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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

TEMA 3: CICLO DE DESENVOLVIMENTO


IDADE ADULTA E VELHICE

Docentes: Lina Morgado


Angelina Costa

© Universidade Aberta, 2009


Psicologia do Desenvolvimento
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TEXTO 3 
 
 
A FAMÍLIA COMO CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 
 
1. A FAMÍLIA NUMA PERSPECTIVA COMPARADA 
 
As afirmações que se ouvem sobre o desaparecimento da família ocidental não pare‐
cem  ter  muito  fundamento.  Muitas  destas  ideias  relacionam‐se  com  o  impacto  sobre  alguns 
observadores de fenómenos mais ou menos novos relacionados com a família. Pelo contrário, 
quando nos situamos numa perspectiva mais ampla, o diagnóstico muda consideravelmente, e 
temos então a impressão de que a família como agrupamento, como organização, tem a sua 
sobrevivência bem assegurada. Para percebermos esta perspectiva nada melhor do que recor‐
rer a comparações com outras espécies. 
Diversas  formas  de  organização  familiar  são  características  de  muitas  espécies  desde 
há milhares de anos e tudo leva a pensar que assim continuará a ser no futuro. Os artrópodes, 
os peixes, os anfíbios, os répteis, as aves, os mamíferos, os primatas não humanos apresentam 
formas  de  agrupamento  familiar  mais  ou  menos  permanentes.  Portanto,  a  questão  não  é  se 
apresentam  ou  não  tais  agrupamentos,  mas  sim  que  diferentes  tipos  de  agrupamentos  exis‐
tem.  Discute‐se  então  se  a  poligamia  (união  de  um  indivíduo  de  um  determinado  sexo  com 
vários de outro sexo) é mais ou menos frequente e se, dentro dela, existem mais situações de 
poliandria  (uma  só  fêmea  com  vários  machos)  ou  de  poliginia  (um  só  macho  com  várias 
fêmeas).  A  alternativa  à  poligamia  é  a monogamia,  na  qual  se  produz  a  união  de  dois  indiví‐
duos, um de cada sexo. Além da forma de agrupamento, varia também a sua duração que, em 
alguns casos, tem um carácter sazonal e, portanto, transitório, enquanto noutras situações é 
muito  duradoura,  dependendo  de  vários  factores  entre  os  quais  se  destaca  a  duração  do 
período de dependência da cria e a disponibilidade de recursos naturais como comida, espaço 
ou quantidade de indivíduos do outro sexo. 
Enquanto  nos  artrópodes  e  peixes  a  poliandria  é  frequente,  a  monogamia  é  muito 
comum  nos  répteis  e  aves,  pelo  menos  durante  o  período  de  desenvolvimento  dos  bebés. 
Além disso, dentro de um mesmo tipo de animais, há bastante diversidade tanto nas formas 
de  agrupamento  (muitos  répteis  são  monógamos,  mas  existem  alguns  que  são  poligínicos) 
como na sua duração (algumas espécies de aves requerem poucos cuidados dos pais, enquan‐
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to outras são muito mais dependentes e durante um período de tempo mais prolongado, exi‐
gindo, além disso, uma minuciosa divisão do trabalho entre macho e fêmea). 
Nos mamíferos, tanto a poligamia como a monogamia são frequentes, com predomí‐
nio da primeira sobre a segunda. Também nos primatas não humanos a poligamia é mais fre‐
quente do que a monogamia, sendo a poliandria inexistente. Relativamente à espécie humana, 
parece fora de dúvida que a poliandria não existe, salvo em certas comunidades culturais iso‐
ladas e muito excepcionais. Os especialistas estão divididos entre os que pensam que somos 
essencialmente  polígamos  e  os  que  consideram  que  somos  fundamentalmente  monógamos. 
No caso humano, o tipo de agrupamento familiar não se baseia apenas em critérios de ordem 
natural  (disponibilidade  de  pessoas  de  outro  sexo, necessidade  de  cooperação  para  apoiar  o 
crescimento dos filhos), mas também em razões de índole cultural (por exemplo, crenças reli‐
giosas ou filosóficas, tradicionalmente transmitidas de geração a geração). 
É evidente que o contraste mais interessante e próximo de nós é o da família nos pri‐
matas  não  humanos.  É  curioso  como  o  interesse  dos  investigadores  passou  da  identificação 
das diferenças ao fascínio pelas semelhanças dos primatas com os humanos. A realidade é que 
são tão importantes as primeiras como as segundas e que estas similitudes nos sugerem traços 
de comportamento com uma forte origem biológica. Os avanços metodológicos e a superação 
de alguns preconceitos no estudo comparado de espécies permitiram que agora possamos dar 
conta do passado filogenético de alguns comportamentos que se consideravam específicos dos 
seres humanos. 
Um dos primeiros comportamentos que foi objecto de estudo é a relação de vincula‐
ção  nos  primatas  não  humanos.  É  impressionante  observarmos  como  este  comportamento, 
por  exemplo  nos  chimpanzés,  apresenta  uma  grande  variedade  de  formas  e  de  funções  nas 
quais  podemos  reconhecer  as  humanas:  cuidados  físicos,  protecção  face  a  riscos  e  perigos, 
superação de tensões, etc. Além disso, as crias estabelecem com o resto do grupo uma hierar‐
quia de relações de vinculação que se manifestam em comportamentos de aproximação e de 
evitação a determinados membros. Note‐se que tais comportamentos requerem um alto nível 
de individuação no grupo e uma boa capacidade de análise de rostos e de detecção de dife‐
renças interpessoais. 
Tal como na espécie humana, a vinculação nos primatas tem uma função de sobrevi‐
vência muito importante uma vez que assegura a proximidade e a protecção dos pais aos filhos 
durante o prolongado período de tempo em que a fragilidade do novo ser requer a assistência 
directa  e  continuada  dos  adultos.  Estes  laços  são  relativamente  duradouros,  ainda  que  mais 
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breves do que aqueles que se estabelecem nos humanos. De facto, essa maior perdurabilidade 
dos vínculos na família humana cumpre uma função transgeracional que vincula as famílias de 
ascendência com as de descendência e que está ausente nos primatas humanos. Em suma, a 
vinculação,  que  é  sem  dúvida  um  dos  elementos  mais  básicos  das  relações  familiares,  tem 
claros antecedentes filogenéticos que nos falam do seu grande valor adaptativo para a sobre‐
vivência das espécies. 
Os primatas não humanos como chimpanzés, macacos japoneses e bobonos também 
têm uma série de comportamentos designadas protoculturais que os aproximam extraordina‐
riamente de nós. Estas espécies de símios são capazes de adquirir uma série de competências 
muito adaptadas à vida no seu habitat e que se transmitem de geração a geração. Por exem‐
plo, as crias de chimpanzés observam atentamente os pais quando estes afiam um pau fino e o 
introduzem cuidadosamente num formigueiro com o objectivo de extrair as térmites para as 
comerem.  Os  macacos  japoneses  transmitem  de  geração  a  geração  a  competência  de  lavar 
batatas. Ou seja, estes podem ser considerados comportamentos de aprendizagem supraindi‐
vidual, do tipo daqueles que ocorrem nas famílias humanas. 
As crias de chimpanzés e de outros primatas também se socializam, tal como as crian‐
ças  humanas,  aprendendo  os  costumes  do  seu  grupo  e  a  comportar‐se  diferencialmente  em 
função  do  estatuto  dos  adultos  e  da  sua  própria  mãe.  As  crias  fêmeas  brincam  preferencial‐
mente com as filhas das fêmeas de alto estatuto, «herdando» estas o estatuto da sua mãe. Por 
outro lado, o grupo reconhece os laços de pertença das crias às suas mães. Assim, quando se 
ouvem gritos de socorro de uma cria que não está visível, é a mãe que reage alarmada e, em 
caso, de estar «distraída», as outras mães dirigem o olhar para ela. 
Onde estão, então, as diferenças destas formas de agrupamento familiares das huma‐
nas?  Como  acontece  nos  primatas  em  geral,  os  humanos  são  muito  plásticos,  capazes  de  se 
adaptarem a ambientes e a exigências muito diferentes. Mas, ao contrário dos outros prima‐
tas, somos capazes de criar novos ambientes e contextos que obrigam ao desenvolvimento de 
uma variedade de comportamentos e de formas de organização social muito mais complexas 
do que aquelas que existem noutras espécies. A chave das diferenças está no carácter socio‐
cultural da estimulação e dos cenários ou habitats nos quais decorre a vida humana. 
Neste caso, foram os antropólogos culturais que nos retiraram do etnocentrismo pelo 
qual  atribuíamos  a  todos  os  humanos  as  características  de  um  tempo  e  de  um  lugar,  quer 
dizer, de um momento histórico concreto numa cultura também concreta (neste caso, a oci‐
dental). Através dos seus estudos de culturas muito diferentes da nossa, tanto em disponibili‐
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dade de recursos como na organização social, nas crenças, nas práticas educativas, os antropó‐
logos puseram em causa a perspectiva universalista de que tudo era igual, ou deveria ser, em 
todo o lado e para todos os seres humanos. Concluiu‐se que cada cultura apresenta uma certa 
organização que imprime uma certa direcção ao desenvolvimento. Surgiu o conceito de nicho 
evolutivo que se refere ao conjunto de cenários, práticas e crenças existentes em cada cultura 
face aos bebés, às crianças e à educação. 
Na  família  humana,  os  contextos  naturais  são,  na  realidade,  construções  sociocultu‐
rais. Os contextos só são naturais no sentido em que permitem à pessoa em desenvolvimento 
servir‐se de toda a variedade de recursos culturais ao longo do seu processo evolutivo. Nem é 
preciso dizer que a família tem um papel chave na influência da cultura face às crianças e aos 
jovens,  pois constitui  em  si  mesma  um  cenário  sociocultural  e  é  o  filtro  através  do  qual  lhes 
chegam muitas das actividades e ferramentas que são específicas dessa cultura e através das 
quais a mente infantil se povoa de conteúdos e de procedimentos. 
Esta  peculiaridade  das  famílias  humanas  conduz‐nos  a  uma  outra  claramente  distan‐
ciada das famílias dos primatas não humanos. O papel fundamental dos pais não consiste ape‐
nas em assegurar a sobrevivência dos filhos, mas também a sua integração sociocultural nos 
cenários e habitats que antes se mencionaram. Com efeito, além de alimentar e de cuidar fisi‐
camente dos filhos, os pais põem em acção uma série de comportamentos que tornam possí‐
vel o bebé ter acesso ao diálogo, aos símbolos e à linguagem. Estes comportamentos interacti‐
vos  dos  pais  têm  por  objectivo  manter  com  os  filhos  uma  estreita  interacção,  primeiro  não 
verbal e depois verbal, desde muito cedo. Assim, as peculiaridades da interacção com o bebé, 
tal como a sincronia, o ritmo e a reciprocidade estão especialmente desenhadas para apoiar a 
emergência dos processos de simbolização e a linguagem. 
Além disto, existe uma intencionalidade educativa nos pais humanos que está ausente 
nos  primatas  não  humanos.  Para  aprender  os  comportamentos  adequados  do  seu  grupo 
social, as crias de chimpanzés só contam com a observação de modelos e com as bruscas reac‐
ções  de  desagrado  dos  pais.  Os  bebés  humanos  de  todas  as  culturas  contam  com  figuras 
maternas  ou  paternas  dispostas  a  estabelecer  uma  interacção  com  eles  ajustada  e  a  apoiar 
pacientemente os seus ensaios de novos comportamentos. A isto há que acrescentar a ferra‐
menta da linguagem, que desempenha um recurso educativo dirigido para o ensino de novas 
competências e de normas sociais. O próprio processo de desenvolvimento dos bebés huma‐
nos,  extraordinariamente  mais  longo  do  que  qualquer  espécie  de  primatas,  dá  conta  desta 
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solicitude e disposição familiar para lhes prestar cuidados até que alcancem um nível de fun‐
cionamento independente. 
Finalmente, como consequência do prolongamento no tempo das relações de depen‐
dência,  a  intensidade,  a  individuação  e  a  perdurabilidade  dos  laços  estabelecidos  são  acen‐
tuadas no caso humano, o que deve ser entendido no contexto da existência de um cérebro e 
de  normas  de  comportamento  mais  complexos  e  de  uma  tendência  para  concentrar  a  vida 
familiar  no  interior  de  um  espaço  privado  que    promove,  também,  uma  maior  intimidade  e 
sentimentos de pertença mútuos que adquirem nos humanos um alcance transgeracional. 
 
