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ACERCA DOS RESÍDUOS CLÁSSICOS DAS NOVELAS DE CAVALARIA1

José William Craveiro Torres2

Os mitos e as lendas heróicas constituem um tesouro


inesgotável de exemplos e modelos da nação, que
neles bebe o seu pensamento, idéias e normas para a
vida.
Werner Jaeger3

A Idade Média foi, particularmente pela noção de


renascença, mas também, de maneira mais difusa, um
barqueiro da Antigüidade.
Jacques Le Goff4

INTRODUÇÃO

A leitura atenta duma novela de cavalaria, seja ela do ciclo bretão ou do ciclo
carolíngio, revela a um estudioso que se debruça sobre esse gênero narrativo medieval
umas passagens de teor cavaleiresco, outras de teor religioso e algumas de teor clássico: os
trechos de feição cavaleiresca são aqueles que trazem à tona o comportamento guerreiro e
cortês do homem de espada; os de feição religiosa são os que fazem alusão à Igreja
Católica, às suas principais divindades e aos rituais de magia praticados por culturas pagãs
(como a dos celtas, por exemplo); e os de feição clássica são aqueles que transportam para
o homem mediévico, sobretudo para o cavaleiro, o comportamento dos antigos gregos e
romanos, principalmente o modo de agir, de pensar e de sentir dos heróis que se
movimentam nos mitos greco-latinos.
Como os aspectos cavaleiresco e religioso são os que mais saltam aos olhos, nas
novelas de cavalaria, mais comumente os estudiosos têm5 falado deles. No que concerne ao
aspecto clássico, poucos6 dele trataram, ainda que este seja tão inerente às novelas de

1
Este ensaio traz consigo, ainda que de forma resumida, todas as partes e os aspectos levantados num
trabalho mais amplo: uma dissertação de mestrado que vem sendo desenvolvida pelo autor deste e
orientada, na Universidade Federal do Ceará – UFC –, pelo Prof. Dr. Francisco Roberto Silveira de Pontes
Medeiros.
2
José William Craveiro Torres é especialista no ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual
do Ceará – UECE –, mestrando em Literatura pela Universidade Federal do Ceará – UFC – e professor
substituto de Literatura Portuguesa desta instituição.
3
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego / Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 68.
4
LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa / Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes,
2007, p. 19.
5
No Brasil, críticos literários e medievalistas como Massaud Moisés, Lênia Márcia Mongelli, Maria do
Amparo Tavares Maleval, Yara Frateschi Vieira, Segismundo Spina, Heitor Megale, Marcus Baccega,
Adriana Zierer etc. Em Portugal, António José Saraiva e Óscar Lopes, por exemplo.
6
Em Portugal, F. Costa Marques e Rodrigues Lapa, dentre outros. Na Espanha, Menéndez y Pelayo e
Rodríguez-Moñino.
cavalaria quanto aqueles. Vale salientar que os poucos que discorreram sobre o aspecto
clássico das novelas de cavalaria analisaram, pormenorizadamente, o Amadis de Gaula, de
modo que não há notícias7 de que existam artigos, ensaios, monografias, dissertações ou
teses que tenham abordado, especificamente, esse aspecto dentro de outras narrativas que
compõem o ciclo bretão ou o carolíngio.
Este ensaio procura justamente dar conta do aspecto clássico das novelas de cavalaria,
tão negligenciado pela maioria dos medievalistas que se dedicam ao estudo desse tipo de
narrativa. Assim, são objetivos deste trabalho: (i) apontar os trechos de teor clássico
presentes nas novelas de cavalaria8, sobretudo n’A Demanda do Santo Graal e no Amadis
de Gaula9; (ii) explicar o motivo da existência dessas passagens clássicas nessas narrativas
medievais; (iii) demonstrar, através de comparações, que a Idade Média representa, em boa
medida, uma retomada de valores da Antiguidade greco-romana, através, principalmente,
da figura do cavaleiro medieval, que retoma, a todo momento, características do herói das
antigas Grécia e Roma; (iv) e mostrar que os aspectos religioso e cavaleiresco estão
estreitamente ligados entre si e que teriam se originado a partir do aspecto clássico. Este, o
mais importante dos três. A teoria que servirá de base a esta pesquisa será a da
Residualidade, elaborada pelo Prof. Dr. Roberto Pontes (UFC) a partir de conceitos já
bastante conhecidos por historiadores e por críticos de orientação marxista, como o de
mentalidade, proposto pela École des Annales, e o de resíduo, proposto por Raymond
Williams. A Literatura Comparada também será utilizada aqui, a partir do momento em que
será feito um cotejo entre o comportamento do cavaleiro medieval presente nas novelas de
cavalaria com o modo de agir, de pensar e de sentir do herói greco-romano presente nos
mitos da Antiguidade clássica.

