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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
TEXTO 3
A FAMÍLIA COMO CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
1. A FAMÍLIA NUMA PERSPECTIVA COMPARADA
As afirmações que se ouvem sobre o desaparecimento da família ocidental não pare‐
cem ter muito fundamento. Muitas destas ideias relacionam‐se com o impacto sobre alguns
observadores de fenómenos mais ou menos novos relacionados com a família. Pelo contrário,
quando nos situamos numa perspectiva mais ampla, o diagnóstico muda consideravelmente, e
temos então a impressão de que a família como agrupamento, como organização, tem a sua
sobrevivência bem assegurada. Para percebermos esta perspectiva nada melhor do que recor‐
rer a comparações com outras espécies.
Diversas formas de organização familiar são características de muitas espécies desde
há milhares de anos e tudo leva a pensar que assim continuará a ser no futuro. Os artrópodes,
os peixes, os anfíbios, os répteis, as aves, os mamíferos, os primatas não humanos apresentam
formas de agrupamento familiar mais ou menos permanentes. Portanto, a questão não é se
apresentam ou não tais agrupamentos, mas sim que diferentes tipos de agrupamentos exis‐
tem. Discute‐se então se a poligamia (união de um indivíduo de um determinado sexo com
vários de outro sexo) é mais ou menos frequente e se, dentro dela, existem mais situações de
poliandria (uma só fêmea com vários machos) ou de poliginia (um só macho com várias
fêmeas). A alternativa à poligamia é a monogamia, na qual se produz a união de dois indiví‐
duos, um de cada sexo. Além da forma de agrupamento, varia também a sua duração que, em
alguns casos, tem um carácter sazonal e, portanto, transitório, enquanto noutras situações é
muito duradoura, dependendo de vários factores entre os quais se destaca a duração do
período de dependência da cria e a disponibilidade de recursos naturais como comida, espaço
ou quantidade de indivíduos do outro sexo.
Enquanto nos artrópodes e peixes a poliandria é frequente, a monogamia é muito
comum nos répteis e aves, pelo menos durante o período de desenvolvimento dos bebés.
Além disso, dentro de um mesmo tipo de animais, há bastante diversidade tanto nas formas
de agrupamento (muitos répteis são monógamos, mas existem alguns que são poligínicos)
como na sua duração (algumas espécies de aves requerem poucos cuidados dos pais, enquan‐
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to outras são muito mais dependentes e durante um período de tempo mais prolongado, exi‐
gindo, além disso, uma minuciosa divisão do trabalho entre macho e fêmea).
Nos mamíferos, tanto a poligamia como a monogamia são frequentes, com predomí‐
nio da primeira sobre a segunda. Também nos primatas não humanos a poligamia é mais fre‐
quente do que a monogamia, sendo a poliandria inexistente. Relativamente à espécie humana,
parece fora de dúvida que a poliandria não existe, salvo em certas comunidades culturais iso‐
ladas e muito excepcionais. Os especialistas estão divididos entre os que pensam que somos
essencialmente polígamos e os que consideram que somos fundamentalmente monógamos.
No caso humano, o tipo de agrupamento familiar não se baseia apenas em critérios de ordem
natural (disponibilidade de pessoas de outro sexo, necessidade de cooperação para apoiar o
crescimento dos filhos), mas também em razões de índole cultural (por exemplo, crenças reli‐
giosas ou filosóficas, tradicionalmente transmitidas de geração a geração).
É evidente que o contraste mais interessante e próximo de nós é o da família nos pri‐
matas não humanos. É curioso como o interesse dos investigadores passou da identificação
das diferenças ao fascínio pelas semelhanças dos primatas com os humanos. A realidade é que
são tão importantes as primeiras como as segundas e que estas similitudes nos sugerem traços
de comportamento com uma forte origem biológica. Os avanços metodológicos e a superação
de alguns preconceitos no estudo comparado de espécies permitiram que agora possamos dar
conta do passado filogenético de alguns comportamentos que se consideravam específicos dos
seres humanos.
Um dos primeiros comportamentos que foi objecto de estudo é a relação de vincula‐
ção nos primatas não humanos. É impressionante observarmos como este comportamento,
por exemplo nos chimpanzés, apresenta uma grande variedade de formas e de funções nas
quais podemos reconhecer as humanas: cuidados físicos, protecção face a riscos e perigos,
superação de tensões, etc. Além disso, as crias estabelecem com o resto do grupo uma hierar‐
quia de relações de vinculação que se manifestam em comportamentos de aproximação e de
evitação a determinados membros. Note‐se que tais comportamentos requerem um alto nível
de individuação no grupo e uma boa capacidade de análise de rostos e de detecção de dife‐
renças interpessoais.
Tal como na espécie humana, a vinculação nos primatas tem uma função de sobrevi‐
vência muito importante uma vez que assegura a proximidade e a protecção dos pais aos filhos
durante o prolongado período de tempo em que a fragilidade do novo ser requer a assistência
directa e continuada dos adultos. Estes laços são relativamente duradouros, ainda que mais
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breves do que aqueles que se estabelecem nos humanos. De facto, essa maior perdurabilidade
dos vínculos na família humana cumpre uma função transgeracional que vincula as famílias de
ascendência com as de descendência e que está ausente nos primatas humanos. Em suma, a
vinculação, que é sem dúvida um dos elementos mais básicos das relações familiares, tem
claros antecedentes filogenéticos que nos falam do seu grande valor adaptativo para a sobre‐
vivência das espécies.
Os primatas não humanos como chimpanzés, macacos japoneses e bobonos também
têm uma série de comportamentos designadas protoculturais que os aproximam extraordina‐
riamente de nós. Estas espécies de símios são capazes de adquirir uma série de competências
muito adaptadas à vida no seu habitat e que se transmitem de geração a geração. Por exem‐
plo, as crias de chimpanzés observam atentamente os pais quando estes afiam um pau fino e o
introduzem cuidadosamente num formigueiro com o objectivo de extrair as térmites para as
comerem. Os macacos japoneses transmitem de geração a geração a competência de lavar
batatas. Ou seja, estes podem ser considerados comportamentos de aprendizagem supraindi‐
vidual, do tipo daqueles que ocorrem nas famílias humanas.
As crias de chimpanzés e de outros primatas também se socializam, tal como as crian‐
ças humanas, aprendendo os costumes do seu grupo e a comportar‐se diferencialmente em
função do estatuto dos adultos e da sua própria mãe. As crias fêmeas brincam preferencial‐
mente com as filhas das fêmeas de alto estatuto, «herdando» estas o estatuto da sua mãe. Por
outro lado, o grupo reconhece os laços de pertença das crias às suas mães. Assim, quando se
ouvem gritos de socorro de uma cria que não está visível, é a mãe que reage alarmada e, em
caso, de estar «distraída», as outras mães dirigem o olhar para ela.
Onde estão, então, as diferenças destas formas de agrupamento familiares das huma‐
nas? Como acontece nos primatas em geral, os humanos são muito plásticos, capazes de se
adaptarem a ambientes e a exigências muito diferentes. Mas, ao contrário dos outros prima‐
tas, somos capazes de criar novos ambientes e contextos que obrigam ao desenvolvimento de
uma variedade de comportamentos e de formas de organização social muito mais complexas
do que aquelas que existem noutras espécies. A chave das diferenças está no carácter socio‐
cultural da estimulação e dos cenários ou habitats nos quais decorre a vida humana.
Neste caso, foram os antropólogos culturais que nos retiraram do etnocentrismo pelo
qual atribuíamos a todos os humanos as características de um tempo e de um lugar, quer
dizer, de um momento histórico concreto numa cultura também concreta (neste caso, a oci‐
dental). Através dos seus estudos de culturas muito diferentes da nossa, tanto em disponibili‐
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dade de recursos como na organização social, nas crenças, nas práticas educativas, os antropó‐
logos puseram em causa a perspectiva universalista de que tudo era igual, ou deveria ser, em
todo o lado e para todos os seres humanos. Concluiu‐se que cada cultura apresenta uma certa
organização que imprime uma certa direcção ao desenvolvimento. Surgiu o conceito de nicho
evolutivo que se refere ao conjunto de cenários, práticas e crenças existentes em cada cultura
face aos bebés, às crianças e à educação.
