Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Rodolpho Caniato
CURRUPIRA
(Trecho de autobiografia)
CAMPINAS
2009
2
A
Antonio e Luiza, meus pais, de quem
aprendi muito cedo a responsabilidade
e também
a visão do lado belo e iluminado
da VIDA.
3
PARTE I
“Atalaia”
4
Primeiro endereço
ornados por hibiscos que, talvez por isso, tenham se tornado as flores que
mais tenho apreciado e cultivado nos meus jardins ao longo de toda vida.
Muitas vezes em meus passeios com minha mãe por essa praça, fui
chamado para dentro do restaurante para ganhar um biscoito “champanhe”
do gerente, meu pai.
O “Atalaia Hotel”
Poucos anos depois, em 1932, meu pai foi convidado para ser o gerente do
“Atalaia Hotel”, ali, bem próximo do Lido, na Rua (ainda não se chamava
avenida) Copacabana, entre as ruas Duvivier e Rodolpho Dantas. Era para
toda a família uma grande mudança para melhor. Passávamos a morar num
completo apartamento no primeiro andar, com elevador, telefone e rádio,
ao lado da sala do gerente. O hotel tinha um restaurante onde também a
família do gerente era servida e com especial esmero. Isso representava,
por um lado um conforto e por outro uma mudança de costumes. Para
freqüentar o restaurante era preciso estar vestido adequadamente e ter um
cardápio mais formal, nem sempre do agrado de nossos costumes mais
caseiros. Eu agora já tinha três anos.
O “Atalaia” havia sido construído pouco depois do Copacabana Pálace, o
“Copa”(1924). Tanto os terrenos do lado direito quanto na parte de trás de
nosso prédio eram baldios: capinzais. Mesmo a quadra da parte de trás do
“Copa” era de terrenos onde havia dois morros, desabitados, com mato,
ligados por uma ponte cuja finalidade nunca entendi. Num desses morros,
do lado da rua Rodolpho Dantas havia uma grande brecha horizontal, a
“toca” onde sempre se abrigavam os mendigos daquela região.
Grande parte do tempo eu passava andando pelas calçadas da frente de
nosso prédio. Mesmo a quadra da rua Copacabana, bem em frente ao nosso
prédio, só tinha um pequeno edifício, o “Itabira” e uma lojinha, a “Casa do
Ovo”. Na Avenida Atlântica, esquina da Duvivier, havia, creio que o único
edifício de apartamentos na orla da praia e que foi dos últimos daquela
geração a desaparecer. Tanto a Avenida Atlântica, quanto a própria praia
eram muito estreitas mas ornadas de palacetes, belas casas e os
característicos postes de iluminação.
6
e pessoa que me causou forte impressão pela gentileza e polidez. Ele vinha
ao Rio para tocar em orquestras, entre elas a da Confeitaria Colombo.Vinte
anos depois, eu já casado, ainda fui encontrá-lo em São Paulo e de sua
grande loja, no largo Paissandú, comprei, em 1955, um piano Kastner,
inglês, que o faz lembrado até hoje. Foi um dos grandes amigos de nossa
família.
Todas as manhãs, muito cedo, meu pai fazia uma sessão de ginástica pelo
rádio. Eram as aulas da “Hora da Ginástica” do Professor Oswaldo Diniz
Magalhães(1904-1998). Esse famoso professor dirigia ao vivo um
programa de ginástica, iniciado em 1932 que era acompanhado
ritmicamente por um pianista, também ao vivo, creio que na Radio Mairink
Veiga e que mais tarde se propagou em rede de várias emissoras. O
programa era também orientado por um grande mapa com as fotografias
13
Esses dois ícones do Rio de Janeiro sempre estiveram diante de meus olhos
e na minha memória. Isso não só pela sua beleza e originalidade como pelo
fato de serem pontos obrigatórios nos passeios, repetidos quando chegavam
amigos ou parentes dos dois lados de nossa família. O trem ou bondinho do
Corcovado foi inaugurado por Pedro II, embora o monumento(Cristo) só
tenha sido erigido em 1932. Eu ainda era muito criança mas me lembro da
expectativa e dos comentários que se seguiram a um fato de grande
importância histórica naqueles anos. Guglielmo Marconi, o inventor do
rádio e premio Nobel de Física (“Physica”,1909), acionou desde a Itália, a
bordo de um navio, um sinal de radio que fez acender a iluminação do
Cristo. E´ fácil imaginar tanto a expectativa quanto a repercussão que isso
teve. Era de fato um acontecimento mundial e que alvoroçava o Brasil,
especialmente o Rio de Janeiro naqueles anos trinta.
