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ROMEO + JULIET DE BAZ LUHRMANN: A FIDELIDADE PELA IMAGEM1

Valéria Moura Venturella2

Um dos maiores desafios enfrentados pelos professores de literatura destes tempos


é atrair o interesse dos jovens estudantes para obras canônicas e consagradas pela crítica,
porém escritas há décadas ou até mesmo séculos. Em um mundo em que o que aconteceu
há três dias é considerado velho e desgastado, e em que há um “massacre de quaisquer
noções humanistas de subjetividade e criatividade” (HUTCHEON, 1991, p. 166), é inevitável
que nos perguntemos o que os clássicos gênios criativos formados no auge do humanismo
têm a dizer para nossa juventude, esse grupo superexposto à informação em tempo real
sobre os mais variados assuntos e fatos ocorridos em qualquer lugar do mundo. E, mesmo
que cheguemos à conclusão de que há, sim, muito a ser aprendido nas velhas obras da
literatura canônica mais tradicional, ainda assim nos deparamos com a delicada tarefa de
sensibilizar nosso público para as histórias, sua linguagem, seus temas e suas mensagens.
Em seu trabalho A Era do Globalismo, Octavio Ianni (1996) apresenta os desafios
epistemológicos postos pela consolidação de uma nova sociedade global, e conclama os
estudiosos das ciências sociais a assumir novas posturas e a construir novos modos de
interpretar a realidade. A recomendação vale também para os educadores que se deparam
diariamente com os filhos dessa nova configuração social. É nesse espírito que este
trabalho procura compreender e avaliar, à luz de conhecimentos sobre a pós-modernidade
globalizada, o modo como o cineasta australiano Baz Luhrmann escolheu contar uma das
histórias de amor mais conhecidas do ocidente em seu Romeo + Juliet, de 1996, um
fenomenal sucesso de público e um trabalho reconhecido pela crítica especializada por sua
fidelidade à produção shakespeariana. Neste ensaio, os diálogos do filme são confrontados
com o texto original, e os recursos não verbais utilizados pelo diretor para atualizar e
complementar o conteúdo lingüístico da peça – uma barreira considerável para as
audiências contemporâneas – são examinados em busca de inspiração. Sim, porque
inspiração é uma ferramenta essencial no arsenal de professores de literatura
comprometidos em despertar o interesse de seus estudantes para a leitura de obras
clássicas.
O reinado da Rainha Elisabeth I (1558–1603), a chamada era elisabetana, ou a
renascença inglesa, é considerada o período de ouro da história do país. A relativa
1
Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Literatura e Estudos Culturais,
ministrada pela Profa. Dra. Maria Tereza Amodeo no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de
agosto a dezembro de 2009.
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre.
estabilidade política proporcionou condições para o crescimento econômico e para o
florescimento da vida cultural e artística, que incluía poesia, música, literatura e
especialmente o teatro. Este, longe de ser apenas uma distração para a nobreza, tornou-se
uma legítima manifestação cultural do povo e para o povo. Os autores da época, embora se
inspirassem em histórias clássicas traduzidas do latim, produziam peças com que as
classes populares se identificavam, e os espetáculos nos finais de semana eram
frequentados por todo o tipo de pessoas (BOYCE, 1990).
Dentre um grande número de dramaturgos que entraram para o cânone pela
qualidade de suas produções, tais como Thomas Kyd e Christopher Marlowe, William
Shakespeare foi sem dúvida a figura mais proeminente (THORNLEY, 1974). Considerado
hoje um prodígio atemporal, ele era autor, diretor, produtor e ator de peças teatrais, além de
um bem-sucedido poeta. Na dramaturgia, destacou-se tanto nas tragédias quanto nas
comédias, além de ter escrito peças históricas que são referência na reconstrução
contemporânea da historiografia inglesa. Romeo and Juliet é uma tragédia do início de sua
carreira, escrita e encenada entre 1591 e 1595 e publicada pela primeira vez em 1597.
Embora seja considerada por muitos críticos como um trabalho menor do gênio inglês
(BOYLE, 1990), a triste história do desencontro fatal dos dois amantes que, ao morrerem,
acabam por unir duas famílias inimigas, gozou de grande prestígio desde sua primeira
apresentação e é ainda hoje uma de suas peças mais encenadas.
A história de Romeo e Juliet3 se passa “na bela cidade de Verona” 4, e inicia com uma
luta entre dois grupos de jovens homens pertencentes a duas famílias inimigas: os
Montague e os Capulet. O príncipe de Verona intervém na disputa e declara que, a partir de
então, qualquer ruptura na paz pública será punível com a pena de morte.
Na cena seguinte, que se passa na residência dos Capulet, o Conde Paris pede a
Lorde Capulet a mão de sua filha Juliet em casamento. Capulet, embora aprove o
pretendente, sugere que ele espere por mais dois anos – a menina tem apenas treze anos
de idade – e o convida para o baile que a família oferecerá naquela noite. No quarto de
Juliet, sua mãe e sua aia tentam convencê-la a aceitar as atenções de Paris.
Na residência dos Montague, Mercutio e Benvolio descobrem que seu primo Romeo,
filho de Lord Montague, sente-se deprimido por amar Rosaline, uma das sobrinhas de Lord
Capulet, sem ser correspondido. Eles então convencem Romeo a ir ao baile dos Capulet
para lá tentar ver a moça. Ao chegar ao baile, no entanto, Romeo e Juliet se encontram e se
apaixonam à primeira vista. Após o baile, na célebre cena da sacada, Romeo ouve Juliet,
falando consigo mesma, proclamar seu amor por ele, apesar do ódio que separa suas
famílias. Romeo então se mostra. Após um intenso e apaixonado diálogo, os jovens