1. Dos conceitos de mentalidade, de resíduo e de Residualidade

Para que se possa apontar nas novelas de cavalaria os resíduos clássicos que elas
trazem, é necessário falar, antes, sobre o que vem a ser mentalidade, pois resíduo e
mentalidade são conceitos que se complementam. Também a esses conceitos está atrelado
o de Residualidade. Apresentar-se-á, aqui, embora de forma simplificada e bastante breve,
o que vem a ser cada um desses termos.
O termo mentalidade apareceu, com o significado com o qual se deve trabalhar nas
próximas linhas deste ensaio, em 1842, na França, muito provavelmente por influência do
vocábulo inglês mentality (1691). Por mentalidade pode-se entender, de acordo com o
7
O autor deste ensaio desconhece produções científicas, sobretudo brasileiras, que tratam dos excertos de
feição clássica existentes dentro das novelas de cavalaria, quer sejam estas do ciclo bretão, quer sejam do
ciclo carolíngio; porém, acredita que possam existir trabalhos acadêmicos nesse sentido, mas em número
muito reduzido frente àqueles que abordam os aspectos cavaleiresco e cristão dessas narrativas mediévicas.
8
As conclusões às quais chegará esta pesquisa podem ser estendidas às demais obras do ciclo bretão e,
também, às do ciclo carolíngio.
9
A edição d’A Demanda do Santo Graal que servirá para a realização deste trabalho é a portuguesa, cópia
do original francês (por isso mesmo sem autoria), pertencente à segunda prosificação do ciclo arturiano,
traduzida por Heitor Megale, em 1988, com base em cópia do século XV e nas edições Magne de 1944 e
1955-70 (São Paulo: T.A. Queiroz/ Editora da Universidade de São Paulo). No que concerne à edição do
Amadis de Gaula, trata-se da tradução portuguesa que F. Costa Marques realizou da obra quinhentista
(1508) do espanhol Garci Rodríguez de Montalvo (Coimbra: Atlântida, 1972).
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa10, o “conjunto de manifestações de
ordem mental (crenças, maneira de pensar, disposições psíquicas e morais) que
caracterizam uma coletividade, uma classe de pessoas ou um indivíduo”. Entretanto, foi
apenas com a École des Annales, corrente de pensamento francesa que se empenhou em
realizar uma História Nova, que o termo mentalidade ganhou notoriedade e passou a ser
utilizado, sobretudo, para nomear o novo objeto de estudos dos historiadores 11 a partir da
década de 50: a atmosfera mental de determinadas camadas ou de determinados grupos
sociais extraída a partir de objetos artísticos12 produzidos por membros duma civilização
num dado momento. Georges Duby referiu-se à utilização desse termo e ao que ele
representava, quando da proposta de mudança do objeto de estudo da História Nova, da
seguinte forma:

De maneira mais insistente, Febvre exortava-nos a escrever a história das


“sensibilidades”, dos odores, dos temores, dos sistemas de valores, e seu Rabelais
demonstrava magnificamente que cada época tem sua própria visão do mundo, que as
maneiras de sentir e pensar variam com o tempo e que, em conseqüência, o historiador
é solicitado a se precaver o quanto puder das suas, sob pena de nada compreender.
Febvre propunha-nos um novo objeto de estudo, as “mentalidades”. Era o termo que
utilizava. Pois nós o retomamos (DUBY, 1993:87-8).

Pode-se perceber, nessas palavras de Duby, o caráter imaterial13 e dinâmico14 da


mentalidade. Todavia, há ainda que se ressaltar o seu caráter plural15, visto que numa
determinada época existem várias mentalidades, uma para cada um dos grupos sociais que
existe, e coletivo, visto que a mentalidade é fruto daquilo que um bom número de pessoas
pensa: geralmente, um indivíduo, através da sua obra de arte ou de qualquer outro objeto
que sirva de documento histórico, expressa não só o que ele pensa, mas o que um grupo de
pessoas traz na mente, de modo que esse indivíduo passa a ser um “porta-voz” duma
coletividade; ele faz parte, obrigatoriamente, dum grupo social, o qual geralmente
representa.
Já por resíduo pode-se entender, de acordo com uma das acepções que o Dicionário
Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa traz para esse vocábulo, “elementos culturais

10
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
11
Dentre os historiadores mais notáveis da École des Annales estão: Lucien Febre, Marc Bloch, Georges
Duby e Robert Mandrou.
12
Os participantes da École des Annales, que se propuseram a realizar uma História Nova, decidiram
abandonar, enquanto fontes de caráter documental que procuravam dar conta dos acontecimentos, os papéis
cartoriais e os velhos mapas, para se debruçar sobre objetos artísticos, como as pinturas, as construções
arquitetônicas, as esculturas e, principalmente, as obras literárias. As obras de arte possuíam, na visão
desses estudiosos franceses, com relação aos mapas e aos velhos documentos cartoriais, uma característica
que as tornavam melhores aos propósitos da História Nova: a visão crítica do artista sobre a realidade, uma
vez que a Arte nada mais é que uma forma de se fazer uma leitura do real, dos fatos, da sociedade.
13
A mentalidade dum povo materializa-se, como vimos, a partir de objetos (artísticos ou não) produzidos
pelo Homem.
14
A mentalidade duma época é, em geral, diferente, com relação à mentalidade de outro período da História.
Como diria Camões, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
15
Tantos quantos forem os grupos que compõem uma sociedade serão também as mentalidades que essa
sociedade possui. Assim, temos, por exemplo, na Idade Média, a mentalidade do nobre, ou senhor feudal, a
do clero e a dos camponeses. Poderíamos, ainda, tratar da mentalidade do alto clero e do baixo clero como
mentalidades distintas, pois cada um desses grupos pensa o mundo de maneira diferente e, por isso,
comporta-se de maneira diferente.
que sobreviveram a mudanças com as quais estão em contradição”, ou seja, os resíduos
nada mais são que mentalidades duma determinada época que se mantêm ativas em
períodos históricos posteriores aos da sua origem. Exatamente por não pertencerem à época
na qual se manifestam, mas por terem suas origens numa época anterior, os resíduos, como
bem disse o Dicionário Houaiss, são mentalidades de outrora que entram em contradição
com as mentalidades da época na qual se manifestam. A crítica marxista, a partir de
Raymond Williams16, foi uma das que mais utilizou o termo resíduo para designar o que
aqui foi dito:

O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no
processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo
do presente. Assim, certas experiências, significados e valores que não se podem
expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são
vividos e praticados à base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição ou
formação social e cultural anterior. É importante distinguir esse aspecto do residual, que
pode ter uma relação alternativa ou mesmo oposta com a cultura dominante, daquela
manifestação ativa do residual (distinguindo-se este do arcaico) que foi incorporada, em
grande parte ou totalmente, pela cultura dominante (WILLIAMS, 1979:125).