O Pão de Açúcar, essa extravagante sentinela, bem na entrada da baia da
Guanabara sempre foi muito presente especialmente para todos que
moravam do centro para o Sul do Rio de Janeiro. Sempre foi, além de um
verdadeiro ícone da cidade, o lugar onde se ia também para levar parentes e
amigos que chegavam à Cidade Maravilhosa. Sempre imaginei o que deve
ter sido a entrada da primeira caravela naquele cenário deslumbrante e
virgem. O deslumbramento que deve ter ocorrido a quem via pela
primeira vez esse panorama único. Deve ter sido extraordinário o momento
e surpreendente também a visão dos que estavam em terra, os índios, da
entrada da primeira caravela e ver de dentro dela saírem seres tão
diferentes.
carnaval. Certamente uma das de maior sucesso e que por isso ficou
gravada em minha memória foi “O teu cabelo não nega” de Lamartine
Babo. Acompanhando meus pais para assistir ao desfile das grandes
sociedades na Avenida Rio Branco, vi e ouvi as primeiras referências aos
bailes do Municipal, embora nunca tivesse entrado nele naqueles anos.
Getulio Vargas parece ter sido o primeiro político a entender o carnaval
como meio de comunicação, especialmente com as classes mais pobres da
sociedade.
2
Essa base se transformaria, depois, durante a Segunda Guerra Mundial, em Base Aérea de Santa Cruz.
20
O “cangaço” e Lampião.
21
O fato de estarmos num hotel frequentado por gente que vinha de outras
regiões do Brasil e de outros paises da Europa, além dos EEUU, fazia de
nossa casa uma caixa de ressonância de fatos e histórias que circulavam
pelo mundo. Meu pai como gerente e interprete era quem recebia os
principais clientes do hotel. Nosso principal hóspede, Mister Joseph, uma
vez por ano passava alguns dias nos EEUU mas preferia morar no Rio de
Janeiro, no “nosso” Atalaia. O casal Fosker também voltava sempre da
Europa, pelo menos cada dois anos. Isso fazia com que meu pai, alem de
22
O Caso Dreyfus
ecoou por todo o mundo e havia contribuído para que se compreenda até
onde podem ir a xenofobia e o racismo. Esse rumoroso caso foi uma das
coisas que muito ouvi em minha infância, dentro de casa, e na recepção do
Atalaia hotel dos anos trinta. Meu pai era especialmente interessado em
questões envolvendo os grandes processos jurídicos.
O circuito da Gávea
Outro aspecto marcante dos anos trinta de minha infância no Rio foi a
corrida de carros: as “baratinhas”, como eram conhecidos os carros de
corrida. Desde muito pequeno assisti a muitas dessas corridas nos ombros
de meu pai. Algumas vezes empoleirados nos andaimes de uma construção
próxima às margens da corrida. A corrida era feita nas ruas do jovem bairro
da Gávea. Não havia nem autódromo nem lugares especiais para os
espectadores. A partida era dada na rua Marquês de São Vicente. O trajeto
seguia pelo Canal do Leblon, depois de passar pela porta do Hotel Leblon,
entrava na avenida Niemeyer e depois subia por uma estrada de terra, o
“trampolim do diabo”, onde está hoje a favela da Rocinha, descendo pela
estrada da Gávea e rua Marques de São Vicente. Também assisti a
corrida de onde era dada a partida, na Rua Marquês de São Vicente,
próximo ao canal do Leblon. Pelo Brasil, corriam Manoel de Tefé,
chamado de Barão de Tefé em uma “baratinha amarela e Irineu Correa.
Aquele, venceu em 1934. O segundo marcou o início do automobilismo
brasileiro de competição. Muitas vezes, fora da corrida essas baratinhas
amarelas dos brasileiros, eram vistas estacionadas na então rua
Copacabana, entre o Lido e o “Copa”, em frente ao Atalaia. Em 1934 o
vencedor foi Irineu Correa. No ano seguinte aconteceu o trágico acidente
em que ele morreu. Sua baratinha capotou e foi cair dentro do canal do
Leblon. Assisti à corrida e ao grande tumulto que isso provocou. A cada
ano essa corrida se tornava mais popular e arrastava multidões. A partir de
1935 a corrida ganhou mais prestígio com a chegada de grandes nomes do
25
Uma vez por ano meu pai, tirava uns dias de férias para visitarmos os
parentes em São Paulo. Para mim isso representava um ansioso alvoroço.
Desde a véspera eu acompanhava o arrumar das malas por minha mãe. Às
seis horas já tomávamos o táxi que nos levaria à estação Pedro II .
Atravessar o Túnel Novo em táxi, ainda com escuro produzia em mim um
efeito mágico: o passar rápido das luzes do túnel refletidas no capô do táxi.