3
Neste ensaio, optei por usar os nomes dos personagens como apresentados no original em inglês.
4
No original, “in fair Verona” (CRAIG, 1995, Ato I, Prólogo)
decidem se casar, o que acontece secretamente no dia seguinte, com a ajuda do Frei
Laurence, que espera que a união acabe por pacificar suas famílias.
Mais tarde nesse mesmo dia, em uma cena que se passa no centro da cidade,
Tybalt, primo de Juliet, inflamado porque Romeo havia ido ao baile dos Capulet sem ser
convidado, desafia-o a um duelo. Romeo, porém, por considerar que Tybalt é agora parte de
sua família, se recusa a lutar. Não obstante, Mercutio, ofendido com a insolência de Tybalt e
com o que considera submissão em Romeo, toma para si o desafio do duelo. Quando
Romeo tenta separar os duelistas, Mercutio é mortalmente ferido. Ao morrer, ele roga uma
praga por sobre as duas famílias, cuja disputa causara sua morte5. Transtornado pela perda
e pela culpa, Romeo, em um ato impetuoso e violento, mata Tybalt. Apesar de Lord
Montague argumentar que, ao executar Tybalt, Romeo apenas vingava o assassinato de
Mercutio, o príncipe de Verona condena o jovem ao exílio em Mantua.
Antes de partir, Romeo passa a noite com Juliet. Após a partida de Romeo, ao
observar a dor de sua filha, Lord Capulet conclui que ela sofre por seu primo Tybalt e decide
que ela deve se casar com Paris. Quando Juliet recusa a união, ele ameaça deserdá-la.
Mesmo quando Juliet roga a sua mãe que convença o pai a adiar o casamento, ela não é
atendida. O casamento é marcado para o dia seguinte.
Juliet procura, então, a ajuda do Frei Laurence, que lhe oferece uma substância
líquida que a levará a um estado de catatonia semelhante à morte, em uma simulação de
suicídio, por quarenta e duas horas, tempo que o Frei necessita para colocar em prática o
plano de reunir as famílias. Ele se compromete a enviar um mensageiro a Romeo, para
informá-lo sobre o projeto, de modo que eles possam estar juntos quando ela acordar.
Naquela noite, Juliet toma a droga. Na manhã seguinte, ao encontrá-la, seus pais pensam
que ela está morta, e a levam à cripta da família.
O mensageiro, contudo, não chega a encontrar Romeo. Em vez da mensagem do
Frei, Romeo recebe a notícia da morte de Juliet por seu servo Balthasar. Desesperado,
Romeo decide comprar veneno de um farmacêutico e ir à cripta dos Capulet. Ao chegar, ele
encontra Paris, que viera prestar homenagens àquela que ele pensava ser sua futura noiva.
Pensando que Romeo é um vândalo, Paris o confronta, mas morre na luta. Ainda pensando
que Juliet está morta, Romeo bebe o veneno e morre a seu lado. Julieta, logo depois,
acorda de seu estado catatônico. Encontrando Romeo morto, ela comete suicídio com a
arma usada para matar Paris.
As famílias inimigas e o príncipe vão à cripta e encontram os três jovens mortos. O
Frei Laurence narra a história dos infelizes amantes. Com a morte de seus filhos, as famílias
decidem dar fim às agressões mútuas. A peça termina com uma elegia do príncipe aos