Percebe-se, a partir da leitura dessas palavras de Raymond Williams, que o seu


conceito de resíduo coaduna com aquele que o Dicionário Houaiss apresenta, ou seja, são
“certas experiências, significados e valores” formados “no passado, mas que ainda está
ativo no processo cultural (...) como um elemento efetivo do presente (...) que pode ter uma
relação alternativa ou mesmo oposta com a cultura dominante”.
Com base nesses conceitos de mentalidade – proposto pela École des Annales – e de
resíduo – trabalhado, sobretudo, por críticos marxistas como Raymond Williams –, o Prof.
Roberto Pontes17 formulou uma teoria que procura dar conta de como mentalidades de
certas épocas conseguem manter-se ativas durante muito tempo e manifestar-se, anos e até
séculos depois das suas origens, em períodos históricos posteriores: a Teoria da
Residualidade. Assim, essa teoria trabalha com conceitos próprios, como o de hibridação
cultural e o de cristalização18, e se alia a explicações e a resultados de pesquisas de outros
estudiosos do campo da História, da Literatura, da Antropologia, da Sociologia, da Química
etc, para explicar determinados fenômenos culturais e literários.
Neste ensaio, como já foi dito na Introdução, procurar-se-á extrair, como bem
propõem os historiadores da École des Annales, um pouco da mentalidade do herói greco-
romano que se movimenta nos mitos da Antiguidade clássica, para verificar, com base na
Teoria da Residualidade e em estudos realizados por antropólogos como Werner Jaeger19,
16
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura / Tradução de Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1979.
17
Prof. Dr. Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros: poeta, crítico, ensaísta e professor do Curso de
Letras e do Mestrado em Literatura da Universidade Federal do Ceará – UFC.
18
Por hibridação cultural, grosso modo, pode-se entender a união, num mesmo povo ou em certas obras
produzidas por alguns dos artistas que compõem essa coletividade, de aspectos culturais pertencentes a
diferentes civilizações de momentos históricos anteriores. Já por cristalização pode-se entender não só a
perfeita junção de tudo isso, ou seja, de todos esses traços culturais que foram “misturados”, como também
o processo de refinamento (como acontece com o mel da cana ao se transformar em açúcar) dessa cultura,
que pode deixar de ser popular para tornar-se erudita. Esses conceitos podem ser encontrados de forma
mais desenvolvida em: PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza:
Oficina do Autor / Edições UFC, 1999.
19
JAEGER, Werner. Op. Cit.
como esse modo de agir, de pensar e de sentir desses heróis reaparece, tempos depois, nos
homens de espada das novelas de cavalaria.

2. A mentalidade do herói greco-romano a partir do que se pode colher da leitura dos


mitos

Para a Mitologia Greco-Romana, o termo herói pode significar duas coisas: em


primeiro lugar, o indivíduo resultante da união de um deus (ou de uma deusa) com uma
mortal (ou com um mortal), ou seja, o mesmo que semideus; em segundo lugar, já numa
acepção mais ampla da palavra, “um ser humano capaz de superar os limites que separam o
homem dos seres comuns. Sua existência é devotada à busca do Espírito, seja este o Graal
ou um elixir da imortalidade” (JULIEN, 2005:109). Acredita-se que a segunda acepção seja
a melhor, já que abarca, em si, de certa forma, a primeira; afinal de contas, Hércules 20 (filho
de Júpiter21 e de Alcmena), Perseu (filho de Júpiter e de Dânae) e Aquiles (filho de Tétis e
de Peleu) são heróis não simplesmente pelo fato de terem nascido da união de deuses com
mortais, mas, principalmente, pelo seu comportamento, pelo tipo de vida que levavam,
pelas qualidades morais e pela bravura que possuíam, pelos propósitos que os moviam e
pelos ideais que os guiavam; em suma, pela mentalidade que tinham.
Há, ainda, nas narrativas mitológicas, inúmeros exemplos de heróis que não surgiram
da união de deuses com mortais, mas que também realizaram obras valorosas, como é o
caso de Jasão, filho de Esão e de Alcímede (ou Polímede), só para citar um exemplo. Nesta
parte do trabalho, procurar-se-á, com base na leitura de alguns mitos presentes em
Metamorfoses, de Ovídio, e n’O Livro de Ouro da Mitologia, de Thomas Bulfinch
(notadamente a partir dos mitos que giram em torno de Hércules, de Perseu e de Jasão),
traçar um perfil, ainda que de forma breve, do herói greco-latino da Antiguidade clássica,
de modo a delinear, ao cabo desta parte do ensaio, a sua mentalidade.
Em geral, independente de serem filhos de deuses com mortais ou simplesmente de
serem filhos de mortais, as origens dos heróis são sempre nobres. Basta ver, por exemplo,
Hércules, que é filho do deus Júpiter com uma mortal, Alcmena, e Jasão, que é filho de reis
de Iolco, que ficava na Tessália. Também se pode ver que, desde cedo, os heróis já
realizavam grandes feitos e davam provas de sua incomensurável força: Hércules
estrangulou duas cobras que tinham sido enviadas por Juno para matá-lo22, quando ainda
era uma criança de berço, e Teseu23, aos dezesseis anos, conseguiu levantar um rochedo e
retirar, debaixo dele, as sandálias e a espada que seu pai Egeu lá tinha deixado, para quando
o filho tivesse idade suficiente para usá-las. A defesa dos fracos, das mulheres, dos anciãos
e daqueles que amavam é algo que começa, também, a surgir nos heróis da Antiguidade
clássica já em tenra idade.
Durante toda a vida, o herói greco-romano corre o mundo em busca de aventuras.
Geralmente, essas aventuras estão sempre acompanhadas do maravilhoso, ou seja, de
magias, de feitiços, de seres sobrenaturais etc. Quando não buscam tais aventuras de bom
grado, acabam sendo submetidos a elas por vontade de um deus ou de alguém que lhes é
20
Também chamado de Héracles, na Mitologia Greco-Romana.
21
Também chamado de Zeus, na Mitologia Greco-Romana.
22
Juno (ou Hera) mostrava-se sempre hostil aos filhos que seu marido (Júpiter) tinha com outras mulheres.
23
O herói da Mitologia Greco-Romana responsável pela morte do Minotauro, monstro da Ilha de Creta.
superior: um rei, por exemplo. Perseu, quando criança, foi encerrado numa arca com sua
mãe pelo próprio avô, Acrísio, e lançado ao mar24. Depois de encontrado por um pescador
de Serifo, foi aceito na corte por Polidectes, o rei desse lugar. Perseu, já adulto, foi
mandado por Polidectes à caça da Medusa, monstro que transformava em pedra tudo o que
para ela olhasse. Com a ajuda de Minerva e de Mercúrio25, Perseu conseguiu matar esse
monstro e dar fim ao sofrimento do povo daquela região. Em seguida, utilizando os sapatos
alados de Mercúrio, Perseu, que voava pela Etiópia, salvou Andrômeda, filha da rainha
Cassiopéia, de um monstro marinho. Antes disso, enfrentou Atlas, o gigante, e
transformou-o numa grande montanha, com a ajuda da cabeça da Medusa que havia cortado
e que levava consigo.
Hércules, como já foi dito, enfrentou, desde criança, os obstáculos que Juno pôs em
seu caminho. Durante sua vida, teve de servir, a mando da mulher de Júpiter, a Euristeus
(filho do rei de Argos, Estênelo, e de Nicipe, a filha de Pélope, descendente de Perseu), que
o obrigou a realizar doze difíceis tarefas, conhecidas como “Os Doze Trabalhos de
Hércules26”; porém, Hércules, a exemplo de Jasão, não esperava que lhe impusessem
tarefas a cumprir para que pudesse participar de grandes aventuras. Exemplo disso foi o
fato dele ter se juntado a Jasão na busca do Velocino de Ouro27, embora tenha abandonado
a empreitada no meio do caminho28. Jasão, exemplo de coragem e de astúcia, acabou por
conseguir o Tosão de Ouro após enfrentar três obstáculos, parecidos com alguns dos
trabalhos que Hércules realizara a pedido de Euristeus: arar a terra com dois touros de patas
de bronze que soltavam fogo pela boca e pelas narinas, semear os dentes do dragão que
Cadmo matara e dos quais sairia uma safra de guerreiros que voltariam suas armas contra o
semeador e adormecer o dragão que guardava o velocino. Com a ajuda da feiticeira Medéia,
filha do rei Étes que tinha se apaixonado por Jasão, este conseguiu vencer as três provas e
tomou para si o Tosão de Ouro, que depois foi oferecido ao rei Pélias.
Um pouco mais de conhecimento acerca dos mitos greco-latinos, sobretudo daqueles
que tratam das aventuras dos heróis da Antiguidade clássica, é capaz de revelar o
verdadeiro objetivo daqueles personagens que neles se movimentam: obter a glória, chegar