Na estação, o burburinho das pessoas, dos carregadores de bagagens e o
embarque eram um verdadeiro “agito”. Depois de colocar as malas à bordo,
meu pai me levava para ver a grande locomotiva “Baldwin”, americana que
26
Minha avó materna era suíça. Ela se havia separado de meu avô por
discordar do projeto de vir de um belo chalé na Suiça para um casebre em
Campo Limpo Paulista. Por isso vivia na casa da sua filha, minha tia Elza.
Esta era casada com um português, o tio Domingos. Ambos trabalhavam no
Hotel Esplanada, atrás do Teatro Municipal de São Paulo. Ela era
encarregada das “arrumadeiras” de um dos andares e ele “ascensorista”,
operador no elevador dos freqüentadores do hotel. Ambos saiam para o
trabalho muito cedo e voltavam durante a tarde. Assim, a administração da
casa era feita por minha avó. A casa tinha por isso um jeito todo suíço. A
limpeza era impecável e as camas, com edredons de penas de ganso tinham
um cheiro especial, um cheiro suíço. A sala tinha uma arrumação
minuciosa, presidida por um relógio vindo da suíça com a família e que
tocava suavemente a cada quarto de hora. O fogão a gás com bujões que
eram importados, era usado com econômica racionalidade. As panelas
tinham dois “andares”, visando o aproveitamento do calor. Nessa casa
vivia meu primo Marcel, o “Mausi”, pouco mais novo que eu, criado por
essa minha avó e uma tia. A família Schwyzer, de minha mãe, havia
chegado da Suíça em 1920 com o navio “Contessa Mafalda”, logo que se
restabeleceu a navegação de passageiros depois da Primeira Guerra
Mundial. Um dos irmãos de minha mãe, o tio Fritz, com dezoito anos
deixara na Suíça uma namorada, Maria, ainda menor. Quando ela
completou a maioridade, foi feito o casamento por procuração. Ela
embarcou em Gênova para vir encontrar o jovem marido. Os Schwyzer
foram recebê-la em Santos. Nove meses depois nasceu o meu primo mas a
jovem Maria, morreu no parto. Tia Elza, irmã de minha mãe e minha avó
assumiram a criação do menino Marcelo, meu primo. Esse meu primo, o
“Mausi”, foi aquele que correu apavorado para dentro de casa chamando a
avó por ter viso “uma grande salsicha voando” quando viu pela primeira
vez em São Paulo o Graf Zeppelin. Meu tio Domingos não era um homem
culto ou que lesse muito, mas tinha modos e falar muito polidos pois que
convivia o dia todo com hóspedes ilustres naquele que era o hotel mais
sofisticado da época em São Paulo. Seu aspecto era de um senador: terno
29
De volta ao Atalaia
O Hotel Atalaia
Meu pai, Antônio Caniato, o “Toni” para os pais e irmãos, era o filho mais
velho e o líder de uma irmandade de seis irmãos e uma irmã. Ele havia
nascido na Fazenda “Macuco”, na região de Campinas,SP, no mesmo ano
em que se inaugurava a grande Estação da Luz(1901). Seus pais, meus avós
paternos, eram imigrantes italianos vindos do Vêneto: ele de Rovigo, ela de
Treviso. Quando meu pai tinha pouco mais de uma ano, meu avô, José, o
“Beppi” Caniato, consegui um pouquinho de dinheiro, o suficiente para se
livrar daquela quase escravidão nos cafezais, para tentar a vida em São
Paulo. Logo conseguiu um emprego na fábrica de vassouras Fracalanza.
Trabalho e dedicação o promoveram para fabricar vassouras de “luxo com
acabamento em veludo” que eram destinadas às grandes residências e
palacetes de São Paulo. Ainda muito criança, meu pai o acompanhava e
ajudava no trabalho da fábrica. O ganho era por produção; por isso a
necessidade da ajuda, mesmo de crianças. Era preciso fazer uma longa
viagem de bonde, pelas frias madrugadas de São Paulo. Chegado à idade
da escola, o progresso do “Toni” foi notado pelo professor. Ainda guardo a
32
A Gerência do “Atalaia”
O Atalaia Hotel tinha onze andares e havia sido construído logo depois do
“Copa”, por volta de 1926. O bairro passava por um surto de progresso e
novidades. Depois de 1929 os eternos problemas do Brasil passavam por
mais um agravamento. A quebra da bolsa de Nova York havia quase
eliminado a exportação do café, a principal fonte de riqueza no Brasil.