Na família humana, os contextos naturais são, na realidade, construções sociocultu‐
rais. Os contextos só são naturais no sentido em que permitem à pessoa em desenvolvimento
servir‐se de toda a variedade de recursos culturais ao longo do seu processo evolutivo. Nem é
preciso dizer que a família tem um papel chave na influência da cultura face às crianças e aos
jovens, pois constitui em si mesma um cenário sociocultural e é o filtro através do qual lhes
chegam muitas das actividades e ferramentas que são específicas dessa cultura e através das
quais a mente infantil se povoa de conteúdos e de procedimentos.
Esta peculiaridade das famílias humanas conduz‐nos a uma outra claramente distan‐
ciada das famílias dos primatas não humanos. O papel fundamental dos pais não consiste ape‐
nas em assegurar a sobrevivência dos filhos, mas também a sua integração sociocultural nos
cenários e habitats que antes se mencionaram. Com efeito, além de alimentar e de cuidar fisi‐
camente dos filhos, os pais põem em acção uma série de comportamentos que tornam possí‐
vel o bebé ter acesso ao diálogo, aos símbolos e à linguagem. Estes comportamentos interacti‐
vos dos pais têm por objectivo manter com os filhos uma estreita interacção, primeiro não
verbal e depois verbal, desde muito cedo. Assim, as peculiaridades da interacção com o bebé,
tal como a sincronia, o ritmo e a reciprocidade estão especialmente desenhadas para apoiar a
emergência dos processos de simbolização e a linguagem.
Além disto, existe uma intencionalidade educativa nos pais humanos que está ausente
nos primatas não humanos. Para aprender os comportamentos adequados do seu grupo
social, as crias de chimpanzés só contam com a observação de modelos e com as bruscas reac‐
ções de desagrado dos pais. Os bebés humanos de todas as culturas contam com figuras
maternas ou paternas dispostas a estabelecer uma interacção com eles ajustada e a apoiar
pacientemente os seus ensaios de novos comportamentos. A isto há que acrescentar a ferra‐
menta da linguagem, que desempenha um recurso educativo dirigido para o ensino de novas
competências e de normas sociais. O próprio processo de desenvolvimento dos bebés huma‐
nos, extraordinariamente mais longo do que qualquer espécie de primatas, dá conta desta
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solicitude e disposição familiar para lhes prestar cuidados até que alcancem um nível de fun‐
cionamento independente.
Finalmente, como consequência do prolongamento no tempo das relações de depen‐
dência, a intensidade, a individuação e a perdurabilidade dos laços estabelecidos são acen‐
tuadas no caso humano, o que deve ser entendido no contexto da existência de um cérebro e
de normas de comportamento mais complexos e de uma tendência para concentrar a vida
familiar no interior de um espaço privado que promove, também, uma maior intimidade e
sentimentos de pertença mútuos que adquirem nos humanos um alcance transgeracional.
2. A FAMÍLIA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
Pode perguntar‐se em que medida a família humana é um fenómeno historicamente
mutável ou estanque. A este respeito há poucas dúvidas de que as formas de organização
familiar sofreram mudanças históricas importantes. Mas não se pode cair no erro de atribuir
diversidade só ao presente, afirmado que, no passado, as famílias eram todas semelhantes.
Grande parte da diversidade que existe, na actualidade, na família ocidental tem profundas
raízes históricas, existindo uma clara continuidade nos últimos séculos em aspectos básicos.
Boa parte desta diversidade apresenta paralelismos com a diversidade existente nas antigas
culturas mediterrâneas que antecederam em vários séculos a era cristã, particularmente no
império romano. A análise da família no antigo Egipto e Mesopotâmia, assim como entre gre‐
gos e romanos, mostra a importância dada desde muito cedo à vida familiar, ao valor da priva‐
cidade, à diferença de papéis entre homens e mulheres, à regulação das situações de separa‐
ção, divórcio e adopção, e as diferentes pautas educativas em função da idade da criança, mui‐
to consonantes com as questões levantadas na época contemporânea. Da mesma forma, havia
pais que investiam imenso na educação dos seus filhos relativamente ao seu desenvolvimento
físico, intelectual e moral, enquanto outros pais faziam dos seus filhos objecto de maus‐tratos,
abandono, privações físicas e psíquicas.
Por outro lado, e relativamente ao século XX, as grandes transformações não são pró‐
prias dos nossos dias, mas antes foram‐se acumulando ao longo do século à medida que ocor‐
reram outras transformações em diferentes vertentes como, por exemplo, na mortalidade
infantil, na vulnerabilidade geral da população adulta e no acesso ao mundo do trabalho. Em
poucas décadas, a família ocidental conheceu mudanças de grande magnitude que afectaram
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os aspectos demográficos (drástica diminuição do número de filhos, aumento da vida dos pais
e presença dos filhos crescidos em casa com o consequente adiamento do casamento) e as
formas de organização familiar (diminuição do número de lares multifamiliares, surgimento
do divórcio e das famílias reconstituídas, aumento das famílias monoparentais e das uniões de
facto ou não matrimoniais).
Na família mediterrânica (Portugal, Espanha, Itália) reconhecem‐se muitos traços que
têm séculos de antiguidade e que a distinguem da família nórdica, da família da Europa Central
ou da norte‐americana. Alguns exemplos dessas diferenças são uma menor mobilidade geo‐
gráfica (o que facilita os contactos estreitos com a família de origem) uma manutenção das
diferenças de papéis entre homens e mulheres e o papel da família como importante rede de
apoio e assistência.
3. O CONCEITO DE FAMÍLIA NO OCIDENTE, NOS FINAIS DO SÉCULO XX
Referiu‐se anteriormente que a família é uma forma de organização natural no mundo
animal, ainda que com especificidades nas diferentes espécies. Referiu‐se também que a famí‐
lia humana apresenta diferentes estruturas, cuja diversidade actual está ancorada em tempos
históricos remotos e diversos. Por último, também se referiu que os modos de organização
familiar são flexíveis o que permitiu que surgissem e consolidassem novas realidades. Mas
essas realidades, sejam de última hora ou tenham antecedentes multisseculares, são tão
diversas e heterogéneas que tem sentido perguntar‐se o que é que se entende por família, o
que é que há de comum no meio desta diversidade e heterogeneidade que parecem ser os
traços que definem dos agrupamentos familiares humanos.
O modelo estereotipado da família tradicional é um agrupamento nuclear composto
por um homem e uma mulher unidos pelo matrimónio, mais os filhos comuns, que vivem no
mesmo espaço. O homem trabalha fora de casa para obter os meios de subsistência da família
enquanto a mulher, em casa, cuida dos filhos. Mais tradicional, se é possível, é o modelo de
família múltipla (a família dos pais e a dos filhos em conjunto) e o de família extensa (a família
múltipla mais parentes colaterais), mas as análises históricas mostram que esses tipos de famí‐
lia não foram realidade em todo o ocidente, existindo, num mesmo país, zonas em que o habi‐
tual era a família nuclear e outras com predomínio de famílias múltiplas. A existência de um ou
de outro modelo dependeu de factores como o sistema de herança e de sucessão predomi‐
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nantes em certas regiões ou o nível de pobreza das famílias que se viam obrigadas a acolher os
filhos casados.