24
De acordo com um oráculo, Acrísio ficara sabendo que o seu neto seria o instrumento de sua morte.
25
Também conhecidos, na Mitologia Greco-Romana, como Palas e Hermes, respectivamente.
26
Os doze trabalhos de Hércules foram: (i) Leão de Neméia, (ii) Hidra de Lerna, (iii) Corça dos pés de
bronze, (iv) Javali de Erimanto, (v) Cavalariças de Áugias, (vi) Aves do Lago Erimanto, (vii) Touro de
Creta, (viii) Cavalos de Diomedes, (ix) Cinto de Hipólita, (x) Bois de Gerião, (xi) Pomos das Hespérides e
(xii) Cérbero.
27
Lã de ouro do carneiro que foi dado à Nefele por Mercúrio para que ela livrasse o seu casal de filhos dos
possíveis maus-tratos da mulher com que o seu ex-marido havia se casado. De acordo com a lenda, o
carneiro elevou-se no ar com as duas crianças em direção ao nascente. Durante o percurso, a menina caiu
no mar, mas o menino, Frixo, foi depositado no reino da Cólquida são e salvo. Em seguida, Frixo sacrificou
o carneiro a Júpiter e ofereceu o Velocino de Ouro ao rei do local onde havia parado, Etes. O Tosão de
Ouro foi posto numa gruta sagrada, sob a guarda de um dragão que não dormia. Com a maioridade de
Jasão, o seu tio Pélias, que governava o reino no seu lugar, propôs uma grande aventura ao seu sobrinho,
antes de lhe passar o trono: a busca do Velocino de Ouro, pois afirmava que esse objeto sagrado era
legítima propriedade da família. Da demanda desse objeto sagrado participaram, além de Jasão e de
Hércules, muitos outros heróis, como Teseu, Orfeu e Nestor. Todos ficaram conhecidos, na Mitologia
Greco-Romana, como “os argonautas”.
28
Hércules deixou a expedição em Mísia, porque Hilas, um jovem amado por ele, tendo desembarcado para
buscar água, ficou detido pelas ninfas da fonte, fascinadas por sua beleza, Hércules entrou numa
discussão, por causa do jovem, e, durante sua ausência, o “Argo” se fez ao mar, deixando-o”
(BULFINCH, 2002:164).
à apoteose29, receber um galardão (presente) dos deuses. Percebe-se isso a partir do fim que
é dado aos heróis pelos numes: ou são levados diretamente para o Olimpo, como aconteceu
com Enéias, com Rômulo e com Júlio César, ou são levados, pelos deuses, a um local
inacessível aos mortais por terra e por mar, no qual terão tudo aquilo que desejarem e serão
poupados da morte, de modo que passarão, sem experimentar a dor, à vida eterna. Este
local é chamado, na Mitologia Greco-Romana, de Campos Elísios, de Campos Afortunados
ou de Ilha dos Abençoados.
Com base no que foi dito até aqui, já se pode fazer um breve apanhado da
mentalidade do herói da Antiguidade clássica: um ser ao qual importa o aspecto espiritual,
que vive atrás de superar os seus próprios limites, que almeja um ideal que não se limita a
glórias terrenas; alguém cheio de qualidades morais, como coragem, bravura, lealdade e
fidelidade; uma pessoa com firmes propósitos, incapaz de se desviar do caminho que deseja
ou que deve trilhar; alguém a quem agrada a nobreza não só de caráter, mas também aquela
advinda das origens, da família; uma pessoa cheia de força e de vitalidade, pronta a auxiliar
os fracos, os oprimidos e as minorias; um ser que busca participar, geralmente
acompanhado dos seus iguais, de aventuras impossíveis aos homens comuns, como
enfrentar seres mágicos e sobrenaturais, como deuses, feiticeiros, gigantes etc; alguém que
busca enfrentar obstáculos com vista a receber, ao fim de tudo, um galardão, uma
recompensa das divindades, e que respeita os deuses, acima de qualquer coisa.

