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O Conto de Carolina

por Giordano Bruno Tassi

Carolina estava na cozinha. Picava alguns legumes para o almoço. Usava uma faca de
lâmina grande, o que lhe causava arrepios. Parecia bobagem, mas não era. Fazia quarenta
anos que ali, naquela mesma casa, havia acontecido uma tragédia. Um homem misterioso
havia entrado na casa, no meio da noite, e matado quase todos na casa usando uma faca
semelhante àquela. A única sobrevivente tinha sido uma garotinha de sete anos de idade,
chamada Carolina.
O assassino havia entrado, camuflado pela noite sem luar, e passado de quarto em
quarto, usando sua faca. Silenciou cada hóspede desavisado que dormia sua última noite de
sono. Ao todo foram dezessete mortes no casarão da família, e as vítimas eram nada mais
nada menos que todos os parentes de Carolina, ao menos os próximos. Seus pais, seu irmão,
sua irmã, seus tios e primos. Após a matança, não contente em destruir todos, ele espalhou
um galão de gasolina pela casa e ateou fogo.
Carolina não conseguiria ser precisa ao tentar explicar como havia escapado. Ela
lembrava-se de estar dormindo com seus pais no quarto de hóspedes, no andar térreo.
Lembrava da luz do fogo que vinha de toda a parte, e de tentar fugir daquilo tudo. Quando se
deu por conta, já estava do lado de fora da casa, na rua, que estava repleta de gente, atraída
pela casa que pegava fogo, iluminando a noite seu luar.
Agora aquela senhora, de quarenta e sete anos, estremeceu mais uma vez com a faca
na mão. Lembrou as noites sem fim em que esperava que o assassino voltasse para terminar o
serviço. E lembrava que, depois de um tempo, passou a desejar que acontecesse.
Com o tempo, foi tocando a vida, até que descobriu o amor. A vida foi ficando mais
fácil, a família foi acontecendo novamente em sua vida. Ela e o marido decidiram reconstruir a
antiga casa, e as sombras do passado nunca mais a tinham atormentado. Ao menos era isso
que os outros pensavam. No fundo, a sombra nunca a deixara. As feridas nunca haviam se
fechado completamente.
Sozinha, fazendo o almoço para o marido e o filho mais velho, que voltariam do
trabalho, e o filho mais novo, que chegaria da escola, ela sussurrou consigo mesma, como fazia
de costume:
- Eu queria que você visse que todo o mal que você me fez não foi o suficiente para me
destruir. Eu ainda estou aqui. Ainda viva. Vitoriosa.
Como acontecia às vezes, sentiu como se alguém fosse lhe responder. Sentiu como se
o assassino estivesse há alguns metros atrás dela, escutando. Não eram raras as ocasiões em
que ela se sentia assim, e esses pensamentos a faziam arrepiar.
Mas desta vez aconteceu algo diferente, ela ouviu uma respiração pesada assim que
parou de falar, algo como um suspiro rouco. Perplexa, ficou paralisada, desejando que fosse
apenas o seu marido que chegava mais cedo do serviço. Mas no fundo ela sabia que não era.
- Eu estou aqui. - disse uma voz serena e rouca atrás dela.
Sim, era ele. Não havia dúvidas. O coração pareceu parar de bater, a respiração parou,
o corpo não mais lhe obedecia. Finalmente, as preces que fazia quando menina seriam
atendidas. Ele havia voltado para terminar o serviço. Com dificuldade, ergueu a cabeça, e, ao
olhar para frente, viu o reflexo de um homem na janela da cozinha.
- Eu pensei muitas vezes em vir atrás de você, - disse o reflexo do homem na janela - e
em terminar o que comecei naquela noite.
O sangue, que parecia ter desaparecido há instantes atrás, subiu à sua cabeça.
Involuntariamente sua mão cerrou-se em volta da faca que segurava. Antes mesmo de
perceber ou pensar fazer qualquer coisa, já estava virada de frente para o seu carrasco,
fitando-o com os olhos marejados de lágrimas. Lágrimas que eram em parte tristeza, mas na
maior parte ódio e rancor. As feridas, enfim, estavam todas abertas.

