNIOKOEE POLETICAS DA CIDADE... 15 fucuro nao posstvel conceber mudangas, com 0 que a sociedade escorrega em uma sensagiio de sem-saida. Se a desesperanga dos po- bres e dos jovens é tio profunda, ¢ porque acla se misturam o fira~ ‘casso de nossos paises ainda por serem mudados com a sensagio de impoténcia mais ampla e geral que a auséncia de fururo introduz 1a sensibilidade da mudanga de século, Assistimos, envéo, a uma forma de regressdo que nos retira da histéria € nos devolve ao tempo do mito, 20 tempo dos eternos retornos, em que © tinico fururo possivel é o fucuro que vem do “além”: nfo um futuro a trufdo pelos homens na histéria, mas um futuro que esperamos que nos chegue de outro lugar. E disso que fala a volea das religises, dos orientalismos “nova era” ¢ dos fundamentalismos de toda laia Uin século que parecia feito de revalugées — sociais, culturais ~ cer- minou dominado pelas religises, pelos messias e salvacores: “o mes- sianismo é a outta cara do ensimesmamento desta época”, conclu Lechner (ibid.). Nisso reside 0 resgate descolorido mas crescente dos caudilhos dos pseudopopulismos. cons- ‘Atcavés desse prisma, Lechner analisa a relagio entre as im- plicagées convergentes da globalizacio sobre 0 espago — 0 desloca- mento do tettitério nacional como articulador da economia, da po- Iitica © da cultura, e sua substieuigio por um fuxo incessante © opaco no qual é quase impossfvel achar um ponto de sucuca que delimire ¢ una 0 que concebfamos por sociedade nacional — e aquilo que a globalizacio fiz, com 0 tempo: seu encolhimento em vireude da velocidade vertiginosa de seu ritmo-limite ea aceleragio das mu- ddangas sem rumo, sem perspectiva de progresso. Se toda convivencia ou cransformagio sociais necessitam de um minimo de duragio que “confira ordem ao porvir”, a aceleragao do tempo que vivenciamos subtrai essas mudangas do discernimento e da vontade humanas, aumentando a imptessio de automatismo (Lechner, 2000), a0 mes- mo tempo em que dilui o poder delimitador ¢ normativo da tra- digdo — suas “teservas de sentido” sedimentadas na familia, na esco- la, na nagéo ~ ¢ a capacidade da sociedade de projetar faruros, de BEB eH He Ee EEE EE EE EEE EEE EEE EEE tragar hotizontes de sentido para 0 futuro, Nessas circunstincias, cos individuos tem dificuldade de se orientar na vida, eas coletividades, de se sicuar no mundo. Com o aumento da incerteza sobre para conde vamos ¢ com 0 assédio de uma velocidade sem trégua, atinica saida € 0 imediatismo, 0 curto-prazismo que permeia tanto a politica governamental quanto as queixas das maleratadas classes médias. Norberto Lechner (2000, p.77) refina sua andlise potenciando metéforas: a sociedade nfo suporta nem um presente sem um hori zonte mfnimo de futuro, nem um facuro completamente aberto, isto &, sem limites que © definam e diferenciem, pois nao é possivel que tudo seja posstvel. E.é dessa forma que as dolorosas expetiéncias Vividas pela imensa maioria dos latino-americanos precisam ser lie das, Em primeiro lugar, indo-se mais além de seu significado ime- diato — ou seja, buscando seus efeitos de sentido a longo prazo, aqueles que delimitam o devit social, exigindo-nos néo uma leitura linear ou pregressa, mas uma decifiacio de seus modos de durar, de suas tenazes lentidées e de suas subterréneas permanéncias, de suas siibitas explosdes ¢ inesperadas reaparig6es. E, em segundo lugar, indo mais além do que dessas experigncias ¢ representvel no discur- © fortnal tanto das cigncias sociais quanto da politica, isto é “nas representagées simbélicas mediante as quais estruturamos e organi- zainos.a expetiéncia do social” (idem, 2002, p. 25), a densidade ‘emocional de nossos vinculos ¢ medos, as ilusbes e as frustragbes. Dessas duas leituras, infere-se a necessidade de que a leicura de nossa situagéo implique, antes de mais nada, a decifragio da expe- ritncia comum em sua votalidade e'do que é comum em nossas ex- petiéncias latino-americanas, dado que nela/nelas repousa o sentido dos processos de desmoralizapo das multid&es ~ mudidéesretomadas hoje pelo pensamento social como uma de suas mais polémicas ¢ suugestivas categorias'~ e de suas formas de uta. Como € significativo hoje 0 faro de que E. P. Thompson tenha conferido prioridade epistémica ¢ politica & experiéncia sobre a consciéncia de classe, com tudo 0 que isso atualmente traz.de desafios a0 nosso instrumental Novae visimiLipaces moLITICAS DACIDADE.-. 17 racionalista de investigagio, mas também com a sintonia introduzida por nosso desconcerto cognitive diante da des-fgurapo que a politica vive e da perversio da economia. E € por isso também que as experiéncias narradas neste texto propéem a questio da visibilidade politica e narvativa que emerge da conffituosidade e do entrelagamento entre cidadanias e urbanias, centre experiéncia cidadi e experimentagio urbana. O que vou narrar sucinta ¢ analiticamente sio algumas experiéncias ¢ experimentos colombianos relatives & nova visibilidade da cidade de Bogocé e 2s visualidades peculiares dos jovens de Medellin. Nova visibilidade do politico: experiéncias © metaforas Em meados da década de 1990, Bogoti somava a permanente informalidade de seus processos de urbanizagio ~ edificagao destrutiva die boa parte de sua memaéria, deficiéncia brutal de habitag6es popu- lares, precariedade dos servigos ¢ caas do transporte publico ~ a auséncia crescente de espagos puilicos compartithaveis, ou mesmo transitaveis, ¢ um cendtio de miltipias violéncias: dos seus altos in- dices de criminalidade e inseguranga até a agressio no Ambito das comunidades, com suas vingangas, maus-tratos dentro da familia e delitos sexuais. E suficiente esta imagem que focaliza a relagio da maiotia da populagéo com a cidade nessa epoca: “Seus habicantes transitavam entre a casa ¢ o lugar de trabalho como se o fizessem por um ciinel.” (Jimeno, 1998). Porém, essa mesma Bogoté