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O Mal-Estar na Modernidade e a Psicanidlise: A Psicandlise & Prova do Social * JOEL BIRMAN** RESUMO © artigo tem a intengdo de indicar a ptesenga de dois discursos teéricos opostos em Freud, no que concerne as relagdes entre sujeito e modernidade. Pretende-se demonstrar que na sua segunda versio, desenvolvida em Mal- estar na civilizagao, 0 discurso psicanalitico realizou uma critica sistematica de sua versdo inicial, esbocada em “Moral sexual ‘civilizada’ e a doenca nervosa dos tempos modernos”. Pela construgio dos conceitos de desamparo e de mal-estar, o discurso freudiano colocou entio a psicandlise & prova do social, Além disso, indica que aquela pode construir uma leitura sobre a modemidade, ao lado das que foram realizadas por Weber e Heidegger. Finalmente, este percurso tem ainda a finalidade de pensar a crise da psica- nalise na atualidade, nas novas condigdes do mal-estar na modernidade. Palavras-chave: Mal-estar; desamparo; sublimagio. ABSTRACT The Discontent in Modernity and Psychoanalysis: Social-Proof Psychoanalysis The article aims at showing the presence of two opposing theoretical discourses in Freud, in what concerns the relationship between the subject * Conferéncia realizada em Paris, no Palais de Luxembourg, em 15 de janeiro de 1998, no Colloque International Transdisciplinajre, com o tema “Dérives et Mutation du Lien-passages: Situations du Sujet et Modernités”. Coléquio organizado pela Association Rencontres ’ Anthropologic, Psychanalyse et Recherches sur le Processus de Socialisation (A.R.A.P.S.), © pela Revue Psychanalyse, Traversées, Anthropologie ct Histoire (P.T.A.H. ++ Psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 123-144, 1998 123 Joel Birman and modernity. it intends to demonstrate that in its second version, developed in Malaise dans la civilisation, the analytical discourse achieved a systematic critical review of its initial version outlined in “La morale sexuelle ‘civilisée’ et Ja maladie nerveuse des temps modernes”. Through constructing the concepts of discontent and distress, the Freudian discourse thus made psychoanalysis social-proof, In addition, it indicates that psychoanalysis was able to build a reading of modernity other than those made by Weber and Heidegger. Finally, this journey also aims at thinking over the present crisis of psychoanalysis within the new conditions of discontent in modernity. Keywords: Discontent; distress; sublimation. RESUME Le Malaise dans Ia Modernité et la Psychanalyse: La Psychanalyse & PEpreuve du Social L’article a l'intention d’indiquer Ja présence de deux discours théoriques opposés chez Frend dans ce que concerne les relations entre sujet et modernité. On prétend démontrer que dans sa deuxiéme version, développée dans Malaise dans la civilisation, le discours psychanalytique réalisa une critique systématique de sa version initiale, esquissée dans “La morale sexuelle ‘civilisée’ et la maladie nerveuse des temps’ modernes”. Par la construction des concepts de détresse et de malaise, le discours freudien a, done, mis la psychanalyse &1’épreuve du social. Plus encore, il indique que 1a psychanalyse peut faire une lecture de la modernité a cté de celles réalisées par Weber et Heidegger. Finalement, ce parcours aboutit encore a penser la crise de la psychanalyse dans nos jours selon les nouvelles conditions du malaise dans la modernité. Mots-clé: Malaise; détresse; sublimation, Recebido em 1/7/98. Aprovado em 26/8/98 124 PHYSIS: Rev. Sauide Coietiva, Rio de Janeiro, 8(L): 123-144, 1998 © Mal-Estar na Modernidade e a Psicandlise: A Psicandlise & Prova do Social Os Discursos Freudianos sobre o Social A modernidade e seus impasses é a problematica fundamental deste ensaio. Temos a intengdo de trabalhd-la sob a perspectiva tedrica da psica- ndlise na medida em que esta tematizou, com Freud, nado apenas a moder- nidade enquanto tal, mas também as impossibilidades construidas para o sujeito naquela. Isso implica dizer que os discursos forjados por Freud para enunciar a questio da subjetividade no campo da civilizagao, no sentido universalista desta ultima, foram na verdade comentérios tecidos sobre a condig&o do sujeito na modernidade. Ei preciso considerar essa especificidade na leitura freudiana sobre a civilizacio para dar a esta leitura toda a espes- sura de sua relatividade histérica ¢ retiré-la em contrapartida do estatuto ingénuo de totalizagdes inconsistentes e abstratas. Portanto, € preciso explicitar que as interpretag6es freudianas sobre os impasses do sujeito no mundo da civilizagdo constituem, de fato e de direito, comentarios criticos sobre a inscrigao do sujeito na modernidade. No que tange a isso, Freud se deslocou entre dois pélos opostos que se contrapdem nos seus menores detalhes, como veremos ainda. Com efeito, se no comego de seu percurso teérico Freud acreditou na harmonia posstvel entre o registro do sujeito ¢ 0 registro do social (Freud, “La morale sexuelle ‘civilisée’ et la maladie nerveuse des temps modemes”, 1969 [1908]: 28- 46), em seguida, contudo, essa harmonia foi colocada incisivamente em questo, de maneira que a problematica do desamparo do sujeito no campo social foi a marca decisiva da leitura daquele sobre a inser¢do do sujeito na modernidade (Freud, Malaise dans la civilisation, 1971 (1929]). Pelo enun- ciado da condi¢do de desamparo da subjetividade no novo espago social, foi a desarmonia nos lagos sociais entéo sublinhada por Freud. Com isso, enfim, o discurso freudiano assume um estilo trdgico de leitura da modernidade. Por esse vies, pode-se entrever que no segundo discurso freudiano sobre © social o discurso inicial foi colocado em questéo de maneira radical. Isso quer dizer, pois, que pelo seu discurso final sobre a modernidade o pensamento psicanalitico colocou a psicandlise & prova do social, o que the obrigou ent&o a se reconstituir