 
2. A FAMÍLIA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 
 
  Pode perguntar‐se em que medida a família humana é um fenómeno historicamente 
mutável  ou  estanque.  A  este  respeito  há  poucas  dúvidas  de  que  as  formas  de  organização 
familiar sofreram mudanças históricas importantes. Mas não se pode cair no erro de atribuir 
diversidade  só  ao  presente,  afirmado  que,  no  passado,  as  famílias  eram  todas  semelhantes. 
Grande  parte  da  diversidade  que  existe,  na  actualidade,  na  família  ocidental  tem  profundas 
raízes  históricas,  existindo  uma  clara  continuidade  nos  últimos  séculos  em  aspectos  básicos. 
Boa  parte  desta  diversidade  apresenta  paralelismos  com  a  diversidade  existente  nas  antigas 
culturas  mediterrâneas  que  antecederam  em  vários  séculos  a  era  cristã,  particularmente  no 
império romano. A análise da família no antigo Egipto e Mesopotâmia, assim como entre gre‐
gos e romanos, mostra a importância dada desde muito cedo à vida familiar, ao valor da priva‐
cidade, à diferença de papéis entre homens e mulheres, à regulação das situações de separa‐
ção, divórcio e adopção, e as diferentes pautas educativas em função da idade da criança, mui‐
to consonantes com as questões levantadas na época contemporânea. Da mesma forma, havia 
pais que investiam imenso na educação dos seus filhos relativamente ao seu desenvolvimento 
físico, intelectual e moral, enquanto outros pais faziam dos seus filhos objecto de maus‐tratos, 
abandono, privações físicas e psíquicas. 
  Por outro lado, e relativamente ao século XX, as grandes transformações não são pró‐
prias dos nossos dias, mas antes foram‐se acumulando ao longo do século à medida que ocor‐
reram  outras  transformações  em  diferentes  vertentes  como,  por  exemplo,  na  mortalidade 
infantil, na vulnerabilidade geral da população adulta e no acesso ao mundo do trabalho. Em 
poucas décadas, a família ocidental conheceu mudanças de grande magnitude que afectaram 
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os aspectos demográficos (drástica diminuição do número de filhos, aumento da vida dos pais 
e  presença  dos  filhos  crescidos  em  casa  com  o  consequente  adiamento  do  casamento)  e  as 
formas  de  organização  familiar  (diminuição  do  número  de  lares  multifamiliares,  surgimento 
do divórcio e das famílias reconstituídas, aumento das famílias monoparentais e das uniões de 
facto ou não matrimoniais).  
Na família mediterrânica (Portugal, Espanha, Itália) reconhecem‐se muitos traços que 
têm séculos de antiguidade e que a distinguem da família nórdica, da família da Europa Central 
ou  da  norte‐americana.  Alguns  exemplos  dessas  diferenças  são  uma  menor  mobilidade  geo‐
gráfica  (o  que  facilita  os  contactos  estreitos  com  a  família  de  origem)  uma  manutenção  das 
diferenças de papéis entre homens e mulheres e o papel da família como importante rede de 
apoio e assistência. 
 
 
3. O CONCEITO DE FAMÍLIA NO OCIDENTE, NOS FINAIS DO SÉCULO XX 
 
  Referiu‐se anteriormente que a família é uma forma de organização natural no mundo 
animal, ainda que com especificidades nas diferentes espécies. Referiu‐se também que a famí‐
lia humana apresenta diferentes estruturas, cuja diversidade actual está ancorada em tempos 
históricos  remotos  e  diversos.  Por  último,  também  se  referiu  que  os  modos  de  organização 
familiar  são  flexíveis  o  que  permitiu  que  surgissem  e  consolidassem  novas  realidades.  Mas 
essas  realidades,  sejam  de  última  hora  ou  tenham  antecedentes  multisseculares,  são  tão 
diversas e heterogéneas que tem sentido perguntar‐se o que é que se entende por família, o 
que  é  que  há  de  comum  no  meio  desta  diversidade  e  heterogeneidade  que  parecem  ser  os 
traços que definem dos agrupamentos familiares humanos. 
  O  modelo  estereotipado  da  família  tradicional  é  um  agrupamento  nuclear  composto 
por um homem e uma mulher unidos pelo matrimónio, mais os filhos comuns, que vivem no 
mesmo espaço. O homem trabalha fora de casa para obter os meios de subsistência da família 
enquanto a mulher, em casa, cuida dos filhos. Mais tradicional, se é possível, é o modelo de 
família múltipla (a família dos pais e a dos filhos em conjunto) e o de família extensa (a família 
múltipla mais parentes colaterais), mas as análises históricas mostram que esses tipos de famí‐
lia não foram realidade em todo o ocidente, existindo, num mesmo país, zonas em que o habi‐
tual era a família nuclear e outras com predomínio de famílias múltiplas. A existência de um ou 
de  outro  modelo  dependeu  de  factores  como  o  sistema  de  herança  e  de  sucessão  predomi‐
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nantes em certas regiões ou o nível de pobreza das famílias que se viam obrigadas a acolher os 
filhos casados. 
  Se voltarmos ao tipo de família nuclear descrito no parágrafo anterior, podemos agora 
submetê‐lo a um processo de desconstrução que consiste em ir retirando à definição elemen‐
tos que antes se consideravam absolutos, mas agora são olhados como relativos: 
• o casamento não é necessário para podermos falar de família; deste modo, as uniões 
não matrimoniais ou consensuais dão lugar à formação de novas famílias; 
• pode faltar um dos progenitores, ficando então o outro sozinho com os filhos; tal é o 
caso  das  famílias  monoparentais,  nas  quais,  por  muitas  razões,  um  dos  progenitores 
(tipicamente a mãe) tem a seu cargo, de modo solitário, o cuidado dos descendentes; 
• os filhos do matrimónio são muitas vezes comuns, mas este não parece ser um traço 
de definição, pois os filhos podem chegar pela via da adopção, pela via das modernas 
técnicas de reprodução assistida ou de uniões anteriores; 
• a mãe, seja no contexto de uma família biparental ou monoparental, não tem de dedi‐
car‐se exclusivamente ao cuidado dos filhos, podendo desenvolver actividades laborais 
fora de casa; 
• o pai não tem de se limitar a ser um mero gerador de recursos de subsistência para a 
família, mas pode implicar‐se muito activamente no cuidado e na educação dos filhos; 
• o número de filhos reduziu‐se drasticamente até ao ponto de, em muitas famílias, só 
haver um; 
• alguns núcleos familiares dissolvem‐se como consequência de processos de separação 
e divórcio, sendo frequente a posterior união com um novo par em núcleos familiares 
reconstituídos. 
 