3. Os resíduos clássicos das novelas de cavalaria

3.1. Alguns resíduos clássicos d’A Demanda do Santo Graal

Como foi visto na primeira parte deste ensaio, os resíduos nada mais são que
mentalidades, ou seja, modos de agir – de se comportar, portanto –, de pensar e de sentir,
dum grupo social duma determinada época presentes num período histórico posterior ao das
suas origens. Assim, por resíduo clássico pode-se entender o modo de pensar e de se
comportar do homem da Antiguidade clássica presentes numa época histórica seguinte,
posterior ao período áureo da Grécia e da Roma antigas. Assim, poder-se-ía estudar, aqui,
os resíduos clássicos em qualquer momento histórico posterior à Antiguidade, inclusive na
contemporaneidade30; contudo, o objetivo deste trabalho é mostrar como a mentalidade do
herói greco-romano (e aqui fica bastante claro que a mentalidade do homem que interessa a
esta pesquisa não é a de qualquer um, mas a do herói), sob a forma de resíduo, reaparece,
tempos depois, na figura do cavaleiro medieval. É a essa conclusão a que se chega, após a
leitura duma novela de cavalaria e de alguns mitos greco-latinos. Partindo, então, do rol de
comportamentos (reflexos duma mentalidade) dos heróis dos mitos greco-romanos

29
De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, inclusão de alguém entre os
deuses, em função de suas qualidades, atributos; deificação, endeusamento.
30
Em monografia apresentada ao Curso de Especialização O Ensino de Literatura Brasileira, da
Universidade Estadual do Ceará – UECE –, o autor deste ensaio tratou da forma como a mentalidade
clássica encontra-se presente no atual Cordel nordestino. Tal monografia, intitulada Acerca dos Resíduos
Clássicos Presentes no Cordel Nordestino, foi orientada pela Profa. Dra. Elizabeth Dias Martins, professora
do Curso de Letras e do Mestrado em Literatura da Universidade Federal do Ceará – UFC.
elencados na segunda parte deste ensaio, retirados dos mitos greco-romanos a partir da
leitura destes, fica mais fácil observar como os homens de arma medievais que aparecem
nas novelas de cavalaria recuperam essa mentalidade do herói dos mitos antigos.
A busca de aventuras e a superação dos próprios limites; a incapacidade de se desviar
do caminho que deve ou que deseja trilhar, a presença do firme propósito; e a busca dos
iguais, tendo em vista enfrentar os perigos e os mistérios que se interpunham no caminho,
características elencadas anteriormente como sendo dos heróis dos mitos greco-latinos,
também podem ser encontradas na figura de Galaaz, nestas passagens d’A Demanda do
Santo Graal:
(...) e depois que entraram no campo, disse Boorz a Galaaz:
– Muito me agrada que vos encontrei, porque muito cobiçava vossa companhia nesta
demanda, e não me afastarei até que a ventura nos separe:
(MEGALE, 1988:96)
(...)
– Não sei – disse ele (Galaaz) – se estareis lá; de hoje em diante, não pararei de
buscá-la, se a ventura não mo impedir, até que saiba a verdade do que quer significar.
(MEGALE, 1988:97)

Galaaz, depois que se separou dos outros, andou sozinho buscando as aventuras do
reino de Logres por todos os lugares onde ouvia delas falar, de modo que a ventura o
levou à floresta de Arnantes, onde ficava o paço perigoso.
(MEGALE, 1988:439)

Já o personagem Boorz, por sua vez, é um exemplo clássico de herói: traz consigo
inúmeras qualidades morais, como coragem, bravura, lealdade e fidelidade; possui uma
nobreza de caráter ímpar e também tem origens nobres, uma vez que é descendente de reis;
apresenta-se sempre com força e com vitalidade, pronto a ajudar os fracos, os oprimidos, as
minorias. É o que se pode constatar a partir da leitura destes trechos d’A Demanda:

Quando Boorz isto ouviu, não lhe faltou ânimo porque era muito forte e já havia
passado por muitos perigos. E Boorz foi à espada e tirou-a da bainha e disse a Galaaz:
– Senhor, tomai vossas armas e cuidai em vos defender porque me parece que vos é
muito necessário. E eu vos defenderei até que estejais armado.
(MEGALE, 1988:102)
(...)
– Isto vos direi eu – disse ele (Boorz). Vós sabeis que nos albergastes e nos fizestes
muita honra e muita mercê sempre, enquanto convosco fomos. Visto que nos fizestes
tanta honra sem nosso merecimento, a bravura e a maldade se nos tornaria, se vos pois
matássemos.
(...) Então lhe disse Boorz:
– Agora vedes como é. E se eu quisesse já vos agora matara, mas não quero, até que
saiba se teremos paz convosco. E de paz me parece que tendes mais mister de que
guerra; e bem vedes que estais sem armas e que facilmente vos poderei matar, se quiser.
(MEGALE, 1988:104)
(...)
Então voltaram às tendas, e ali fez Deus muito formoso milagre, por Boorz que
rogara a Nosso Senhor por seu irmão, que o livrasse da morte, pois ele ia socorrer a
donzela por seu amor e para não quebrar o juramento que havia feito da távola redonda,
que havia de socorrer a toda donzela aflita.
(MEGALE, 1988:148)
(...) Dos cento e cinqüenta cavaleiros que fizeram o juramento desta demanda, foi o
primeiro Galaaz, depois dele, Tristão e Lancelote e Boorz de Gaunes (...). Todos estes
cavaleiros, exceto Tristão, eram da linhagem de rei Bam (...).
(MEGALE, 1988:50)