sobre novas bases e outros fundamentos. Pode-se retomar, aqui, o segundo topico desta discussdo mais abrangente, qual seja, a colocagao em questao do discurso psicanalitico pela categoria do social. Pretende-se sustentar a hipstese de trabalho de que a psicandlise foi colocada a prova do social quando nos deslocamos do discurso freudiano inicial sobre a modernidade para o discurso final sobre esta questao. PHYSIS: Rev, Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, &(1}: 123-144, 1998125 Joel Birman Contudo, € preciso ainda evocar que quase nunca a tradi¢do psicanalitica se manteve fiel a esse deslocamento teérico operado no discurso freudiano. Em geral, aquela tradigao misturava alguns fragmentos do ultimo Freud com alguns dos conceitos do primeiro, de forma que a tese de que a psica- ndlise foi colocada decisivamente em questao pelo social foi esquecida € recalcada. Com isso, a fulgurancia critica do gesto tedrico do tltimo Freud foi colocada em suspensio ¢ no limite conduzida ao siléncio. Isso quer dizer, pois, que nem sempre a tradigdo psicanalitica se mostrou condizente 2 altura com a leitura critica de Freud sobre a modernidade. Tudo isso nos revela 0 conformismo critico assumido pela tradigao psi- canalitica pés-freudiana. Ao silenciar a radicalidade da critica freudiana sobre a modernidade, a psicandlise assumiu um tom ao mesmo tempo triunfalista e cientificista, que sdo incompativeis com os argumentos radicais sobre o mal-estar na modernidade. A psicandlise nao saiu indene, contudo, desse esquecimento e siléncio. Essa solugao de compromisso Ihe custou caro, pois algo da argticia psicanalitica se perdeu, evidentemente. Com efeito, a psicandlise como discurso tedrico perdeu suas dimensdes ética ¢ politica, ficando restrita a uma mera perspectiva terapéutica na qual a harmonia do sujeito no campo social seria sua finalidade maior. Vale dizer, a psicandlise incorporou, assim, em seu corpo teérico, uma perspec- tiva normativa pela qual a medicalizagao do social pdde se realizar sem resisténcias na medida em que foi silenciado o potencial critico da tese sobre o mal-estar na modernidade. Para que se possa bem avaliar esse desdobramento do pensamento psicanalitico, é preciso, contudo, considerar devidamente 0 novo lugar da psicandlise na atualidade, antes de qualquer coisa. Vale dizer, é preciso indicar a condicio de crise da psicandlise naquilo que denominamos de novas condigdes do mal-estar na modernidade. Acreditamos que dessa maneira pode-se entrever a contemporaneidade e a agudeza da questo que aqui levantamos, para que possamos, em seguida, retomar a oposi¢ao tedrica que propusemos entre um discurso freudiano sobre a harmonia do sujeito no campo social e um outro, no qual o mal-estar ¢ o desamparo esto em seu fundamento. A Configuracao Atual dos Saberes sobre 0 Psiquico A questdo da crise da psicandlise esté na ordem do dia em todos os jugares, principalmente nos Estados Unides ¢ em alguns pafses europeus. 126 _PHLYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 81): 123-144, 1998 © Mal-Estar na Modernidade e a Psicandlise: A Psicandlise & Prova do Social mas também, de outra maneira, na América Latina. A crise nao se configura da mesma forma nas diferentes formagées sociais onde se constituiu um movimento psicanalitico, evidentemente. Com efeito, as diferencas nas formas de ser dessa crise sio, muitas das vezes, mais importantes que as similitudes, sem divida. Pode-se atribuir essa diversidade evidente aos diferentes processos de modernizacao do social que marcaram as miiltiplas formagdes sociais onde se inscreveu a tradigao psicanalitica. Nessa perspectiva, é ébvia a decalagem entre crise da psicandlise nos Estados Unidos ¢ na Franga e a que existe agora na América Latina. De forma complementar, considerando agora apenas os paises europeus, o estatuto atual do movimento psicanalitico na Espanha, em Portugal ¢ nos paises do Leste Europeu nao é similar ao que acontece, hoje, na Franga e na Inglaterra (cf. Birman, 1996), Enfim, os diferentes ritmos e temporalidades que marcaram o processo histérico de moderni- zagio do social nos permite explicar devidamente tais diversidades'. Entretanto, apesar dessas diferengas ébvias ¢ elogiientes, pode-se enun- ciar a existéncia de uma crise da psicandlise na atualidade. Nao obstante tais diferencas, a tese sobre a crise atual do discurso psicanalitico se mostra consistente e legitima. Pode-se indicar isso de diferentes maneiras, pela utilizagao de multiplos critérios de leitura, que sinalizam tal processo histérico-social tanto no émbito do imaginario social contemporéneo quanto no lugar ocupado pela psicandlise no campo dos saberes sobre 0 psiquismo na atualidade. Pela articulagdo cerrada desses dois critérios, pode-se compreender as transformagées atuais no campo da demanda clinica. Com efeito, a psicandlise assume cada vez mais a condigdo de estran- geira no mundo da atualidade. Enquanto estrangcira, aquela se torna uma estranha. Pode-se indicar essa transformagio significativa desde 0 inicio dos anos 80 na Franga, se bem que o processo comegou bem mais cedo nos Estados Unidos, desde o inicio dos anos 60 (Castel, Castel & Lovell, 1979). Nesse contexto, a psicandlise nao fascina mais as pessoas como outrora. Sendo um dos mitos da modernidade, pelo menos desde os anos 30, a psicandlise perdeu o seu Iugar de destaque na cena do social. Com isso, a psicandlise parou de produzir barulho e de ser uma fonte de irrupgio no social como se passava anteriormente. Enfim, seria por causa disso que a Sobre a articulagdo tedrica entre modemnizacdo do social © a constituiggo do movimento psicana- litico, ver Turke (1993). PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1}: 123-144, 1998127 Joel Birman psicandlise passou a se configurar ao mesmo tempo como estrangeira ¢ estranha no campo social da atualidade. Pode-se mostrar a banalidade disso de diferentes