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A motivação desse trabalho é uma pergunta cuja resposta pode ser aparentemente
simples: como um aluno, brasileiro, nas escolas de ensino fundamental e médio, brasileiras,
pode ser reprovado numa disciplina chamada ‘Língua Portuguesa’? A questão pode ir adiante e
questionar como a escola pode declarar um falante nativo incompetente na própria língua.
Esse fato me chamou a atenção ao ler um artigo publicado pelo deputado federal Aldo
Rebelo (PC do B-SP)1. A questão centrava-se na verdade nos estrangeirismos e o deputado
federal defendia seu projeto de lei2 que protegia a língua portuguesa contra os estrangeirismos.
Alegava que o projeto também objetivaria melhorar o ensino de português no país, que
apresenta números trágicos.
O último censo escolar realizado pelo governo brasileiro revelou uma tragédia:
40% dos alunos da primeira série do ensino fundamental repetem de ano. E um
escândalo: em oito Estados brasileiros a primeira série tem mais reprovados do
que aprovados. Em outra pesquisa, também oficial, piorou o desempenho dos
alunos em língua portuguesa [grifo meu] entre 1997 e 1999.
A questão que estou tentando levantar nesse trabalho pode ser mais trágica: como o
desempenho dos alunos em língua portuguesa pode ter piorado de um ano para outro, como os
falantes pioram no desempenho da própria língua?
Para Possenti (1996/2000), está claro que todos que falam sabem falar.
1
Sobre guerras e línguas, Folha de São Paulo, Caderno Mais, 01/07/2001.
2
Projeto de lei número 1676 de 1999
O argumento acima pode ser estendido se analisarmos como uma das funções da
linguagem a transmissão da experiência humana (Benveniste, 1902/1976)3 e da oposição “eu-
tu/ele”. Como se pode declarar alguém incapaz de usar a linguagem para estabelecer-se em
sociedade e relacionar-se nela uma vez que, quer queira ou não, esse sujeito já está
estabelecido em sociedade e já relaciona-se nela, quer de maneira central ou periférica.
Para tentar entender melhor a situação, tentei localizar as fontes dos dados
apresentados por Aldo Rebelo. Infelizmente não consegui localizar os dados exatos, mas entrei
em contato com o site do Saeb4, Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica. Além de
não serem os mesmos dados que Aldo Rebelo apresentou, os dados que extraí do referem-se
mais precisamente ao ensino da 4a, 8a do ensino fundamental e do 3o colegial do ensino médio.
Apesar de diferentes, os dados levam à conclusões semelhantes ao do deputado e
correspondem ao mesmo período (1999).
3
BENVENISTE, E. “Problemas da Lingüística Geral I”
_______________ “Problemas da Lingüística Geral II”
4
http://www.inep.gov.br/saeb/default.asp
Português e Matemática e também de um questionário que coletava informações relativas ao
contexto em que os alunos estavam inseridos: as turmas, alunos, professores, diretores e
escolas. Por motivos óbvios, me aterei aos dados relativos ao ensino de português.
Para interpretarmos os dados, nos utilizaremos dos esquemas e medidas fornecidos
pelo teste, que constitui num sistema de equalização dos dados.
5 a a
Mais especificamente, os alunos de 4 série encontram-se entre 150 < 200; os alunos de 8 série entre os níveis
a
200 < 250 e os de 3 série do ensino médio nos níveis 250 < 300.
CENTRO OESTE 193,40 183,13 170,54
2,70 1,35 1,21
(fonte: Informe de resultados comparativos do SAEB 1995, 1997 e 1999 -
http://www.inep.gov.br/saeb/anos_anteriores.htm)
No último quadrinho. Quando o homem diz: “Duro é ter que ouvir essa
ladainha” podemos concluir que ele está:
(A) aborrecido com o preço dos vendedores.
(B) gostando da oração que o menino está rezando.
(C) irritado com a fala do menino.
(D) irritado com a reza do menino
Língua Portuguesa
Mas o grande problema é que quando um aluno é reprovado – geralmente por motivos
e condições absolutamente questionáveis – ele é rotulado como incapaz para se considerar
como um falante de qualquer das modalidades do português, seja escrito, falado, culto ou não.
Assim, se um sujeito é considerado incapaz de usar a própria língua, o que dirá de realizar
qualquer outro tipo de atividade, como reinvidicar seus direitos como cidadão.(Freire, 1970).