Após esta desconstrução, o que fica como núcleo básico do conceito de família é que 
se trata da união de pessoas que partilham um projecto vital de existência em comum que se 
deseja duradouro, no qual se geram fortes sentimentos de pertença, onde existe um compro‐
misso  pessoal  entre  os  seus  membros  e  se  estabelecem  relações  intensas  de  intimidade,  de 
reciprocidade e de dependência. 
Inicialmente, trata‐se de dois adultos que concretizam esses relações nos planos afec‐
tivo, sexual e relacional. O núcleo familiar torna‐se mais complexo quando surgem os filhos. O 
mais habitual é que neste núcleo haja mais do que um adulto e o mais frequente é que ambos 
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sejam  os  progenitores  das  crianças  a  seu  cargo,  mas  continuamos  a  falar  de  família  quando 
alguma dessas situações não existe. 
Curiosamente, os critérios que melhor definem o conceito de família são «inatingíveis» 
e estão relacionados com metas, motivações e sentimentos, características que, para a quali‐
dade da vida familiar e para as relações entre os seus membros, têm uma importância muito 
mais primordial do que o vínculo legal, as relações de consanguinidade, o número de membros 
ou  a  partilha  de  papéis.  Em  primeiro  lugar,  é  crucial  a  interdependência,  a  comunicação  e  a 
intimidade  dos  adultos  implicados.  Em  segundo  lugar,  a  relação  de  dependência  estável  de 
quem cuida e educa, por um lado, e de quem é cuidado e educado, por outro. E, em terceiro 
lugar,  que  essa  relação  está  baseada  num  compromisso  pessoal  de  longo  alcance  dos  pais 
entre si e dos pais com os filhos. 
Esta  concepção  de  família  parece  satisfatória  estando  o  nosso  interesse  centrado  na 
família como núcleo que facilita e promove o desenvolvimento dos adultos e das crianças nela 
implicados.  A  abordagem  da  família  sem  uma  análise  conceptual  suficientemente  elaborada 
pode dar lugar a uma perspectiva superficial e meramente descritiva. A família é uma entidade 
tão próxima e quotidiana para todos nós que pode dar‐se a falsa impressão de que, armados 
do nosso senso comum e de observações acidentais podemos compreendê‐la sem dificuldade. 
A realidade é que a família é um objecto de estudo complexo e dinâmico sobre o qual temos 
uma  série  de  preconceitos  que  dificultam  mais  do  que  facilitam  a  sua  análise  científica.  Um 
certo distanciamento e instrumentos teóricos de análise são, pois, precauções necessárias. 
 
 
4. FUNÇÕES DA FAMÍLIA 
 
Do ponto de vista dos filhos, a família é um contexto de desenvolvimento e socializa‐
ção. Mas, do ponto de vista dos pais, é um contexto de desenvolvimento e de realização pes‐
soal ligado à idade adulta e às etapas posteriores da vida. Tornar‐se adulto na família pressu‐
põe  o  estabelecimento  de  um  compromisso  de  relações  íntimas  e  privilegiadas  com,  pelo 
menos, outra pessoa. Quanto mais rica for a relação que se gera entre as duas pessoas mais 
numerosos e profundos serão os elementos de subjectividade postos em jogo, de maneira que 
não estamos a falar de uma unidade de subsistência e de reprodução, mas de um núcleo de 
existência em comum, de comunicação, de afecto, de intercâmbio sexual. 
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Quando consideramos os pais não só como promotores do desenvolvimento dos seus 
filhos, mas principalmente como pessoas que estão, elas próprias, num processo de desenvol‐
vimento, surgem uma série de funções da família: 

1) É um contexto de construção de pessoas adultas com determinada auto‐estima, sen‐
tido de si mesmo e que experimentam um certo nível de bem‐estar psicológico na vida 
quotidiana face a conflitos e situações stressantes. Grande parte deste bem‐estar está 
relacionada  com  a  qualidade  das  relações  de  vinculação  que  os  adultos  viveram  na 
infância das quais resultam margens de segurança e de confiança em si mesmos e nos 
outros. 
2) É um contexto onde se aprende a lidar com desafios, assim como a assumir respon‐
sabilidades e compromissos que orientam os adultos numa dimensão produtiva, plena 
de  realizações  e  integrada  no  meio  social.  A  família  é  um  espaço  onde  existe  uma 
variedade  de  oportunidades  para  crescer  e  desenvolver  os  recursos  pessoais e assim 
sair reforçado nos desafios da via. Também é um suporte motivacional para fazer fren‐
te ao futuro. 
3) É um contexto de encontro intergeracional onde os adultos ampliam o seu horizonte 
vital  construindo  uma  ponte  para  o  passado  (a  geração  dos  avós)  e  para  o  futuro  (a 
geração  dos  filhos).  A  principal  «matéria»  de  construção  e  transporte  entre  as  duas 
gerações são, por um lado, o afecto e, por outro, os valores que orientam a vida dos 
membros da família. Neste sentido, os avós podem ajudar os filhos na tarefa de educar 
os netos e também podem constituir um ponto de referência para que os filhos e os 
netos possam balizar a sua visão do mundo e beneficiar da sua sabedoria. 
4) É uma rede de apoio social para as diversas transições vitais que fazem parte da via do 
adulto:  procura  de  um  par,  de  trabalho,  de  casa,  de  novas  relações  sociais,  reforma, 
velhice, etc. a família é um núcleo que pode dar problemas e conflitos, mas também 
constitui um elemento de apoio perante as dificuldades que surgem fora da família e 
um ponto de encontro para resolver as tensões que surgem no seu interior. Neste sen‐
tido, a família pode ser um valor seguro que está sempre à mão quando tudo muda e 
está  em  perigo  o  sentido  de  continuidade  pessoal.  Também  pode  ser  uma  base  de 
apoio em caso de necessidades económicas, doenças, incapacidades físicas ou psíqui‐
cas, problemas de trabalho, etc. 
 
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Podemos complementar a reflexão sobre o que a vida familiar significa para os adultos 
com  algumas  referências  ao  que  significa  ser  pai  ou  mãe.  Basicamente,  três  aspectos  impor‐
tantes: 
 
1) Tornar‐se pai ou mãe significa pôr em marcha um projecto educativo vital que pressu‐
põe um longo processo que começa com a transição para a paternidade ou materni‐
dade, continua com as actividades de cuidado e de socialização das crianças pequenas, 
depois  com  o  suporte  aos  filhos  durante  a  adolescência  (e,  se  necessário,  durante  o 
prolongamento  da  adolescência),  depois  com  a  saída  dos  filhos  de  casa,  frequente‐
mente em direcção a uma nova formação e, finalmente, com um novo encontro com 
os filhos através dos netos. 
2) Tornar‐se em pai ou mãe significa entrar numa intensa implicação pessoal e emocio‐
nal que introduz uma nova dimensão derivada da profunda assimetria existentes entre 
as capacidades adultas e infantis, por um lado, e o investimento de ilusão e de esforço 
pessoal postos ao serviço do projecto educativo acima referido. 
3) Ser pai ou mãe significa encher de conteúdo esse projecto educativo durante todo o 
processo de desenvolvimento e de educação dos filhos. Esta tarefa implica uma série 
de funções que a família assume e que estão, em grande medida, nas mãos dos pais e 
que são sua responsabilidade. 
 