maneiras, como ja dis- se, indicando a evidéncia desse proceso no registro pratico ¢ no registro tedrico. No registro prético, pode-se reconhecer com facilidade a diminui- cdo vertiginosa que se realizou no nivel da demanda para a cura psicana- litica. A demanda clinica diminuiu de maneira significativa, segundo reco- nhecem os analistas em geral. Em contrapartida, as pessoas tendem a preferir os tratamentos psicofarmacolégicos ¢ as psicoterapias de curta duragao. Estas se definem, em geral, pelo tempo estabelecido previamente no contrato estabelecido pelo psicoterapeuta ¢ pelo paciente. Além disso, se multiplicam as psicoterapias de grupo, de familia e de casal, numa escala significativa. No registro te6rico, de maneira complementar, os modelos advindos do cognitivismo fascinam cada vez mais o campo dos saberes do psiquico e as ciéncias humanas num sentido mais geral. Tudo isso, evidentemente, no lugar das hipéteses psicanaliticas. Estas so substituidas progressivamente, pois, por aqueles. Além disso, os modelos das neurociéncias impregnam de maneira crescente os saberes do psiquismo, silenciando e deslocando para a periferia do campo teérico do psiquismo as teorias psicanaliticas. Com efeito, se até o final dos anos 70 a psicandlise era o discurso de referéncia no campo dos saberes sobre o psiquico e ocupava, como sabemos, um lugar estratégico no campo das ciéncias humanas, cada vez mais aquela perde essa posigao de privilégio. Assim, a psicandlise perdeu nao apenas a posigdo estratégica que ela ocupava no campo dos saberes sobre o psiquico, sendo, pois, substituida paulatinamente pela psiquiatria bioldgica, pelo dis- curso das neurociéncias e pelas teorias do cognitivismo, mas também o seu lugar primordial de referéncia no campo das ciéncias humanas. Como se pode depreender, estamos no centro de duas problematicas aqui em questio, isto é 0 sujeito na modernidade ¢ 0 sujeito & prova do social. A indagag&o que se impée, pois, € sobre o que se passou nesse conjunto de transformagées cruciais, cuja resultante maior foi a perda de poder simbélico da psicandlise no campo dos saberes sobre 0 psiquico e no imagindrio social da modernidade. E a isso que temos que responder, ou, pelo menos, esbogar um caminho possivel de resposta para nos aproximarmos de uma interpretagio que seja consistente sobre a crise da psicandlise na atualidade ¢ de uma leitura sobre as novas condi¢Ges do mal-estar na modemidade. 128 PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1 ): 123-144, 1998 O Mal-Estar na Modernidade e a Psicanélise: A Psicanélise a Prova do Social Para responder de maneira consistente, preciso circunscrever previa- mente o lugar estratégico ocupado pela psicandlise no imaginario da moder- nidade. Para isso, é preciso retomar o ensaio freudiano sobre o mal-estar na civilizagao na medida em que as hipéteses de trabalho deste texto nos permitam pensar, em contrapartida, no jugar da modemidade no imaginario tedrico da psicandlise, no sentido ao mesmo tempo epistemoldgico e poli- tico. Pode-se vislumbrar, assim, as duas faces de uma mesma problematica ja que, pela primeira verso, pretende-se conferir & modernidade a posigio de referéncia maior em torno da qual se inscreve a psicandlise, enquanto pela segunda versao trata-se de circunscrever a psicandlise como ponto de vista sobre a modernidade. Tal € 0 propésito que pretendo encaminhar sob a forma de um esboco tedrico ¢ para delinear uma dirego de leitura. Contudo, para retomar a leitura freudiana sobre o mal-estar na civili- zagio é preciso contrapé-la aquela que Freud realizou no inicio de seu percurso, justamente em 1908, em “A moral sexual ‘civilizada’ ¢ a doenca nervosa dos tempos modernos” (cf. Freud, op. cit.), 4 que podemos surpreen- der duas interpretagdes totalmente opostas sobre a inser¢’o do sujeito na modernidade. Com isso, pode-se sublinhar como o discurso psicanalitico se colocou & prova do social, sendo obrigado a se reconstituir sob novas bases. Entre Harmonia e Desarmonia Pode-se perguntar, logo de inicio, o que é que autoriza teoricamente esta comparacio, afinal das contas? Como disse, os dois textos trabalham sobre a mesma temitica, sem dtivida, e¢ isso torna legitima essa comparagao. Com efeito, o que esté em pauta é 0 conflito ne sujeito entre o registro da pulsio € 0 registro da civilizag&o. Entretanto, como ja afirmei acima, as respostas de Freud sio totalmente opostas. E justamente isso que torna fascinante a leitura comparativa desses ensaios. Assim, na primeira versao freudiana sobre essa problematica foi enun- ciada a hipotese de que a psicandlise poderia oferecer uma resposta resolutiva ao mal-estar na civilizagao, enquanto na segunda versao essa resposta cor- tante e absoluta foi interrogada, isto é, a primeira verséo freudiana foi colocada em questéo. Por causa disso mesmo é que o tiltimo Freud foi considerado um pensador trégico, tanto pelos seus contemporancos quanto pela posteridade, enquanto no comeco de seu percurso aquele se mostrava totalmente confiante nos poderes da psicandlise. Portanto, algo de fundamental se processou entre 1908 e 1929 para que se produzisse essa PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 81): 123-144, 1998 129 Joe! Birman transformagdo radical de perspectivas na leitura freudiana sobre a inscrigdo do sujeito na civilizagao. E necessdrio se aproximar docemente disso tudo para indicar as oposigées em pauta de maneira precisa. Antes de mais nada, como ja disse acima, 0 que esta em questo nos dois ensaios é a relagéio entre © registro da pulsdo e 0 da civilizagdo. Essa relagdo foi sempre pen- sada, por Freud, como sendo da ordem do conflito. Quanto a isso, nao existe qualquer diivida. Entretanto, no texto de 1908 esse conflito foi representado sob a forma de uma solugio possivel, isto é, de uma harmonia a ser conquistada entre os dois pélos de opostos pela mediagao da psicandlise. Com efeito, a