O que percebemos é que a escola cobra do aluno algo que não lhe é especificado. Cobra
o ensino da língua padrão sem deixar a questão clara ao aluno, que acredita que está
aprendendo (ou melhor, não aprendendo) a língua portuguesa como um todo. Acaba que o
aluno acaba não reconhece a língua que aprende como sua e não também não tem a noção de
que está aprendendo um dialeto importantíssimo para o acesso à cidadania, sendo o dialeto
padrão o dialeto ´oficial’ para jornais, documentos oficiais. O problema agrava-se ainda mais
quando a escola apresenta ao aluno uma variação dita ´culta´ que sequer é usado pelos falantes
ditos ´cultos’6 (Bagno, 2000).
2o – O Saeb reconhece as diferenças, mas as ignora na hora em aplica um teste padronizado
para todas as regiões do país.
Nos seus protocolos, o Saeb reconhece a pluralidade geográfica do Brasil, tanto que
analisa os dados por regiões geográficas. Porém, aplica os mesmos testes tanto para alunos do
Nordeste, como para alunos do Sudeste; tanto para alunos vindo de ambiente letrado como
iletrado; alunos do interior e da capital. O teste ignora ainda que numa mesma sala de aula
possa haver alunos com características diferentes, idades diferentes, vindo de lugares
diferentes e com diferentes relações com o meio letrado.
Como é uma visão derivada da tradição escrita, fatos como “sotaque”, prosódia
e outras características “menores” não são considerados formalmente como
parte da língua, mas obviamente elas desempenham um papel central na real
comunicação face a face (Gnerre, 1991)
Talvez o Saeb não reconheça a língua portuguesa como uma língua heterogênea e caia
no senso comum de acreditar que temos apenas um dialeto de um extremo ao outro do país. O
mito da uniformidade lingüística do Brasil é extremamente prejudicial para qualquer processo
ou tentativa de educação (Bagno, 1999)
6
No seu livro ´Dramática da Língua Portuguesa’, Bagno defende a existência de uma distância entre o português
culto regrado pela gramática normativa aprendida na escola e pregada pelos comandos paragramaticais e o
português culto falado pelos falantes culto. Para que essa distancia seja encurtada ou eliminada, propõe uma
subversão herética, uma intervenção consciente na norma padrão de forma a aproximá-la da realidade dos
falantes.
A intenção é que, a partir destas informações, possam ser propostas novas
estratégias de intervenção, mudança e aperfeiçoamento do Sistema Educacional,
com vistas à melhoria da qualidade do ensino ministrado nas escolas brasileiras.
(fonte: Informe de resultados comparativos do SAEB 1995, 1997 e 1999 -
http://www.inep.gov.br/saeb/anos_anteriores.htm)
devemos saber olhar nas entrelinhas e tentar reconhecer quem realmente está por trás dessas
reformulações e quais suas verdadeiras intenções. Quando o processo vem ‘de cima para baixo’
a tendência é que seus resultados venham a ser contestados. O processo educacional deve ser
considerado em ações em ativas dos educandos e dos educadores (Freire, 1970)
De acordo com Morato (2000), a nossa sociedade valoriza a linguagem de tal modo e
paixão que a protege de tudo e todos, incluindo dos próprios falantes. O conceito de língua está
unicamente ligada à língua ´bem falada’, desautorizando qualquer tipo de uso que se afaste do
estado de ´bem falada’
Sigla Transcrição
CI é… é… é… a gente tem problema
CI é o brasileiro que acha
CI que afásico é problema mental
CI não é problema mental
CF oh, senhor
CI não é problema mental
(Fonte: BDN – PI 17-03-99)
Para Coudry (1986/96), a linguagem nada mais é que um produto da interação entre
falantes que partilham de pressupostos culturais comuns. Em resumo, o princípio básico da
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O Centro de Convivência de Afásicos (CCA) funciona no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e é produto de
convênio interdisciplinar com a Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. A partir da convivência entre
afásicos e não afásicos, fazem parte da dinâmica do CCA: registro em agenda de fatos cotidianos que merecem ser
contados; leitura e comentários de acontecimentos nacionais e internacionais divulgados pela imprensa escrita e
falada; atividades lingüístico-cognitivas orientadas (recontagem de piadas, comentários sobre charges políticas e
retratos psicológicos de personagens públicos, atividades não-verbais que desencadeiam produção oral e tarefas
interpretativas com discurso oral) integrando, pois, uma concepção abrangente de linguagem e de seu
funcionamento.
linguagem é o sujeito. Um sujeito que segundo Franchi (1976) realiza uma atividade constitutiva
com relação à linguagem, incompleta e passível de interpretação.