5
No original, “A plague o' both your houses!” (CRAIG, 1995, Ato III, Cena I)
amantes: “nunca houve uma história mais infeliz do que essa de Juliet e seu Romeo6”.
Ao longo dos séculos, estudiosos têm identificado diversos temas que perpassam a
obra mais popular de Shakespeare, da convivência de sentimentos opostos como o amor e
o ódio no coração de cada ser humano ao papel do destino e do acaso em nossas vidas,
passando pelos perigos da impetuosidade; do conflito entre a lealdade à família e a lealdade
ao amor à força da jovem paixão proibida para além da realidade da vida, transitando pela
banalidade de toda disputa diante do caráter definitivo da morte (BOYLE, 1990). Não há
consenso a respeito de um tema dominante. O que parece haver nesse trabalho único é a
interligação de diferentes elementos que originam uma trama complexa, rica e violenta,
capaz de causar intensos sentimentos de prazer e dor, e que tem incendiado a imaginação
tanto dos críticos quanto do público por 400 anos.
Além disso, através do tempo, Romeo and Juliet tem merecido inúmeras adaptações
para diferentes gêneros além do teatro, tais como sinfonias, musicais, óperas e filmes, das
mais conservadoras, como o filme de Franco Zefirelli de 1968, às mais iconoclastas, como
uma produção de 2006 da London Motor Show em que os personagens são interpretados
por modelos clássicos da indústria automobilística (The Independent, 2006).
Em 1996, o também polivalente, festejado e premiado Baz Luhrmann – Mark Anthony
Luhrmann, roteirista, diretor e produtor nascido na Austrália em 1962 – criou a adaptação
radicalmente contemporânea William Shakespeare’s Romeo + Juliet para o cinema. O filme,
que preserva os diálogos originais da tragédia elisabetana, se concentra em construir um
mundo imagético que dá novo sentido à obra. Segundo Ianni (1996), a tônica da
contemporaneidade é a fragmentação. “O mundo se povoa de imagens, mensagens,
colagens, montagens, bricolagens, simulacros e virtualidades” (p. 27). E, se essa é a
linguagem da atualidade, Luhrmann faz uso dela para criar um ambiente com que o público
desses novos tempos se identifique.
O filme inicia com a imagem de um televisor centrado na tela. Os créditos são
mostrados à medida que os canais mudam. Uma apresentadora aos moldes dos populares
programas de televisão sobre a vida de celebridades nos dá a conhecer o prólogo da peça.
A ambientação continua com flashes de montagens de notícias de jornal com fragmentos do
texto original do prólogo apresentando a cidade, as famílias, o ódio: “onde sangue civil torna
sujas mãos civis”7.
A sequência inicial nos convida a ver o filme à luz das populares séries juvenis da
televisão americana que dominam o planeta: a apresentação dos personagens se dá
através do congelamento de movimentos de câmera na imagem de seu rosto acompanhado
de uma legenda em que são escritos seus nomes e sua posição na história. Por outro lado,
6
No original, “Never a tale of more woe, than that of Juliet and her Romeo” (CRAIG, 1995, Ato V,