psi- candlise poderia oferecer ensinamentos consistentes sobre a natureza da pulsdo sexual e sobre a inserciio desta na economia subjetiva, de maneira tal que o sujeito poderia alcangar uma certa relagao tranqiiila entre a exigéncia da pulsdo e a exigéncia da civilizagao. Em 1929, no entanto, Freud nao acreditava mais nisso, de maneira que a relagdo conflitual entre a pulsdo e a civilizag&o seria de ordem estrutural, isto €, 0 conflito nao seria jamais ultrapassado. Contudo, a maneira de encarar esse conflito, de manejd-lo, se transformou aos olhos de Freud. Com efeito, se na versio inicial o conflito poderia ser cwrdvel, digamos assim, na versao final seria necessdria uma espécie de gestdo interminavel e infinita do conflito pelo sujeito, de forma tal que este nao poderia jamais se deslocar da sua posigdo originria de desamparo. Nesse deslocamento crucial entre o registro da terapéutica poss{vel para o registro da gestao, pode-se vislumbrar que 0 discurso freudiano assume uma perspectiva ética ¢ politica sobre o conflito cm questao. Seria, pois, o destino possivel a ser oferecido para o desamparo do sujeito que esté no fundamento das diferencas entre as duas versdes cons- tituidas pelo discurso freudiano. Na primeira solugdo, com efeito, 0 sujeito poderia ultrapassar o seu desamparo pelo dominio seguro das pulsées sexuais. Para isso, 0 discurso freudiano constrain um conceito especifico a que nomeou de sublimagdo, Pela mediagao desta existiria uma transformagio do registro do sexual naquele do nao-sexual, pela transformagao do alvo da pulsao sexual (Freud, “La morale sexuelle ‘civilisée’ et la maladie nerveuse des temps modernes”, op. cit. 33-34). Contudo, mesmo enunciando @ con- ceito de sublimagao dessa maneira, o discurso freudiano indica ao mesmo tempo uma série de contradicGes decorrentes dessa via para pensar a subli- mag&o, j que assim o sujcito seria empobrecido nao apenas do ponto de vista erético mas também simbélico (idem: 37-46), Com isso, existiria 130 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro. 8(1): 173-144, 1998 O Mal-Estar na Modernidade e a Psicandlise: A Psicandlise a Prova do Social um duplo handicap da sublimagao sobre o sujeito. Além disso, aquilo que a sublimagao deveria resolver, isto é, possibilitar um acesso enriquecedor para a subjetividade no registro da civilizag4o, nao se alcancaria, pois 0 sujeito eroticamente empobrecido seria também fraturado no registro simbélico. Entretanto, na sua segunda versao o discurso freudiano nao acreditava mais nessas certezas iniciais, pois o sujeito nfo poderia se deslocar jamais de sua posig&o originéria de desamparo. Pensar na irredutibilidade desta posic&o, no entanto, nao implica dizer que o sujeito deve existir necessa- riamente com perturbagdes do espirito, sejam estas da ordem da neurose, da psicose ou da perversao. Nao se trata disso, absolutamente. Em contrapartida, enunciar a irredutibilidade do desamparo implica reconhecer que o sujeito deve fazer um trabalho infinito de gestao daquela, justamente porque o desamparo origindrio da subjetividade seria incuravel. Pode-se dizer, enfim, de maneira indubitavel, que o discurso freudiano acreditava na sua versaio primeira que o desamparo poderia ser curdvel pela psicandlise, mas que na sua tiltima versdo essa crenga se mostrava insustentavel, ingénua e presungosa. Para melhor circunscrever a problematica do desamparo e sua incurabilidade, o discurso freudiano forjou diversos conceitos, de maneira progressiva, desde 1920, Pela construgao desses conceitos a diregéo da pesquisa psicanalitica do desamparo péde se tornar mais consistente na medida em que Freud se deslocou do registro mais abstrato para o mais concreto. Com efeito, nessa circunscrigao e deslocamento o discurso freudiano se movimentou entre o pélo da metapsicologia e o pélo da clinica, de maneira que a materialidade do desamparo foi se delineando de forma mais patente na subjetividade. Esses conceitos freudianos so bastante conhecidos na tradi¢g&o psicana- litica, se bem que nem sempre aqueles tenham sido articulados por esta na problemiatica do desamparo. Assim, tanto pelo enunciado da pulsao de morte (Freud, “Au-dela du principe de plaisir”, 1995) em 1920, quanto pela formu- lagdo dos conceitos de angdstia do real (Freud, “Inhibition, symptéme et angoisse”, 1973) em 1926, e de feminilidade (Freud, “L’analyse avec fin et T'analyse sans fin”, 1986) em 1937, era sempre a questo do desamparo que estava em pauta. Em contrapartida, esse campo de novos conceitos que podem balizar a problematica do desamparo foi a condigao de possibilidade para a emer- géncia de um outro conceito de sublimagao, que se contrapée radicalmente PHYSIS: Rev, Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 81): 123-144, 1998 131 Joel Birman ao primeiro. Assim, para superar as contradigdes € os impasses colocados pelo conceito inicial de sublimagio, 0 discurso freudiano enunciou, em 1932, que existiria a constituigo de um outro objeto para a pulsao (Freud, “Nouvelles conférences de |’introduction & la psychanalyse”, 1984), isto 6, Freud nao se manteria inalterado como na versao primeira do conceito. Isso significa, pois, que na nova versao nao existiria mais oposi¢&o entre sexua- lidade e sublimagao. Encontra-se justamente aqui a grande novidade, Vale dizer, existiria uma outra economia do erotismo na sublimagao. Com isso, portanto, o processo de sublimagao consistiria na transformacao da pulsio de morte em pulsdo sexual, de maneira tal que o erotismo e o trabalho de criagdo se tornariam possiveis. Pode-se dizer, pois, que os destinos do ero- tismo e da sublimagdo foram articulados de maneira cerrada no tiltimo discurso freudiano. Além disso, dominar 0 desamparo e nao curé-lo quer dizer agora que é necessario para 0 sujeito constituir destinos tanto eréticos quanto sublimatérios para a pulsdo. A tessitura desses destinos, em ambos os sentidos