Todo o comércio do país se ressentia disso. Meu pai assumiu a gerência em
1933. Além dos problemas do fraco desempenho da economia, a falta de
gente com qualificação para desempenho de uma grande diversidade de
funções, especialmente num hotel, era uma grande questão. O
funcionamento do hotel exigia gente com algum preparo para o
desempenho de cada função. Mas isso quase não existia. Não havia, ou
eram raríssimas, as pessoas que tinham alguma experiência prévia em cada
uma das áreas necessárias ao funcionamento de um hotel. A falta de
pessoal para executar mesmo as tarefas mais simples se constituía num
grande problema. A arrumação das camas, por exemplo, assunto dos mais
óbvios em um hotel, se constituía num grande problema. Era muito difícil
conseguir mulheres que tivessem alguma competência para aquela tarefa
simples. A higiene de banheiros: outro problema. Essas limitações na
34
Hoje isso não representaria nenhum problema. Mas no começo dos anos
trinta não havia disponíveis remédios eficazes para curar essa verminose.
Só havia tratamentos paliativos. Eram necessários cuidados com a
alimentação e esses seriam impraticáveis comendo-se em restaurante. Foi
quando minha mãe passou a cozinhar em nosso apartamento. Começaram
minhas restrições em relação a comidas e necessidades dos remédios
paliativos. Eu precisava ir frequentemente ao médico para exames. Isso
modificou bastante nossas vidas pelas restrições impostas pelo médico. Eu
perdi um pouco da minha liberdade nas brincadeiras e nas andanças pelos
terrenos baldios e ruas das vizinhanças. Fiquei um pouco estigmatizado
com essas limitações. Minha mãe redobrara os cuidados com minha
alimentação e mais vezes era preciso ir ao médico que ficava na Avenida
Princesa Izabel. Parece difícil acreditar que naqueles anos trinta uma
simples verminose, hoje tão corriqueira não tivesse um remédio específico
mas apenas paliativos. Muitas vezes nos ocorre dizer que “antigamente”
tudo era melhor. Hoje imagino que o médico possa ter dito que embora
não houvesse um remédio específico para minha “amebiana”, talvez ela
desaparecesse espontaneamente com alguma mudança de clima ou
simplesmente de águas.
O “clima” pré-guerra.
Logo depois ele se casou com uma tecelã de Sorocaba, Izabel Ocaña e teve
dois filhos: Wilson e Regina.
Nunca me foi dito por meus pais mas um motivo me perece pode ter tido
também algum peso na radical decisão deles de irmos de Copacabana para
Currupira, seu pedacinho de terra, comprado na mocidade. Talvez diante da
ausência de remédios específicos para curar minha “desinteria amebiana”,
o médico tivesse dito que era possível um cura espontânea com alguma
“mudança de ares, de águas e de clima”. Isso sempre ficou para mim como
uma suspeita. Era o começo de 1938. A decisão de ir embora estava
tomada.
Em poucos dias minha mãe arrumou as malas para a mudança. Nós iríamos
de trem e um caminhão levaria a mudança. Acompanhei com grande
ansiedade aquela atividade que prenunciava mudanças radicais em nossas
vidas. A última coisa que vi ser colocada sobre o caminhão foi uma velha
bicicleta que meu comprou de última hora não sei de quem. E´ que
recentemente eu havia aprendido a “andar de bicicleta” num de nossos
passeios a Paquetá. No dia seguinte um táxi às 6 horas nos levou à estação
Pedro II da Central do Brasil. Embarcamos em meio a aquele burburinho
de um trem que se ia lotando, envolvido pelo “clima” das despedidas,
lágrimas, bagagens, fumaça e ruídos. Enquanto a locomotiva a vapor do
expresso começava a se por em movimento a bufar e apitar ficava
definitivamente para trás minha infância nas calçadas de Copacabana. Não
pude me despedir de meu amiguinho Mario, tão amigo e que eu nunca mais
voltaria a encontrar.
Como já acontecera outras vezes, depois de doze horas de trem chegamos a
São Paulo. O táxi do Paschoalim, o taxista conhecido dos Caniato nos
39
levou à rua Guayauna, casa de meus avós. Essa era a escala necessária
também para o caminhão cujo motorista nunca tinha ouvido falar em
Currupira, destino final da mudança. Não havia nenhuma grande estrada
asfaltada no Brasil, mesmo entre Rio e São Paulo. O caminhão com a
pequena mudança só chegou depois de três dias de viagem, coberto da
grossa poeira. Aí seria acrescentado à mudança um cachorrinho preto,
ainda filhote, que viria a ser, por anos, meu fiel e inesquecível
companheiro, O “Duque”.