elegeu para prefeito, em 1995, o.ex-rcitor da Universidacle Nacional, o matemético efilésofo Antanas Mockus ~ filho de pais liuanos que fugiram da guerra em seu pais, primeiro paraa Alemanha edepois paraa Colémbia— queapresentou sua candidatura sem 0 apoio de nenhum partido politico ¢ que, ainda assim, alcangou o dobro dos voros de seu maior oponente, formando seu governo com politicos independentes ¢ com pessoas otiundas da academia, decisio que twansformaria de forma radical 6 fururo de Bogots 18 Jesoe wantin-eanseno Jé nos dispositivos simbdlicos da campanha, a cidade assstiu a. uma experiéncia politica radicalmente nava, resumida no lema de governo de Mockus (1995): formar cidade (Mockus, 1995), lema que significava wés coisas: a verdadeira forma de uma cidade nao E dada por suas arquiseturas ou engenarias, ¢ sim pelos cidadéos. Porém, para que isso seja possvel, os cidadéos devem poder se re- conhecer na cidade. Esses dois processos se apdiam em outro, 0 de tornar vistvel a cidade como um todo, ou seja, em sua condigéo de espacolprojetoltarefa de todos. Se antes a cidade fora invisibiliza- da por suas multiplas tragédias e pelas inimeras deficiéncias nos servigos — deficigncias no abastecimento de Agua, na enengia elécrica, no transporte etc, que sio 0 que afi o cotidiano das pesoas ~, busca-se mudar 0 foco do olhar, para que essas deficiéncias deixas- sem de ser petcebidas como fato inevitivel ¢ isolado, ¢ passassern a.ser vistas como caracteristca de uma figura deformada em seu con- junto, uma figura desfigurada, sem forma foi assim que a cidade comecou a se fazer visfvel, com uma série de estratégias comunicativas de rua que titaram seus habitances do “cine!” pelo qual a atravessavam, provecando-osa olhar e ver. A primeira, os mais de quatrocentos mimicos e palhagos estrategica- mente localizados em vétios lugares da cidade especialmente con- gestionados que indicavam as faixas de pedestres e os acompanha- vam — € a confustio, os protestos ¢ @ desconcerto que eles ocasio- navam tanto entre os condutores dos automdveis quanto encre os admirados pedestees, O que, a principio, foi visto como uma “piada de mau: gosto” do prefeito logo setransformou numa pergunta sobre © sentido do espaco piiblico, pergunta que em pouco tempo encon- trou sua tradugo em gestos e conduras: milhares de motoristas foram brindados pela prefeitura com um cartéo no qual se via, de uum lado, © desenho de um dedo polegar para cima e, do outro, uum polegar para baixo, cartéo que logo aprenderam a usar para aplaudir as condutas solidérias e que respeitavam as normas ou para censurar as infragbes e agressGes. NOWAS Visi@igioROEE POLITICA DA CIDADE 19 Em poucos meses, organizou-se um concurso para que Bogott tivesse um hino, pois wma cidade sem hino ndo se ouve a si mesma, Mais tarde, foi o surgimento de uma cenouracomo simbolo da mui- «o polémica implantagéo de um horirio maximo de funcionamento para os estabelecimentos que vendiam bebidas alcodlicas. Depois, os rituais de vacinacdo contra a violéncia que as criangas aplicavam ros adultos, a insealacio nos baitros mais pobres de casas de justca, para que as pessoas dirimissem seus conflitos localmente ¢ sem @ utlizagao de dispositivos formais, a criagio da notte das mulheres etc ‘Todas essas iniciativas significaram um rico e complexo processo de luxa contra a explosiva combinagio de conformismo com acumu- laglo de raiva e ressentimento, e, mediante elas, deu-se a0 mesmo tempo a reinvengio de uma cultura politica do pertencimente e de uma politica cultural no cotidiano, Foram, por iss0, dois os fios que entrelagaram as miltiplas dimensées dessa experiéncia. O primeizo, uma politica cultural que assumia como objeto promover néo tanto as culturas especializadas, industtiais ou de elie, mas sim a culeura coridiana das maiorias, com um objetivo estraségico de potencializar a0 maximo a capacidade comunicativa dos individuos e grupos para resolver os conffitos de forma cidadi ¢ dar expressio a novos tipos de inconformismo que substicutssem a violencia Asica, utlizando como fundamento a hererodoxa iddia de que o cultural (0 més) fee a mediagio ¢ estabelece um continuum entre © moral (0 individuo) € 0 juridico (os oxsro:) —como o manifestar aqueles comportamentos que, mesmo ilegais ou imorais, fo, contudo, culturalmente aceitos pela comunidade. Fortalecer a cultura cidad@ equivale, entio, a au- mentar a capacidade de regular os comiportamentos dos outros me- diance o aumento da propria capacidade expressiva e dos meios para entender 0 que o outro esté centando dizer. A isso Antanas Mockus chamou de “aumento da capacidade de gerar espaco piblico reco- nhecido” (1998, p. 19). ‘Armada inicialmense com essa bagagem, a prefeirura de Bogor encomendou uma complexa pesquisa sobre contexcos de cidadania, ze sess maatin-saneeno sentidos de justiga, relagdes com o espago piiblico etc., ¢ destinou considerdvel soma ~ 196 do orgamento a ser investido no distrivo federal — para sua campanha de “Formar cidade”, empreendendo ‘sua luta em duas frentes, a interagio entre estranhos e a interagio entre comunidades marginalizadas, por meio da utilizacio de cinco programas estratégicos: o respeito &s regras de transito (mimicos nas faixas de pedestres), a dissuasio do porte de armas (em ttoca de bens simbélicos), a proibicéo do uso indiscriminado de fogos de artficto em festas populares, a “lei cenoura” ~ determinagio de fe- chamento dos estabelecimentos piiblicos que vendem bebidas aleodlicas & uma da madrugada, com oferta de coquetéis nio alcodli- cos ~ ca “vacinagao contra a violéncia”, um ritual publico para di- minuir as agressées entre vizinhos ¢ furniliares € os maus-tratos a criangas. © outro fio condutor foi a politica cultural encomendada 20 Instituto Distrital de Cultura, que deixou de se dedicar 4 promogio de atividades artsticas para se encarregar da articulacio entre os