Cena III)
7
No original, “where civil blood makes civil hands unclean” (CRAIG, 1995, Ato I, Prólogo).
a antológica disputa entre os garotos Montague e Capulet, na versão de 1996, nos remete a
uma briga de gangues urbanas que se passa em um posto de gasolina. Carros substituem
os cavalos, armas de fogo tomam o lugar de espadas e adagas. Nessa passagem, em que
imagens de alta octanagem são justapostas à linguagem lírica fiel ao texto elisabetano,
percebemos que podemos também estar diante de uma paródia de pelo menos dois
gêneros típicos da cultura popular contemporânea: os filmes de ação e os westerns. Essa
ousadia experimentalista é uma das marcas da estética pós-moderna (JAMESON, 1996),
mas ela não é trivial. Através desse arremedo que é profundamente crítico, somos levados a
perceber o caráter trivial da rivalidade entre os dois grupos.
As imagens iniciais também nos mostram uma cidade litorânea contemporânea
chamada Verona Beach – o filme foi realizado em áreas marginais de Miami e na Cidade do
México. O cenário urbano decadente, com claras referências latinas (a aia de Juliet, por
exemplo, é hispânica), tomado por grafitagens e povoado por prostitutas, contrasta com a
mansão ostensiva dos Capuleto, localizada em um ponto isolado e protegido da cidade. Por
vários pontos de sua Verona, Luhrmann espalha referências a outros trabalhos de
Shakespeare – um teatro decadente da cidade é chamado “O Globo8”, um açougue é
identificado por “Uma Libra de Carne9” e uma mercearia é denominada “O Mercador de
Verona Beach” – alusões nada casuais. Se, como afirma Hutcheon (1991), só é possível
conhecermos o passado, ou seja, nossas origens, através de indícios escritos, o filme é rico
nesses sinais que provocam a visão e a curiosidade do espectador, marcando as estreitas
conexões existentes entre este trabalho contemporâneo e toda a história que o precede.
Na recriação de Luhrmann, as famílias Montague e Capulet encabeçam corporações
rivais que disputam o poder econômico e político de Verona Beach. As divergências entre as
famílias são enfatizadas pelas diferenças em aparência e vestimenta. Enquanto os
Montague parecem uma típica família americana conservadora, os Capulet têm um ar de
novos-ricos estrangeiros, provavelmente latinos. Em uma rápida tomada aérea, a câmera
nos mostra que, entre dois altos edifícios envidraçados, cada um encabeçado pelo nome da
família proprietária, uma estátua de Jesus Cristo faz alusão às forças que motivam,
dominam e dividem os personagens desta história fictícia, assim como da história humana
contemporânea (IANNI, 1996).
O baile em que Romeo e Juliet se encontram é uma espalhafatosa festa à fantasia,
em que a superficialidade, o fetichismo e a banalização da vida pós-moderna (JAMESON,
1996) são denunciados sem rodeios. Subitamente, no entanto, as cenas barulhentas e as
imagens superpovoadas dão lugar ao sublime encontro entre os dois jovens. Seus olhares