A participação em aventuras incomuns à maioria dos homens, tão próprias dos heróis
da Mitologia Greco-Romana, como o enfrentamento de seres sobrenaturais e mágicos,
como feiticeiras e gigantes, obstáculos a serem vencidos visando à obtenção da glória e do
galardão dos deuses, também pode ser encontrado no personagem Galaaz, d’A Demanda do
Santo Graal.

(...) E aconteceu que um pagão, o mais desleal cavaleiro que nunca se viu na Grã-
Bretanha e a mais endiabrada coisa do mundo, foi lá enterrado. E logo que foi
enterrado, quantos na abadia estavam, viram logo os diabos sobre seu túmulo, e
começou a sair de lá uma voz tão infeliz que todo aquele que a ouvia podia perder a cor
por muito tempo. E por esta maravilha vieram aí muitas vezes muitos homens bons e
nunca houve um que se não achasse muito mal, porque, assim que ouvia a voz, não
tinha força de se levantar do lugar; e alguns havia que morriam; e alguns que viviam,
mas estes eram poucos.
(...)
Depois disto, não esperou mais Galaaz, mas foi logo ao túmulo; e assim que chegou lá,
ouviu logo uma voz de tão grande dor que maravilha era, e dizia assim:
(...)
– Ai Galaaz, santa coisa em ti vejo; eu te vejo cercado de anjos, que não posso
resistir contra ti. E por isso te deixo o meu lugar, em que longo tempo folguei. Quando
ele a voz ouviu, agradeceu muito a Jesus Cristo e persignou-se e lançou a pedra longe
do túmulo e viu jazer no túmulo um corpo de cavaleiro todo armado, e uma espada ao
lado dele, e quanto havia de mister para cavaleiro, exceto cavalo e lança. E quando ele
isto viu, chamou os frades e disse-lhes:
(...)
– Amigos, disse Galaaz, fiz nesta aventura quanto devia fazer?
(MEGALE, 1988:64-5)

A busca dum bem maior, algo de teor espiritual, metaforizado na procura dum objeto
sagrado, capaz de glorificar aquele que dele se aproxima, de tornar o homem mais próximo
dos deuses e digno de receber recompensas das divindades, como a obtenção de graças e da
vida eterna, além de estar presente nos mitos das antigas Grécia e Roma, também podem
ser encontrados no personagem Galaaz, d’A Demanda do Santo Graal. É o que se pode
perceber a partir dos seguintes excertos dessa novela mediévica:
(...) E quando chegou depois da secreta, que o homem bom tirou a patena de cima do
santo Vaso, chamou Galaaz e disse-lhe:
– Vem adiante, servo de Jesus Cristo, e verás o que tanto desejaste sempre ver.
E ele se aproximou logo e olhou o santo Vaso e depois que olhou um pouco,
começou a tremer muito violentamente, tão logo a mortal carne começou a ver as coisas
espirituais, e estendeu logo suas mãos para o céu e disse:
– (...) Aqui vejo o começo das grandes audácias. Aqui vejo a razão das grandes
maravilhas. E pois assim é, Senhor, que cumpristes minha vontade de me deixardes ver
o que sempre desejei, ora vos rogo que, nesta hora, em que nesta grande alegria estou,
vos agrade que eu passe desta terreal vida e vá à celestial.
(MEGALE, 1988:467)
3.2. Alguns resíduos clássicos do Amadis de Gaula

Já no início do Amadis de Gaula pode-se perceber, nas origens do personagem que dá


nome essa a novela de cavalaria, uma alusão a um mito greco-latino apresentado
anteriormente: o de Perseu. Amadis de Gaula, filhos de reis, é encerrado numa arca
calafetada, como ocorrera ao herói greco-romano que matou a Medusa, e, em seguida,
lançado ao mar. Como acontecera ao herói da Antiguidade clássica, Amadis foi salvo por
um cavaleiro escocês, Gandales, que o entregou à sua mulher, para que fosse cuidado. Por
conta desse fato, Amadis de Gaula passou a se chamar Donzel do Mar. Vejamos:

(...) nasceu Amadis, que Darioleta, uma donzela de Elisena, pôs a vogar logo após o seu
nascimento, numa arca bem calafetada, que foi ter ao mar. Dentro dela ia (...) um
pergaminho coberto de cera, em que Darioleta havia escrito: – “Este é Amadis Sem-
Tempo, filho de rei”.
Por sorte, foi a arca avistada pelo batel de um cavaleiro escocês, Gandales, que
recolheu Amadis e o deu a sua mulher, para o criar juntamente com seu filho
Gandalim; esta lhe pôs o nome de Donzel do Mar.
(COSTA MARQUES, 1972:29)

Também no primeiro capítulo, nos personagens Gandales e Donzel do Mar (Amadis


de Gaula), aparecem já as características do herói greco-romano elencadas na segunda parte
deste ensaio e também apontadas como resíduos clássicos presentes n’A Demanda do
Santo Graal: a presença de inúmeras qualidades morais, como coragem, bravura, lealdade e
fidelidade; uma nobreza de caráter ímpar; força e vitalidade, ou seja, eles se mostravam
sempre prontos a ajudar os fracos, os oprimidos, as minorias; a participação em aventuras
incomuns à maioria dos homens, tão próprias dos heróis da Mitologia Greco-Romana,
como o enfrentamento de seres sobrenaturais e mágicos, como feiticeiras e gigantes,
obstáculos a serem vencidos com vista à obtenção da glória e do galardão dos deuses.