Carolina encarou seu algoz, ele parecia ter a mesma idade de seu marido. Era grisalho,
de cabelos curtos, rentes a cabeça, olhos claros. Usava um óculos bifocal de armação grossa e
com aspecto antigo, e vestia um suéter de meia estação, de cor cinza-claro. Um homem que,
em outras circunstâncias, poderia parecer até atraente. Seus olhos eram vazios de alegria ou
tristeza, e ele estava de mão vazias.
- Por favor, sente-se. - pediu gentilmente o homem. - Meu nome é Afonso. Não precisa
dizer o seu, eu a conheço muito bem Carol, melhor do que você imagina. Não vai se sentar?
Contrariando seus músculos e seu corpo cheio de adrenalina, ela sentou-se à mesa que
se interpunha entre os dois, a mesa redonda da cozinha. Era a única coisa que os separava
naquele momento. Ainda segurava a faca em sua mão, e a segurava tão firme que fazia a carne
de sua mão empalidecer ainda mais.
- O q-q-quê...
- O que eu estou fazendo aqui? Ora, Carolina, presumo então que você já tenha
deduzido quem eu sou? Bem, você nem faz ideia de quem eu realmente sou, mas sabe o que
fiz no passado. Sabe que fui eu, e isso já é alguma coisa.
Carolina foi invadida por um sentimento louco de enfiar sua faca no coração daquele
homem. A adrenalina inundava seu corpo, deixando todos os sentimentos à flor da pele. Se
aquela mesa não existisse, nada a impediria de enfiar cada centímetro de aço que conseguisse
em seu peito. Mas ela estava sentada do outro lado da mesa, há pouco mais de um metro de
distancia. E ele continuava falando.
- Não foi difícil te localizar depois que queimei a casa. Na verdade, você estava em toda
a mídia. O problema mesmo foi a caça às bruxas promovida pela polícia depois dos... vamos
dizer... acontecimentos.
“Eu era jovem na época, tinha apenas dezessete anos, e isso era um ponto a meu
favor. Primeiro porque no Brasil só se vai pra cadeia depois de maior de idade, e segundo
porque atribuíram o meu crime a alguém com experiência. Realmente sempre subestimaram
os jovens nesse país. Você já tinha reparado nisso?”
Cada palavra proferida por aquele demônio em forma de gente era como uma lâmina
a penetrar na alma de Carolina. Doía ver como aquele verme era capaz de ficar sentado ali,
calmamente agindo como se nada tivesse acontecido. Como se o seu único erro fosse algo
semelhante a roubar uma barra de chocolate no supermercado. Ele era um psicopata, um
animal sem sentimentos, um demônio.
Carol viu a si mesma pulando por cima da mesa, a faca em punho, partindo para cima
dele. Com dificuldade, usando as duas mãos, conseguiu enfiar a faca em seu peito, e então não
havia mais resistência. A faca movia-se sozinha em sua mão, levantando jatos de sangue cada
vez que saía da carne dele. Como um maestro comandando uma orquestra sinfônica, ela
repetia o movimento tão violentamente, com tanta força, que seu braço começava a doer.
Mas não perdia a força. Era a fúria divina manifestada em seu corpo. A adrenalina pura. O
sangue quente que jorrava do corpo do animal era como um novo batismo. Era libertador.
Misturando-se às suas lágrimas, misturando-se ao seu próprio sangue, o sangue de muitas
feridas abertas há muitos anos, que nunca conseguiram cicatrizar. Era a justiça. Era o clamor
de dezessete almas impulsionando sua mão. Era o que ela sempre tinha desejado no fundo de
sua alma atormentada, tudo o que ela sempre quis. Só que melhor...
Mas era apenas a sua imaginação, ela permanecia sentada, exatamente como ele
mandara.