Se voltarmos ao tipo de família nuclear descrito no parágrafo anterior, podemos agora
submetê‐lo a um processo de desconstrução que consiste em ir retirando à definição elemen‐
tos que antes se consideravam absolutos, mas agora são olhados como relativos:
• o casamento não é necessário para podermos falar de família; deste modo, as uniões
não matrimoniais ou consensuais dão lugar à formação de novas famílias;
• pode faltar um dos progenitores, ficando então o outro sozinho com os filhos; tal é o
caso das famílias monoparentais, nas quais, por muitas razões, um dos progenitores
(tipicamente a mãe) tem a seu cargo, de modo solitário, o cuidado dos descendentes;
• os filhos do matrimónio são muitas vezes comuns, mas este não parece ser um traço
de definição, pois os filhos podem chegar pela via da adopção, pela via das modernas
técnicas de reprodução assistida ou de uniões anteriores;
• a mãe, seja no contexto de uma família biparental ou monoparental, não tem de dedi‐
car‐se exclusivamente ao cuidado dos filhos, podendo desenvolver actividades laborais
fora de casa;
• o pai não tem de se limitar a ser um mero gerador de recursos de subsistência para a
família, mas pode implicar‐se muito activamente no cuidado e na educação dos filhos;
• o número de filhos reduziu‐se drasticamente até ao ponto de, em muitas famílias, só
haver um;
• alguns núcleos familiares dissolvem‐se como consequência de processos de separação
e divórcio, sendo frequente a posterior união com um novo par em núcleos familiares
reconstituídos.
Após esta desconstrução, o que fica como núcleo básico do conceito de família é que
se trata da união de pessoas que partilham um projecto vital de existência em comum que se
deseja duradouro, no qual se geram fortes sentimentos de pertença, onde existe um compro‐
misso pessoal entre os seus membros e se estabelecem relações intensas de intimidade, de
reciprocidade e de dependência.
Inicialmente, trata‐se de dois adultos que concretizam esses relações nos planos afec‐
tivo, sexual e relacional. O núcleo familiar torna‐se mais complexo quando surgem os filhos. O
mais habitual é que neste núcleo haja mais do que um adulto e o mais frequente é que ambos
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sejam os progenitores das crianças a seu cargo, mas continuamos a falar de família quando
alguma dessas situações não existe.
Curiosamente, os critérios que melhor definem o conceito de família são «inatingíveis»
e estão relacionados com metas, motivações e sentimentos, características que, para a quali‐
dade da vida familiar e para as relações entre os seus membros, têm uma importância muito
mais primordial do que o vínculo legal, as relações de consanguinidade, o número de membros
ou a partilha de papéis. Em primeiro lugar, é crucial a interdependência, a comunicação e a
intimidade dos adultos implicados. Em segundo lugar, a relação de dependência estável de
quem cuida e educa, por um lado, e de quem é cuidado e educado, por outro. E, em terceiro
lugar, que essa relação está baseada num compromisso pessoal de longo alcance dos pais
entre si e dos pais com os filhos.
Esta concepção de família parece satisfatória estando o nosso interesse centrado na
família como núcleo que facilita e promove o desenvolvimento dos adultos e das crianças nela
implicados. A abordagem da família sem uma análise conceptual suficientemente elaborada
pode dar lugar a uma perspectiva superficial e meramente descritiva. A família é uma entidade
tão próxima e quotidiana para todos nós que pode dar‐se a falsa impressão de que, armados
do nosso senso comum e de observações acidentais podemos compreendê‐la sem dificuldade.
A realidade é que a família é um objecto de estudo complexo e dinâmico sobre o qual temos
uma série de preconceitos que dificultam mais do que facilitam a sua análise científica. Um
certo distanciamento e instrumentos teóricos de análise são, pois, precauções necessárias.
4. FUNÇÕES DA FAMÍLIA
Do ponto de vista dos filhos, a família é um contexto de desenvolvimento e socializa‐
ção. Mas, do ponto de vista dos pais, é um contexto de desenvolvimento e de realização pes‐
soal ligado à idade adulta e às etapas posteriores da vida. Tornar‐se adulto na família pressu‐
põe o estabelecimento de um compromisso de relações íntimas e privilegiadas com, pelo
menos, outra pessoa. Quanto mais rica for a relação que se gera entre as duas pessoas mais
numerosos e profundos serão os elementos de subjectividade postos em jogo, de maneira que
não estamos a falar de uma unidade de subsistência e de reprodução, mas de um núcleo de
existência em comum, de comunicação, de afecto, de intercâmbio sexual.
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Quando consideramos os pais não só como promotores do desenvolvimento dos seus
filhos, mas principalmente como pessoas que estão, elas próprias, num processo de desenvol‐
vimento, surgem uma série de funções da família:
1) É um contexto de construção de pessoas adultas com determinada auto‐estima, sen‐
tido de si mesmo e que experimentam um certo nível de bem‐estar psicológico na vida
quotidiana face a conflitos e situações stressantes. Grande parte deste bem‐estar está
relacionada com a qualidade das relações de vinculação que os adultos viveram na
infância das quais resultam margens de segurança e de confiança em si mesmos e nos
outros.
2) É um contexto onde se aprende a lidar com desafios, assim como a assumir respon‐
sabilidades e compromissos que orientam os adultos numa dimensão produtiva, plena
de realizações e integrada no meio social. A família é um espaço onde existe uma
variedade de oportunidades para crescer e desenvolver os recursos pessoais e assim
sair reforçado nos desafios da via. Também é um suporte motivacional para fazer fren‐
te ao futuro.
3) É um contexto de encontro intergeracional onde os adultos ampliam o seu horizonte
vital construindo uma ponte para o passado (a geração dos avós) e para o futuro (a
geração dos filhos). A principal «matéria» de construção e transporte entre as duas
gerações são, por um lado, o afecto e, por outro, os valores que orientam a vida dos
membros da família. Neste sentido, os avós podem ajudar os filhos na tarefa de educar
os netos e também podem constituir um ponto de referência para que os filhos e os
netos possam balizar a sua visão do mundo e beneficiar da sua sabedoria.
4) É uma rede de apoio social para as diversas transições vitais que fazem parte da via do
adulto: procura de um par, de trabalho, de casa, de novas relações sociais, reforma,
velhice, etc. a família é um núcleo que pode dar problemas e conflitos, mas também
constitui um elemento de apoio perante as dificuldades que surgem fora da família e
um ponto de encontro para resolver as tensões que surgem no seu interior. Neste sen‐
tido, a família pode ser um valor seguro que está sempre à mão quando tudo muda e
está em perigo o sentido de continuidade pessoal. Também pode ser uma base de
apoio em caso de necessidades económicas, doenças, incapacidades físicas ou psíqui‐
cas, problemas de trabalho, etc.
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Podemos complementar a reflexão sobre o que a vida familiar significa para os adultos
com algumas referências ao que significa ser pai ou mãe. Basicamente, três aspectos impor‐
tantes:
1) Tornar‐se pai ou mãe significa pôr em marcha um projecto educativo vital que pressu‐
põe um longo processo que começa com a transição para a paternidade ou materni‐
dade, continua com as actividades de cuidado e de socialização das crianças pequenas,
depois com o suporte aos filhos durante a adolescência (e, se necessário, durante o
prolongamento da adolescência), depois com a saída dos filhos de casa, frequente‐
mente em direcção a uma nova formação e, finalmente, com um novo encontro com
os filhos através dos netos.
2) Tornar‐se em pai ou mãe significa entrar numa intensa implicação pessoal e emocio‐
nal que introduz uma nova dimensão derivada da profunda assimetria existentes entre
as capacidades adultas e infantis, por um lado, e o investimento de ilusão e de esforço
pessoal postos ao serviço do projecto educativo acima referido.
3) Ser pai ou mãe significa encher de conteúdo esse projecto educativo durante todo o
processo de desenvolvimento e de educação dos filhos. Esta tarefa implica uma série
de funções que a família assume e que estão, em grande medida, nas mãos dos pais e
que são sua responsabilidade.
As funções básicas que a família assume relativamente aos filhos, particularmente até
ao momento em que eles estão em condições de se desenvolverem independentemente da
sua influência directa são:
1) Assegurar a sobrevivência dos filhos, o seu adequado crescimento e socialização dos
comportamentos básicos de comunicação, diálogo e simbolização. Esta função vai
para além da sobrevivência física e alarga‐se a aspectos que estão em jogo fundamen‐
talmente durante os primeiros anos, e que permitem tornar o bebé num ser humano.