40
PARTE 2
CURRUPIRA
(DE COPACABANA PARA O MATO)
A partir da Penha foi mais um dia inteiro para chegar ao “nosso” sítio, o
Sítio dos Caniato, no bairro dos Fernandes, a cerca de dois quilômetros da
41
A casa era a sede de uma das glebas contíguas que meu pai havia comprado
na sua mocidade. Ele nunca havia morado aí, embora aí já tivessem morado
seus familiares. Eu mesmo, ainda muito criança aí havia estado em visita
aos tios que agora sairiam para que nós aí ficássemos morando.
A casa era grande e antiga. Não havia na região nenhum sinal de luz
elétrica a não ser a linha eletrificada da Companhia Paulista de Estradas de
Ferro, para os trens que passavam num aterro a mais de um quilômetro.
Também não havia água encanada. O piso da casa era de tijolo já bem
gasto, apenas rejuntado de cimento. A privada, distante cerca de 25 metros
da porta da casa, era apenas um cubículo de tijolo com portinha de madeira.
No lugar de vaso sanitário havia apenas um buraco numa pequena laje de
concreto que tampava a fossa. Ao lado da casa havia um poço com balde,
corda e roldana para tirar a água de uso na cozinha. Próximo da casa, a uns
dez metros da entrada, passava um córrego com uma bica que, dia e noite,
despejava água dentro de uma grande tina de madeira. Era o lugar a céu
aberto, destinado e se lavar a roupa, mãos, rosto e dentes. Pouco abaixo da
casa ficava um grande rancho coberto com sapé onde eram guardadas todas
as ferramentas, a carroça e os arreios, tanto de montar quanto outros
apetrechos. Do lado de baixo do rancho, como um puxado, era o lugar em
que se armazenava lenha cortada e seca. O fogão rústico de lenha tinha ao
lado o pequeno depósito da lenha de uso imediato e o borralho onde se
acumulava a cinza retirada do fogão. As portas internas tinham trincos com
grandes chaves e traves de ferro que entravam no batente em cima e no
chão de tijolo. Havia forro de madeira apenas na sala e eram muito comuns
as goteiras que faziam a gente correr para acudir com baldes, latas ou
bacias em dias de muita chuva. A uns trinta metros, atrás do rancho ficava
a horta que junto com o galinheiro, desempenhava um papel fundamental
no abastecimento da casa. No obrigatório chiqueiro que ficava mais longe
da casa, era engordado o porco, parte também importante para o
43
Quando chegamos a casa era habitada por meu tio “Nino”, sua mulher,
Roseta Carbonari e meu tio Joãozinho, solteiro. Eles já aí viviam havia
alguns anos e tiravam seu mais que modesto sustento do cultivo de uvas. O
casal estava deixando a casa em que chegávamos. As uvas cultivadas eram
as variedades “Barbera”, “Izabel”, ambas pretas, e um pouco de “Niagara”
branca. Ainda não havia acontecido a mutação espontânea que poucos anos
depois daria origem à variedade Niagara rosada, uma mutação espontânea
da branca, até então a única uva de mesa no mercado. O tio Joãozinho que
ficaria conosco era um homem de estatura média, muito forte, trabalhador,
bom cavaleiro e tinha uma bela voz de tenor que se acompanhava ao
violão. Meu tio Nino era uma pessoa muito especial. Homem muito
inteligente, sempre foi um autodidata muito estudioso e de honestidade
linear. Durante muitos anos, à noite, à luz de lampiões ele deu aulas de
português e cultura geral para os vizinhos que além de professor o
consideravam um conselheiro. Para tanto ele se obrigava a estudar à noite,
muito e sempre. Ele viria, décadas depois, do sitio, para se tornar vereador
e presidente da Câmara Municipal de Jundiaí. Antes de nossa chegada ele
havia sido convidado por seu cunhado, Luiz Carbonari, este, viticultor já
estabelecido no bairro do Traviú e bem sucedido, para um empreendimento
novo em viticultura. Esse empreendimento constituiu-se na compra do
“Varjão”, parte de uma grande e abandonada sesmaria da família Mesquita,
então, os donos do “Estadão”. O projeto que meu tio e seu cunhado
desenvolveram transformou-se nos “Vinhedos Extravitis”, de sucesso e que
44
Nos primeiros dias, tive que ir comprar leite num vizinho, na família
Bôrtolo. Logo trataríamos de ter nosso próprio suprimento desse
indispensável produto .
Como o leite era de importância para toda a família. Meu pai logo tratou da
compra de nossa primeira vaca. Ainda de madrugada ele saiu com o tio
Joãozinho para ir fazer a compra da vaca nuns antigos conhecidos: a
família Biasi. Eles moravam longe, na Abadia, estaçãozinha de uma
pequena estrada de ferro chamada “Itatibense”. Entre Louveira e Itatiba.