muitos e diversificados programas culturais em que se descobrava © projeto diretor de Formar cidade, no qual estavam inclufdas tanto as ages da prefeitura quanto as das instituigdes especializadas da cultura e das associagées comunitérias dos baitros, Paracoxo: enquanto ‘os estudiosos das politicas culturais na América Latina estavam, convencidos de que uma politica cultural podia estar dirigida apenas as culturas especializadas e insticucionalizadas ~ como 0 teatro, as artes plisticas, a danga, as bibliovecas, os museus, 0 cinema ou a imisica ~, a proposta de Formar cidade se empenhou em que as artes estivessem em comunicagéo com as culturas da convivéncia social, englobando das relagées com 0 espago piiblico ~ em terminais de transportes coletivos ¢ nos dnibus, em parques e pragas ~ até as te- gras do jogo cidadao tanto no interior das gangues de jovens quanto entre elas A ruptura € a rearticulagio introduzidas com essas medidas soaram como blasfémia para alguns, mas muitos artistas e trabalha- Novas visisisisaper POLITICAS DA CIDADE... 21 lores culturais viram nelas a ocasifo para repensar sou préprio trabalho & luz de seu ser de cidadao. O trabalho nas comunidades se converteu em possibilidade concreta de rectiar, mediante priticas estéticas ede expressio, o sentido de pertencimento das comunidades, a percepsao a redefinicéo de suas identidades. Ao se redescobrirem como wizinhes, descobriam também novas formas de expressio tanto nas narrativas orais dos velhos quanto nas oralidades joyens do rock e do rap. Um bom exemplo dessa arciculagéo das politicas sobre cultura cidadé com as culeuras especiaizadas ¢ 0 significado que comecou a adquitit 0 espaco piblico, € 0s novos usos a que se pres- tou para a constituigio de infra-estrururas culturais méveis de uri- lizagio coletiva. Devoler 0 espago piiblico &s pessoas passou a sig- far n&o $6 0 respeito as normas, mas também a abertura desses cespagos para as comunidades, de modo a que essas pudessem exercitar sua criatividade cultural em um processo no qual ser cidadsio havia car néo apenas participagio, mas também pertenci- passado a sige mento e criagio © conjunto de estratégias simbélicas mobilizadas na cidade de Bogots culminow na ctiagio de uma Vedoria cidada, wma ins- tituigao organizada no inicio da segunda gestio de A. Mockus (2001-2004), Trata-se de uma instituigao impulsionadora e organi- zadora dos cidadaos em comunas, em cada uma das localidades em que a administracdo de Bogord esté dividida, para que eles possam se fzer ver ese impor na formulacio de reivindicagdes, na instauragao de dentincias e na elaboragio de projeros sociais ¢ culturais. Vedoria é uma palavra cujos lagos com o ato de ver e com 0 vistvel ni sio apenas fondticos. Pois, se a catacteristica da cidadania hoje ¢ 0 faro de ela estar associada a0 “reconhecimento recfproco”, esse reconhe- cimento diz respeito decisivamente 20 direito de ser visto e ouvido, uma vez que equivale a0 direito de existir/ser levado em conta social, politica eculturalmente no terreno tanto individual quanto coletivo, tanto no plano das maiorias quanto no das minorias, 22 JESO8 wantin-sAneeRo. NOVAS VISIBILIDADES POLITIERS DA CIDADE. 23 Da visibilidade soci ‘as novas visualidades técnico-culturais A presenga constante, delirante, das imagens em nossa vida quase sempre é associada, ou ingenuamence reduzida, a uma doenga incurivel do mercado e da politica contemporineos, ¢ quase nunca 08 fendmenos ¢ dispositivos da visibilidade, idéia esta associnda, predominantemente, 8 sua outa fice: a da vigilincia & que o poder nos submere cada dia mais descaradamence, E é certo: fazer-se vis vel sempre implica, a0 mesmo tempo, tornar-se vulnerivel ao assédio vigilante do poder, cuja figura mais extrema esta na internet: nfo E possivel existivfestar na rede sem visto — detectado/observado ~ por milhares de olhos, e sem ficar vulnerdvel a milhares de virus! Porém, assim como muito poucos deixam de Jado a internet por causa dessa vulnerabilidade, pois © que a rede mobi a ¢ possibilica neutraliza seus riscos, assim também a visibilidade social e politica vai mais além do que pode ser pensado com base na obsessio pandptica — inclusive agora, depois do Onve de Setembro, quando todas as cidades se vem invadidas por engenhos eletrénicos de inspeccio automética ¢ de vigilancia agressiva Se é verdade que a presenca crescente das imagens no del nas campanhas e, ainda, na agio politica espetaculariza esse mundo até confundi-lo com o do teatro, dos reinados de beleza ou das igrejas elecrBnicas, também é verdade que as imagens cransmirer uma consirugéo visual do social ~ na qual essa visibilidade recolhe © deslocamento da luta por representagéo para a teivindicagio de reconhecimento. Nas imagens virtuais se produ, além disso, um profundo des-centramento das instivuitbes ¢ das formas que tém me- diado o funcionamento social das artes. Se é verdade que, nas con- tradit6rias dindmicas desse descenttamento, o mercado joga papel- chave, ao Funcionalizar ~ e em no poucos casos cooptar ~ os novos atores ¢ os modos de experimentacio ¢ de comunicacio estéticas, também é verdade que a expansio ¢ a proliferagio das performativi- ddades estéticas supera os estraragemas do mercado. E falo de perfor- matividades porque me parece ser a categoria que melhor permite entender os novos modos da visbilidade social no momento em que amediagdo das secnieidades passa a ser estrurural, isto é, quando elas medeiam justamente as trans-formagbes — as mudangas de forma, no sentido que Marx e Freud deram a esse conceito ~ do piiblico, «as novas formas tanto da configurasdo do piblice quanto da sua per- epg. Sho essas performatividades que venho chamando em meus ‘iltimos trabalhos de visualidades, Vou mencionat esquematicamente algumas visualidades ligadas ao protagonismo social aleangado pelos jovens na Coldmbia, Foram as imagens dos jovens