8
No original “The Globe”, o teatro elisabetano em que diversas peças de Shakespeare foram
encenadas.
9
No original, “a pound of flesh”, o preço cobrado pelo judeu Shylock pelo empréstimo que faz a
Antonio em O Mercador de Veneza.
se encontram através de um aquário em que peixinhos se movem placidamente, alheios ao
que ocorre à sua volta. A música agitada muda para uma balada romântica. Romeo e Juliet
também parecem estar distantes da agitação que impera a seu redor – na festa e na vida na
Verona dominada pela violência. Nessa mágica cena, a audiência juvenil é capaz de crer,
mesmo nos tumultuosos tempos atuais, em um amor eterno que nasce à primeira mirada.
Juliet veste-se como um anjo, enquanto Romeo usa uma roupa de cavaleiro, uma saída
criativa de Luhrmann para justificar os diálogos shakespereanos.
No papel de Romeo, Leonardo DiCaprio se mostra virtuoso. Ao rabiscar poemas em
seu caderno, ele demonstra melancolia e contemplação, em um profundo senso de
alienação de seu mundo e das disputas de Verona. Na cena seguinte, ele se transforma em
um jovem impetuoso, colérico e vingativo, o que o leva a cegamente assassinar o primo de
Juliet. Imediatamente após, podemos ler em seu rosto o súbito insight de que aquele ato
mudará sua história. Nem seria necessário ouvirmos o famoso grito “[s]ou um escravo do
destino!10”, pois seu rosto já o demonstrara.
Por sua vez, Claire Danes nos apresenta uma Juliet que combina força e fragilidade,
inocência e sabedoria. Por vezes, apenas uma pausa em sua voz ou uma leve expressão
em seu rosto bastam para tornar absolutamente contemporâneo, através da mais leve ironia
visual, o texto cheio de sentidos ocultos de Shakespeare. Essa nova Juliet é sofisticada e
consciente de seu poder de sedução; também não ignora os recursos utilizados por seu
Romeo. Juntos, eles nos convencem de seu amor ingênuo, intenso e devastador.
No entanto, mesmo a Juliet dos anos 1990 não tem poderes para resistir à pressão
dos pais para que se case com Paris. Como nos dias de hoje um casamento arranjado do
modo como era comum na era elisabetana não seria justificável, o diretor – através apenas
de flashes de alusões imagéticas – apresenta Paris como “o solteiro do ano” segundo uma
popular revista local para justificar a inclinação da família Capulet pelo jovem rico, bonito e
bem nascido que está interessado em Juliet.
Mercutio é, nesta versão contemporânea, mostrado através de um personagem
sexualmente ambíguo, que por vezes se apresenta como uma extravagante drag queen. É
desse modo que Luhrmann traduz a ousadia, a liberalidade e o poder de transição do
famoso personagem original de Shakespeare – um primo do príncipe de Verona e de Paris,
uma figura popular na cidade e o único membro do grupo dos Montague que tem acesso
livre á casa dos Capulet.
A morte de Mercutio pelas mãos de Tybalt, o incidente que origina o desfecho
desventuroso, ocorre à beira da praia na Verona dos anos 90. A câmera se abre em uma
longa tomada que mostra a reação de Romeo e de seu grupo entre as ruínas de um teatro
em arco, um poderoso símbolo da decadência da cidade e da cultura. Ao longe, as
10
No original, “I am fortune’s fool!” (CRAIG, 1995, Ato III, CenaI).
palmeiras se agitam e o céu escurece com a proximidade de um furacão, o que dá enorme
intensidade à cena. Em contraste, a luta em si é um pastiche de todos os recursos de
atuação e edição esperados no cinema popular: o eco da bala que ricocheteia, o tiro certeiro
disparado por sobre o ombro, os passantes inocentes que conseguem escapar por um triz,
os zooms, os close-ups, o oponente visto em slow motion através da lente telescópica da
mira de uma arma. Segundo Fredric Jameson (1996), a pós-modernidade, marcada pela
relativização da verdade e pela fragmentação da vida social, é um fértil terreno para o
pastiche, uma espécie vazia de arremedo de mensagens repetidas à exaustão que pouco
guarda de significado. O formato escolhido por Luhrmann para a fatídica luta entre os
Caputet e os Montague é significativo. O que pode ser mais trivial do que a violência urbana