2) Dar aos filhos um clima de afecto e de apoio sem os quais o desenvolvimento psíquico
saudável não é possível. O clima de afecto implica o estabelecimento de relações de
vinculação, um sentimento de relação privilegiada e compromisso emocional. Isto
permite que a família se constitua como um ponto de referência psicológico para as
crianças que nela crescem.
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3) Dar às crianças a estimulação que lhes permita tornarem‐se seres capazes de se rela‐
cionarem competentemente com o seu meio físico e social, assim como a responde‐
rem às exigências que se colocam no processo de adaptação ao mundo. Esta estimula‐
ção advém de fontes diferentes, mas interrelacionadas: a organização da vida quoti‐
diana e do ambiente em que as crianças crescem e as interacções directas através das
quais os pais facilitam e fomentam o desenvolvimento dos filhos.
4) Tomar decisões relativamente à abertura a outros contextos educativos que vão parti‐
lhar com a família a tarefa da educação. Desde os anos 70 do século passado começou
a verificar‐se que é típico das sociedades modernas uma profissionalização de, pelo
menos, uma boa parte das tarefas de educação dos mais novos. Os pais jovens sen‐
tem‐se inseguros para levar a cabo essa tarefa sozinhos, não confiam ou não podem
confiá‐la aos mais velhos e, além disso, a escolarização nessas sociedades é um fenó‐
meno obrigatório e cuja influência sobre as crianças tende a prolongar‐se por mais
tempo. Alguns autores mostraram que a função desempenhada pela família no pro‐
cesso de educação e de socialização dos mais novos tem vindo a diminuir tanto em
quantidade como em qualidade. Paralelamente, produziu‐se um aumento da influên‐
cia de outras instâncias educativas, das quais a escola, sem ser a única, é a mais visível
e, provavelmente, a mais importante. Até certo ponto, os pais escolhem quando é que
a criança vai para outro espaço educativo extra‐familiar, que espaço e durante quanto
tempo. Neste sentido, a família actua como uma chave que abre as portas de outros
contextos de desenvolvimento complementares.
5. FACTORES DE PROTECÇÃO E DE RISCO NA VIDA FAMILIAR
Vamos apresentar agora algumas reflexões sobre os elementos de tensão e de protec‐
ção que se projectam sobre a família na época actual. Para tal, parece útil utilizar a análise de
Bronfenbrenner (1979) sobre a ecologia do desenvolvimento humano. Este autor define o
desenvolvimento humano como um processo marcado por sistemas de influência que vão
desde as mais próximas às mais distantes do indivíduo, sistemas que configuram e definem o
contexto ecológico em que o desenvolvimento tem lugar. A sua análise é importante para des‐
crever os factores de protecção e de risco da família, tendo em conta todas as esferas possíveis
de influência que convergem sobre o espaço ecológico familiar e os seus membros.
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Segundo Bronfenbrenner existem quatro tipos de sistemas que têm uma relação inclu‐
siva entre si: o macrossistema, o exossistema, o mesossistema e o microssistema.
O macrossistema é o sistema mais distante relativamente ao indivíduo já que inclui os
valores culturais, as crenças, as situações, os acontecimentos históricos que definem a comu‐
nidade em que vive e que podem afectar os outros três sistemas ecológicos (por exemplo, os
preconceitos sexistas, o valor dado ao trabalho, um período de depressão económica, etc.). O
exossistema compreende as estruturas sociais formais e informais que, ainda que não conte‐
nham a pessoa em desenvolvimento, influem e delimitam o que tem lugar no seu ambiente
mais próximo (a família extensa, as condições e experiências laborais dos adultos, as amizades,
as relações de vizinhança, etc.). O mesossistema refere‐se ao conjunto de relações entre dois
ou mais microssistemas nos quais a pessoa em desenvolvimento participa de forma activa
(relações família‐escola, por exemplo). Por último, o microssistema é o sistema ecológico mais
próximo já que compreende o conjunto de relações da pessoa em desenvolvimento e o
ambiente imediato em que se desenvolve (a família e a escola, por exemplo). Em primeiro
lugar vamos analisar os factores de risco existentes nos quatro sistemas que acabámos de des‐
crever, ocupando‐nos, depois, dos factores de protecção da família.
Os factores de risco e de protecção presentes no macrossistema são muito variados.
Muitos deles podem resumir‐se na expressão de Garbarino (1995) que afirma que as famílias
do fim do século XX vivem num ambiente social tóxico. São quatro os principais elementos de
toxicidade ambiental:
• a televisão e a sua função na transmissão e de valorização da violência como recurso,
assim como o seu papel de intruso na vida doméstica, um papel que inibe ou inter‐
rompe a comunicação e a realização de actividades conjuntas;
• O fenómeno a que alguns chamaram «o final da infância» para referir o facto de o
mundo das crianças ser cada vez menos um espaço protegido das tensões e violências
do mundo dos adultos, cada vez mais invadido por comportamentos e formas de lin‐
guagem que estão longe do velho tópico da idade da inocência;
• As tensões sociais e económicas relacionadas com a pobreza e o desemprego, que
criam cada vez mais uma sociedade dualizada, dividida entre os que têm e os que não
têm, com uma pobreza selectiva associada aos sectores sociais mais vulneráveis;
• a insuficiência dos serviços de apoio comunitário, a carência generalizada de recursos
sociais de tipo lúdico e cultural, a escassez de espaços de relação e brincadeira devi‐
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damente protegidos, etc. factos que são particularmente problemáticos nas zonas
mais desfavorecidas.
Fenómenos contemporâneos como o aumento da violência (não só entre adultos, mas
também a violência dirigida especificamente contra as crianças), as crescentes tensões sociais,
as graves dificuldades económicas que muitas famílias sentem, o consumo abusivo de subs‐
tâncias que alteram os comportamentos e as tensões que em seu redor se geram são elemen‐
tos que fazem parte da cultura ocidental no fim do século XX. Para além disso, os grupos de
risco nem sempre encontram programas de apoio, de prevenção e de tratamento suficientes,
como se tudo se reduzisse ao âmbito da responsabilidade ou tratamento individual.
A estes fenómenos é importante acrescentar como elemento negativo o relativismo
pós‐moderno que considera que tudo é igualmente questionável e que não há realidades ou
verdades que possam sustentar‐se como princípios básicos do pensamento e da organização
social e familiar; como se fosse o mesmo crescer num ambiente familiar ou noutro, como se
fosse a mesma coisa ter estabilidade familiar ou não a ter, como se, do ponto de vista evoluti‐
vo, fosse igualmente positivo aprender na família atitudes de cooperação e de reciprocidade
com os outros ou atitudes de oposição e de competição.
Naturalmente que muitas das tensões e dos factores de risco do macrossistema se
reflectem no exossistema, ou seja, nos contextos que os pais frequentam mas os filhos não, e
que afectam a vida familiar. Basta pensar nas tensões que os pais podem vivenciar no traba‐
lho, na necessidade de dedicar mais tempo e energia à actividade laboral, em detrimento,
muitas vezes, do tempo para a vida familiar. Ainda não está muito generalizado, entre nós, o
fenómeno dos «meninos de chaveiro» que são uma realidade em muitos países nos quais os
progenitores trabalham a tempo inteiro, todo o dia, precisando de cuidados alternativos para
as crianças quando não estão na escola, de forma que a criança deixa a casa vazia, quando sai
de manhã e, ao voltar da escola, aquece a comida no microondas e acende a televisão.
Relativamente ao mesossistema, o principal problema que parece preocupante é a
falta de ligação que existe habitualmente entre os diferentes microssistemas nos quais a crian‐
ça participa, particularmente naqueles em que passa mais tempo, a família e a escola. Existe
ainda entre nós uma cultura muito pobre de co‐responsabilização e de comunicação entre
ambos os contextos; quando a criança está na escola, os pais fazem uma completa delegação
de funções nos professores; quando a criança está em casa, a escola fica longe e ausente. Des‐
ta desconexão surgem muitos preconceitos que não são benéficos para a criança. Outro
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exemplo de desconexão entre microssistemas afecta as relações da família com os amigos dos
filhos. Os pais queixam‐se muitas vezes de amizades pouco recomendáveis dos filhos sem per‐
ceberem que a escolha dos amigos é modelada pelo clima relacional na sua própria família;
quando este clima é hostil e frustrante para os filhos, estes procuram outros contextos de rela‐
ção que mantenham valores opostos aos da sua família, podendo então relacionar‐se com
grupos de pares «problemáticos».
