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Lia Seixas
Universidade Federal da Bahia
Este artigo está, assim, estruturado em três grandes partes, uma para cada motivo: 1)
tradição por mídia ou domínio; 2) noções-chave: mídia, dispositivo e suporte; 3) influência do
dispositivo na composição discursiva.
1
Este artigo é baseada em uma das afirmações de sustentação da minha tese de doutorado “Por uma outra
classificação”, defendida em agosto de 2008. O trabalho será apresentado na mesa coordenada Gêneros
discursivos e mídia: múltiplos olhares no V SIGET em Caxias do Sul, agosto de 2009.
A pesquisa brasileira, principalmente em comunicação, incluindo-se portanto os
estudos de jornalismo, trabalha o conceito de gênero por cada critério em separado: ou por
domínio (no caso dos estudos de jornalismo) ou por mídia (no caso dos estudos de gêneros
televisivos, no caso da semiótica e dos estudos culturais em comunicação), mas não se
pesquisa por mídia e domínio ao mesmo tempo. Enquanto a mídia é considerada um critério
de genericidade, o domínio é colocado em segundo plano. Se acreditarmos que a diferença
entre as mídias é, igualmente, uma diferença de gênero, não será possível falar em
gêneros jornalísticos ou gêneros do domínio do jornalismo. Só podem existir gêneros
jornalísticos se o domínio for determinante para a genericidade de tipos discursivos. As
características da mídia devem ser relacionadas às condições de realização da ação
comunicativa para que se possa dizer, por exemplo, que a entrevista veiculada no impresso e
no site jornalístico da rede é um mesmo gênero da indústria jornalística.
O estudo separado por mídia gerou uma fatal ausência de diálogo sobre os estudos de
gêneros e, consequentemente, um ínfimo avanço na pesquisa desta noção. Fatal simplesmente
porque, no caso dos gêneros, instituiu, sem prévia discussão, as características das mídias
como critério para a definição da noção de gênero. Os grupos de pesquisa brasileiros,
compostos por aqueles que estudam o impresso, aqueles que estudam a televisão ou aqueles
que estudam o rádio, revelam uma imposição das diferentes gramáticas das mídias analógicas.
SEMIÓTICA
LINGUÍSTICA
COMUNICAÇÃO
Essa separação por mídia gerou uma ausência de diálogo entre pesquisadores do
mesmo campo, influenciados pela adoção de metodologias que melhor explicassem as
características da mídia analisada. Os estudos sobre gêneros televisuais têm hoje como
metodologias a semiologia estruturalista (Stuart Hall), os Estudos Culturais e as teorias da
interação (Erving Goffman). Com a necessidade de resolver o problema da recepção e as
exigências dos mercados acadêmico e profissional, era preciso compreender como os
produtos televisuais eram determinados pela lógica da televisão, entendida como tecnologia e
forma cultural. Neste campo, entende-se gênero apenas como estratégia de interação,
estratégia de comunicabilidade ou modo de endereçamento, na medida em que endereçamento
constitui o fato de o destinatário fazer parte de todo e qualquer enunciado, propriedade
'constitutiva e determinante' do gênero do discurso – nas palavras de Bakhtin. Os fundamentos
nos estudos dos gêneros televisuais incluem as concepções de que: o processo comunicativo
deve ser analisado como uma estrutura em dominância, articulada por produção, circulação,
distribuição/consumo e reprodução; há um sentido preferencial da mensagem construído na
codificação, mas os sujeitos da recepção são ativos, a partir de sua competência cultural
(Martín Barbero). Os modos em que se reconhece e se organizam as competências culturais
são exatamente os gêneros (GOMES, 2002).
Irene Machado entende que as pesquisas sobre gêneros televisivos têm se limitado ao
termo formato, além de guardarem resquícios do pensamento Aristotélico, para quem (como
vimos), o gênero era uma unidade imutável, natural. O termo formato parece estar
diretamente ligado à lógica do dispositivo, enquanto gênero trata do discurso.
Se formato leva em conta mídia, códigos e interações possíveis, deve levar em conta
também uma categoria como “modo do discurso”. E se, nem todas as condições da situação
comunicativa se repetem, não seria razoável considerarmos estar diante de outro gênero? Se
não, quais as condições de realização definidoras de gênero? O mapa de hierarquia dessas
condições? Alguma condição está aí esquecida?
A grande diferença que existe entre as noções de função, finalidade, fim comunicativo,
atitude e propósito é o grau de coletividade e cultura profissional embutida na ação discursiva
do jornalista. Enquanto as linhas sociológicas vêem a função como organizacional, as linhas
mais próximas da Retórica trabalham com a noção de intencionalidade reconhecida
intersubjetivamente. As tradições inglesa e norte-americana dirigem sua atenção para a
distinção entre o que é intencionalmente informativo e o que é explicitamente opinativo.