As funções básicas que a família assume relativamente aos filhos, particularmente até 
ao  momento  em  que  eles  estão  em  condições  de  se  desenvolverem  independentemente  da 
sua influência directa são: 
 
1) Assegurar a sobrevivência dos filhos, o seu adequado crescimento e socialização dos 
comportamentos  básicos  de  comunicação,  diálogo  e  simbolização.  Esta  função  vai 
para além da sobrevivência física e alarga‐se a aspectos que estão em jogo fundamen‐
talmente durante os primeiros anos, e que permitem tornar o bebé num ser humano. 
2) Dar aos filhos um clima de afecto e de apoio sem os quais o desenvolvimento psíquico 
saudável não é possível.  O clima de afecto implica o estabelecimento  de relações de 
vinculação,  um  sentimento  de  relação  privilegiada  e  compromisso  emocional.  Isto 
permite  que  a  família  se  constitua  como  um  ponto  de  referência  psicológico  para  as 
crianças que nela crescem. 
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3) Dar às crianças a estimulação que lhes permita tornarem‐se seres capazes de se rela‐
cionarem  competentemente  com o seu meio físico e social, assim como a responde‐
rem às exigências que se colocam no processo de adaptação ao mundo. Esta estimula‐
ção  advém  de  fontes  diferentes,  mas  interrelacionadas:  a  organização  da  vida  quoti‐
diana e do ambiente em que as crianças crescem e as interacções directas através das 
quais os pais facilitam e fomentam o desenvolvimento dos filhos. 
4) Tomar decisões relativamente à abertura a outros contextos educativos que vão parti‐
lhar com a família a tarefa da educação. Desde os anos 70 do século passado começou 
a  verificar‐se  que  é  típico  das  sociedades  modernas  uma  profissionalização  de,  pelo 
menos,  uma  boa  parte  das  tarefas  de  educação  dos  mais  novos.  Os  pais  jovens  sen‐
tem‐se inseguros para levar a cabo essa tarefa sozinhos, não confiam ou não podem 
confiá‐la aos mais velhos e, além disso, a escolarização nessas sociedades é um fenó‐
meno  obrigatório  e  cuja  influência  sobre  as  crianças  tende  a  prolongar‐se  por  mais 
tempo.  Alguns  autores  mostraram  que  a  função  desempenhada  pela  família  no  pro‐
cesso  de  educação  e  de  socialização  dos  mais  novos  tem  vindo  a  diminuir  tanto  em 
quantidade como em qualidade. Paralelamente, produziu‐se um aumento da influên‐
cia de outras instâncias educativas, das quais a escola, sem ser a única, é a mais visível 
e, provavelmente, a mais importante. Até certo ponto, os pais escolhem quando é que 
a criança vai para outro espaço educativo extra‐familiar, que espaço e durante quanto 
tempo. Neste sentido, a família actua como uma chave que abre as portas de outros 
contextos de desenvolvimento complementares. 
 
 
5. FACTORES DE PROTECÇÃO E DE RISCO NA VIDA FAMILIAR   
 
  Vamos apresentar agora algumas reflexões sobre os elementos de tensão e de protec‐
ção que se projectam sobre a família na época actual. Para tal, parece útil utilizar a análise de 
Bronfenbrenner  (1979)  sobre  a  ecologia  do  desenvolvimento  humano.  Este  autor  define  o 
desenvolvimento  humano  como  um  processo  marcado  por  sistemas  de  influência  que  vão 
desde as mais próximas às mais distantes do indivíduo, sistemas que configuram e definem o 
contexto ecológico em que o desenvolvimento tem lugar. A sua análise é importante para des‐
crever os factores de protecção e de risco da família, tendo em conta todas as esferas possíveis 
de influência que convergem sobre o espaço ecológico familiar e os seus membros. 
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  Segundo Bronfenbrenner existem quatro tipos de sistemas que têm uma relação inclu‐
siva entre si: o macrossistema, o exossistema, o mesossistema e o microssistema.  
O macrossistema é o sistema mais distante relativamente ao indivíduo já que inclui os 
valores culturais, as crenças, as situações, os acontecimentos históricos que definem a comu‐
nidade em que vive e que podem afectar os outros três sistemas ecológicos (por exemplo, os 
preconceitos sexistas, o valor dado ao trabalho, um período de depressão económica, etc.). O 
exossistema compreende as estruturas sociais formais e informais que, ainda que não conte‐
nham  a  pessoa  em  desenvolvimento,  influem  e  delimitam  o  que  tem  lugar  no  seu  ambiente 
mais próximo (a família extensa, as condições e experiências laborais dos adultos, as amizades, 
as relações de vizinhança, etc.). O mesossistema refere‐se ao conjunto de relações entre dois 
ou  mais  microssistemas  nos  quais  a  pessoa  em  desenvolvimento  participa  de  forma  activa 
(relações família‐escola, por exemplo). Por último, o microssistema é o sistema ecológico mais 
próximo  já  que  compreende  o  conjunto  de  relações  da  pessoa  em  desenvolvimento  e  o 
ambiente  imediato  em  que  se  desenvolve  (a  família  e  a  escola,  por  exemplo).  Em  primeiro 
lugar vamos analisar os factores de risco existentes nos quatro sistemas que acabámos de des‐
crever, ocupando‐nos, depois, dos factores de protecção da família. 
 
Os factores de risco e de protecção presentes no macrossistema são muito variados. 
Muitos deles podem resumir‐se na expressão de Garbarino (1995) que afirma que as famílias 
do fim do século XX vivem num ambiente social tóxico. São quatro os principais elementos de 
toxicidade ambiental: 
• a televisão e a sua função na transmissão e de valorização da violência como recurso, 
assim  como  o  seu  papel  de  intruso  na  vida  doméstica,  um  papel  que  inibe  ou  inter‐
rompe a comunicação e a realização de actividades conjuntas; 
• O  fenómeno  a  que  alguns  chamaram  «o  final  da  infância»  para  referir  o  facto  de  o 
mundo das crianças ser cada vez menos um espaço protegido das tensões e violências 
do mundo dos adultos, cada vez mais invadido por comportamentos e formas de lin‐
guagem que estão longe do velho tópico da idade da inocência; 
• As  tensões  sociais  e  económicas  relacionadas  com  a  pobreza  e  o  desemprego,  que 
criam cada vez mais uma sociedade dualizada, dividida entre os que têm e os que não 
têm, com uma pobreza selectiva associada aos sectores sociais mais vulneráveis; 
• a insuficiência dos serviços de apoio comunitário, a carência generalizada de recursos 
sociais de tipo lúdico e cultural, a escassez de espaços de relação e brincadeira devi‐
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damente  protegidos,  etc.  factos  que  são  particularmente  problemáticos  nas  zonas 
mais desfavorecidas. 
 
Fenómenos contemporâneos como o aumento da violência (não só entre adultos, mas 
também a violência dirigida especificamente contra as crianças), as crescentes tensões sociais, 
as  graves  dificuldades  económicas  que  muitas  famílias  sentem,  o  consumo  abusivo  de  subs‐
tâncias que alteram os comportamentos e as tensões que em seu redor se geram são elemen‐
tos que fazem parte da cultura ocidental no fim do século XX. Para além disso, os grupos de 
risco nem sempre encontram programas de apoio, de prevenção e de tratamento suficientes, 
como se tudo se reduzisse ao âmbito da responsabilidade ou tratamento individual. 
  A  estes  fenómenos  é  importante  acrescentar  como  elemento  negativo  o  relativismo 
pós‐moderno que considera que tudo é igualmente questionável e que não há realidades ou 
verdades que possam sustentar‐se como princípios básicos do pensamento e da organização 
social e familiar; como se fosse o mesmo crescer num ambiente familiar ou noutro, como se 
fosse a mesma coisa ter estabilidade familiar ou não a ter, como se, do ponto de vista evoluti‐
vo, fosse igualmente positivo aprender na família atitudes de cooperação e de reciprocidade 
com os outros ou atitudes de oposição e de competição. 
  Naturalmente  que  muitas  das  tensões  e  dos  factores  de  risco  do  macrossistema  se 
reflectem no exossistema, ou seja, nos contextos que os pais frequentam mas os filhos não, e 
que afectam a vida familiar. Basta pensar nas tensões que os pais podem vivenciar no traba‐
lho,  na  necessidade  de  dedicar  mais  tempo  e  energia  à  actividade  laboral,  em  detrimento, 
muitas vezes, do tempo para a vida familiar. Ainda não está muito generalizado, entre nós, o 
fenómeno dos «meninos de chaveiro» que são uma realidade em muitos países nos quais os 
progenitores trabalham a tempo inteiro, todo o dia, precisando de cuidados alternativos para 
as crianças quando não estão na escola, de forma que a criança deixa a casa vazia, quando sai 
de manhã e, ao voltar da escola, aquece a comida no microondas e acende a televisão. 
  Relativamente  ao  mesossistema,  o  principal  problema  que  parece  preocupante  é  a 
falta de ligação que existe habitualmente entre os diferentes microssistemas nos quais a crian‐
ça participa, particularmente naqueles em que passa mais tempo, a família e a escola. Existe 
ainda  entre  nós  uma  cultura  muito  pobre  de  co‐responsabilização  e  de  comunicação  entre 
ambos os contextos; quando a criança está na escola, os pais fazem uma completa delegação 
de funções nos professores; quando a criança está em casa, a escola fica longe e ausente. Des‐
ta  desconexão  surgem  muitos  preconceitos  que  não  são  benéficos  para  a  criança.  Outro 
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exemplo de desconexão entre microssistemas afecta as relações da família com os amigos dos 
filhos. Os pais queixam‐se muitas vezes de amizades pouco recomendáveis dos filhos sem per‐
ceberem  que  a  escolha  dos  amigos  é  modelada  pelo  clima  relacional  na  sua  própria  família; 
quando este clima é hostil e frustrante para os filhos, estes procuram outros contextos de rela‐
ção  que  mantenham  valores  opostos  aos  da  sua  família,  podendo  então  relacionar‐se  com 
grupos de pares «problemáticos». 
  Por fim, temos os factores de risco ou de tensão no microssistema. A este nível pode‐
mos  fazer  referência  às  confusões  e  contradições  que  frequentemente  se  encontram  nas 
ideias  e  crenças  dos  pais  a  propósito  dos  filhos  e  da  sua  educação  e  nos  comportamentos 
paradoxais que daí resultam.  
Neste mesmo sentido, referem‐se os sentimentos de incompetência ou de impotência 
que os pais podem sentir face às crianças e à sua educação gerados por vezes por uma cultura 
dominada  por  «especialistas»  que  transmitem  às  famílias  mensagens  pouco  animadoras  da 
confiança nas suas próprias capacidades, como se, só depois de um doutoramento em psicolo‐
gia do desenvolvimento fossem capazes de lidar com as questões levantadas pela educação de 
uma criança.  
Um último exemplo de factores de risco são as tensões familiares que acabam por tor‐
nar irrespirável a vida em casa, ou acabam mesmo por desorganizá‐la ou rompê‐la. Exemplos 
de tensões ou de consequências dessas tensões são os maus‐tratos às crianças. Nem sempre 
os problemas vêm do exterior. Algumas vezes originam‐se no seio da família como é o caso da 
existência de um criança com necessidades especiais de educação devido a alguma incapaci‐
dade  ou  deficiência,  em  que  os  pais  têm  de  fazer  frente  a  uma  série  de  preocupações  e  de 
circunstâncias que os põem totalmente à prova. 
 