Por fim, temos os factores de risco ou de tensão no microssistema. A este nível pode‐
mos fazer referência às confusões e contradições que frequentemente se encontram nas
ideias e crenças dos pais a propósito dos filhos e da sua educação e nos comportamentos
paradoxais que daí resultam.
Neste mesmo sentido, referem‐se os sentimentos de incompetência ou de impotência
que os pais podem sentir face às crianças e à sua educação gerados por vezes por uma cultura
dominada por «especialistas» que transmitem às famílias mensagens pouco animadoras da
confiança nas suas próprias capacidades, como se, só depois de um doutoramento em psicolo‐
gia do desenvolvimento fossem capazes de lidar com as questões levantadas pela educação de
uma criança.
Um último exemplo de factores de risco são as tensões familiares que acabam por tor‐
nar irrespirável a vida em casa, ou acabam mesmo por desorganizá‐la ou rompê‐la. Exemplos
de tensões ou de consequências dessas tensões são os maus‐tratos às crianças. Nem sempre
os problemas vêm do exterior. Algumas vezes originam‐se no seio da família como é o caso da
existência de um criança com necessidades especiais de educação devido a alguma incapaci‐
dade ou deficiência, em que os pais têm de fazer frente a uma série de preocupações e de
circunstâncias que os põem totalmente à prova.
No entanto, em cada um dos sistemas que acabámos de analisar existem também fac‐
tores de protecção de tensões, alguns dos quais estão mais desenvolvidos do que outros na
nossa realidade familiar e social.
Existem no macrossistema elementos que são factores importantes de protecção da
família e das relações no seu interior. Para começar temos uma valorização positiva da família
e da vida familiar. A família tem um papel destacado na organização da vida quotidiana das
crianças e a sua valorização é importante. Não há dúvida de que a superação de formas de
relação familiar rígidas e baseadas unicamente no princípio da autoridade está na origem de
uma realidade familiar que parece adaptar‐se bem ao desafio que coloca, por exemplo, a pro‐
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longada permanência no seio da família dos filhos até perto da terceira década de vida. Por
outro lado, a nossa cultura valoriza muito as crianças e a relação com eles; e se acontece entre
nós aquilo que se designou uma privatização da infância (as crianças são assunto e responsabi‐
lidade dos seus pais, não da comunidade), não há dúvida de que continua a haver um senti‐
mento de responsabilidade partilhada relativamente aos mais pequenos.
Outro factor que deve ser referenciado é a estabilidade da família, e embora pareça o
contrário, as taxas de separação e de divórcio mantêm‐se a níveis relativamente baixos. Feliz‐
mente a separação e o divórcio são possíveis naqueles casos em que as coisas não correm
bem, pelo que a família não é obrigada, por força de lei, a permanecer unida quando no seu
seio existe uma ruptura. Assim, parece positivo que a sociedade vá, pouco a pouco, desenvol‐
vendo atitudes mais solidárias, de compreensão e de tolerância face às consequências de uma
ruptura.
No que se refere ao mesossistema, só nos últimos anos se têm desenvolvido serviços
de apoio às famílias que podem ser‐lhes úteis na educação dos filhos. Embora a sua generali‐
zação pareça ainda insuficiente e não chegue sempre a quem mais deles necessita têm surgido
serviços de aconselhamento e apoio familiar que se situam na intersecção do sistema familiar
com o sistema escolar, com os serviços de saúde, com os serviços comunitários, etc., razão
pela qual nos parecem situados no âmbito do mesossistema. Os dados disponíveis indicam que
quando estes serviços estão bem concebidos, têm objectivos concretos e adoptam métodos
de trabalho adequados, têm um impacto muito positivo. A gama de possibilidades é muito
extensa e é desejável que continuem a desenvolver‐se actividades deste tipo especialmente as
dirigidas às famílias que têm filhos com necessidades especiais de educação e aos sectores
sociais que, pelos seus próprios meios e iniciativa, não acederiam a elas, particularmente as
actividades dirigidas a grupos de risco específicos. Isto sem esquecer as tarefas de prevenção e
de educação que podem desenvolver‐se em programas mais gerais de sensibilização à popula‐
ção. Deste modo, podemos considerar, por exemplo, programas ou redes de apoio à transição
para a paternidade, de apoio aos pais nas suas tarefas de socialização, de cooperação da esco‐
la com a família.
Dos elementos do exossistema, um dos que parece ter mais eficácia como protector e
amortecedor de tensões é a rede informal de apoio à família constituída pela família extensa e
pela rede de amigos e vizinhos. O contacto regular da família com os avós é tanto mais impor‐
tante quanto estes podem ser uma alternativa de cuidado e educação dos filhos pequenos
durante as horas em que os pais estão a trabalhar. Este apoio pode ser crucial quando as cir‐
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cunstâncias familiares são mais difíceis como, por exemplo, no caso de uma gravidez na ado‐
lescência. Claro que este apoio familiar é importante não só para os pais que precisam da aju‐
da dos avós, mas também, chegado o momento, para os avós que precisam do apoio dos seus
filhos quando a doença ou a solidão constituem uma ameaça.
No mesmo sentido, a rede de apoio constituída por amigos e vizinhos é de grande uti‐
lidade para a família como suporte emocional e instrumental, sem falar na sua utilidade como
fonte de informação, conhecimentos, etc. É certo que estas redes de apoio se têm vindo a
debilitar como consequência do estilo de vida das zonas urbanas e do isolamento social da
vida contemporânea.
O mais importante elemento de protecção do microssistema é, sem dúvida, o afecto
que une os membros da família através de relações de vinculação mútua. A drástica redução
do número de filhos significa, entre outra coisas, que os filhos são cada vez menos consequên‐
cia do acaso e do imprevisto e cada vez mais consequência do desejo e da premeditação. No
entanto, nada mostra que agora os pais gostam mais dos filhos do que antes. As coisas tam‐
bém não são iguais no que se refere à adolescência. Tudo indica que a ruptura geracional de
que tanto se falava há 30 anos atrás desapareceu como fenómeno generalizado das relações
dos pais com os filhos. Embora a enorme projecção social e mediática dos comportamentos
problemáticos de alguns adolescentes e jovens nos leve a crer que existe uma maior conflitua‐
lidade, tudo parece indicar que nunca na história recente as relações dos pais com os filhos
adolescentes e jovens tenham sido tão harmoniosas como na actualidade. Aquilo que parece é
que a convivência e as boas relações entre pais e filhos prolongam‐se consideravelmente mais
do que há algumas décadas. Dada a incerteza relativamente ao futuro que os jovens experi‐
mentam no acesso ao seu papel de adultos, a protecção que a família exerce é muito impor‐
tante.
Parte da explicação dos factos a que nos referimos relaciona‐se com o incremento de
estilos de vida familiar mais igualitários e participativos e com um decréscimo de atitudes e de
comportamentos mais rígidos, autoritários e segregacionistas. Ainda que as mulheres conti‐
nuem a suportar uma grande parte do peso da vida familiar, ou seja, ainda que o caminho que
nos falta percorrer para a igualdade seja longo, não há dúvida que se têm produzido avanços
significativos.
Como já se disse, o microssistema familiar parece bastante estável entre nós, o que
constitui um elemento de protecção e de amortecimento de tensões. E se é bem verdade que
se delega cada vez mais funções e responsabilidades noutras instituições (na escola, por
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exemplo), o facto é que a família conserva um forte sentimento de responsabilidade. Este
compromisso não é limitado aos primeiros anos, mas prolongado no tempo e não só em rela‐
ção aos filhos como em relação à geração precedente e, muitas vezes, face à posterior, os
netos.