QUADRO 10
A similitude do método está, então, em se balizar a análise por propriedades das novas
mídias. Entretanto, a linguística é mais enfática quanto aos níveis de relevância, está
preocupada com 'gêneros emergentes' do domínio do ensino e trabalha com outras referências,
mesmo como fundamento das propriedades da mídia digital. A lista de novos gêneros
incluem: e-mails, chat aberto, chat reservado, chat agendado, chat em salas privadas,
entrevista com convidado, e-mails educacionais, aula chat, vídeo-conferência interativas, lista
de discussão, endereço eletrônico e blogs. Apenas os chats e a entrevista são também
classificados como cibergêneros do jornalismo. Classificação esta de pesquisadores
espanhóis, principalmente Díaz Noci e Salaverría, pois não existem tipologias sugeridas por
estudiosos brasileiros.
O gênero tomado como ação social assegura aos linguistas uma tomada em
perspectiva menos tecnicista e mais sócio-histórica5. Para além dos enunciados, o linguista
defende que o analista de gênero precisa do contexto, da situação recorrente na qual um
gênero está constituído numa dada cultura (MOTTA-ROTH, 2005). Em artigo sobre
metodologias de análise de gênero, a linguista Désirée Motta-Roth (UFSM) sugere investigar
a linguagem como gênero, para que a relação dialética entre texto e contexto se evidencie.
5
“Se tomarmos o gênero como texto situado histórica e socialmente, culturalmente sensível, recorrente,
“relativamente estável” do ponto de vista estilístico e composicional, segundo a visão bakhtiniana (Bakhtin,
1979), servindo como instrumento comunicativo com propósitos específicos (Swales, 1990) e como forma de
ação social (Miller, 1984), é fácil perceber que um novo meio tecnológico, na medida em que interfere nessas
condições, deve também interferir na natureza do gênero produzido.” Marcuschi, L.A. e Xavier, A. C. (Org.)
Hipertexto e Gêneros Digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2004, p. 17.
limites de tempo e espaço se dissolvem, permitindo uma troca síncrona ou assíncrona, numa
rede de qualquer tamanho, sem limites geográficos definidos.
Sabe-se, desde McLuhan, que o meio também é a mensagem. Entretanto, não se sabe
dizer em que medida as propriedades das mídias influenciam na configuração de gêneros
discursivos, se são todas as propriedades e se todas influenciam da mesma maneira. Afinal,
muito mais do que extensão do homem, Marshall McLuhan mostrou que os meios são
também tecnologia com poderes na vida das sociedades e que existem relações de um meio
com outro, no que há de concorrência e adaptações mútuas. Enfim, o brilhante e visionário
McLuhan destacou, inclusive, aquilo que se tornaria elemento indispensável da midiologia: a
importância da cultura de uma sociedade dada historicamente na configuração dos meios de
comunicação (MCLUHAN, 1964, p. 233-235).
Mídia, portanto, é diferente de mídium (Régis Debray, 1991). O estudo dos meios
deve estar relacionado à história das culturas e civilizações. O foco da midiologia, criada por
Debray, está na compreensão dos meios de transmissão na propagação de idéias. A noção de
mídium (midiasfera) está calcada em algumas proposições: não se pode separar uma operação
de pensamento das condições técnicas; em cada midiasfera, de dadas época e sociedade, há
um sistema dominante de transmissão e estocagem de mensagens; a midiasfera é o resultado
da imbricação de redes técnicas de épocas diferentes; cada midiasfera suscita um espaço-
tempo particular; a evolução técnica dos meios de transmissão dá um fio condutor à sucessão
histórica (DEBRAY, 1991, p. 229). Neste quadro, o mídium poderia ser entendido em quatro
sentidos: procedimento de simbolização (sistema semiológico de McLuhan), código social
(língua), suporte material e dispositivo. O mídium seria o sistema dispositivo-suporte-
procedimento, onde dispositivo traz a idéia de rede (televisão, informática, tipografia).
A diferença sugerida por Debray, quando tenta transpor suporte e dispositivo com o
conceito de mídium não é necessariamente aceita por muitos dos estudiosos do discurso.
Charaudeau, referência brasileira para estudos de discurso midiático, acredita que dispositivo
é a soma de material, suporte e tecnologia. Maingueneau acredita que uma mudança de
suporte implica uma mudança de gênero, mas pode-se ler suporte como sinônimo de
dispositivo em Maingueneau.