gratuita que assola as cidades marcadas pelas diferenças sociais? Mas a atmosfera banal
da cena se desfaz na nuvem escura de pó e sujeira que envolve Romeo quando ele alcança
Tybalt com seu carro e o mata. Esse é o momento em que a violência ganha um nome e um
rosto, que marca a vida de um indivíduo e, no caso de Romeo, que reagia a uma disputa
que não era sua, inicia a espiral trágica que resultará em seu triste desfecho.
Fiel à clássica peça de Shakespeare, os eventos seguem o doloroso curso
conhecido. Após a morte de Tybalt, o Capitão Prince – na versão contemporânea, o príncipe
de Verona é um chefe de polícia negro – bane Romeo para Mantua, aqui representada por
um desértico estacionamento para trêileres típico das regiões pobres do norte da Califórnia.
O religioso que tenta ajudar os amantes, na história contada por Luhrmann, é um padre
católico que alude aos teólogos da libertação. A mensagem que nunca chega às mãos de
Romeo é um envelope de serviços postais displicentemente largado à porta de seu trêiler
por um funcionário público negligente. O homem de quem Romeo compra seu “veneno” é
um sinistro fornecedor de drogas pesadas. A arma prateada com que Romeo mata Paris é
uma pistola cromada nomeada “Adaga”11. Todos esses detalhes imagéticos, além de
atualizarem a trama, tornando-a possível de identificação para as plateias contemporâneas,
em nada lhes roubam a tensão e a agonia. O suicídio dos amantes é especialmente
estarrecedor. A atmosfera pesadamente religiosa na cripta dos Capulet, com suas velas e
imagens de Maria, de Jesus Cristo e de anjos, entre outras referências, o brilho e o eco do
clique da arma carregada, o estrondo do tiro, o suave solo musical que se dissipa, tudo
contribui para o assombro que caracteriza o final dessa história de amor.
O filme de Luhrmann termina do mesmo modo como iniciou. Nesta versão, em que
os apresentadores de televisão tomam o lugar do coro, a repórter de um plantão de notícias
nos conta o final da história, momentos antes de sua imagem ser substituída pelo chiado
característico de um canal fora do ar. O efeito sobre os espectadores, no entanto, é o
mesmo. Subitamente, nos sentimos aliviados por estarmos tão distantes dos eventos que
11
No original, “dagger”.
nos são narrados. Nosso mundo é reinventado, reinterpretado e compreendido através de
imagens televisivas, e o diretor não nos deixa esquecer disso. Os simulacros apresentados
pela eletrônica e pela informática, em nossa realidade pós-moderna, “[e]lidem o real e
simulam a experiência” (IANNI, 1996, p. 27). Ao fazer uso desse recurso, o cineasta
australiano nos surpreende e desacomoda, fazendo-nos refletir sobre o modo como nos
relacionamos com o mundo, com os outros e com nossas próprias emoções.
O título do filme de Luhrmann, William Shakespeare’s Romeo + Juliet, lembra os
espectadores que esta é, apesar da aparência pós-moderna, uma história escrita há quatro
séculos. Também afirma sua fidelidade à obra original. Parte do texto foi, obviamente,
suprimido, pois não seria comercialmente viável apresentar o texto original em toda sua
extensão. Em certas passagens, no entanto, como na cena que precede o suicídio duplo,
em que o coro especula sobre o destino dos amantes, a elisão apenas contribui para a
qualidade do filme. Afinal, quem hoje poderia honestamente esperar um final feliz para essa
história? Em compensação, nada foi acrescentado ou alterado. Baz Luhrmann nos
apresenta apenas sua própria visão da obra: uma versão fiel à estética tanto da obra
clássica quanto da pós-modernidade que preserva e subverte, sacraliza e questiona
(HUTCHEON, 1991).
A essência do trabalho clássico de Shakespeare, fundamentada na linguagem, pode
ser preservada devido ao tratamento inovador dado pelo diretor às imagens – que, com sua
vulgaridade quase kitch substitui parte do texto shakespeariano original cheio de figuras de
linguagem, e que oferece tanto um sólido suporte quanto uma justificativa ao texto,
tornando-o verossímil. Os diálogos originais, colocados sobre um pano de fundo visual que