como perpetndo. res de violencia que, ironicamente, deram inicio 4 sua visbilidade e as que thes abriram uma forma de participagao na sociedade, por meio da negociae Gao de acordos de pu2 ou de representagbes mid cas expetaculaces. (Riato, 2007, p. 149) Com efeito, foi a partir das imagens dos dois jovens sicarios que, montados em uma moto, assassinaram, em meados dos anos 1980, 0 ministro da Justiga, que o pals percebeu pela primeira vez 2 presenga de um novo ator social, os jovens, que passaram a ser os protagonistas das manchetes ¢ editotiais de jornais, das dramaci- zagbes ou de outios programas de televisio, de novelas ¢ filmes Poucos anos depois, com um estranho livro intieulado No nacimos pa’ semilla (Nao nascemos pra semente), também viria a piiblico a primeira tentativa de compreender a performatividade estética dos jovens sicérios de Medellin. Seu autor, Alonso Salazar (1990), arrisca-se, pela primeira vez, a investigar o mundo das gangues urbanas a partir da cultura. Confrontando o reducionismo de perce- ber a violencia juvenil como decorséncia da injustiga social, do de- semprego, da violéncia politica e do dinheiro fécil que o narcotréfico ofercce, a investigacao de Salazar ~ que no ignora essas realidades ~ mostra que a violéncia juvenil se inscteve em um contexto mais amplo ¢ de maior duracio: 0 do complexo e delicado tecido socio~ cultural do qual escio feitas as violénclas que perpassam inteiramen- tea vida coridiana das pessoas na Colombia ea sociedade antioque- nhs em particular Fica, com isso, evidente a complexidade e a consisténcia cul: tural dos rituais de violéncia ¢ de morte entre os jovens, em sua articulago com rituais de solidariedade e de expressividade estética, reconstruindo o tecido no qual esses jovens vivem e sonhami 0 rock pesado, 0 heavy metal e os modos peculiares que tém de se agrupar as memérias do ancestral antioquenho ~ com seu aft de lucto, sua forte religiosidade e suas represilias familiares ~, mas também os imagindrios da cidade moderna, com seus barulhos, seus sons, suas velocidades ¢ sua visualidade eletrdnica. A esses jovens se aplicou pela primeisa ver, na Colémbia, a denominagio de descartdveis, ¢ Salazar nos ajuda a entender a densidade do sentido pelo qual os jovens sicdrios representavam o que ena descartado pela sociedads, pois descartivel significa a projesio na vida das pessoas da répida obso- lescéncia de que estéfeita, hoje, a maioria dos objetos que o mercado produz; mas descartével cambém esté relacionado com refigo, isto com tudo aquilo que uma sociedade joga fora ~ ou quer jogar.. =, porque a incomoda e atrapatha. Comesamos assim a compreender de que dolorosas e a0 mes- mo tempo prazerosas experiéncias, de que sonhos, frustragSes e re beldias estava feito esse refigo social que conforma 2s gangues que, das comunidades populares, leva 0 pesadelo — na forma do sicétio em uma motocicleta mas também cam o rock e o rap — até 0 centro da cidade e a seus bairros abastados e bem pensantes. A visualidade dos jovens emergiré cada dia mais fortemente das vozes desses nd- mades urbanos que se mobilizam entre 0 dentro ¢ 0 fora da cidade montados nas letras e sons de grupos de rock como o Ulenégeno ou © La pesilencia ou no rap das gangues, e nas quadtilhas das éreas de ocupacio, veiculos de uma consciéncia inflexivel da decomposicéo da cidade, da presenga cotidiana da violéncia nas russ, do beco sem. saida do trabalho, da exasperacio ¢ do macabro, Na estridéncia so- nora do heavy meral, nas suspreendentes sonoridades dos shows de NOWAE VisiBiQiOADES POKITICAS BA CIDADE... 28 rap nas comunidades, os menestréis de nossos dias escreyem a cré- nica de uma cidade na qual as estéticas do descartavel se hibridizam com as frigeis utopias que surgem do desassossego moral e da vertigem audiovisual. Seguindo essa pista, mas alargando-a para que possa conter ‘0 mais desconcertante dos paradoxos que dinamizam as visualidades dos jovens, Pilar Riafio (2007) nos descobre, em extensa pesquisa, que, enquanto vivemos em um pais onde ocorrem mais mortes = eno entanto a sociedade procura compulsivamente apagar seus sinais, suas pegadas sobre a cidade —, os jovens de Medellin fazem dda morte um dos elementos mais expressivos de sua vida, Primeiro, tomando-a visfvel com rituais funerérios extravagantes e com dife- rentes formas de lembranca que vio das passcatas ¢ procissSes, dos grafites e monumentos de rua, até as lipides e colagens dos altares domésticos. Segundo, transformando-a em marco eeixo organizador das interagiescotidianase em fio condutordo relaso pot meio do qual tecem suas memérias. E essa a face mais oculta de uma juventude magantemente acusada de frivola e vazia. Pois em um pais onde sio Tantos os mortos sem luto, sem serem velados em uma ceriménia humana qualquer, éna juventude das comunidades pobres, populares, com todas as contradigées que isso acarrera, que encontramos ~ por mais heterodoxas ¢ excéntricas que sejam — verdadeiras ceriménias coletivas de luto e de lembranga. Entre os jovens das comunidades de Medellin “do que mais se lembra so dos mortos”, eisso mediante uum discurso visual que nio se limica a evocar, mas que procura con tocar, reter 0s mortos entre os vivos, dar rosto aos desaparecidos, contat com eles para arquitetar projetos e empreender aventuras E 0 mais surpreendente: as prévcas de meméria com as que os jovens “dio significado aos mortos no mundo dos vives sio as que propiciam & vida didria um sentido de continuidade ¢ coeréncia” (Rik 2007, p. 101). Hié ainda um segundo paradoxo que recupera as raizes narra- tivas dessa nova visualidade: o resgate pelos jovens urbanos dos mais 26 Jess WARTIN-BARBERO antigos ¢ tradicionais relatos rurais de medo e mistério, de fantasmas, almas e ressuscitados, de figuras satinicas € corpos possuidos, em “persistente amélgama” com os relatos que vein da cultura afto- cubana e