Ainda que bastante utilizada por diversas áreas, a noção de dispositivo é abrangente,
polissêmica e controversa. O termo tem uma acepção larga, desde a psicanálise, passando pela
educação, informática até a comunicação. Fala-se em “dispositivo de sexualidade”,
“dispositivo pedagógico”, “dispositivo técnico”, “dispositivo de comunicação” e “dispositivo
de enunciação”. Na educação, o dispositivo se apoiaria sobre a organização de meios
materiais, tecnológicos, simbólicos, cognitivos e relacionais (relações sociais e afetivas). Um
‘dispositivo técnico’ é compreendido, em informática, como driver de framework,
responsável por ’rodar’ o objeto. O dispositivo, embora uma noção largamente utilizada no
campo das ciências sociais aplicadas, particularmente na comunicação, vem de outros campos
com forte vocação técnica, que vão da mecatrônica, à mecânica, à eletrônica. A noção, então,
vem associada à idéia de mecanismo, de engranagem. Nas ciências sociais, segundo as
principais referências, Michel de Certeau, Foucault e Bourdieu, o dispositivo trata de
procedimentos e tecnologias. Na origem, dispositivo está associado ao conceito de
panopticon (metáfora aplicada ao mecanismo de vigilância nas prisões), portanto, à idéia de
mecanismo de poder. O dispositivo seria, então, de natureza estratégica:
O que eu tento reafirmar sobre esse nome é, (...) um conjunto resolutamente
heterogêneo que comporta discursos, instituições, organizações arquiteturais,
medidas administrativas, decisões regulamentares, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas; de forma breve, do dito assim como
do não-dito, estão os elementos do dispositivo. O dispositivo, ele mesmo, é a rede
que se estabelece entre esses elementos. (...) por dispositivo, eu entendo um tipo-
digamos – de formação que, a um momento dado, teve por função maior responder a
uma urgência. O dispositivo tem então uma função estratégica dominante...Eu disse
que o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe que se
trata de uma certa manipulação de relações de força, de uma intervenção racional e
traçada nestas relações de força, seja para desenvolver nesta direção, seja para
bloqueá-los, ou para os estabilizar, os utilizar. O dispositivo, então, está sempre
inscrito num jogo de poder, mas sempre ligado a um ou a parâmetros de saber, que
nascem daí, mas, da mesma maneira, o condicionam. Isto é o dispositivo: estratégias
de relações de força que suportam tipos de saber, e são suportados por eles. (...)”
(AGAMBEM, 2007, p. 10) (tradução nossa)6
6
Trecho de entrevista dada por Foucault, citada por Agambem: “ « Ce que j'essaie de repérer sous ce nom c'est,
[...] un ensemble résolument hétérogène comportant des discours, des institutions, des aménagements
architecturaux, des décisions réglementaires, des lois, des mesures administratives, des énoncés scientifiques,
des propositions philosophiques, morales, philanthropiques ; bref, du dit aussi bien que du non-dit, voilà les
éléments du dispositif. Le dispositif lui-même c'est le réseau qu'on établit entre ces éléments [...] par dispositif,
j'entends une sorte – disons – de formation qui, à un moment donné, a eu pour fonction majeure de répondre à
une urgence. Le dispositif était de nature essentiellement stratégique, ce qui suppose qu'il s'agit là d'une certaine
manipulation de rapports de force, d'une intervention rationnelle et concertée dans ces rapports de force, soit
pour les développer dans telle direction, soit pour les bloquer, ou pour les stabiliser, les utiliser. Le dispositif,
donc, est toujours inscrit dans un jeu de pouvoir, mais toujours lié aussi à une ou à des bonnes de savoir, qui en
naissent, mais tout autant, le conditionnent. C'est ça le dispositif : des stratégies de rapports de force supportant
des types de savoir,et supportés par eux » Dits et écrits, volume III, p. 299 sq.” Agamben, Giorgio. Qu'est-ce
qu'un dispositif? Trad. Martin Rueff, Paris: Éditions Payot & Rivages, 2007, p. 10.
Em comunicação, a noção aparece, freqüentemente, colada à idéia de suporte, objeto
técnico ou modo de transporte. Um autor desta perspectiva, embora não trate apenas de
imagens, é Charaudeau (1997), que entende o dispositivo como “ambiente físico”, composto
de um ou mais tipos de material e de um suporte, parte de uma tecnologia.