O canalha não parava de falar. Quanto mais ele falava, mais o sangue de Carolina
fervia. Por que ele falava tanto? Por que não fazia o que tinha vindo fazer de uma vez por
todas? O que ele pretendia, afinal?

- Bem, mas você ainda não sabe o que vim fazer aqui, e imagino que esteja curiosa a
esse respeito - afirmou o homem de óculos que estava sentado do outro lado da mesa da
cozinha, o mesmo que havia chacinado a família de Carolina há quarenta anos atrás. Carolina
engoliu em seco enquanto ele continuava seu discurso.
“O caso é que eu realmente queria ter matado a todos na época. Minha intenção era a
de que não sobrasse ninguém para contar a história, mas eu cometi um erro, e esse erro
acabou custando muito caro. Eu simplesmente não percebi que você estava naquele quarto.
Estava pilhado demais eu acho.”
“Mas é como eu te disse, esse erro acabou me custando caro demais. Para começar,
eu pensei muito em terminar meu serviço. Fiz inúmeros planos, mas eram todos muito falhos.
A polícia estava sempre vigiando. Eles logo te colocaram em uma ótima família, isso por causa
do grande apelo da mídia eu acho... mas enfim, você era um objetivo muito distante.”
“O tempo foi passando, a poeira foi baixando, e eu caí em mim... caí num buraco no
qual não conseguia ver o fundo, não conseguia atingir o fundo, por mais que desejasse...”
Quando ele falou da parte do poço, Carolina conseguiu imaginar como ele dizia ter se
sentido, porque ela mesma se sentira assim por muitos anos a fio. Mas ela não acreditava
naquelas palavras. Elas eram frias e sem emoção, como se aqueles sentimentos a que ele se
referia pertencessem a outra pessoa, já que ele nunca seria capaz de sentir algo assim. Mas ele
seguiu com seu discurso, ignorando os olhos incrédulos e lacrimosos de Carol.
- Foi como um pesado e doloroso insight para mim. Comecei a ter sentimentos de
culpa e medo, algo que nunca pensei que fosse me acontecer. Eu tinha pesadelos horríveis
enquanto nem mesmo dormia, e, se dormia, eles eram dez vezes piores.
“O que eu quero dizer, o que vim aqui pra te dizer, é que eu me arrependi.”
Carolina não podia acreditar no que estava ouvindo. Aquilo não podia ser verdade! Ele
era um assassino! Um mentiroso! Um animal perverso e incapaz de qualquer sentimento! Isso
não estava acontecendo, era apenas um sonho. Não, era um pesadelo, uma brincadeira de
mau gosto.
Seu corpo já não a obedecia mais, começava a tremer incontrolavelmente, enquanto
por sua mente passavam xingamentos e blasfêmias que nunca fora capaz de proferir em voz
alta. Lágrimas agora escorriam de seus olhos, e seu linguajar não passava de um balbuciar de
palavras trêmulas.
- Carol, acalme-se, isso não ajuda em nada. Além disso, eu não espero que você me
perdoe, eu apenas queria... ACALME-SE!
Aquilo era a gota d’água. Descontrolada, ela afastou-se dele, derrubando a cadeira no
chão e batendo seu quadril contra a pia da cozinha, as mãos cerradas em punhos sobre o rosto
encharcado, a faca em riste. Era incapaz de controlar os tremores quase convulsionantes.
- Seja racional, pelo amor de Deus! Seu marido e seus filhos estão chegando, e você
não gostaria que eles vissem nada disso! Não gostaria que nada acontecesse a eles...
Essas últimas palavras trouxeram Carolina de volta à terra. A imagem de seu marido e
de seus filhos veio instantaneamente à sua mente. Como ele ousava citá-los? Supor que algo
poderia acontecer a eles? A tremedeira diminuiu, e ela lentamente abaixou as mãos ainda
cerradas. Seus olhos estavam arregalados, a boca aberta de pavor como se pronunciasse
alguma vogal inaudível, o lábio superior arcado revelando terror e nojo ao mesmo tempo.