– Disso não curo eu – replicou Gandales – antes vo-la hei-de defender, porque
mulheres não devem ser castigadas desta maneira, ainda que o mereçam.
(COSTA MARQUES, 1972:30)

– Falo-te daquele que achaste no mar (Donzel do Mar ou Amadis de Gaula), que
será a flor dos cavaleiros do seu tempo; ele fará estremecer os fortes, ele começará e
acabará com honra todas as cousas em que os outros faleceram; ele obrará tais façanhas
que ninguém cuidaria que pudessem ser começadas e acabadas por corpo de homem;
ele fará amansar os soberbos; ele terá crueza de coração contra aqueles que o
merecerem; e mais te digo ainda que este será o cavaleiro do mundo que mais
lealmente há-de manter o amor...
(...)
– Não te dê isso cuidado – replicou Urganda – que esse desamparado será amparo
e reparo de muitos. Eu o amo mais do que pensas, pois dele espero em breve duas
ajudas, em que ninguém mais poderia pôr remédio; e ele receberá dois galardões, com
que muito alegre há-de ficar.
(...) o donzel teve sede e, pondo o arco e a setas no chão, foi a um cano de água
beber. Um donzel mais crescido que os outros roubou-lhe o arco e quis atirar com ele;
mas Gandalim31 não o consentiu, e o outro empurrou-o rudemente. Gandalim gritou: –
31
Filho de Gandales e irmão adotivo de Amadis de Gaula (ou Donzel do Mar).
“Acode-me, Donzel do Mar”; este, ouvindo-o, deixou de beber e foi-se contra o grão
donzel, que lhe tornou o arco. Tomando-o nas mãos, disse-lhe: – “Em má hora feriste
meu irmão”: e, dando-lhe com ele um grande golpe na cabeça, com a maior força que
podia, ambos se pegaram a combater.
(COSTA MARQUES, 1972:32-4)

A rogo de Oriana, Amadis partira de Gaula para a Grã-Bretanha e, com sua


autorização, fora correr novas aventuras, em busca do seu irmão Galaor, que, ainda
criança, fora arrebatado por um gigante. Sem o conhecer, arma seu irmão cavaleiro; e
em companhia de Gandalim e de um anão vai ter ao castelo de Valderim, onde vivia
Arcalaus, o Encantador.
O anão quer vingar a morte que o feiticeiro dera ao seu amo, mas o bruxo encanta
Amadis e fá-lo cair em terra, como morto. Em seguida, toma-lhe as armas e dirige-se à
corte do rei Lisuarte a dizer-lhe que matara Amadis em combate leal.
(COSTA MARQUES, 1972:61)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o cotejo entre as histórias trazidas pelos mitos greco-romanos aqui apresentados
e os trechos d’A Demanda do Santo Graal e do Amadis de Gaula selecionados, pode-se
concluir que o comportamento do cavaleiro medieval era praticamente aquele do herói da
Antiguidade clássica. Isso significa dizer que as mentalidades desses indivíduos eram
bastante parecidas, quase idênticas, não fosse o fato deles pertencerem a épocas históricas
diferentes. Werner Jaeger, no seu livro Paidéia: a Formação do Homem Grego, fala da
influência das epopéias de Homero – que tratam das batalhas nas quais se envolveram
alguns heróis gregos – sobre as demais produções épicas do mundo antigo e do mundo
medieval, o que faz com que se chegue à conclusão de que o homem medieval era, antes de
tudo, grego: aquele tinha o comportamento deste como arquétipo, como modelo, como
ideal a ser seguido. Talvez isso sirva para explicar também o porquê de tantas alusões
realizadas, ao nível de intertextualidade, às grandes epopéias e aos mitos greco-latinos por
parte das novelas de cavalaria32. Sobre as influências da Antiguidade clássica sobre a Idade
Média, Jaeger diz que “A Ilíada, nessa forma, foi naturalmente o grande modelo de toda