lembra vídeos musicais, filmes populares, séries de televisão e programas televisivos
sensacionalistas, nunca parecem deslocados ou soam ininteligíveis. Na Verona idealizada
pelo australiano, “[o] que era antigo pode revelar-se novo, renovado, moderno,
contemporâneo” (IANNI, 1996, p. 25).
Mas Luhrmann preserva mais do que o texto magnífico. Ele consegue deixar intactas
as intenções originais de Shakespeare: apresentar uma história marcada pelo amor e pelo
ódio, pela violência e pela banalidade, pelo pecado e pela virtude, pelo destino e pelo acaso.
Sem deixar de reverenciar o passado clássico, o diretor, ao criar um mundo shakespeariano
compatível com os novos tempos, o absorve e reinterpreta. Longe de se deixar intimidar
pela genialidade do dramaturgo inglês, demonstra compreender profundamente seu texto
emocionante, energético e lírico que é, em última instância, uma história escrita para todos
os públicos – do mais sofisticado ao mais simples – sobre a juventude e seus conflitos,
ímpetos e paixões. A engenhosidade do filme reside, assim, na transposição da força das
intenções dramáticas da peça original para o jogo de efeitos visuais que revoluciona o texto
sem abafá-lo, atualizando-o e complementando-o.
Mas há bem mais do que imagens provocadoras no filme de Luhrmann. O sucesso
da adaptação de um trabalho de Shakespeare – tal como de qualquer outro autor clássico –
reside basicamente na competência do diretor e na habilidade do elenco de tornar vivo para
uma audiência contemporânea um trabalho que, apesar de ser imortal, pode facilmente se
tornar letra morta por falta de identificação do público. E nesse ponto, o trabalho do poeta
inglês está em boas mãos: o texto shakespeariano é interpretado com precisão pelo elenco
de atores jovens e talentosos. William Shakespeare’s Romeo + Juliet foi o grande vencedor,
em 1998, da 51ª edição do British Academy of Film and Television Arts Film Awards, a mais
prestigiada premiação inglesa para as artes e o entretenimento, recebendo os prêmios de
melhor direção, melhor roteiro, e melhor desenho de produção, além de melhor trilha
sonora.
O mundo de hoje, uma enorme aldeia sem fronteiras (IANNI, 1996) habitado por
seres que não mais acreditam em uma verdade única (JAMESON, 1996), em muito difere
da pequena e dogmática Londres elisabetana em que Shakespeare compôs seu Romeo
and Juliet. No entanto, agora como antes, o mundo é habitado por pessoas que, embora
estejam continuamente revendo sua escala de valores, guardam em seu âmago as
intangíveis – mas nem por isso menos verdadeiras – características humanas fundamentais
que perpassam tempos e espaços. Características essas captadas com brilhantismo pelo
dramaturgo inglês que, afinal, ainda tem muito a dizer a quem vive neste tempo, desde que
simplesmente nos disponhamos a prestar-lhe atenção. Nesse sentido, o filme de Luhrmann,
para além de todas as suas qualidades inovadoras, tem o mérito e o poder de captar o
interesse das novas gerações de todas as partes do planeta por este e por outros trabalhos
canônicos, rompendo a barreira ilusória que separa a alta cultura da baixa, o clássico do
popular, o ontem do hoje, e a imortalidade da juventude.

REFERÊNCIAS

BOYCE, Charles. The Wordsworth dictionary of Shakespeare. New York: Wordsworth


Reference, 1990.

CRAIG, W. J. (editor). The Complete Works of William Shakespeare. London: Henry Pordes,
1995.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro:


Imago, 1991.

IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.


JAMESON, Fredric. Pós modernismo: a lógica do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
The Independent. British International Motor Show 2006: the show's on the road. Tuesday,
18 July 2006. Disponível em http://www.independent.co.uk/life-style/motoring/features/british-
international-motor-show-2006-the-shows-on-the-road-408324.html Acesso em: dez. 2009.

THORNLEY, G. C. An outline of English literature. London: Longman, 1974.

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