Como carroças não podiam trafegar na estrada de rodagem estadual,
mesmo sendo estas só de terra, era preciso fazer voltas e o caminho ficava
mais longo. Já o sol se havia posto quando com grande ansiedade ouvimos
o latido dos cachorros da vizinhança. Eu e minha mãe saímos pela nossa
porteira e fomos ao encontro de meu pai com a preciosa novidade. Ele
havia comprado uma linda vaca, a “Pombinha” que vinha acompanhando a
carroça onde estava sua recente cria, uma linda bezerra marrom de longas
orelhas. A “Pombinha” era uma vaca de meio sangue holandês, branca com
manchas marrom quase vermelho e de chifres curtos e curvados para
frente: parecia uma vaquinha de reclame de chocolate suíço. Eu e minha
mãe havíamos gasto grande parte do dia no preparo para a recepção dos
novos integrantes de nossa família. A cocheira de sapé estava toda limpa e
arrumada para receber as novas moradoras, mãe e filha. Foi uma grande
recepção e muito nos alegramos em ver a bezerrinha mamar sofregamente e
depois deitar em seu pequeno “quartinho” limpo e macio, com cerquinha
de bambu e cobertura de sapé. Antes que o sol raiasse era preciso fazer a
ordenha e pôr a bezerra a mamar. Eu e meu pai fomos como ajudantes,
amarrando o rabo da vaca e fazendo outros serviços periféricos. Embora
minha mãe nunca tivesse lidado com uma vaca. sua disposição e empenho
compensaram sua falta dessa experiência. Em poucos dias ela já o fazia,
senão com perfeição mas com destemor, total segurança e eficiência. Todos
os dias tínhamos dez litros de leite além do que a bezerra mamava. Em
nossa inexperiência, logo nos afeiçoamos a esses animais quase como se
46
Não sei explicar como nem por que as coisas aconteceram assim.
Inexplicavelmente ocorreu em mim uma grande transformação. Em poucos
meses eu estava completamente adaptado à nova vida. Talvez a tal
mudança de “clima e de águas” tenha feito o “milagre”. Nunca mais se
falou qualquer coisa que lembrasse a “diarréia amebiana” que me limitava
a vida em Copacabana. Na verdade tínhamos mudado de águas, de clima,
de tudo. Meus pais não me puseram qualquer limitação e eu fui assumindo
novas funções, especialmente as relacionadas com os animais.
Frequentemente, aos sábados, meu tio Nino vinha nos visitar. Ele vinha de
longe, de um novo bairro chamado Poste, mais ou menos uma hora a
cavalo. Ele vinha montado em sua “Odalisca”, uma grande e garbosa égua
baia e marchadeira. Quando chegava, ele me entregava o belo animal, bem
arreiado para que eu tomasse conta, com a autorização para “dar uma
volta”. Eu montava e saia na “Odalisca” em bela marcha até um trecho
visível da estrada. Já longe da vigilância eu fazia a égua dar toda sua
potência em um grande galope. Depois voltava à sua marcha, na chegada. E
´ que eu logo me tornara muito habituado a cavalgar “em pelo”, sem
arreios.
Com uma segunda vaca, uma holandesa grande e boa leiteira, a “Medalha”,
comprada com sua bezerra na fazenda Barreiro, perto de Louveira,
aumentaram muito minhas obrigações de manejo. Essas duas vacas de leite
nos forneceram juntas ou alternadamente, leite durante os cinco anos de
nossa vida em Currupira. Logo aprendi e assumi todo o manejo das vacas e
bezerros, deixando para minha mãe apenas a ordenha. Essa prática me
conferiu, sem que então me desse conta disso, uma enorme auto confiança
48
Um desastre de “cabriolé”.
Quando chegamos ao sítio dos Caniato, ai moravam, meu tio Nino com
sua mulher Roseta (Carbonari) e o tio Joãozinho, solteiro. Todos já haviam
morado algum tempo no Rio e de lá haviam trazido dois vira-latas de
55
cantando se acompanhava ao violão. Meu tio Luiz, com a saída de meu pai
da gerencia do “Atalaia”, foi da Penha(São Paulo) para ocupar a vice-
gerência do Atalaia, no Rio de Janeiro. Quando conseguia uns dias de
férias, vinha passá-los conosco no sítio em Currupira. Sempre foi o mais
alegre e brincalhão dos irmãos. Era muito querido por todos. Eu esperava
com grande ansiedade sua chegada pela alegria que vinha com ele além de
ser o querido “Giggi” de minha avó. De vez em quando vinha da Penha, de
São Paulo, minha tia Maria, única mulher entre os irmãos Caniato. Ela
trazia suas três filhas: Rute, Norma e Anininha. Norma, a do meio, não
queria mais tomar leite quando descobriu de onde saia o leite: nunca antes
havia visto uma vaca.