32
As alusões que as novelas de cavalaria fazem aos mitos greco-romanos, além de serem realizadas ao nível
de Residualidade, da forma como explicou este ensaio, podem ser realizadas ao nível de intertextualidade,
ou seja, a partir de trechos, dentro das novelas de cavalaria, que citam personagens ou episódios próprios
das narrativas da Antiguidade clássica. N’A Demanda do Santo Graal, há referências às narrativas trazidas
pelas epopéias de Homero, principalmente à Ilíada: “E este castelo tomaram os de Tróia e o destruíram,
quando os troianos foram derrotados pelos gregos e vencidos por Helena, a mui formosa” (p. 97) e “Aquele
castelo fizera Galmanasar, parente de Príamo, rei de Tróia. (...) Deste modo moraram naquele castelo
pagãos desde a destruição de Tróia até o tempo de rei Artur” (p. 380). Também no Amadis de Gaula há
alusões às epopéias e aos mitos grego-latinos: “Porque, assim como estas (donas e donzelas) nasceram para
obedecer, com fracos ânimos, e suas mais fortes armas são lágrimas e suspiros, assim os de forte coração
devem tomar para si, de modo particular, a sua defesa, amparando-as, defendendo-as daqueles que com
pouca virtude as maltratam e desonram, tal como os Gregos e os Romanos fizeram em tempos antigos,
passando os mares, destruindo terras, vencendo batalhas, matando reis e desterrando-os dos seus reinos, só
para vingar as violências e injúrias que lhes eram feitas, a elas” (p. 94). Este último trecho vai além: não só
Amadis de Gaula faz alusão, através da intertextualidade, à Ilíada, como também convoca os demais
cavaleiros a se comportarem como os gregos e os romanos da Antiguidade clássica.
épica posterior” (2001:40) e que “Apesar de algumas variações de detalhe, a concepção
grega da arte permaneceu, a este propósito, idêntica em tempos posteriores” (2001:64).
E apesar deste trabalho ter sido dedicado apenas ao estudo da mentalidade do homem
da Antiguidade clássica, de modo a mostrar como o seu modo de agir, de pensar e de sentir
foi parar, tempos depois, no cavaleiro mediévico, Werner Jaeger chama atenção, em seu
livro Paidéia, para o fato de que “O culto da beleza feminina [realizado na Antiguidade
clássica] corresponde ao tipo de formação cortesã de todas as idades cavaleirescas”
(2001:46), o que faz com que se pense já num resíduo clássico mais amplo, dentro da Idade
Média. Certamente, matéria para outras pesquisas.
A novela de cavalaria, então, vista sob a ótica da Teoria da Residualidade, é resultado
de um hibridismo cultural, visto que traz, no seu bojo, contribuições culturais de diversos
povos: gregos, romanos, celtas (pagãos); franceses, ingleses, portugueses, espanhóis
(cristãos).
Também pode-se concluir, ao final desta pesquisa, que alguns estudiosos em novelas
de cavalaria apontam os trechos de teor clássico presentes no Amadis de Gaula atendo-se
apenas às passagens dessa novelas que realizam intertextualidade ou aos trechos dessa
narrativa medieval que foram criados a partir, certamente, de histórias da Mitologia Greco-
Romana, como o episódio de Nasciano33, constante no Amadis, que atualiza o mito latino de
Rômulo34 e Remo, ou como a passagem que trata dos acontecimentos que se seguiram ao
nascimento de Amadis, citada anteriormente, que atualiza o mito de Perseu. Os
pesquisadores não conseguem perceber, tanto no Amadis de Gaula quanto noutras novelas
de cavalaria do ciclo bretão ou do ciclo arturiano, o “sabor” clássico de determinados
excertos. Isso certamente se dá por falta de conhecimento acerca do modus vivendi do herói
da Antiguidade clássica e mesmo por falta de conhecimento do modo de vida do cavaleiro
medieval.
Ainda sobre o Amadis de Gaula, deve-se dizer que, diferente do que acontece a outras
novelas de cavalaria, essa narrativa tem o seu aspecto clássico ressaltado pelos estudiosos
devido ao fato de sua edição mais antiga (uma refundição castelhana de diversas cópias do
original desconhecido), à qual temos acesso, datar de 1508, época em que os estudos
clássicos estavam em voga. Muitos acreditam que esses trechos “clássicos” tratam-se dos
acréscimos realizados pelos humanistas e/ou pelos quinhentistas que se propuseram a
escrever as suas edições dessa novela, o que não teria acontecido às demais produções e/ou
às cópias das obras que fazem parte dos ciclos bretão e carolígio, grande parte delas
anterior, em termos temporais, ao Humanismo e ao Classicismo e, exatamente por isso,
livre desse teor clássico. Neste ensaio, pôde-se notar que isso não é bem verdade, uma vez
que o aspecto clássico é inerente a toda e qualquer novela de cavalaria. Sendo assim, o
Amadis de Gaula, que é posto dentro do Humanismo por conta das passagens de teor
clássico que possui, deve ser retirado dessa escola literária e posto na época à qual pertence
33
Entretanto, meses após a sua partida, Oriana tem um filho de Amadis. Mas, no dia em que o envia a criar
longe de si, uma leoa arrebata a criança, que amamenta e que deixa depois ao eremita Nasciano. Este dá-
o a sua irmã e cunhado, para o criarem; antes, porém, batiza-o e, vendo-lhe uma palavra escrita em letras
brancas sobre a pele, põe-lhe o nome de Esplandião. A criança vem depois viver com Nasciano, mas um
dia o rei Lisuarte, viajando com os seus cavaleiros e com a rainha e suas donas, encontra o moço
Esplandião, acompanhado da leoa (COSTA MARQUES, 1972:87-8).
34
Rômulo: herói latino que forma com seu irmão gêmeo Remo a parelha mais famosa da mitologia romana.
Filhos de Reia Sílvia (sacerdotisa virgem de Vesta), eles foram abandonados sobre as colinas
circundantes, amamentados por uma loba, depois recolhidos e educados pelo pastor Faustulus e sua
mulher, Aca Larência (JULIEN, 2005:109).
de fato (visto que teria sido produzido na primeira metade do século XIV), ou seja, dentro
da Idade Média, período da História que guarda, sim, influências da Antiguidade clássica,
diferente do que se pode pensar.
Já no que concerne especificamente à Demanda do Santo Graal, os investigadores
não conseguem perceber os trechos “clássicos” nela existentes – e, conseqüentemente, dar-
lhes a devida importância – pelo fato dessa obra ser enquadrada em plena Idade Média
(primeira metade do século XIII) e de tratar, como se pode perceber pelo seu próprio título,
de algo relacionado à religião católica, ao Cristianismo. Esses traços – o medieval e o
cristão – já seriam o suficiente para que certos estudiosos afastassem qualquer aspecto da
Antiguidade greco-romana – inclusive o paganismo – que essa narrativa pudesse vir a ter.
Acontece que não percebem, os críticos literários e/ou os medievalistas que trabalham com
novelas de cavalaria, que os aspectos cavaleiresco e cristão já existem, de certa forma,
dentro do aspecto clássico, quando, por exemplo, este alude ao comportamento dos heróis
com relação às divindades do Olimpo e quando este faz referências às batalhas nas quais se
envolviam o herói da Antiguidade clássica.

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