das culeuras da midia, do rock e do merengue, do cinema edo video. Evocando “mapas do medo”, esses relatos ¢ lendas, amal~ gamados ecleticamente, convertem-se em geradores de “um terreno sensorial comum” para expressar emogGes, em figuras reivindicadoras das faganhas no santas de seus herdis, conferindo uma certa coeréncia moral ¢ alguma estabilidade a vidas situadas nos mais turvos re- moinhos de insegurangas ¢ medos, e servindo de dispositivo de des- lacamento (Freud) dos terrores vivides na cruel realidade cotidiana magia, sobrenatural, teatralidade emocional — dos quais é possivel exorcizar e controlar de alguma forma a delirante violéncia na qual se desenrolam suas vidas. Nessa antdlgama de relatos rurais e narrativas uurbanas, existe um Ambito escraségico de madelagem asiva de suas cubsuras para doté-las de sobrevivéncia tanto em suas dimensiones mais amplas e profundas quanto em seus valores mais utilitrios: os vinculados ao éxito nos namoros ou nas atividades do contraband. Bogoté, abril de 2006, para outras esferas e outros planos de mediagio simbélica ~ memé Nota Sobre o resgate da categoria de multidéo, ver Hardt © Negri, 2002; ver também & revista francesa Multbudes 0 JOGO CONTRA-HEGEMONICO DO DIVERSO Muniz Sodré Hegemonia, bem se sabe, é a imposigo de valores que con- formam os interesses da cidadania e concorrem pata a diresio moral ¢ intelectual dos individuos. £, assim, um processo de articulagao de representagées sociais com vistas a um consenso, nfo isento de Brcsiuncias, de cones, de movimensaces “consrachegemonin” hoje muito freqiientes nesse campo de produgio, circulagio e recep- Sedo do sentido resumido na palavra “culeura’. Nesta dindmica, as DrepresentagSes podem caracterizar-se por uma marcante ambigili Bande conceitual, na esfera tanto da hegemonia quanto da contra- lushegemonia, na qual cada érea sociossemistica empeniha-se na fixagio Qlde um significado particular %& A nogio de “cultura”, por exemplo, mostra-se até hoje pro- Sblematica ¢ fortemente dependente da Area sociossemidtica em que ‘Leircula. Uma anedota pessoal: alguns anos atrés, a0 encontrar em Paris um amigo meu, reconhecido por muitos como um dos pensadores marcantes da contemporaneidade, cu the disse que acabara de ver os seus livros expostos na vitrine numa das grandes livratias do Quartier Latin e que, além disso, um livtinho destinado 1 estudantes de liceu 0 apontava como um dos principais filésofos franceses, Em meio-tom de auto-ironia e amargura, cle me res- pondeu: “E... entrei na cultura...” Evidentemente, para quem tinha sido um dos “guerteitos” do Maio de 68 e habil desconstrutor de férmulas de pensar, causava um certo incémodo saber-se recu- petado pelo mesmo sistema que termina por recuperar para o pélo hegemnico dos discursos sociais qualquer fermento subversivo, de Lenin a Che Guevara — a cultura. No entanto, folheando ao acaso um jornal, eu leio um comen- rério muito significative, feito pelo professor Kabir Hassan do Instieuto Americano de Estucos sobre Bangladesh, sobre a atividade de Muhammad Yunus, 0 banqueiro de Bangladesh que recebeu 0 Prémio Nobel da Paz em 2006 por ter desenvolvido um sistema bancirio de microcréditos, 96% dos quais io concedidos as mulheres. Diz ele: “Em Bangladesh, sociedade iskimica ortodoxa, as mulheres secasam muito cedo, tém muitos filhos e softem como analfabetismo 0 machismo. O banco est provacando uma mudanga gradual ao dar poder a elas.” (Lores, 2006). Esse sistema bancirio pertence, claro, 4 esfera da grande eco- noma ou das finangas, logo, a esfera de poder que rege como ileima instancia o modo de produgio dominante que, por isto mesmo, se cempenha na manucengéo da ordem social tal e qual se di, indiferente as situagdes de desigualdade humana. A cultura no é incompativel com 6 ordenamento vigente. Muito pelo contririo, ela € hoje pro- clamada como ferramenta escratégica para o desenvolvimento so- cioecondmico e jé dé margem a categorias como “economia criativa” ¢ “indiisteia criativa”, nas quais se langa mo da cognigéo ¢ da capa cidade criativa de grupos ¢ individuos para gerar valor. © citado caso de Bangladesh orienta-se por um outro viés Com efeito, o poder que 0 microcrédito engendlra diz respeito, ainda que de modo muito informal, & politica, mas 0 fenémeno como um todo é, no limite, cultural, pelo deslocamento que opera numa identidade de género, a femninina, tradicionalmente congelada em posigies de submissio frente a identidade masculina. © culrural ‘est af assentado numa produgio de sentido diversa daquela que investe e gatante 9 poder masculino numa sociedade descrita como “analfabeta ¢ machista”. Neste caso, “cultura”, ao deslocar uma or- todoxia fechada, revela-se como forga contra-hegeménica. 0 soc conTaa-HEGEMONIES DO DIVERSO 28 Sao diferentes os sos de “cultura” nos dois episddios, mas a palavra guarda um trago comum: a referéncia & idencidade, que, no primeiro caso, tem a ver com @ modo como os ocidentais se re- conhecem simbolicamente, ou seja, por um universal de pensamento ‘eurocéncrico materializado em obras (cientificas, licerérias), uma verdadeira homologacio civilizaréria, enquanto, no segundo caso, tem a ver com a desconstrugio ou, pelo menos, 0 deslocamento do poder associado & identidade masculina. losdficas, artisticas, No primeiro caso, afiase do intelectual famoso conota desgosto com a idéia de cultura enquanto, digamos, uma “unidade de id tificagées", isto & uma entidade organica que essencializa a identi- dade, Entrar na cultura significa que jé se esteve fora dela quando se prodiuziam conceitos novos, quando a atividade de pensar ¢ excrever era uma provocagio a que cada um se desidentificasse com ‘a ordem ou com a unidade do mundo pensado. Esté af mesmo implicica 2 sugestio de que essa cultura possa tet morrido, que @ sua sactalidade “erudita” ou 0 seu rigor formal administrado pelas academias ou pelas