No entanto, em cada um dos sistemas que acabámos de analisar existem também fac‐
tores  de  protecção  de  tensões,  alguns  dos  quais  estão  mais  desenvolvidos  do  que  outros  na 
nossa realidade familiar e social. 
Existem  no  macrossistema  elementos  que  são  factores  importantes  de  protecção  da 
família e das relações no seu interior. Para começar temos uma valorização positiva da família 
e  da  vida  familiar.  A  família  tem  um  papel  destacado  na  organização  da  vida  quotidiana  das 
crianças  e  a  sua  valorização  é  importante.  Não  há  dúvida  de  que  a  superação  de  formas  de 
relação familiar rígidas e baseadas unicamente no princípio da autoridade está na origem de 
uma realidade familiar que parece adaptar‐se bem ao desafio que coloca, por exemplo, a pro‐
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longada  permanência  no  seio  da  família  dos  filhos  até  perto  da  terceira  década  de  vida.  Por 
outro lado, a nossa cultura valoriza muito as crianças e a relação com eles; e se acontece entre 
nós aquilo que se designou uma privatização da infância (as crianças são assunto e responsabi‐
lidade dos seus pais, não da comunidade), não há dúvida de que continua a haver um senti‐
mento de responsabilidade partilhada relativamente aos mais pequenos. 
Outro factor que deve ser referenciado é a estabilidade da família, e embora pareça o 
contrário, as taxas de separação e de divórcio mantêm‐se a níveis relativamente baixos. Feliz‐
mente  a  separação  e  o  divórcio  são  possíveis  naqueles  casos  em  que  as  coisas  não  correm 
bem, pelo que a família não é obrigada, por força de lei, a permanecer unida quando no seu 
seio existe uma ruptura. Assim, parece positivo que a sociedade vá, pouco a pouco, desenvol‐
vendo atitudes mais solidárias, de compreensão e de tolerância face às consequências de uma 
ruptura. 
No que se refere ao mesossistema, só nos últimos anos se têm desenvolvido serviços 
de apoio às famílias que podem ser‐lhes úteis na educação dos filhos. Embora a sua generali‐
zação pareça ainda insuficiente e não chegue sempre a quem mais deles necessita têm surgido 
serviços de aconselhamento e apoio familiar que se situam na intersecção do sistema familiar 
com  o  sistema  escolar,  com  os  serviços  de  saúde,  com  os  serviços  comunitários,  etc.,  razão 
pela qual nos parecem situados no âmbito do mesossistema. Os dados disponíveis indicam que 
quando  estes  serviços  estão  bem  concebidos,  têm  objectivos  concretos  e  adoptam  métodos 
de  trabalho  adequados,  têm  um  impacto  muito  positivo.  A  gama  de  possibilidades  é  muito 
extensa e é desejável que continuem a desenvolver‐se actividades deste tipo especialmente as 
dirigidas  às  famílias  que  têm  filhos  com  necessidades  especiais  de  educação  e  aos  sectores 
sociais  que,  pelos  seus  próprios  meios  e  iniciativa,  não  acederiam  a  elas,  particularmente  as 
actividades dirigidas a grupos de risco específicos. Isto sem esquecer as tarefas de prevenção e 
de educação que podem desenvolver‐se em programas mais gerais de sensibilização à popula‐
ção. Deste modo, podemos considerar, por exemplo, programas ou redes de apoio à transição 
para a paternidade, de apoio aos pais nas suas tarefas de socialização, de cooperação da esco‐
la com a família. 
Dos elementos do exossistema, um dos que parece ter mais eficácia como protector e 
amortecedor de tensões é a rede informal de apoio à família constituída pela família extensa e 
pela rede de amigos e vizinhos. O contacto regular da família com os avós é tanto mais impor‐
tante  quanto  estes  podem  ser  uma  alternativa  de  cuidado  e  educação  dos  filhos  pequenos 
durante as horas em que os pais estão a trabalhar. Este apoio pode ser crucial quando as cir‐
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cunstâncias familiares são mais difíceis como, por exemplo, no caso de uma gravidez na ado‐
lescência. Claro que este apoio familiar é importante não só para os pais que precisam da aju‐
da dos avós, mas também, chegado o momento, para os avós que precisam do apoio dos seus 
filhos quando a doença ou a solidão constituem uma ameaça. 
No mesmo sentido, a rede de apoio constituída por amigos e vizinhos é de grande uti‐
lidade para a família como suporte emocional e instrumental, sem falar na sua utilidade como 
fonte  de  informação,  conhecimentos,  etc.  É  certo  que  estas  redes  de  apoio  se  têm  vindo  a 
debilitar  como  consequência  do  estilo  de  vida  das  zonas  urbanas  e  do  isolamento  social  da 
vida contemporânea. 
O mais importante elemento de protecção do microssistema é, sem dúvida, o afecto 
que une os membros da família através de relações de vinculação mútua. A drástica redução 
do número de filhos significa, entre outra coisas, que os filhos são cada vez menos consequên‐
cia do acaso e do imprevisto e cada vez mais consequência do desejo e da premeditação. No 
entanto, nada mostra que agora os pais gostam mais dos filhos do que antes. As coisas tam‐
bém não são iguais no que se refere à adolescência. Tudo indica que a ruptura geracional de 
que tanto se falava há 30 anos atrás desapareceu como fenómeno generalizado das relações 
dos  pais  com  os  filhos.  Embora  a  enorme  projecção  social  e  mediática  dos  comportamentos 
problemáticos de alguns adolescentes e jovens nos leve a crer que existe uma maior conflitua‐
lidade,  tudo  parece  indicar  que  nunca  na  história  recente  as  relações  dos  pais  com  os  filhos 
adolescentes e jovens tenham sido tão harmoniosas como na actualidade. Aquilo que parece é 
que a convivência e as boas relações entre pais e filhos prolongam‐se consideravelmente mais 
do  que  há  algumas  décadas.  Dada  a  incerteza  relativamente  ao  futuro  que  os  jovens  experi‐
mentam no acesso ao seu papel de adultos, a protecção que a família exerce é muito impor‐
tante. 
Parte da explicação dos factos a que nos referimos relaciona‐se com o incremento de 
estilos de vida familiar mais igualitários e participativos e com um decréscimo de atitudes e de 
comportamentos  mais  rígidos,  autoritários  e  segregacionistas.  Ainda  que  as  mulheres  conti‐
nuem a suportar uma grande parte do peso da vida familiar, ou seja, ainda que o caminho que 
nos falta percorrer para a igualdade seja longo, não há dúvida que se têm produzido avanços 
significativos. 
Como  já  se  disse,  o  microssistema  familiar  parece  bastante  estável  entre  nós,  o  que 
constitui um elemento de protecção e de amortecimento de tensões. E se é bem verdade que 
se  delega  cada  vez  mais  funções  e  responsabilidades  noutras  instituições  (na  escola,  por 
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exemplo),  o  facto  é  que  a  família  conserva  um  forte  sentimento  de  responsabilidade.  Este 
compromisso não é limitado aos primeiros anos, mas prolongado no tempo e não só em rela‐
ção  aos  filhos  como  em  relação  à  geração  precedente  e,  muitas  vezes,  face  à  posterior,  os 
netos. 
Como consequência, se são numerosos e importantes os factores de risco e de tensão 
que gravitam sobre a família, também o são os factores de protecção de que a família dispõe. 
A forma como, em cada família concreta, estão presentes e actuam todos estes factores defini‐
rá a qualidade das relações no seu interior, a projecção no futuro do grupo familiar em conjun‐
to e de cada um dos seus membros em particular, os conteúdos concretos da vida familiar e 
das suas relações com o exterior. 
 