Esse sentimento de incompletude com relação à linguagem a qual o sujeito não afásico é
passível, também ocorre com o sujeito não afásico. O que resume na minha opinião a relação
entre afásico e não-afásicos perante a linguagem é uma frase de Coudry perante sua banca de
livre-docência (2002):
Durante esse trabalho procurei mostrar quais os caminhos que levam alguns falantes a
serem considerados como incapazes de utilizar-se de sua própria língua, sendo mais irônico,
quais são esses extraordinários caminhos que levam alguém a concluir que um brasileiro
nascido no Brasil pode ser considerado incapaz ou inapto a utilizar-se de sua própria língua.
Tentei mostrar que as variações lingüísticas que se distanciam sintaticamente, foneticamente,
morfologicamente - por razões patológicas ou não – da forma padrão tendem sofrer todos os
tipos de preconceitos sociais. Preconceitos esdrúxulos, injustificáveis e até maldosos que não
resistem a nenhum tipo de abordagem cientifica, por mais superficial que ela seja feita.
Porém, não acredito que o preconceito encerre-se na forma lingüística; ele continua e é
uma forma de justificar um preconceito ainda mais perverso: o preconceito em cima do falante
da variação estigmatizada. É um falante que foge do padrão, rompe com o padrão, mas que
exige que sua condição seja respeitada (Freire, 1970).
A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação
dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Este
somente é possível porque a desumanização, mesmo que tem um fato concreto
na história, não é, porém, destinado, mas resultado de uma “ordem” injusta que
gera violência dos opressores e esta, o ser menos.
A nossa luta pela quebra do preconceito não deve ser uma luta apenas por motivos
altruístas. A sociedade tem que se convencer que o preconceito, independente da forma ou
motivo, corrói a sociedade pela base. É dever de todos, acadêmicos ou não, direcionar todas os
esforços contra esse tipo de prática. É sempre bom lembrar que grandes manchas na história da
humanidade – como o holocausto durante a Segunda Guerra e o tráfico negreiro no Brasil
colonial – justificaram-se através do injustificável mito de uma suposta superioridade. O
preconceito não aprisiona somente quem sofre o preconceito, mas também quem o pratica.
Se até agora os livros de história contaram sobre tragédias por causa da manutenção do
preconceito, é hora então de escrevermos novas páginas sobre glórias e na erradicação do
preconceito. A luta contra o preconceito é, sobretudo, um ato de amor.
Bibliografia
BAGNO, M. “Dramática da Língua Portuguesa – Tradição Gramatical, Mídia & Exclusão Social -,
Edições Loyola, São Paulo: 2000”.
_________ “A Língua de Eulália – Novela Sociolingüística”, Editora Contexto, São Paulo: 1997.
_________ “Preconceito Lingüístico: O que é? Como se faz?”, 2a Ed, Edições Loyola, São Paulo:
2000.
BENVENISTE, E. “Problemas da Lingüística Geral I / Tradução de Maria Glória Novak & Maria
Luiza Nery”, Ed. Pontes, Campinas: 1991.
_____________. “Problemas da Lingüística Geral II / Tradução de Maria Glória Novak & Maria
Luiza Nery”, Ed. Pontes, Campinas: 1991.
CAGLIARI, L. C. “Alfabetização e lingüística”, São Paulo, Scipioni: 1989.
COUDRY, M. I. H. “O Diário de Narciso: Discurso e Afasia”, Martins Fontes, Campinas:
1986/2000.
_______________ “Contribuições de uma abordagem discursiva para o estudo da afasia:
Avaliação Neurolingüística”
_______________ “Linguagem e Afasia: Uma Abordagem Neurolingüística”
_______________ & POSSENTI, S. Avaliar Discursos Patológicos in “Caderno de Estudos
Lingüísticos”, Número 3, 1983.
FRANCHI, C. – “Linguagem – atividade constitutiva”, in: “Cadernos de Estudos
Lingüísticos”, 22: 9-39, 1977/92.
FREIRE, P. “Pedagogia do Oprimido”, Ed. Paz & Terra, Rio de Janeiro: 1970.
GNERRE, M. “Linguagem Escrita e Poder”, Martins Fontes, Campinas: 1991.
MORATO, E. “As afasias entre o normal e o patológico: da questão (neuro)lingüística à questão
social”.
POSSENTI, S. “Porque (não) ensinar gramática nas escolas”, Mercado de Letras, Campinas:
1996.