Como consequência, se são numerosos e importantes os factores de risco e de tensão
que gravitam sobre a família, também o são os factores de protecção de que a família dispõe.
A forma como, em cada família concreta, estão presentes e actuam todos estes factores defini‐
rá a qualidade das relações no seu interior, a projecção no futuro do grupo familiar em conjun‐
to e de cada um dos seus membros em particular, os conteúdos concretos da vida familiar e
das suas relações com o exterior.
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Traduzido e adaptado por Angelina Costa (2008) de Rodrigo, M. e Palácios, J. (1998). Familia y
desarrollo humano. Madrid: Alianza Editorial [pp. 27‐44]
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Muitas mudanças ocorrem na vida das pessoas. Muitas delas podem constituir facto‐
res de stress e, como tal, factores de risco para um bom desenvolvimento. Mas muitas dessas
mudanças parecem também constituir desafios, para os quais se reúnem os recursos internos
e externos no sentido de os ultrapassar com sucesso.
Todas as pessoas possuem mais ou menos recursos, pessoais e envolvimentais, que os
defendem dos problemas. Estes recursos são colocados à prova em situações de stress, adver‐
sidade ou risco que «precipitam» as pessoas para o encontro com situações negativas. Nem
sempre este encontro é uma realidade. Quando assim acontece, diz‐se que tais pessoas são
resilientes. Tavares (2001:57) refere‐se à pessoa resiliente como «… alguém flexível, aberto,
criativo, livre, inteligente, emocionalmente equilibrado, autêntico, empático, disponível,
comunicativo, capaz de resistir às mais variadas situações, mais ou menos complicadas e difí‐
ceis, sem partir, sem perder o equilíbrio, por mais adversas que essas situações se lhe apresen‐
tem».
Uma das questões que levantou o interesse por esta área de estudo relativamente
recente foi precisamente o facto de indivíduos perante situações de risco não apresentarem
sinais de desajustamento, como à partida era esperado, ou um desajustamento a longo prazo
ou para toda a vida. A resiliência tornou‐se assim um modelo de análise abrangente, que apre‐
senta um enfoque especial para os factores de protecção que, em condições adversas a um
desenvolvimento saudável, conseguem inverter o percurso de factores de risco.
De acordo com a sua origem etimológica (do latim resillire), resiliência quer dizer «sal‐
tar para trás». Segundo Garmezy (1993), por definição a resiliência constitui uma qualidade
elástica, que envolve a capacidade de distender sob o efeito do stress e depois voltar ao nor‐
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mal. A resiliência pode assim ser conceptualizada como um tipo de plasticidade ou de flexibili‐
dade.
Um dos princípios da definição de resiliência é o que tem de haver risco ou experiên‐
cias stressantes num determinado período de vida da pessoa. Alguns autores colocam nas suas
definições de resiliência uma ênfase especial nas consequências perante situações de risco.
Por exemplo, Rutter (1987) define resiliência como o resultado de processos de protecção que
permitem ao indivíduo lidar com sucesso com as adversidades. Segundo Masten (1999), a resi‐
liência refere‐se à apresentação de comportamentos desejados, em situações em que o fun‐
cionamento adaptativo ou o desenvolvimento estão significativamente ameaçados por acon‐
tecimentos ou situações de vida adversas.
Outros autores como Mangham e colaboradores (1995) definem resiliência como «a
capacidade que os indivíduos e sistemas (famílias, grupos e comunidades) têm para lidar com
sucesso com adversidades ou riscos significativos. Esta capacidade desenvolve‐se e modifica‐se
ao longo do tempo, é aumentada por factores de protecção do indivíduo, sistema ou envolvi‐
mento, e contribui para a manutenção ou promoção da saúde». Esta definição salienta o facto
da resiliência não se tratar de um traço fixo e estável ao longo do tempo, mas sim sujeito a
mudança em função das variações nos factores de risco e de protecção. A resiliência é assim
um processo dinâmico que se desenvolve a partir das relações que se estabelecem com o meio
ao longo da vida, pelo que ser classificado de resiliente num determinado momento não impli‐
ca que essa pessoa continue a ter um bom ajustamento a partir daí e/ou para sempre.
O dinamismo associado ao conceito de resiliência deixa em aberto a possibilidade de
poder promover factores a ela associados. A resiliência é geralmente vista como um balanço
entre o stress e a adversidade por um lado, e a capacidade para lidar com ela e a disponibilida‐
de de suporte por outro. Para haver resiliência é necessário um equilíbrio entre factores de
risco e de protecção, isto é, se existirem mais factores de risco também são necessários mais
factores de protecção para os compensar. E são precisamente esses factores de protecção que
se podem desenvolver, estimular, ou melhorar. Sendo a resiliência um processo positivo que
conduz à saúde, parece extremamente importante concentrar esforços na promoção de recur‐
sos internos e externos a ela aliados.
Grotberg (1997) coloca um enfoque especial no sucesso. Segundo esta autora, a resi‐
liência permite, em certas situações, atingir níveis superiores de desenvolvimento, comparati‐
vamente com aquele que existia antes da ocorrência do problema. A resiliência seria então
uma capacidade que as pessoas têm para suportar, superar e, possivelmente, sair «superio‐
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res» de experiências de adversidade. Ela pode ser encontrada em pessoas, grupos ou comuni‐
dades e pode tornar mais forte a vida dos que são resilientes. Um outro aspecto inovador des‐
ta concepção é a ideia de que a resiliência pode ser promovida não necessariamente por causa
da adversidade, mas como antecipação a adversidades inevitáveis.
A perspectiva de alguns autores de que as pessoas resilientes teriam uma resistência
interna, uma invulnerabilidade como sinónimo de inatingíveis, sobreviventes, heróis, pessoas
modelo tem sido contestada à medida que o conceito é aprofundado. A perspectiva que pre‐
valece, hoje em dia, é a de que a resiliência está em todos nós, cidadãos comuns, pessoas ditas
«normais». A resiliência é entendida hoje como um factor de equilíbrio pessoal e social que
permite ter um funcionamento e desenvolvimento adaptados.
O que é facto é que este conceito permitiu mudar o foco da nossa atenção de aspectos
negativos como o risco, a doença, a deficiência, para aspectos positivos como os recursos indi‐
viduais e comunitários. A investigação e a literatura produzidas nesta área contribuíram signifi‐
cativamente para uma evolução na área da saúde e do desenvolvimento através de quatro
formas. Primeiro, através da produção de conhecimento na área dos recursos que as pessoas
têm disponíveis para fazer face à adversidade, a nível individual, familiar e comunitário. Con‐
tribuiu também para que ciências como a psicologia e a psiquiatria adoptassem perspectivas
mais integradas. Estimulou ainda a investigação em áreas como a epidemiologia, sociologia,
educação, psicologia e em áreas mais específicas como a do consumo de substâncias e do
comportamento desviante. Por último, contribuiu para que o enfoque nos factores de protec‐
ção passasse também para a área de prevenção, destacando‐se a promoção de competências
e mudando a ideia de que «nada se pode fazer».
Um dos factores necessariamente presentes na resiliência é o risco. A resiliência tra‐
duz‐se na adaptação perante o risco. O risco pode ser encontrado em vários domínios: pessoal,
familiar ou comunitário. A nível pessoal encontram‐se determinadas características que, em
interacção com o envolvimento, podem precipitar as pessoas para o perigo. O risco também
pode estar num envolvimento próximo, nomeadamente na família, nos amigos ou no local
onde se vive. O risco pode ainda ter origem em acontecimentos de vida stressantes gerados
nos contextos significativos para a pessoa.
Outros factores aliados à resiliência são os factores de protecção. Tal como no risco,
também estes factores podem ser individuais, familiares ou comunitários. Dentro dos factores
individuais encontram‐se as competências cognitivas, emocionais e relacionais. Estas compe‐
tências são fundamentais para actuar directamente sobre o risco, mas também para o recru‐
22
tamento de factores de protecção na família e na comunidade. Na família destaca‐se a impor‐
tância do suporte afectivo e das boas práticas parentais. Na comunidade destacam‐se, para
além das oportunidades de participação nas actividades comunitárias, o papel fundamental
que a escola tem na promoção de factores de resiliência.