Minha mãe e minha vó conseguiram conviver num clima de cordialidade e
divisão de terefas e nas horas de folga, enquanto minha mãe fazia crochê
ou tricô minha vó Ana dava altas gargalhadas das piadas que minha mãe
inventava. O trabalho principal de minha avó era o preparo da sopa de
feijão e a obrigatória polenta do jantar. Essa era o resultado de uma
operação curiosa e de que dependia a qualidade de polenta continuamente
remechida no “parollo” , a grande panela de ferro,com uma grande colher
de pau, enquanto as bolhas quentes espoucavam na superfície escaldante. A
finalização dessa operação era uma “apoteose” culminava com a “derrama”
da polenta na tábua redonda, já sobre a mesa, onde todos aguardavam. A
polenta vinha logo depois da sopa de feijão com macarrão.A polenta era
acompanhada com fritada de “codeguim”, um lingüiça feita com couro de
porco. No período da quaresma minha avó fazia no forno de barro, fora da
casa, uma espécie de pão doce que se chemava “bussolá”, com aroma de
“sambuca”, uma espécie de essência de erva doce. Para mim ela fazia um
desses pães em forma de uma pomba. Só na minha velhice vi aparecer no
comércio a “colomba pascal”. Coisa curiosa era o teste de que o forno
estava quente o suficiente para assar o pão: lascas de massa do pão eram
colocadas no forno. Quando o forno atingia a temperatura certa, os pedaços
de massa de amostra se contorciam em “stregas”(bruxas), ficando logo
assados. Esse subproduto do ritual de assar o pão era disputado e eu sempre
ganhava o meu quinhão. Hoje, algumas padarias de italianos ou “oriundi”
57
Dona Luiza, minha mãe, havia chegado da Suíça para São Paulo com 15
anos, em 1920. Seu pai, meu avô materno era chefe de trem na Suíça. Não
eram ricos mas tinham um bangalô próprio de dois andares e até maquina
de lavar roupas. Ela era a penúltima em idade entre cinco irmãos. Todos
haviam feito boa escola primaria em Wettingen, no cantão de Aargau,
próximo a Zurique. A chegada ao Brasil acabou por separar a família e
todos tiveram que assumir suas vidas. Depois de trabalhar em casa de
várias famílias alemãs e suíças ela e a irmã mais velha foram trabalhar no
Esplanada, como camareiras. Nessa fase ambas já haviam feito alguma
61
Um poliglota na enxada.
Meu pai também assumira seu projeto com determinação. Afinal embora
tivesse sempre ouvido minha mãe, a decisão para a mudança radical havia
sido dele. Aquele homem polido que tratava com pessoas das mais
diferentes procedências e falava vários idiomas, tinha uma invejável
redação e caligrafia, agora puxava enxada, juntava esterco e abria covas
para plantar suas novas videiras. Logo o rosto escanhoado todas as manhãs
ficou barbudo, crestado pelo sol e pela poeira. O terno e gravata alinhados
e diários cederam lugar a um “culote” caqui feito por minha mãe e
perneiras de couro. Sua coragem e determinação foram notáveis e
exemplares. Logo no entanto ele se defrontou com uma característica e
limitação sua: a impaciência. Nos primeiros tempos do nosso “mato”, meu
pai ajudava minha mãe na ordenha. Logo sua impaciência e irritabilidade
se tornaram percebidos no trato com nossa querida vaca de leite, a
“Pombinha”. Muitas vezes a vaca não fazia ou não ficava na posição que
meu pai entendia como necessária ou melhor. Ele ficava impaciente,
tentando forçá-la a fazer como ele achava. Da impaciência ele ia
rapidamente à irritação e à raiva. Logo a relação dele com a Pombinha
ficou tensa. Essa relação piorou muito quando, já fora da hora de ordenha,
meu pai, inconformado com alguma “teimosia” da vaca, deu-lhe uma
paulada. Ela passou a ter medo dele. Uma vaca com medo ou “nervosa”
“suspende” o leite. Nós, os três, percebemos que era melhor que meu pai se
afastasse dessa tarefa; a Pombinha “escondia” o leite se ele estivesse por
perto. Essa foi uma circunstância que naturalmente me “promoveu”
definitivamente a ajudante de minha mãe na ordenha. Com isso eu evolui
rapidamente para ser o responsável pelo nosso pequeno rebanho. Em pouco
tempo me tornei hábil na montaria em pelo e adquiri autonomia em todas
atividades de manejo com os animais, menos na ordenha que continuou
sempre a cargo de Dona Luiza, minha mãe. Mesmo um touro nosso que
amedrontava todo mundo, não constituía problema para mim por conviver
próximo e conhecer bem seus hábitos. Eu me divertia provocando e
fazendo-o chifrar o chão e levantar poeira com as patas dianteiras.