 
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Traduzido e adaptado por Angelina Costa (2008) de Rodrigo, M. e Palácios, J. (1998). Familia y 
desarrollo humano. Madrid: Alianza Editorial [pp. 27‐44] 
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A RESILIÊNCIA COMO CAPACIDADE DE (RE) CONSTRUÇÃO


HUMANA
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Este texto é uma adaptação de textos de vários autores:
• Anaut, M. (2005). A Resiliência. Ultrapassar os traumatismos. Lisboa: Climepsi.

• Simões, M. C. (2007). Comportamentos de Risco na Adolescência. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, pp. 91-94, 146-148.
• Cyrulnik, B. (2003). Resiliência. Essa inaudita capacidade de construção humana. Lisboa:
Instituto Piaget, pp. 19, 26-29, 223-228.
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EXTRACTO 1: Adaptado de Anaut, M. (2005). A Resiliência. Ultrapassar os traumatismos.
Lisboa: Climepsi.

Muitas mudanças ocorrem na vida das pessoas. Muitas delas podem constituir facto‐
res de stress e, como tal, factores de risco para um bom desenvolvimento. Mas muitas dessas 
mudanças parecem também constituir desafios, para os quais se reúnem os recursos internos 
e externos no sentido de os ultrapassar com sucesso. 
Todas as pessoas possuem mais ou menos recursos, pessoais e envolvimentais, que os 
defendem dos problemas. Estes recursos são colocados à prova em situações de stress, adver‐
sidade  ou  risco  que  «precipitam»  as  pessoas  para  o  encontro  com  situações  negativas.  Nem 
sempre  este  encontro  é  uma  realidade.  Quando  assim  acontece,  diz‐se  que  tais  pessoas  são 
resilientes.  Tavares  (2001:57)  refere‐se  à  pessoa  resiliente  como  «…  alguém  flexível,  aberto, 
criativo,  livre,  inteligente,  emocionalmente  equilibrado,  autêntico,  empático,  disponível, 
comunicativo, capaz de resistir às mais variadas situações, mais ou menos complicadas e difí‐
ceis, sem partir, sem perder o equilíbrio, por mais adversas que essas situações se lhe apresen‐
tem». 
Uma  das  questões  que  levantou  o  interesse  por  esta  área  de  estudo  relativamente 
recente  foi  precisamente  o  facto  de  indivíduos  perante  situações  de  risco  não  apresentarem 
sinais de desajustamento, como à partida era esperado, ou um desajustamento a longo prazo 
ou para toda a vida. A resiliência tornou‐se assim um modelo de análise abrangente, que apre‐
senta  um  enfoque  especial  para  os  factores  de  protecção  que,  em  condições  adversas  a  um 
desenvolvimento saudável, conseguem inverter o percurso de factores de risco. 
De acordo com a sua origem etimológica (do latim resillire), resiliência quer dizer «sal‐
tar  para  trás».  Segundo  Garmezy  (1993),  por  definição  a  resiliência  constitui  uma  qualidade 
elástica, que envolve a capacidade de distender sob o efeito do stress e depois voltar ao nor‐
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mal. A resiliência pode assim ser conceptualizada como um tipo de plasticidade ou de flexibili‐
dade.  
Um dos princípios da definição de resiliência é o que tem de haver risco ou experiên‐
cias stressantes num determinado período de vida da pessoa. Alguns autores colocam nas suas 
definições  de  resiliência  uma  ênfase  especial  nas  consequências  perante  situações  de  risco. 
Por exemplo, Rutter (1987) define resiliência como o resultado de processos de protecção que 
permitem ao indivíduo lidar com sucesso com as adversidades. Segundo Masten (1999), a resi‐
liência refere‐se à apresentação de comportamentos desejados, em situações em que o fun‐
cionamento  adaptativo ou o desenvolvimento estão significativamente ameaçados por acon‐
tecimentos ou situações de vida adversas. 
Outros  autores  como  Mangham  e  colaboradores  (1995)  definem  resiliência  como  «a 
capacidade que os indivíduos e sistemas (famílias, grupos e comunidades) têm para lidar com 
sucesso com adversidades ou riscos significativos. Esta capacidade desenvolve‐se e modifica‐se 
ao longo do tempo, é aumentada por factores de protecção do indivíduo, sistema ou envolvi‐
mento, e contribui para a manutenção ou promoção da saúde». Esta definição salienta o facto 
da  resiliência  não  se  tratar  de  um  traço  fixo  e  estável  ao  longo  do  tempo,  mas  sim  sujeito  a 
mudança em função das variações nos factores de risco e de protecção. A resiliência é assim 
um processo dinâmico que se desenvolve a partir das relações que se estabelecem com o meio 
ao longo da vida, pelo que ser classificado de resiliente num determinado momento não impli‐
ca que essa pessoa continue a ter um bom ajustamento a partir daí e/ou para sempre. 
O dinamismo associado ao conceito de resiliência deixa em aberto a possibilidade de 
poder promover factores a ela associados. A resiliência é geralmente vista como um balanço 
entre o stress e a adversidade por um lado, e a capacidade para lidar com ela e a disponibilida‐
de  de  suporte  por  outro.  Para  haver  resiliência  é  necessário  um  equilíbrio  entre  factores  de 
risco e de protecção, isto é, se existirem mais factores de risco também são necessários mais 
factores de protecção para os compensar. E são precisamente esses factores de protecção que 
se podem desenvolver, estimular, ou melhorar. Sendo a resiliência um processo positivo que 
conduz à saúde, parece extremamente importante concentrar esforços na promoção de recur‐
sos internos e externos a ela aliados. 
Grotberg (1997) coloca um enfoque especial no sucesso. Segundo esta autora, a resi‐
liência permite, em certas situações, atingir níveis superiores de desenvolvimento, comparati‐
vamente  com  aquele  que  existia  antes  da  ocorrência  do  problema.  A  resiliência  seria  então 
uma  capacidade  que  as  pessoas  têm  para  suportar,  superar  e,  possivelmente,  sair  «superio‐
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res» de experiências de adversidade. Ela pode ser encontrada em pessoas, grupos ou comuni‐
dades e pode tornar mais forte a vida dos que são resilientes. Um outro aspecto inovador des‐
ta concepção é a ideia de que a resiliência pode ser promovida não necessariamente por causa 
da adversidade, mas como antecipação a adversidades inevitáveis. 
A perspectiva de alguns autores de que as pessoas resilientes teriam uma resistência 
interna, uma invulnerabilidade como sinónimo de inatingíveis, sobreviventes, heróis, pessoas 
modelo tem sido contestada à medida que o conceito é aprofundado. A perspectiva que pre‐
valece, hoje em dia, é a de que a resiliência está em todos nós, cidadãos comuns, pessoas ditas 
«normais».  A  resiliência  é  entendida  hoje  como  um  factor  de  equilíbrio  pessoal  e  social  que 
permite ter um funcionamento e desenvolvimento adaptados. 
O que é facto é que este conceito permitiu mudar o foco da nossa atenção de aspectos 
negativos como o risco, a doença, a deficiência, para aspectos positivos como os recursos indi‐
viduais e comunitários. A investigação e a literatura produzidas nesta área contribuíram signifi‐
cativamente  para  uma  evolução  na  área  da  saúde  e  do  desenvolvimento  através  de  quatro 
formas. Primeiro, através da produção de conhecimento na área dos recursos que as pessoas 
têm disponíveis para fazer face à adversidade, a nível individual, familiar e comunitário. Con‐
tribuiu também para que ciências como a psicologia e a psiquiatria adoptassem perspectivas 
mais  integradas.  Estimulou  ainda  a  investigação  em  áreas  como  a  epidemiologia,  sociologia, 
educação,  psicologia  e  em  áreas  mais  específicas  como  a  do  consumo  de  substâncias  e  do 
comportamento desviante. Por último, contribuiu para que o enfoque nos factores de protec‐
ção passasse também para a área de prevenção, destacando‐se a promoção de competências 
e mudando a ideia de que «nada se pode fazer». 
Um dos factores necessariamente  presentes na resiliência é o risco. A resiliência tra‐
duz‐se na adaptação perante o risco. O risco pode ser encontrado em vários domínios: pessoal, 
familiar  ou  comunitário.  A  nível  pessoal  encontram‐se  determinadas  características  que,  em 
interacção com o envolvimento, podem precipitar as pessoas para o perigo. O risco também 
pode  estar  num  envolvimento  próximo,  nomeadamente  na  família,  nos  amigos  ou  no  local 
onde se vive. O risco pode ainda ter origem em acontecimentos de vida stressantes gerados 
nos contextos significativos para a pessoa. 
Outros factores aliados à resiliência são os factores de protecção. Tal como no risco, 
também estes factores podem ser individuais, familiares ou comunitários. Dentro dos factores 
individuais  encontram‐se  as  competências  cognitivas,  emocionais  e  relacionais.  Estas  compe‐
tências são fundamentais para actuar directamente sobre o risco, mas também para o recru‐
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tamento de factores de protecção na família e na comunidade. Na família destaca‐se a impor‐
tância  do  suporte  afectivo  e  das  boas  práticas  parentais.  Na  comunidade  destacam‐se,  para 
além  das  oportunidades  de  participação  nas  actividades  comunitárias,  o  papel  fundamental 
que a escola tem na promoção de factores de resiliência. 
Os factores de risco e de protecção actuam através de diversos mecanismos que pro‐
duzem resultados mais ou menos favoráveis para o ajustamento  do indivíduo. Estes factores 
podem  cruzar  as  suas  trajectórias  ou,  por  outro  lado,  actuar  de  forma  completamente  inde‐
pendente. Os riscos podem mesmo não chegar a actuar, no caso de serem prevenidos. 