Os factores de risco e de protecção actuam através de diversos mecanismos que pro‐
duzem resultados mais ou menos favoráveis para o ajustamento do indivíduo. Estes factores
podem cruzar as suas trajectórias ou, por outro lado, actuar de forma completamente inde‐
pendente. Os riscos podem mesmo não chegar a actuar, no caso de serem prevenidos.
O domínio escolar é considerado como um dos três domínios importantes para o
desenvolvimento da resiliência em ligação com o meio ambiente (sendo os outros dois a famí‐
lia e a comunidade de pertença ou sociedade).
O contexto escolar influencia a resiliência segundo duas dimensões: na medida em que
pode revelar a resiliência (para os alunos bem sucedidos na sua escolaridade apesar de um
meio desfavorável ou inadequado, e muitas vezes também porque a sua cultura de origem é
considerada pobre ou diferente); e na medida em que a escolaridade pode introduzir elemen‐
tos de estabilidade relacional e eventualmente afectiva, susceptíveis de favorecer o processo
resiliente.
O domínio escolar parece ser um dos lugares privilegiados de emergência e de estimu‐
lação da resiliência que se revela particularmente importante para os jovens oriundos de
meios desfavorecidos. Rutter estudou este aspecto e concluiu que, em certas circunstâncias, o
meio escolar, por um lado, através do apoio dos pares, e por outro, pelas identificações e
outras formas de apoio encontradas junto dos adultos (professores, educadores, auxiliares…),
pode atenuar as falhas familiares originais.
Os adultos na escola contribuem para o processo resiliente dos alunos na medida em
que se tornam (por vezes sem o saber) suportes de resiliência. Isto porque representam uma
figura de identificação e de apoio. Muitos autores referem a importância dos encontros signifi‐
cantes ou encontros fundadores que vão ajudar os jovens a encontrar uma saída socializada
para as dificuldades que se lhes deparam.
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Os domínios escolar e educativo fornecem figuras não apenas susceptíveis de substi‐
tuir as falhas familiares (por exemplo, as relações familiares carenciadas), mas que também
podem contribuir para modificar os estilos de vinculação inicialmente estabelecidos, de modo
insecurizante, com as primeiras figuras de vinculação. Nesta óptica, as primeiras relações da
criança não seriam determinantes em todos os casos, podendo ser compensadas ou reelabo‐
radas através de relações extra‐familiares, nomeadamente no quadro escolar ou mais tarde,
com um cônjuge.
Na perspectiva de uma resiliência potencialmente presente em todos os indivíduos, o
domínio escolar e educativo acaba por ser um lugar de possível elaboração da resiliência em
crianças e adolescentes. A mediação das relações ligadas à escolaridade (que pode eventual‐
mente passar pela reescolarização) faz parte dos elementos‐chave dos programas de interven‐
ção actualmente postos em prática com o objectivo de acompanhar e estimular a resiliência
individual. O êxito escolar, ou pelo menos a experiência de êxitos escolares, mesmo que não
seja um êxito global, pode reforçar o sentimento de eficácia e de competência da criança, o
que irá favorecer a sua adaptação mais global (escolar e social).
A abordagem da resiliência no domínio escolar e educativo pode trazer novos esclare‐
cimentos para as questões ligadas ao insucesso escolar, pondo em causa as abordagens
baseadas nos determinantes do sucesso e do insucesso escolares para além da constatação da
correlação entre o êxito escolar e o meio sociocultural desfavorecido.
O simples facto de constatar que é possível safar‐se, convida‐nos a abordar o proble‐
ma de uma outra maneira. Até agora, a questão era lógica e fácil. Quando a existência sofre
uma grande pancada, podemos avaliar as consequências físicas, psicológicas, afectivas e
sociais. A maçada desta reflexão lógica é que se inspira no modelo dos físicos que está na ori‐
gem de toda a atitude científica: se aumentar a temperatura, a água começa a ferver; se eu
bater nesta barra de ferro, dela quebra acima de uma certa pressão. Esta forma de pensar a
existência humana forneceu, amplamente, as provas da sua validade. Anna Freud, durante a
guerra de 1940, ao recolher em Londres crianças cujos pais tinham sido massacrados nos
bombardeamentos, já observara a importância das perturbações do desenvolvimento. René
Spitz, na mesma época, descrevera como as crianças, privadas de suportes afectivos, paravam
de se desenvolver. Porém, é John Bowlby quem, a partir dos anos 50, provocara as maiores
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paixões ao propor que o paradigma da relação entre a mãe e o filho fosse definido em todos
os seres vivos, humanos e animais pelo conceito de afeição. Nessa época, só a Organização
Mundial de Saúde ousara dar uma pequena bolsa de investigação para pôr à prova esta sur‐
preendente hipótese. No contexto cultural do momento, o crescimento das crianças era pen‐
sado com o auxílio de metáforas vegetais: se uma criança tem um bom crescimento, é porque
é de boa cepa! Esta metáfora justificava as decisões educativas dos adultos. As boas cepas não
precisam verdadeiramente de famílias nem de sociedades para se desenvolverem. O bom ar
do campo e uma boa alimentação bastam. Quanto às más cepas, é preciso arrancá‐las para
que a sociedade volte a ser virtuosa. Com estes estereótipos culturais, o racismo era fácil de
pensar e de justificar. A antropóloga Margaret Mead opunha‐se à hipótese de Bowlby afir‐
mando que as crianças não precisavam de afectividade para crescerem e que os alegados
estados de carência estavam sobretudo ligados ao desejo de impedir as mulheres de trabalha‐
rem.
No entanto, estas causalidades lineares são incontestáveis: maltratar uma criança não
a torna feliz. O seu desenvolvimento detém‐se quando é abandonada. Esta atitude, que nos
parece evidente hoje em dia, provocou a incredulidade e a indiferença há umas décadas atrás.
Os estudos sobre a resiliência não contrariam estes estudos pioneiros. Actualmente, parece
importante introduzir a longa duração nas nossas observações, porque os determinismos
humanos são de curto prazo. Podem verificar‐se causalidades lineares, mas apenas na curta
duração. Quanto mais longo for o tempo das nossas observações, mais a intervenção de
outros determinismos pode modificar os efeitos.
Passamos o tempo a lutar contra os fenómenos da Natureza, e chamamos «cultura»
ao nosso trabalho de libertação. Por que razão, no Homem, um determinismo há‐de ser uma
fatalidade? Uma pancada do destino é uma ferida que se inscreve na nossa história, não é um
destino.
Esta nova atitude perturba as nossas concepções da psicologia do desenvolvimento, os
nossos modos de ensino e de investigação, até a nossa própria visão da existência. Foi neces‐
sário avaliar os efeitos das pancadas, é preciso agora analisar os factores que permitem que o
desenvolvimento retome o seu curso. A história das ideias em psicologia é feita no sentido do
orgânico para o «impalpável». Há ainda entre nós quem pense que o sofrimento psíquico é
sinal de fraqueza, uma degenerescência. Se se pensar que só os homens de boa qualidade
podem superar os golpes do destino, ao passo que os cérebros fracos sucumbem, isto conduz‐
nos a uma atitude terapêutica de reforço do cérebro baseada em substâncias químicas. Porém,
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se se pensar que um homem só pode desenvolver‐se ligando‐se a outro, então a atitude será a
descoberta tanto dos recursos internos do indivíduo como dos recursos externos que podem
ser mobilizados em seu redor.
O simples facto de constatar que um certo número de crianças resiste às provações e,
por vezes mesmo, as utilizam para se tornarem mais humanas, não pode explicar‐se em ter‐
mos de super‐homens ou de invulnerabilidade, mas associando a aquisição de recursos inter‐
nos afectivos e comportamentais com a disposição de recursos externos sociais e culturais.