referidos, constituiu para o sujeito aquilo que denominei ha pouco de gestdo do desamparo. A gestéo do desamparo toma uma diregdo bem precisa para 0 sujeito, diferente, pois, da versao freudiana inicial sobre a sublimagao. Nessa verso, a sublimagio era uma experiéncia de espiritualizagdo, de ascese, pela qual a subjetividade seria purificada de seu erotismo perturbador. A sublimagdo aqui seria uma experiéncia de verticalizagdo, desprendendo-se © sujeito de sua corporeidade animal ¢ algando-se aos pindculos da razdo civilizat6ria. Contudo, em sua segunda versio a sublimagio nao é um ato de espiritualizagio, mas de lateralizagdo, nao se desprendendo pois 0 sujeito do seu registro corpéreo. Pelo contrério, a sublimagio implica na horizontalizagao das ligacgées do sujeito com og outros, pela tessitura de lagos sociais e pela producdo de obras no campo desses lagos. Pode-se depreender disso tudo nao sé porque nessa ultima versdo freudiana nao existe oposig4o entre erotismo ¢ sublimag4o, mas também porque a gestao do desamparo implica e se desdobra nos registros ético € politico. Descontinuidade ¢ Metapsicologia E necessario sublinhar, portanto, que a leitura que fago do discurso freudiano se funda no reconhecimento deste de uma descontinuidade fundamental ¢ nao de uma totalizag&o sistematica. O discurso freudiano é& marcado por uma ruptura crucial que reordenou, entao, a sua dirego teérica 132 PHYSIS; Rev, Satide Coletiva, Rio de Fanciro, 8(1): 123-144, 1998 © Mal-Estar na Modernidade e a Psicandlise: A Psicanalise 4 Prova do Social e seu rumo. Vale dizer, existe uma transformagao decisiva naquele discurso que se desdobrou num outro estatuto para a teoria psicanalitica. Essa mu- danga tedrica de estatuto da psicandlise se realizou no registro epistemo- légico pelos efeitos que pudemos ressaltar até agora. Contudo, pode-se e deve-se perguntar neste momento de minha argu- mentagio: por onde se operou essa transformagio decisiva do estatuto epis- temol6gico da psicandlise? Em qual registro tedrico pode-se indicar ponto de ruptura? E 0 que temos que responder em seguida. Para circunscrever a ruptura em questo, no nivel epistemolégico, é preciso evocar, antes, que nos seus primérdios a psicandlise seria, para Freud, um discurso cientifico. Era essa a sua pretensio maior, como se sabe. Essa intengao implicou uma série de escothas e de assungées de base pelo discurso psicanalitico. E justamente isso que precisa ser bem explicitado agora, para que se vislumbre por onde se processou a ruptura tedrica ¢ se realizou a descontinuidade. ‘Assim, a certeza freudiana inicial de uma harmonia sempre possivel entre o registro da pulsdo e o registro da civilizagio, pela qual esta domi- naria e regularia aquela, se fundaria na perspectiva a priori de que as relagées entre a forca (Drang) pulsional e a representagdo (Verstellung)* seriam originarias, desde sempre dadas. Vale dizer, a articulagdo entre a forga da pulsio e 0 objeto de satisfagdo seriam desde sempre dados. O circuito da pulsao seria regulado de maneira imanente, no obstante a con- cepgiio de que o objeto da pulsio seria aquilo que nessa seria 0 mais varidvel (Freud, “Pulsions et destins des pulsions”, op. cit.). Isso nao modifica em nada a nogio de uma certa auto-regulagao origindria. A insergio da pulsdo no campo da representagio seria regulada da mesma maneira, na medida em que 0 objeto € o representante-representagdo da pulsdo consti- tuem as duas faces da mesma problemética: o primeiro enfatizando o regis- tro do gozo, e o segundo, o do sfmbolo. Dessa maneira, 0 discurso psica- nalitico seria algo da ordem da interpretagdo e da representagao, pela me- diagao das quais poder-se-ia dominar a forga da pulsdo. Seria por esse viés, pois, que 0 sujeito poderia dominar o impacto da puisio. Pode-se depreender, enfim, que nao existiria uma mudanga de esséncia entre o registro da forga pulsional e o registro da civilizago na medida em que esta seria 0 suporte dos objetos do gozo e dos representantes. 2 Sobre esses conceitos, ver Frend, S. “Pulsions et destins des pulsions", 1968 [1915], PHYSIS: Rev. Sadie Coletiva, Rio de Janciro, B{1): 123-144, 1998 153 Joel Birmuan Essa construgao metapsicolégica foi estabelecida pelo discurso freudiano, em 1905, nos “Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade” (cf. Freud, “Trois essais sur la théorie de la sexualité”, op. cit., 1962: 56-58), Contudo, os princfpios fundadores dessa construgio foram elaborados anteriormente, por Freud, em seu “Projeto de uma psicologia cientifica”, de 1895. Através desses princfpios assumidos de forma tio precoce pelo discurso psicanali- tico, pode-se melhor vislumbrar as escolhas realizadas por Freud. Com efeito, quando no preambulo do “Projeto de uma psicologia cientifica” foi enunciada a impossibilidade do principio da inércia — porque, se fosse 0 caso, a vida seria impossivel — ¢ Freud o transformou no principio da constancia (Freud, “Esquisse d'une psychologie scientifique”, op. cit., 1973: 316-317), a construcio auto-regulével do circuito pulsional estava caucio- nada, enquanto condigao de possibilidade. Isso é evidente. Pode-se conside- rar que a solugéo tecida por Freud pressupde uma hipétese vitalista, pela qual ¢ registro da vida seria algo indubitavel ¢ fora de questéo, sendo a construgao do psiquismo uma derivag&o quase automéatica da ordem vital. A presenca de metdforas vitalistas e a do ideal de homeostasia permeiam os textos freudianos iniciais. Seria por causa disso, enfim, que o discurso psica~ nalftico podia ter a pretensio de ser da ordem da ciéncia e que, conse- qiientemente, poderia, além disso, regular as relages entre a forga da pulsao, seu objeto € seus representantes. Além disso, como decorréncia desses pressupostos Freud acreditava ainda que existiria uma espécie de progresso do espirito humano, como afirmava a filosofia do Iluminismo na crenga desta no poder da