induistrias do conhecimento nao seja mais do que © rigor mortis da criagio. Essa idéia de unidade cem cransito livre entre os intelectuais, mesmo que vatiem as suas finalidades. Ainda recentemente, 0 esci- tor € tedrico italiano Umberto Eco, preocupado com a distingio entre erudicio e cultura, manifestou o seu ponto de vista: “Brudicio Go € cultura, mas uma sua forma particular ¢ secundaria, Cultura io € saber a dara de nascimento de Francisco I. Ser culto significa antes de tudo saber que cle foi um rei da Franga no Renascimento ‘equal era o papel da Franga no contexto europeu da época, Quanto asua data de nascimento, a cultura permise encontrar ess inforrmagio, se temos necessidade dela” (Coli, 2006) ‘Além desta diferenga, existicia, para Eco, uma outta separagio possivel entre o homem culto ec incelectual, Este tiltimo seria aque Je que argumenta c instaura processos de compreensao, enquanto que ac homem culto caberiam o hedonisme eo refinamento daqueles 30 muniz soone que imergem com liberdade mental no universo da cultura, como se esta fosse uma espécie de festa do esplrito. Neste modo de ver, 2 cultura seria algo préximo do estado que caracterizava o dandy ilustrado (Oscar Wilde é 0 perfeito padréo) ou 0 fléaneur sofisticado, descrito por Walter Benjamin. Nada de novo af: as elites coloniais ¢ pés-coloniais latino-americanas adotavam 0 mesmo modelo para a cultura belerrista, que estabelecia privilégios de classe para os intelectuais do estamento patrimonialista. E esse modelo servia politicamente para definir quem era ou nfo europeu. Interessa-nos, entretanto, frisar esse ponto de vista para mostrar que, em pleno século XXI, persiste a idéia de uma unidade idenci- ficatéria européia sob o nome de cultura, portanto, a idéia da hege- monia de um patriménio simbélico, centrado na universalizagio do sentido. E uma idéia com sérias conseqiléncias politicas, que forne- ce critérios 4 direita européia para tentar consagear uma cidadania bipolar, a dos europeus ¢ a dos nao-curopeus dentro de um mesmo espago nacional. Para este modelo de pensamento, é inerente & cul- tura uma singularidade essenci , que a tornaria impermeivel & singularidade da ourra, como se houvesse uma espécie de introver~ siio absoluta do sentido de homem. Confunde-se 0 conceito de povo como principio politico de uma cidadania com povo como unidade organica — racial, lingustica, religiosa etc. ~ de uma nacto, Um exemplo recente: to logo chegou & presidéncia da Franga, Nicolas Sarkozy propos a criagio de um Ministério da Identidade Nacional € da Imigragio. A proposta tentava oficializar, na verdade, a divi- so da cidadania francesa entre a identidade de longa daa (jus san- guinid) © a identidade de curta data (a da imigragéo). Essa idéia contraria tudo que passamos hé algum tempo a entender como diversidade. Contraria, aids, zodo 0 empenho de um certo pensamento contemporaneo em buscar verdades nfo-violentas. E que, na pritica ético-politica do relacionamento humano, a verdade nfo-violenta se d4 quando acantece o infinitamente diverso,isio ¢, quando se reconhece na pritica a diversidade humana como uma 0 1060 CONTAA-HEGEMONICO DO DIVERS at constante em todo empenha de realizagio do homem, a diversidade comoa verdade do real concreto, se quisermos insistr flosoficamente nna hipétese de uma verdade. Filosoficamente, essa idéia reconhece a “diferenga culcural” como trago de um comunalismo particular, mas a dissolve politicamente por meio da imposigéo de um padrao hhegeménico de cidadania, precensamente universalisa ‘Mas a palavra “diversidade” também nfo escapa 4 mesma ambigiiidade que marca a nogio de cultura no campo das repre- sentag6es hegeménicas e contra-hegeménicas. Mesmo servindo na pritica a formulagio de polfticas culturais por parte do Estado, a idéia do diverso permanece como uma encrurihada fracamente de- terminada para alguns fendmenos ligados & culcura, Tende-se geral- mente a incorporé-la como o mero reconhecimento ou conhecimen- to de diferengas no nivel do estar-no-mundo do homem, Convém, portante, evocar Kant ~ filésofo seminal para 0 pensamento modemo — que nos adverte: uma questio é distinguir 2s coisas uma das outras, outra questio € conhecer a diferenca das coisas. Conhecer a diferenga 8 ¢ possivel quando somos capazes de fazer um julgamento, o que é atributo exclusivo do animal humano, capaz de apelat para a razio, Para Kant, “antes de pronunciar julgamentos objetivos, nés comparamos os conceitos, a fim de chegar & identidade [virias representagées sob um 5 conceito], tendo em vista julgamentos universas, ou (chegat] 4 sua diversida- de, para entéo produzir julgamentos particulares” (Kant, 1762). Nesse modo dle pensar, o conceito de diversidade deveria ser chamado “conceico comparative”.' Se um objeto se apresenta varias veves aos nossos olhos com as mesmas determinagées internas (qualidade ¢ quantidade), nds usamos 0 recurso da compar para saber se trata-se de uma dinica coisa e nao de coisas diferentes. ‘Agora, quando se trata de um fendmeno (quer dizer, alguma coisa que dependa da intuigio sensivel) que se aptesenta virias vezes aos rnossos olhos, nao cabe comparar. Por mais idéntico que possa ser © fenémeno, a diversidade dos lugares que ele ocupa a0 mesmo tt tempo € uma razfo suficience da diversidade numérica do objero dos sentides. Kant quer dizer que a pluralidade e a diversidade muméricas Jid so indicadas pelo priprio espaco como condigio dos fenbmencs exteriores, Assim, por mais que uma parte do espaco possa ser semelhante a uma ouera parte, ela & sempre exterior a ela e, por isto mesmo, diferente. A questio espacial é, assim, de suma importincia para bem entendermos o problema da alceridade, mas igualmente Ga identidade de qualquer fendmeno que se diga *moderno”. De fato, como bem observam Sloterdijk e Finkielkraut (2003), no niicleo ontoldgico da modemidade se encontra o desprestigio