EXTRACTO 2: Adaptado de Simões, M. C. (2007). Comportamentos de Risco na Adoles-


cência. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 91-94, 146-148.

O  domínio  escolar  é  considerado  como  um  dos  três  domínios  importantes  para  o 
desenvolvimento da resiliência em ligação com o meio ambiente (sendo os outros dois a famí‐
lia e a comunidade de pertença ou sociedade). 
O contexto escolar influencia a resiliência segundo duas dimensões: na medida em que 
pode  revelar  a  resiliência  (para  os  alunos  bem  sucedidos  na  sua  escolaridade  apesar  de  um 
meio desfavorável ou inadequado, e muitas vezes também porque a sua cultura de origem é 
considerada pobre ou diferente); e na medida em que a escolaridade pode introduzir elemen‐
tos de estabilidade relacional e eventualmente afectiva, susceptíveis de favorecer o processo 
resiliente.  
  O domínio escolar parece ser um dos lugares privilegiados de emergência e de estimu‐
lação  da  resiliência  que  se  revela  particularmente  importante  para  os  jovens  oriundos  de 
meios desfavorecidos. Rutter estudou este aspecto e concluiu que, em certas circunstâncias, o 
meio  escolar,  por  um  lado,  através  do  apoio  dos  pares,  e  por  outro,  pelas  identificações  e 
outras formas de apoio encontradas junto dos adultos (professores, educadores, auxiliares…), 
pode atenuar as falhas familiares originais. 
  Os adultos na escola contribuem para o processo resiliente dos alunos na medida em 
que se tornam (por vezes sem o saber) suportes de resiliência. Isto porque representam uma 
figura de identificação e de apoio. Muitos autores referem a importância dos encontros signifi‐
cantes  ou  encontros  fundadores  que  vão  ajudar  os  jovens  a  encontrar  uma  saída  socializada 
para as dificuldades que se lhes deparam. 
23

Os domínios escolar e educativo fornecem figuras não apenas susceptíveis de substi‐
tuir  as  falhas  familiares  (por  exemplo,  as  relações  familiares  carenciadas),  mas  que  também 
podem contribuir para modificar os estilos de vinculação inicialmente estabelecidos, de modo 
insecurizante,  com  as  primeiras  figuras  de  vinculação.  Nesta  óptica,  as  primeiras  relações  da 
criança não seriam determinantes em todos os casos, podendo ser compensadas ou reelabo‐
radas  através  de  relações  extra‐familiares,  nomeadamente  no  quadro  escolar  ou  mais  tarde, 
com um cônjuge. 
Na perspectiva de uma resiliência potencialmente presente em todos os indivíduos, o 
domínio escolar e educativo acaba por ser um lugar de possível elaboração da resiliência em 
crianças e adolescentes. A mediação das relações ligadas à escolaridade (que pode eventual‐
mente passar pela reescolarização) faz parte dos elementos‐chave dos programas de interven‐
ção  actualmente  postos  em  prática  com  o  objectivo  de  acompanhar  e  estimular  a  resiliência 
individual. O êxito escolar, ou pelo menos a experiência de êxitos escolares, mesmo que não 
seja  um  êxito  global,  pode  reforçar  o sentimento  de  eficácia  e  de  competência  da  criança,  o 
que irá favorecer a sua adaptação mais global (escolar e social). 
  A abordagem da resiliência no domínio escolar e educativo pode trazer novos esclare‐
cimentos  para  as  questões  ligadas  ao  insucesso  escolar,  pondo  em  causa  as  abordagens 
baseadas nos determinantes do sucesso e do insucesso escolares para além da constatação da 
correlação entre o êxito escolar e o meio sociocultural desfavorecido. 

EXTRACTO 3: Adaptado de Cyrulnik, B. (2003). Resiliência. Essa inaudita capacidade de


construção humana. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 19, 26-29, 223-228.

O simples facto de constatar que é possível safar‐se, convida‐nos a abordar o proble‐
ma de uma outra maneira. Até agora, a questão era lógica e fácil. Quando a existência sofre 
uma  grande  pancada,  podemos  avaliar  as  consequências  físicas,  psicológicas,  afectivas  e 
sociais. A maçada desta reflexão lógica é que se inspira no modelo dos físicos que está na ori‐
gem  de  toda a atitude científica: se aumentar a temperatura, a água  começa a ferver; se  eu 
bater nesta barra de ferro, dela quebra acima de uma certa pressão. Esta forma de pensar a 
existência humana forneceu, amplamente, as provas da sua validade. Anna Freud, durante a 
guerra  de  1940,  ao  recolher  em  Londres  crianças  cujos  pais  tinham  sido  massacrados  nos 
bombardeamentos,  já  observara  a  importância  das  perturbações  do  desenvolvimento.  René 
Spitz, na mesma época, descrevera como as crianças, privadas de suportes afectivos, paravam 
de  se  desenvolver.  Porém,  é  John  Bowlby  quem,  a  partir  dos  anos  50,  provocara  as  maiores 
24

paixões ao propor que o paradigma da relação entre a mãe e o filho fosse definido em todos 
os  seres  vivos,  humanos  e  animais  pelo  conceito  de  afeição.  Nessa  época,  só  a  Organização 
Mundial de Saúde ousara dar uma pequena bolsa de investigação para pôr à prova esta sur‐
preendente hipótese. No contexto cultural do momento, o crescimento das crianças era pen‐
sado com o auxílio de metáforas vegetais: se uma criança tem um bom crescimento, é porque 
é de boa cepa! Esta metáfora justificava as decisões educativas dos adultos. As boas cepas não 
precisam verdadeiramente de famílias nem  de sociedades para  se desenvolverem.  O bom ar 
do  campo  e  uma  boa  alimentação  bastam.  Quanto  às  más  cepas,  é  preciso  arrancá‐las  para 
que a sociedade volte a ser virtuosa. Com estes estereótipos culturais, o racismo era fácil de 
pensar  e  de  justificar.  A  antropóloga  Margaret  Mead  opunha‐se  à  hipótese  de  Bowlby  afir‐
mando  que  as  crianças  não  precisavam  de  afectividade  para  crescerem  e  que  os  alegados 
estados de carência estavam sobretudo ligados ao desejo de impedir as mulheres de trabalha‐
rem. 
No entanto, estas causalidades lineares são incontestáveis: maltratar uma criança não 
a  torna  feliz.  O  seu  desenvolvimento  detém‐se  quando  é  abandonada.  Esta  atitude,  que  nos 
parece evidente hoje em dia, provocou a incredulidade e a indiferença há umas décadas atrás. 
Os  estudos  sobre  a  resiliência  não  contrariam  estes  estudos  pioneiros.  Actualmente,  parece 
importante  introduzir  a  longa  duração  nas  nossas  observações,  porque  os  determinismos 
humanos  são  de  curto  prazo.  Podem  verificar‐se  causalidades  lineares,  mas  apenas  na  curta 
duração.  Quanto  mais  longo  for  o  tempo  das  nossas  observações,  mais  a  intervenção  de 
outros determinismos pode modificar os efeitos. 
Passamos o tempo a lutar contra os fenómenos da  Natureza, e chamamos «cultura» 
ao nosso trabalho de libertação. Por que razão, no Homem, um determinismo há‐de ser uma 
fatalidade? Uma pancada do destino é uma ferida que se inscreve na nossa história, não é um 
destino. 
Esta nova atitude perturba as nossas concepções da psicologia do desenvolvimento, os 
nossos modos de ensino e de investigação, até a nossa própria visão da existência. Foi neces‐
sário avaliar os efeitos das pancadas, é preciso agora analisar os factores que permitem que o 
desenvolvimento retome o seu curso. A história das ideias em psicologia é feita no sentido do 
orgânico  para  o  «impalpável».  Há  ainda  entre  nós  quem  pense  que  o  sofrimento  psíquico  é 
sinal  de  fraqueza,  uma  degenerescência.  Se  se  pensar  que  só  os  homens  de  boa  qualidade 
podem superar os golpes do destino, ao passo que os cérebros fracos sucumbem, isto conduz‐
nos a uma atitude terapêutica de reforço do cérebro baseada em substâncias químicas. Porém, 
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se se pensar que um homem só pode desenvolver‐se ligando‐se a outro, então a atitude será a 
descoberta tanto dos recursos internos do indivíduo como dos recursos externos que podem 
ser mobilizados em seu redor. 
O simples facto de constatar que um certo número de crianças resiste às provações e, 
por vezes mesmo, as utilizam para se tornarem mais humanas, não pode explicar‐se em ter‐
mos de super‐homens ou de invulnerabilidade, mas associando a aquisição de recursos inter‐
nos afectivos e comportamentais com a disposição de recursos externos sociais e culturais. 
Observar como se comporta uma criança, não é rotulá‐la. Pelo contrário, é descrever 
um estilo e uma significação. Descrever como um ser pré‐verbal descobre o mundo, o explora 
e manipula tal como um pequeno cientista, permite compreender essa formidável resiliência 
natural que qualquer criança sã apresenta perante os imprevistos encontrados, inevitavelmen‐
te, durante o desenvolvimento.  
Já não é uma questão de falar de uma paragem do desenvolvimento a um nível infe‐
rior,  de  regressão  infantil  ou  de  imaturidade,  mas  sim  de  procurar  compreender  a  função 
adaptativa momentânea de um comportamento e do seu recomeço evolutivo que continua a 
ser possível quando forem convenientemente propostos os suportes de resiliência internos e 
externos. 
A noção de ciclo de vida permite descrever capítulos diferentes de uma única e mesma 
existência. Ser bebé não é ser adolescente ou adulto. Em  cada idade somos seres totais que 
habitam  mundos  diferentes.  Quando  se  é  treinado  a  raciocinar  em  termos  de  ciclo  de  vida, 
descobre‐se sem dificuldade que, em cada capítulo da sua história, todo o ser humano é um 
ser  total,  realizado,  com  o  seu  mundo  mental  coerente,  sensorial,  significado,  vulnerável  e 
sempre possível de melhorar. Porém, neste caso, toda a gente tem de participar na resiliência. 
O  vizinho  deve  inquietar‐se,  o  jovem  desportista  deve  mandar  jogar  os  miúdos  do  bairro,  a 
cantora deve reunir um grupo coral, o actor deve encenar um problema e o filósofo deve apre‐
sentar  um  conceito.  Então,  podemos  considerar  que  cada  personalidade  avança  durante  a 
vida, ao longo da sua própria via que é única. 
Esta nova atitude  perante as provações da existência convida‐nos a considerarmos o 
«traumatismo»  como  um  desafio.  Será  que  se  pode  proceder  de  outro  modo  que  não  seja 
enfrentá‐lo?  
 