ciéncia para empreender a reforma do entendimento humano e da sociedade. Vale dizer, Freud acreditava como aquela que seria possivel a produgfo da “felicidade humana” pela mediagdo do Jogos cientifico. Portanto, a cura das perturba- gSes do espirito ¢ do desamparo humano seria possivel via psicandlise, uma das realizagdes maiores da razio cientifica. Pode-se depreender disso que se encontra aqui os pressupostos tedricos sobre “A moral sexual ‘civilizada’ e a doenga nervosa dos tempos modernos”, j4 que nesse ensaio se vislum- brava a possibilidade de uma harmonia entre o registro da pulsao e o da civilizaga Tudo isso se transformou radicalmente, no entanto, pelos fundamentos da segunda teoria das pulsdes, com o enunciado do conceito pulsio de morte. Com efeito, pela mediagado desse novo conceito de pulsdo torna-se impossivel a concepgdo de uma harmonia entre o registro da pulséo e o da civilizagdo. Pelo viés da pulsio de morte, concebida agora como silenciosa 134 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1}: 123-144, 1998 O Mai-Estar na Modernidade ¢ a Psicandlise: A Psicanilise i Prova do Social e no inscrita originariamente no campo da representaco, a harmonia com © registro da civilizagao n&o se torna mais possivel. Portanto, no que tange & espécie humana a vida seria algo a ser conquistado, um vir-a-ser e um destino possivel, mas ndo um valor institufdo de maneira origindria. A vida, pois, seria um bem a ser produzido apés a origem, jé que a concepgao de Freud agora é mortalista ¢ antivitalista. A partir de agora a homeostasia € uma idéia impossivel. Dai, pois, 0 mal-estar na civilizagiio e o desamparo origindrio do sujeito. Porém, nao basta apenas produzir a vida como um bem, em contraposigao & morte origindria. E preciso ainda reproduzi-la permanentemente, em toda a existéncia do sujeito. Dai, entao, a idéia de gestdo, para que 0 sujeito possa manter a vida enquanto possibilidade e um bem em aberto para si. O discurso freudijano introduziu o significante destino, em seu ensaio metapsicolégico sobre as pulsdes, em 1915. Com efeito, em “Pulsdes e destinos das pulsdes” foi enunciado que as operagées psiquicas do recalque e da sublimacio seriam destinos das puls6es ¢ no mecanismos origindrios (Freud, “Pulsions et destins des pulsions”, op. cit., 1968; 24), Para que aqueles fossem possiveis, necessério seria anteriormente que a forga pulsional pudesse sofrer certas torgdes primordiais, como a “passagem do registro da atividade para o da passividade” e 0 “retorno sobre a prépria pessoa” (idem: 24-32). Sem tudo isso, pois, a construgdo da subjetividade seria impossivel, na medida em que o movimento originario da forga pulsional seria em diregdo & descarga. Pode-se entrever jé, aqui, 0 novo pressuposto freudiano de mortalismo e de antivitalismo, na medida em que o ensaio freudiano de 1915 ja antecipava as condigdes de possibilidade do conceito de pulsio de morte, de 1920, ao formular a oposig&o de base entre a forga pulsional, de um lado, ¢ os objetos e representantes da pulsio, pelo outro. Enfim, 0 circuito pulsional nao estaria ordenado desde a origem, como na formulacio freudiana inicial, mas seria agora algo a ser permanentemente empreendido pela subjetividade. Porém, para isso o sujeito precisa do Outro, sem o qual o circuito pulsional no se ordenaria jamais, j que a forga pulsional seria fadada & descarga, como ja indiquei acima. Além disso, todo esse processo teria que ser nado apenas produzido na origem mas também reproduzido por toda a existéncia do sujeito, na medida em que a pulsao é uma “forga constante” (ibidem: 17- 20). Vale dizer, o delineamento dos diferentes destinos da pulsio é um processo regular e repetido, mediante 0 qual 0 circuito pulsional assume diversas torgées e se apresenta de diferentes maneiras. Como disse, PHYSIS: Rev. Satiée Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1}: 123-144, 1998135, Joel Birman contudo, sem 0 Outro a ordenagio do circuito pulsional seria algo da ordem do impossivel, pois a forga pulsional seguiria inevitavelmente a via da descarga. Com efeito, pela mediag&o do Outro seria promovida a ligagdo entre a forga pulsional, os objetos e os representantes daquela. Sem o Outro, pois, 0 infante no poderia sobreviver, mesmo no registro da ordem vital. A resultante dessa ligacdo seria a instauragio dos princfpios do prazer e da constincia, j4 que nos primérdios existiria a primazia do principio do Nirvana (Freud, “Le probléme économique du masochisme”, 1973 [1924]). Isso quer dizer, pois, que os principios do prazer ¢ da consténcia seriam derivados e secundarios, produzidos que seriam pela transformagiio primordial do principio do nirvana. Encontra-se justamente aqui a inovagao freudiana face aos pressupostos do “Projeto de uma psicologia cientifica”, j4 que nesse texto o prazer e a constdncia assumiam a fungao de principios primordiais. Freud ento empreendeu a sua autocritica logo no inicio do ensaio sobre “O problema econémico do masoquismo”, quando o principio do nirvana foi enfim suposto como origindrio, em oposigo ao do prazer. A autocritica de Freud € bem evidente e de maneira literal. Assim, Freud enunciou que foi de forma “irrefletida que nés identificamos o principio do prazer-desprazer com o princfpio do nirvana” (Freud, “Le probleme économique du masochisme”, op. cit.: 287-288). Em seguida, ele péde concluir algo de seu erro: “Esta concepgao nao pode ser correta” (idem: 282). Com isso, todos os pressupostos iniciais da metapsicologia freudiana foram reordenados em outras bases. Isso porque, nesse novo contexto, o principio do prazer e © erotismo seriam coisas a serem conquistadas pelo sujeito, para que se tore possivel a ordem vital. A vida e a existéncia humana, em contraposigio & ordem da natureza, somente seriam possiveis se © principio do prazer © 0 erotismo se inscrevessem no organismo perpassado pelo mortalismo. Porém, se € agora pela mediaco do Outro que o mortalismo origindrio € transformado em prazer ¢ erotismo, tomando vidvel a existéncia humana, pode-se depreender facilmente que se esboga aqui uma teoria da dfvida simbélica, Com efeito, apenas nesse contexto a divida simbélica se delineia como uma questo crucial para o sujeito, na medida em que este apenas se constitui, de fato e de direito, pela transformagio realizada pelo Outro das forgas pulsionais, de forma a dclinear os diferentes destinos das pulsdes. Encontra-se aqui, enfim, a condigdo de possibilidade de uma teoria da divida simbélica em psicandlise, anteriormente inexistente. 