do cespago em favor do tempo. Dizem eles: “O que € um modero? E alguém que admite que 0 espago nfo importa mais, que todas as quest6es da espacialidade séo ficgbes reacionstias e sobreviventes, que nfo podem mais nos rocar porque © espago é.2 dimensio desvalorizada pela modernizagio. Ser moderno é viver apenas no tempo e em diferencas relativas a0 tempo. © tempo presente e 0 fucuro, eis a iltima diferenca que importa” (ibid., p. 89). Foi esse tipo de valor que os primeitas processos ocidentais de globalizagéo procuraram inculear no resto do mundo, em meio as “viagens de descobrimento” es guerras de colonizagio e cristia- nizagio, Daf, a quase automética associagio que fazem tanto ocidentais quanto orientais entre modernizacao e ocidentalizagio. A conquista de espagos pela ocidentalizagio guerreira ¢ religiosa preparou 0 terreno para a modernizagzo, que tenderia a desvalorizar a dimensio espacial em favor da cemporal. , Na pretenséo de “civilizar” 0 ndo-ocidental, esté implicita a exigencia de conhecé-lo e resgatié-lo para a temporalidade européia (© cronocentrisma) dentro dos prinefpios do racionalismo iluminis- {a que contemplam aspectos militares, politicos, recnol6gicos, insti- tucionais, educacionais e rligiosos a serem transmiridas como “uni- vversais" humanos. Concebido como mera diferenga cultural a partir de comparacées légicas, 0 Outro é uma entidade a ser submetida ee pela razio causal, sem maiores consideragées por tuclo aquilo que possa indicar uma positividade para sen espaco préprio, sua tertitorializagéo. A diversidade que, entretanto, emerge na globalizacio con- temporanea traz elementos novos para o pensamento. Para comecar, deixa de vigorar o interesse especulativo (tazi0 causal) aflora 0 interesse de agir a partir da dimensio espacial, que tem a ver com a aproximagio dos seres e com o sentir. A diversidade humana é algo a ser mais sentido do que entendido. Por que dizemos que alguém é igual ou diferente de outro? Porque apenas comparamos, Comparamos como se fosse 0 caso de identificar objeros. E com paramos para exercer poder, para dominar, Na verdade, os homens nao so iguais, nem desiguais. Os homens, seres singulares, cocxi tem espacialmente em sua diversidade, Cada uma dessas singulari- dades correspond, 2s veres, A dindmica histérica cle wm Outro, wm coletivo diverso. Na pritica, aquilo que nés experimentamos de uma cultura, principalmente da nossa, & diversidade de seus repertérios, nos quais se mostram hibitos, enunciados e simbolizagées. Por que, entio, ignoramos ou nos imunizamos socalmence contra uma determinada dimensio da diversidade, com o modo de vida dos indigenas, por exemplo? Possivelmente porque, armado da razao comparativa, amplificada pela economia ¢ pela técnica, 0 sujeito de poder, convertido em “unidade de dominacio”, & imagem de um Um-absoluto (utopia da metafisica) auto-imuniza-se contra a exterioridade dos lugares, limiar da diversidade numérica, ¢ con- tra 0 sensivel, que invoca a dualidade para 0 lugar do Um e enseja a empatia para com 6 diverso, A imunizagfo é uma barreita 4 em- patia e 4 compreensio. O nico afeto possivel para com o diverso € 0 da patronizagio escravisca Diante da dificuldade para com o diverso, 0 olhat hegeménico limita-se ao reconhecimento da pluralidade, © mesmo assim quando pressionado por ui consenso intelectual. Um exemplo significative desse consenso € a “Convengio sobre a protegao ¢ promocio da 34 muniz sova diversidade das express6es culturais’, adotada pela Organizagéo das Nagées Unidas para a Educagio, a Ciéncia e a Culeura (Unesco) ‘em 20 de outubro de 2005, segundo a qual “‘diversidade cultural’ refere-se & multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos sgrupos e sociedades encontram sua expressio. Tais express6es sio tiansmitidas entre ¢ dentro dos grupos € sociedades” (Unesco, 2007, p. 5, art, 4,1), Precisa o texto da convengio que: (1 2 diveisidade cultural se manifesta nfo apenas nas vatiadas formas pelas quais se express, se entiquece ¢ se transmite 0 patriménio cultural da humanidade mediante a variedade das expressOes ccaleurais, mas também através dos diversos modos de criagio, producto, difusio, dstribuigio e fruigso das express6es culeurnis, quaisquer que sejam os rieios ¢ tecnologias empregados. (Ibid.) A iniciativa da organizagio internacional decorre principal- mente de uma conscientizasio, em progressiva generalidade, quanto 4 importancia do didlogo entte os diferentes modos de apropriacio simbélica do mundo pars a consolidagao do vineulo entre cultura ¢ desenvolvimento socioecondmico. Mas também da constatacio de que [] 08 processos de globalizacio, facilitados pela rapida evolugio das teenologias de comunicagio informagao, apesar de proporcionarem condighes inédicas para que se intensifique & inveragio entre culturas, constituem também um desafio para a diversidade cultural, especialmente no que diz respeiso aos riscos de desequilfbrios encre paises ricos ¢ pobres. (Ibid., p. 3) Essa convengio rem, sem diivida alguma, valor estratégico no campo da luta contra-hegeménica em toro da citculagio das reptesentag6es, mas ainda se ressente de lacunas conceituais, em particular no tépico da definigio de diversidade. E que, apesat da po 0 0co comras-wecem enso a6 identificagdo feita por Kant quando se refere & “pluralidade diversidade numéricas”, o plural nfo implica, no espago sociopolitico cultural, autonomia de vor ou possibilidade daquilo que se vem chamando, em certas anilises anglo-saxénicas da cultura, de agency, isto é uma agio interventora ou uma tesposta simbélica, por parte de um grupo singularizado, a um discurso hegeménico. Agency ¢ contra-hegemonia sfo termos que podem significar a mesma coisa, se referidos aos jogos lingiiisticos e as agSes de resistencia aos dis- cursos que tentam perpetuar a marginalizagdo de grupos socialmente subalternos. ‘Acontra-hegemonia nao se