O homem que se autoentitulava Afonso também estava de pé, e movendo-se em sua
direção. Já havia retirado a cadeira do caminho, acomodando-a gentilmente ao lado. Enquanto
andava, seguia falando calma e pausadamente. Será que finalmente ele terminaria a tarefa
iniciada há tantos anos atrás?
- Olha, eu não tenho como te explicar porque fiz aquilo. Eu tinha meus motivos, mas
não quero me justificar, porque não há como justificar o injustificável. Agora eu só quero a
justiça... custe o que custar.
Afonso ficou de frente para Carolina, há poucos centímetros de distancia, e a faca,
apontada diretamente para seu abdome, quase o tocava.
- Você pode fazer três coisas agora, - disse ele - a primeira opção é me deixar sair daqui
e continuar vivendo como se nada nunca tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse
aparecido. Não acho que você fará isso. Eu não faria. Sua segunda opção é pegar este telefone,
que você carrega aí com você, e ligar para a polícia, e é uma boa opção, eu diria. Se você fizer
isso, eu serei preso, e você não será uma assassina. Mas eu espero que você escolha a terceira
opção... e enfie esta faca diretamente aqui... - disse ele, apontando para seu próprio peito com
o dedo indicador - sim, eu gostaria disso, seria mais fácil para mim, seria a solução dos meus
problemas.
Ela o encarava olhos nos olhos, e não sabia de onde tirava forças para fazer isso. A faca
firme em sua mão, a adrenalina em seu pico máximo. Cada centímetro do seu corpo desejava
desferir aquele golpe, mas não conseguia. Não era uma assassina, afinal. Não tinha o que era
preciso para se tornar uma, mas também não estava em condições físicas ou emocionais de
abaixar aquela faca.
- Eu pensei que fosse ser difícil para você, e talvez eu tenha algo comigo que possa te
ajudar a tomar a decisão certa. - enquanto ele falava, levou a mão esquerda às costas para
pegar algo, e a imagem de uma faca desenhou-se na mente de Carol. O movimento deve ter
sido muito rápido, pois, sem ela perceber o que ele havia feito, sentiu o impacto em sua
barriga, um impacto por muito tempo desejado, algo que ela sempre quis saber como era. Sim,
no fundo ela sempre desejou saber o que seus pais haviam sentido no momento de sua morte.
Num reflexo instintivo, livre de qualquer pensamento, toda a tensão que sentia, toda a
adrenalina que fervia em suas veias, toda a sua força e a sua alma canalizaram-se para sua
mão direita, que desferiu um golpe fatal no flanco esquerdo de Afonso.
Com o susto, ela largou a faca, que estava enterrada por inteiro na barriga dele.
Incrédulo, ele olhou da faca para os olhos de Carol, e o rosto dele espelhava um sentimento
que ela não soube dizer o que era. Aos poucos voltando a si, ela escutou um som familiar, e
tremeu. Procurou pelo ferimento que ele a infligira, mas não o encontrou. Em seu lugar,
escondido no interior do bolso de seu avental, ainda tremendo e gritando, havia um celular.
Não uma faca, mas um maldito celular! E o que ela sentia não era nem um pouco glorioso.
Nem de longe se comparava àquele sentimento por ela antes imaginado. Percebendo o que
havia feito, seus antigos sentimentos foram suprimidos por uma combinação de raiva e
vergonha de si mesma, somadas a uma culpa ingrata que não pensou que pudesse sentir.
Olhou novamente o homem sangrando, escorado à mesa, e percebeu que em sua mão
esquerda havia uma fotografia antiga e meio amassada, o retrato de um casal que ela
imediatamente reconheceu: eram seus pais, sorridentes, no preto e branco daquela foto
desgastada.
Afonso caiu no chão, e ali, deitado, com a vida por um fio,disse:
- Obrigado Carol... obrigado minha irmã.
Seu rosto expressava um misto de gratidão e satisfação. Deve ter sido a última coisa
que ele sentiu.

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