136 PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 123-144, 1998 O Mal-Esiar na Modernidade e a Psicandlise: A Psicanilise & Prova do Social Em contrapartida, pode-se evidenciar por essa leitura como o desamparo € origindrio, na medida em que © sujeito precisa do Outro para se produzir e reproduzir permanentemente enquanto tal. Sem o Outro, pois, nao existiria © circuit pulsional, pois a forga tomaria a diregaio de descarga. Conseqiien- temente, pode-se bem depreender agora como a ética da “felicidade” da filosofia do Iluminismo nao é mais possivel neste outro contexto tedrico, Freud indicou isso desde o segundo capitulo de Mal-estar na civilizagdo, de forma irrefutavel, quando enunciou que, “tomado nesse sentido relativo, o unico que parece realizavel, a felicidade ¢ um problema de economia libidinal individual” (Freud, Malaise dans la civilisation, op. cit.: 29-30). Foi o arcabougo da ideologia do Tluminismo que ruiu aqui, que estava no funda- mento em seu ensaio “A moral sexual ‘civilizada’ e a doenga nervosa dos tempos modernos”, como jé indiquei anteriormente. Contudo, pode-se sublinhar a extensao da autocritica de Freud sobre a sua versao inicial, sobre as relagdes harménicas possiveis entre a pulsao e a civilizagao. Assim, as conclusdes de Freud sobre a impossibilidade ¢ os limites da “felicidade” humana foram retiradas a partir da critica inicial que ele dirigiu a Romain Rolland sobre a inexisténcia do “sentimento oceanico”, no primeiro capitulo de Mal-estar na civilizagdo. Para circunscrever devi- damente o alcance dessa critica, é preciso reconhecer que a objegio freudiana sobre 0 “sentimento ocednico” visava nao apenas a Romain Rolland, mas também A crenga do primeiro Freud sobre as poss{veis relagdes harménicas entre os registros da pulsio ¢ da civilizagéo. Podemos, pois, afirmar que Mal-estar na civilizagdo é uma critica sistemética dos pressupostos freudianos iniciais, sustentados na “Moral sexual ‘civilizada’ ¢ a doenga nervosa dos tempos modernos”, quando se acreditava ainda na harmonia entre a pulsao ¢ a civilizagao. Com o desamparo origindrio do sujeito, tudo isso se tornou insustentdvel e uma outra leitura da inscrigdo do sujeito na civilizagdo se tornou, entao, possivel. Portanto, 0 discurso freudiano nao sustentava mais a crenga na idéia de “progresso do espirito humano”, pela mediacio do logos cientifico. O desam- paro do sujeito seria o contraponto permanente a ideologia do progresso ¢ ao cientificismo iluminista. Pode-se sublinhar a presenga da critica das idéias de civilizagéo e de progresso no discurso freudiano jé em 1915, num comentdrio agudo de Freud sobre os efeitos destruidores da primeira Grande Guerra. Com efeito, em “Consideragées atuais sobre a guerra e sobre a morte”, Freud criticou 0 ideal civilizatério do progresso, baseado na tazao cientifica, ao se confrontar com a devastagao destruidora da guerra PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(4): 123-144, 1998 137 Joei Birman entretida pelos trés maiores representantes da civilizagéio ocidental, isto é, Alemanha, Franga e Inglaterra (cf. Freud, “Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort”, 1995 [1915]). A camificina da guerra, pois, era a revelagdo evidente dos limites e das ilus6es do progresso da dita civilizagio do Ocidente. Enfim, pode-se ja entrever a desconstrugao de Freud em sua Icitura inicial sobre as relagdes entre pulsio € civilizagao, que atingird o seu ponto culminante em Mal-estar na civilizagdo. Pode-se afirmar, ainda, que apenas nesse novo contexto tedrico e critico a problematica do desamparo foi inscrita no fundamento do sujeito e do pensamento psicanalitico, enquanto algo de ordem origindria. Com efeito, nao obstante o fato de que o significante desamparo tenha sido introduzido m precocemente no discurso freudiano, desde o “Projeto de uma psico- logia cientifica” (Freud, “Esquisse d’une psychologie scientifique”, op. cit.), existia aqui, contudo, a crenga de que poderia ocorrer o domfnio e a cura do desamparo do sujeito pela razao cientifica. Existe, no entanto, uma gran- de diferenga entre os registros da palavra e do conceito, pois somente nos anos 15 ¢ 20 € que o significante desamparo pode adquirir a transcendéncia de um conceito. Para isso, enfim, necessério foi que a crenga freudiana no poder do discurso cientifico, para promover “progresso do espirito humano”, tenha caido por terra e se espatifado em miiltiplos fragmentos, evaporando-se, pois, como fumaga e ilusao. Pode-se sublinhar, portanto, a presenga de uma critica na obra de Freud nfio da modernidade enquanto tal - 0 que seria ingénuo, j4 que a moderni- dade é uma producdo da ordem da histéria -, mas dos impasses que a modernidade constituiu para o sujeito. Essa critica se centrava naquilo que a ideologia do progresso e da razo cientificista prometeu no inicio do processo de modernizagao do Ocidente, no século XVIII. Vale dizer, essa critica se fundava na impossibilidade de uma reforma do espirito humano e da sociedade, tendo como base a ideologia cientificista do progresso e da civilizagéo. Reencontramos, aqui, 0 estilo trdgico de pensamento do discurso freudiano no fim de seu percurso, que era no apenas ausente no inicio, como também sera uma das fontes de discérdia da tradigéo psicanalftica