produz nominalmente num vécu de articulag6es socioeconémicas. $6 numa ambiéncia politicamente articulada é que se constituem as ag6es discursivas responséveis pela intervengio simbélica do diverso, Nao é suficiente a mera “expresso, cultural” de um grupo ou de individuos singularizados. Por exemplo, quando se concebe uma rede piiblica de televi- sio ~ caso do presidente venezuclano Hugo Chavez, ao negar & rede privada RCTV a renovagio da concessio do canal por ela utiliza- do -, 0 argumento utilizado é 0 de que se vai priorizar a pluralidade das “expresses culturais” (a mesma categoria de que se vale a convengio da Unesco) das comunidades particulares, Tenta-se fazer sapor, assim, que 0 registro midistico de uma pluralidade numérica de diferengas culturais implica instauragio politica da,diversidade, quando na realidade, posto no intetior da codificagao semiética operada pelo grupo logotécnico de uma rede relevisiva, 0 diverso apenas ratifica a hegemonia de um centro Ioso ni significa que nao se possa incluir qualquer uma das novas tecnologias da informagio ¢ da comunicagio na instauragio politica da diversidade, Agem corcetamente, assim, os intclectuais afticanos que reivindicam essas tecnologias como recurso valioso para a extensio da identidade afticana para além das fronteiras da Aftica. £ a posigio, por exemplo, do historiador angolano Simao Souindoula, diretor do Museu Nacional da Escravatura em Luanda, que utiliza indistintamente os adjetivos “bantu” e “africano” para qualificar a identidade da regio? Para ele, os africanos no devem hesitar em recotrer a todas as possibilidades tecnoldgicas, dos satélives 20 digitalismo, no sentido de consolidar e difundir a cultura bantu, buscando aproximé-la da culeura de outros povos, cortigindo deste modo a tendéncia pata a uniformizagio cultural por parte dos dispasitivas mecinicos da globalizagéo. Nio se trata, entretanto, de registrar audiovisualmente dife- rengas culturais - manifestadas na superficie imediata dos costumes ¢ folguedos antes enfeixados na categoria “folclore” ~ ¢ sim de usar a tecnologia de dentro para fora, constituindo uma vor auténoma, politica e culturalmence diverse. A mera publicizagio de sinteses de convergéncias possiveis em matéria de produgio de sentido te- dunda em inécuos “efeitos de superficie Em conseqiiéncia, na abordagem contra-hegeménica da diversidade h4 que considerar categorias de pensamento selegadas a0 segundo plano pela merafisica ou pela montagem universal de sentido pautada na racionalidade instrumental. Bssas categorias sfo, ‘como deixa entender Kant, 0 espago ¢ a poténcia, Blas dizer res- peito as formas de vida de comunidades coexistentes em socieda- des dominantemente marcadas pela metafisica européia. Dessas co- munidades, que sempre fazem apelo a uma territorializagio positiva, pios de cocréncia ética ou espititual adequados & transmissio da iddia de pove. Povo no pode ser jamais depreendem-se geralmente pri entendido como uma homogénea constelacao demogesfica, ¢ sim como um principio de aglutinagZo humana que pressup6e o sen: timento comunitiio ¢ © respeito & continuidade das geragdes, Por isto, essas formas de vida heterogeneas so importantes para a questio das identificagées de um povo nacional, por mais que sejam dificilmente reconhecidas em sua diversidade cultural. Por isso também, qualquer politica cultural hoje tem de rever a idéia de cultura como esséncia ou como fronteiras énicas demarcadss. Uma politica da diversidade cultural no ¢ 0 reconhecimento ou ' © financiamento de simples fetiches identirérios, mas a promogio de relagées dialégicas encre Estado, sociedade global e formas plurais deexisténcia, queimplicam a apropriagio de territériose intervencio em agencias governamentais, Por isso, consideramos que entender propriamente do que se esté dizendo quando se fala em diversidade }4 € um primeiro passo para uma tomada de posigio contra hegeménica no plano da cultura Notas + Repetimos aqui ¢ em alguns dos parigrafos seguintes a nossa argumentagio formulada na conferéncia “Diferenga ¢ diversidade”, feita em 2005 em Porto Alegre, publicada no volume organizado por Fernando Schuler e Juremir Machado da Silva, Meiamorfses da culsure contemporinea (Porto Alegre, Sulina, 2006) 2 Ver a revista Affica 21, Luanda, abr. 2007, p. 89. 37 COMUNICACAO ALTERNATIVA EM REDE E DIFUSAO CONTRA-HEGEMONICA* Dénis de Moraes Em meméria de Octavio Janni Introdugso Nosso propésito ¢ reflesir sobre a emergéncia da comunica- fo alternativa em rede como meio de difuséo contra-hegemsnica, suas possibilidades e seus limites atuais. Isso significa avaliar dis- cursos € dindmicas editoriais que, no Ambito da internet, proc ram: 1) romper com crivos e controles da midia convencionals 2) defender a cidadania, a democratizagio da vida coletiva e a liber- dade de expresso; ¢ 3) opor-se a0 “pensamento tinico” neoliberal, {que subordine os direitos sociais & ra20 competitiva dos mercados financeiros, ocultando as profundas desigualdades geradas pelo mo- do de produco capitalista. Significa também concentrar 0 olhat em priticas comunicacionais que se encontram na contramao da midiatizagio ¢ do consumismo, os quais exaltam o exibicionismo e incutem 0 conformismo. Priticas que se definem ideologicamente na dirego de uma contra-hegemonia — isto é, comprometidas com 1 contestasio 20 neoliberalismo! © & ideologia mercantilista da globalizagéo, ao mesmo tempo em que propdem ¢ discurem alter~ nativas sociopoliticas humanizadoras. * Bare texto resulta de pesquisa realizada com 0 apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico ¢ Teenolégico (CNP9) ¢ da Coordenagio de Aperfeicoamento de Pessoal de Nivel Supetior (Capes 40 pewis of Monae Arede mundial de compucadores apresenta-se como mais um. campo de luas ¢ conflitos pela hegemonia no interior da sociedade

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