Na  época  em  que  o  pensamento  cultural  era  fixista,  bastava  observar  o  mundo  em 
redor de si para ter a prova de que reinava a ordem. O senhor, acima dos homens, possuía o 
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castelo,  o  padre  acompanhava  Deus  e  a  enorme  maioria  dos  humanos  debatia‐se  contra  a 
morte. A energia principal que permitia a sobrevivência era fornecida pelos corpos: o ventre 
das mulheres fornecia as crianças, os músculos dos homens e dos animais produziam a ener‐
gia. A hierarquia social estava assim justificada, como uma «lei natural» à qual ninguém podia 
escapar. Cada um ocupava o lugar que lhe era atribuído por uma ordem imutável. 
A acumulação tecnológica deu uma outra visão do mundo. Actualmente sabe‐se que 
se pode alterar a ordem social e até mesmo a da Natureza. São precisos uma cabeça e dedos 
para  comandar  as  máquinas  que  fornecem  uma  energia  muito  superior  à  dos  músculos.  Os 
filhos do povo podem ter êxito. E o ventre das mulheres já não dita o seu destino, desde que o 
domínio da fecundidade lhes libertou a cabeça. 
A fantástica explosão das técnicas do século XIX eliminou a evidência fixista e ensinou‐
nos a observar a condição humana com a palavra «devir». A biologia descobriu a evolução, a 
embriologia o desenvolvimento que Freud introduziu na sua descoberta de continente interior. 
Foi dentro deste contexto tecnológico e cultural que a noção de traumatismo emergiu 
lentamente. É claro que o trauma existia no real, mas não nas palavras que o punham na cons‐
ciência. De facto, foi o caminho‐de‐ferro, em 1890, que preparou o nascimento do conceito de 
traumatismo:  a  acção  mecânica  da  velocidade  sobre  o  cérebro  explicava  as  perturbações  do 
sono, os pesadelos, a irritabilidade. Durante a guerra de 1914‐18, evocou‐se, pela primeira vez 
uma provação psíquica, um «abalo emocional». Porém, foi durante a Segunda Guerra Mundial, 
com os campos de deportados, depois a guerra da Coreia e do Vietname que, perante a ampli‐
tude dos danos e a mudança de contexto cultural, os psiquiatras formularam o problema de 
forma racional. 
Desde que o conceito de traumatismo psíquico nasceu exige que, depois da descrição 
clínica e da investigação das causas, se perceba como os evitar e reparar. Neste caso, precisa‐
mos do conceito de resiliência, termo francês que tão bem se desenvolveu nos Estados Unidos 
«resiliency … que une as ideias de elasticidade, de força, de recurso e de bom humor». Há mui‐
to  tempo  que  o  conceito  de  resiliência  é  novo  mas,  agora,  pode  analisar‐se.  Trata‐se  de  um 
processo,  de  um  conjunto  de  fenómenos  harmonizados  em  que  a  pessoa  penetra  dentro  de 
um  contexto  afectivo,  social  e  cultural.  A  resiliência  é  a  arte  de  navegar  nas  torrentes.  Um 
trauma empurrou o agredido numa direcção para onde não gostaria de ter ido mas, visto que 
caiu  numa  vaga  que  o  enrola  e  leva,  o  resiliente  tem  de  fazer  apelo  aos  recursos  interiores 
inscritos  na  sua  memória,  tem  de  lutar  para  não  se  deixar  arrastar  pelo  declive  natural  dos 
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traumatismos, de agressão em agressão, até que uma mão estendida lhe ofereça um recurso 
exterior.  
Nesta metáfora da arte de navegar nas torrentes, a aquisição dos recursos interiores 
deu  ao  resiliente  confiança  e  alegria.  Estas  competências,  facilmente  adquiridas  na  infância, 
deram‐lhe  a  vinculação  segura  que  lhe  permite  estar  à  espreita  da  mão  estendida.  Porém, 
visto que aprendemos a observar os homens com a palavra «devir», poderá constatar‐se que 
aqueles  que  foram  privados  destas  aquisições  precoces  poderão  estabelecê‐las  mais  tarde, 
mas mais lentamente, com a condição de o meio circundante lhe proporcione alguns suportes 
de resiliência.  
Falar de resiliência em termos do indivíduo constitui um erro fundamental.  Não se é 
mais ou menos resiliente, como se possuísse um catálogo de qualidades: a inteligência nata, a 
resistência à doença ou a molécula do humor. A resiliência é um processo, um devir da criança 
que,  de  actos  em  actos  e  de  palavras  em  palavras,  inscreve  o  seu  desenvolvimento  num 
ambiente e descreve a sua história dentro de uma cultura. É, pois, menos a criança que é resi‐
liente do que a sua evolução e história. 
É  por  isso  que  todos  os  que  tiveram  de  superar  uma  grande  provação  descrevem  os 
mesmos factores de resiliência.  
Em primeiro lugar, vem o encontro com uma pessoa significante. Por vezes basta uma, 
uma professora que, numa frase, voltou a dar esperança à criança, um monitor desportivo que 
lhe fez compreender que as relações humanas podiam ser fáceis, um jardineiro, um actor, um 
escritor,  uma  pessoa  qualquer  que  deu  corpo  à  simples  significação  «É  possível  sair  disso». 
Tudo o que permitiu reatar o laço social, permitiu recompor a imagem que o agredido tinha de 
si mesmo. 
Desenhar, representar, fazer rir permitem descolar o rótulo que os adultos colam tão 
facilmente. Viver dentro de uma cultura onde se pode dar sentido àquilo que aconteceu: histo‐
ricizar,  compreender  e  dar  constituem  os  meios  de  defesa  mais  simples,  mais  necessários  e 
mais  eficazes.  O  que  significa  que  uma  cultura  de  consumo,  mesmo  quando  a  distracção  é 
agradável,  não  oferece  factores  de  resiliência.  Alivia  durante  alguns  minutos,  tal  como  ficam 
aliviados  os  espectadores  ansiosos  que  não  tomam  tranquilizantes  nas  noites  em  que  vêem 
televisão. Porém, para deixar de se sentir mau, para se tornar aquele por meio de quem a feli‐
cidade  acontece,  é  preciso  participar  na  cultura,  empenhar‐se  nela,  ser  actor  e  não  apenas 
assistido. 
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A resiliência não é nem uma vacina contra o sofrimento, nem um estado adquirido e 
imutável, mas antes um processo, um caminho de desenvolvimento a percorrer. Como reini‐
ciar o desenvolvimento quando a estrada está bloqueada? Parece que actualmente chegámos 
a uma bifurcação. Nestas últimas décadas, as vitórias dos Direitos Humanos e a cultura tecno‐
lógica fizeram‐nos acreditar numa possível eliminação do sofrimento. Este caminho permitir‐
nos‐ia esperar que uma melhor organização social e alguns produtos químicos suprimissem os 
nossos tormentos. O outro caminho, mais pedregoso, mostra‐nos que o tempo de vida nunca 
está isento de provações, mas que a elaboração dos conflitos e o trabalho de  resiliência nos 
permitem  retomar  a  estrada,  apesar  de  tudo.  Estas  duas  vias  propõem‐nos  meios  diferentes 
para enfrentarmos as inevitáveis dificuldades de nos desenvolvermos. 
 
 
 

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