Observar como se comporta uma criança, não é rotulá‐la. Pelo contrário, é descrever
um estilo e uma significação. Descrever como um ser pré‐verbal descobre o mundo, o explora
e manipula tal como um pequeno cientista, permite compreender essa formidável resiliência
natural que qualquer criança sã apresenta perante os imprevistos encontrados, inevitavelmen‐
te, durante o desenvolvimento.
Já não é uma questão de falar de uma paragem do desenvolvimento a um nível infe‐
rior, de regressão infantil ou de imaturidade, mas sim de procurar compreender a função
adaptativa momentânea de um comportamento e do seu recomeço evolutivo que continua a
ser possível quando forem convenientemente propostos os suportes de resiliência internos e
externos.
A noção de ciclo de vida permite descrever capítulos diferentes de uma única e mesma
existência. Ser bebé não é ser adolescente ou adulto. Em cada idade somos seres totais que
habitam mundos diferentes. Quando se é treinado a raciocinar em termos de ciclo de vida,
descobre‐se sem dificuldade que, em cada capítulo da sua história, todo o ser humano é um
ser total, realizado, com o seu mundo mental coerente, sensorial, significado, vulnerável e
sempre possível de melhorar. Porém, neste caso, toda a gente tem de participar na resiliência.
O vizinho deve inquietar‐se, o jovem desportista deve mandar jogar os miúdos do bairro, a
cantora deve reunir um grupo coral, o actor deve encenar um problema e o filósofo deve apre‐
sentar um conceito. Então, podemos considerar que cada personalidade avança durante a
vida, ao longo da sua própria via que é única.
Esta nova atitude perante as provações da existência convida‐nos a considerarmos o
«traumatismo» como um desafio. Será que se pode proceder de outro modo que não seja
enfrentá‐lo?
Na época em que o pensamento cultural era fixista, bastava observar o mundo em
redor de si para ter a prova de que reinava a ordem. O senhor, acima dos homens, possuía o
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castelo, o padre acompanhava Deus e a enorme maioria dos humanos debatia‐se contra a
morte. A energia principal que permitia a sobrevivência era fornecida pelos corpos: o ventre
das mulheres fornecia as crianças, os músculos dos homens e dos animais produziam a ener‐
gia. A hierarquia social estava assim justificada, como uma «lei natural» à qual ninguém podia
escapar. Cada um ocupava o lugar que lhe era atribuído por uma ordem imutável.
A acumulação tecnológica deu uma outra visão do mundo. Actualmente sabe‐se que
se pode alterar a ordem social e até mesmo a da Natureza. São precisos uma cabeça e dedos
para comandar as máquinas que fornecem uma energia muito superior à dos músculos. Os
filhos do povo podem ter êxito. E o ventre das mulheres já não dita o seu destino, desde que o
domínio da fecundidade lhes libertou a cabeça.
A fantástica explosão das técnicas do século XIX eliminou a evidência fixista e ensinou‐
nos a observar a condição humana com a palavra «devir». A biologia descobriu a evolução, a
embriologia o desenvolvimento que Freud introduziu na sua descoberta de continente interior.
Foi dentro deste contexto tecnológico e cultural que a noção de traumatismo emergiu
lentamente. É claro que o trauma existia no real, mas não nas palavras que o punham na cons‐
ciência. De facto, foi o caminho‐de‐ferro, em 1890, que preparou o nascimento do conceito de
traumatismo: a acção mecânica da velocidade sobre o cérebro explicava as perturbações do
sono, os pesadelos, a irritabilidade. Durante a guerra de 1914‐18, evocou‐se, pela primeira vez
uma provação psíquica, um «abalo emocional». Porém, foi durante a Segunda Guerra Mundial,
com os campos de deportados, depois a guerra da Coreia e do Vietname que, perante a ampli‐
tude dos danos e a mudança de contexto cultural, os psiquiatras formularam o problema de
forma racional.
Desde que o conceito de traumatismo psíquico nasceu exige que, depois da descrição
clínica e da investigação das causas, se perceba como os evitar e reparar. Neste caso, precisa‐
mos do conceito de resiliência, termo francês que tão bem se desenvolveu nos Estados Unidos
«resiliency … que une as ideias de elasticidade, de força, de recurso e de bom humor». Há mui‐
to tempo que o conceito de resiliência é novo mas, agora, pode analisar‐se. Trata‐se de um
processo, de um conjunto de fenómenos harmonizados em que a pessoa penetra dentro de
um contexto afectivo, social e cultural. A resiliência é a arte de navegar nas torrentes. Um
trauma empurrou o agredido numa direcção para onde não gostaria de ter ido mas, visto que
caiu numa vaga que o enrola e leva, o resiliente tem de fazer apelo aos recursos interiores
inscritos na sua memória, tem de lutar para não se deixar arrastar pelo declive natural dos
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traumatismos, de agressão em agressão, até que uma mão estendida lhe ofereça um recurso
exterior.
Nesta metáfora da arte de navegar nas torrentes, a aquisição dos recursos interiores
deu ao resiliente confiança e alegria. Estas competências, facilmente adquiridas na infância,
deram‐lhe a vinculação segura que lhe permite estar à espreita da mão estendida. Porém,
visto que aprendemos a observar os homens com a palavra «devir», poderá constatar‐se que
aqueles que foram privados destas aquisições precoces poderão estabelecê‐las mais tarde,
mas mais lentamente, com a condição de o meio circundante lhe proporcione alguns suportes
de resiliência.
Falar de resiliência em termos do indivíduo constitui um erro fundamental. Não se é
mais ou menos resiliente, como se possuísse um catálogo de qualidades: a inteligência nata, a
resistência à doença ou a molécula do humor. A resiliência é um processo, um devir da criança
que, de actos em actos e de palavras em palavras, inscreve o seu desenvolvimento num
ambiente e descreve a sua história dentro de uma cultura. É, pois, menos a criança que é resi‐
liente do que a sua evolução e história.
É por isso que todos os que tiveram de superar uma grande provação descrevem os
mesmos factores de resiliência.
Em primeiro lugar, vem o encontro com uma pessoa significante. Por vezes basta uma,
uma professora que, numa frase, voltou a dar esperança à criança, um monitor desportivo que
lhe fez compreender que as relações humanas podiam ser fáceis, um jardineiro, um actor, um
escritor, uma pessoa qualquer que deu corpo à simples significação «É possível sair disso».
Tudo o que permitiu reatar o laço social, permitiu recompor a imagem que o agredido tinha de
si mesmo.
Desenhar, representar, fazer rir permitem descolar o rótulo que os adultos colam tão
facilmente. Viver dentro de uma cultura onde se pode dar sentido àquilo que aconteceu: histo‐
ricizar, compreender e dar constituem os meios de defesa mais simples, mais necessários e
mais eficazes. O que significa que uma cultura de consumo, mesmo quando a distracção é
agradável, não oferece factores de resiliência. Alivia durante alguns minutos, tal como ficam
aliviados os espectadores ansiosos que não tomam tranquilizantes nas noites em que vêem
televisão. Porém, para deixar de se sentir mau, para se tornar aquele por meio de quem a feli‐
cidade acontece, é preciso participar na cultura, empenhar‐se nela, ser actor e não apenas
assistido.
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A resiliência não é nem uma vacina contra o sofrimento, nem um estado adquirido e
imutável, mas antes um processo, um caminho de desenvolvimento a percorrer. Como reini‐
ciar o desenvolvimento quando a estrada está bloqueada? Parece que actualmente chegámos
a uma bifurcação. Nestas últimas décadas, as vitórias dos Direitos Humanos e a cultura tecno‐
lógica fizeram‐nos acreditar numa possível eliminação do sofrimento. Este caminho permitir‐
nos‐ia esperar que uma melhor organização social e alguns produtos químicos suprimissem os
nossos tormentos. O outro caminho, mais pedregoso, mostra‐nos que o tempo de vida nunca
está isento de provações, mas que a elaboração dos conflitos e o trabalho de resiliência nos
permitem retomar a estrada, apesar de tudo. Estas duas vias propõem‐nos meios diferentes
para enfrentarmos as inevitáveis dificuldades de nos desenvolvermos.