O dispositivo é um componente do contrato de comunicação, sem o qual não existe
interpretação possível da mensagem, do mesmo modo que uma peça teatral não teria
muito sentido sem seu dispositivo cênico. De um modo geral, inclui um ou vários
tipos de material e se constitui num suporte com a ajuda de uma determinada
tecnologia. (...) (CHARAUDEAU, 2005, p. 86) (tradução nossa)7
Como analisado, a mídia não pode ser compreendida como uma condição de
realização do ato comunicativo coma mesma influência da finalidade reconhecida e do
estatuto dos participantes. O dispositivo, enquanto ambiente, matriz do enunciado, faz parte
da lógica enunciativa, pela qual se configuram os parâmetros de interpretação. No caso do
gênero discursivo, não se pode dizer que qualquer modificação no mídium modifica o gênero.
A questão é que tipo de modificação em qual potencialidade pode implicar numa modificação
e se é o caso de uma única propriedade ou uma dada conjunção de propriedades. De saída,
temos o fato de que uma grande quantidade dos chamados gêneros jornalísticos existem nas
duas mídias comparadas, tanto a impressa como a digital. Pode-se começar a análise por
aqueles que não existem numa mídia ou em outra.
7
« Le dispositif est une composante du contrat de communication sans laquelle il n'est pas d'interprétation
possible des messages, de même qu'une pièce de théâtre n'aurait pas grand sens sans son dispositif scénique.
D'une manière générale, il comprend un ou plusieurs types de matériau et se constitue en support à l'aide d'une
certaine technologie. (...) » Charaudeau, P. op. cit., p. 86.
digital. Outra necessidade é que a temporalidade seja sincrônica, quando todos estão em
conexão ao mesmo tempo, situação de troca impossível para os impressos. Mesmo com a
mesa redonda (Table ronde) dos jornais franceses (que ocorre no Brasil e na Espanha, mas
não é considerado como um gênero) em que se reúnem várias pessoas numa única entrevista,
dentre estas pessoas não estão os agentes-receptores, que apenas vão ler. É a mesma situação
de troca de uma notícia, porque é efetivamente o ato de leitura.
A interatividade que a mídia tem como potencialidade não implica absolutamente que
toda composição desta mídia opere com o seu nível máximo, digamos. É o que se pode falar
sobre a televisão, cuja instantaneidade potencial do dispositivo foi submetida à lógica do
mídium. A grade de programação da televisão analógica não permite que, a todo momento, se
transmita um “ao vivo”, embora seja obviamente possível esta estratégia de credibilidade do
jornalismo televisual.
Vidéo
9
Entrevista realizada com a editora de Multimídia Vivian Hetz no dia 23 de abril de 2008 para a tese « Por uma
outra classificação ».
Esse exemplo revela que, por esta autonomia originada pela tecnologia, alguns
formatos venham a se institucionalizar como um gênero, mas a composição precisa ter
autonomia também como unidade discursiva, capaz de “dar conta” de uma notícia. As
separações necessárias devido ao sistema semiológico (texto, aúdio, imagem em movimento,
gráfico) e ao sistema de estocagem (ao próprio sistema de publicação, arquivamento) e
transmissão dão independência discursiva a alguns formatos, mas não é apenas essa
independência que pode dar a autonomia necessária para se configurar em um gênero
jornalístico. A seção multimídia do Lemonde.fr tem vídeos, portfólios, infografia e até mesmo
som – que pode conter apenas uma declaração parte de uma notícia, uma breve entrevista
com um especialista ou ainda depoimentos de testemunhas –, todos, entretanto, exceto a
infografia, sem independência discursiva ou mesmo de estrutura organizacional.
Esta característica da audiência explica porque algumas colunas não são publicadas na
Folha de S.Paulo e na Folha Online, como as de Eliane Cantanhêde e Gilberto Dimenstein. As
colunas mais lidas na Folha de S.Paulo são as de José Simão, Carlos Heitor Cony e Clóvis
Rossi. Entretanto, são colunas não disponibilizadas no site noticioso. Talvez pela audiência
que têm.
Espaço, condições tecnológicas existem no site da Folha Online, mas algumas colunas
não são publicadas senão no impresso. Ou seja, as características, propriedades ou
potencialidades das mídias influenciam na constituição de gêneros; não é qualquer
modificação tecnológico que muda o dispositivo de enunciação. Ele deve ser compreendido
tendo-se em conta as condições das finalidades reconhecidas e do estatuto.
Considerações finais
Se realmente podemos falar de gêneros jornalísticos, então a mídia deve ter um lugar
secundário. Se colocarmos a mídia como uma condição determinante do ato de comunicação,
estaremos situando todas as propriedades da mídia com o mesmo grau de influência. A FDJA
existe para todas as mídias em que atua. Existe, portanto, uma regularidade entre objetos,
estatutos, lógica enunciativa, conceitos e estratégias. De uma forma geral, é razoável dizer
que, seja na imprensa escrita, seja na mídia digital, a atividade jornalística trabalha com a
mesma formação discursiva, principalmente se tratamos de um mesmo país.
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