pés-freudiana frente ao discurso freudiano. Natureza e Liberdade E preciso enunciar que pela reflextio do processo civilizatério Freud empreendeu efetivamente uma leitura sobre a modernidade, até mesmo 138 PHYSIS: Rev. ide Coletiva, Rio de Janeiro, &(1): 123-144, 1998, O Mal-Estar na Modemidade e a Psicandlise: A Psicanalise & Prova do Social porque a categoria de civilizacio foi constituida enquanto tal pela moder- nidade. Nos séculos XVIII e XIX, a problematica da civilizagfo se trans- formou numa questo crucial para a filosofia e as ciéncias humanas. Assim, & sempre a questo da modernidade que esté em pauta para o discurso freudiano quando este toma a civilizagdo como objeto de pesquisa e de reflexo. Portanto, a quest&o freudiana é de se indagar sobre os efeitos da modernidade sobre 0 sujeito, quando este se funda nas pulsdes como um de seus pélos. Esta leitura sobre a modernidade se realizou numa linguagem psicana- litica, efetivamente. Situa-se, aqui, a novidade do discurso freudiano sobre aquela, seguramente, Isso porque Freud retomou os termos e as problemé- ticas em que a modernidade era representada desde o século XVIII, ¢ deu a cles uma leitura fundada no sujeito e seus impasses. Foi por isso que Freud fez um recorte delineado pela idéia de conflito, no qual existiria uma oposigdo entre os pdlos da pulsao e da civilizagéo. Como vimos, esse con- flito foi figurado mediante duas versées opostas, pela qual a primeira versio supée uma harmonia possivel entre as polaridades, em que uma delas absorve e incorpora a outra nos seus termos; e a segunda supde a nao- conciliagdo possivel. Pela segunda versio, 0 sujeito é obrigado a realizar a gestdo do conflito nos campos politico e social, regulado que seria nisso pelos lagos sociais. Porém, se 0 discurso freudiano retomou os termos de uma problematica jé existente sobre a modernidade, nos séculos XVIII ¢ XIX, € necessdrio, agora, explicitar a que categorias Freud se referia quando as transvestiu numa linguagem psicanalitica. Com efeito, o discurso freudiano retomou a oposigao entre a categoria de natureza e a categoria de liberdade que marcaram a problemética da modernidade desde os seus primérdios. Nessa oposigao, a liberdade caracterizaria 0 valor construido pela moderidade, enquanto 0 registro da natureza seria 0 trago da tradigéo e de auto-regulagao presente no mundo pré-moderno, Como se sabe, o registro da liberdade foi a condigaéo de possibilidade para que fosse pensdvel a transformacado do mundo pré-moderno pelas individualidades no nivel politico e no nivel social. Além disso, foi a condigdo para se acreditar numa reforma da natu- reza das individualidades pela razdo cientifica, Finalmente, pelo pélo da liberdade a idéia de uma hist6ria humana seria possivel na medida em que as relagdes do sujeito com o registro da temporalidade se transformariam. Assim, a histéria toma o lugar da teodicéia na reflexdo sobre os destinos dos homens na ordem social. Da mesma forma, a razfo cientifica, atributo PHYSIS: Rev, Saude Coletiva, Rio de Jancizo, (1): 123-144, 1998 139 Joe! Birman maior que seria da autonomia e da liberdade humanas, assumiria o lugar do sujeito da inteligéncia divina. Tudo isso se desdobra nos conceitos de artifice e de artificialismo que passam a marcat as produgdes humanas, jd que como promogées do pélo da liberdade se oporiam ao pdlo da natureza. Constitui-se aqui, pois, a categoria de civilizagdo como desdobramento do polo da liberdade. Além disso, pela liberdade e pela raz&o cientifica o sujeito moderno assume uma configuracdo prometéica, desafiando os deuses ¢ a regulagao da natureza pela ética religiosa. Todas essas problematicas perpassam a construgao da problematica da modernidade, representada pela polaridade entre a natureza ¢ a liberdade. Aquela problemitica foi pensada tanto pela tradigao filos6fica de entio — recordem-se aqui, como alusao, as filosofias de Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Marx ¢ 0 Iluminismo — quanto pelos discursos das ciéncias humanas, que se constitufram nesse contexto histérico. Foram, pois, esses termos e problemédticas que o discurso freudiano retomou para desenvolver a sua interpretagdo sobre a modernidade. Esta pontuagio que realizo agora nao implica afirmar que Freud tenha tido um conhecimento filoséfico aprofundado e exaustivo dessas diferentes tradigdes tedricas. Absolutamente. Nao é o que pensamos. Porém, as questdes levantadas pelas diferentes tradigGes teéricas ¢ as solugdes que estas deram para tais indaga¢Ges estavam presentes nos campos discursivo e cultural de Freud. Foi daf que ele as retirou para desenvolvé-las numa perspectiva psicanalitica, buscando empreender uma leitura original fundada na oposigao entre pulsdo ¢ civilizagdo. Foi esta a matéria-prima das elaboragdes de Freud, que repensou entiio a modemidade pelos eixos do sujeito e da pulsio. Assim, pode-se dizer que a natureza dos antigos foi pensada pelo regis- tro da pulsio e que a liberdade dos modernos, pelo registro da civilizagao. Em sua versio inicial, o discurso freudiano acreditava que pela auto-regulagao da natureza seria possfvel ainda uma harmonia entre o registro da civili- zagao ¢ o da liberdade. O determinismo cientificista do primeiro discurso freudiano seria a revelagio mais elogiiente desse encaminhamento tedrico. Contudo, em sua versao final o discurso freudiano nao acreditava mais em tal harmonia, j4 que esta ndo mais seria possivel. Os conceitos de desam- paro e de mal-estar na civilizagio revelam a emergéncia da fragilidade humana num mundo onde nao seria mais possivel pensar na auto-regulagdo da natureza. Da mesma forma, o indeterminismo que marca o segundo discurso freudiano, do ponto de vista epistemoldgico, seria a evidéncia maior dessa nova elaboragio teérica. 140 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janciro, 8(1): 123-144, 1998

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