63
Todo mundo sabe que a lactação tem a ver com a cria. As vacas começam a
produzir leite quando nascem seus bezerros, depois de alguns dias de
colostro. Bezerros nascem nove meses depois de serem as vacas cobertas
pelo touro. Portanto é muito importante saber para quando a vaca deverá
ter sua cria. Por essa razão eu tinha também a incumbência de observar o
comportamento da vaca e do touro. Muitas vezes o touro tentava cobrir
uma vaca sem que ela permitisse o final do intento. Só quando ela está
mesmo no cio é que ela se deixa cobrir sem sair de baixo do touro. Essas
minhas observações eu relatava à minha mãe para que ela anotasse na
“folhinha”, como se chamava o calendário. Se a vaca se deixou cobrir,
nove meses depois ela deve parir e, portanto, produzir leite. Essa minha
observação passou a ser de importância “estratégica” para o leite de
família. Daí para frente acompanhei o cio das vacas, as coberturas do touro
os partos de nossas vacas e os problemas que às vezes acompanham esse
evento. Num dos relatos que fiz à minha mãe sobre uma de nossas vacas de
leite, descobri algo novo para mim. Eu tinha já idéia clara e acompanhava
aqueles fatos ligados ao cio das vacas, cobertura do touro, prenhez,
nascimento dos bezerros e sua amamentação e a produção do leite. Isso era
parte das minhas tarefas de todo dia. Num desses “relatórios” correu-me
perguntar à minha mãe se isso era parecido ao que acontece com a gente.
Ela calmamente respondeu-me que “era quase igual”. No momento
pareceu-me chocante, especialmente tendo presente meu testemunho da
cobertura do touro. Eu não havia pensado nisso, principalmente naquele
“era quase igual”. Eu começava a ver o mundo e as pessoas de um modo
um pouco “diferente”. Durante dias fiquei “ruminando” aquela idéia, até
digerí-la: então “....entre as pessoas..... era... quase.... igual..................?”.
64
Meus novos amigos eram garotos das famílias vizinhas, quase todos
sitiantes de origem italiana. Isso era outro aspecto curioso de minha nova
vida. Dos cariocas de Copacabana para os moleques que nunca haviam
estado em uma cidade. Os mais chegados eram os irmãos mais novos da
família Antonio Ceolim: Orlando e Mário. Orlando era o mais próximo
pela idade e pelo temperamento mais gentil e interessado em ouvir. De
Copacabana eu levara para o sítio um baú com os brinquedos acumulados
em vários natais. Isso era um forte atrativo para meus amigos que nunca
haviam visto nada igual: ficavam encantados. Esses dois frequentemente
vinham à nossa casa, sempre descalços e de calças curtas de suspensórios.
Aos domingos, um dos programas era bater longos papos, sentados no
pomar dos Ceolim. Primeiro colhíamos um monte de laranja lima e laranja
cravo. Depois chupávamos laranja até não agüentar mais. Essa era a hora
de grandes conversas. Hoje eu diria que foi um grato e útil encontro de
diferentes culturas. Eu ainda não sabia nada das coisas familiares para eles:
fazer e usar estilingues, arapucas, alçapões, bolas de meia e tantas outras
coisas. Eu nunca havia descascado uma laranja. Aqui todos tinham seu
canivete marca “Corneta” para isso. Fazer as necessidades, era sempre no
“exterior”. Só havia uma privada em casa e ninguém voltava para casa para
isso. Era só buscar um lugar um pouco mais discreto e “soltar o barro”. No
lugar de papel higiênico sempre se usava algumas folhas. Quase todos,
menos eu, tinham fezes secas e duras e nem folhas usavam. No começo eu
ainda levava do Rio a minha “amebiana” que sem qualquer medicação
também desapareceu. Por outro lado eu tinha muito que contar e eles
estavam ávidos por saber. Eu vinha da capital do Brasil: conhecia o mar,
vira navios, aviões, auto giro, o futuro helicóptero e sobretudo vira várias
vezes o “Zeppelin”. Era muito assunto. Eles queriam que eu contasse e eu
gostei de contar. Todos aprendemos algo de novo. Logo comecei a por em
prática as novas coisas aprendidas. Fiz muito estilingue, arapuca, alçapões.
65
café, às seis horas da manhã, ele saia para a viagem de muitos quilômetros
para o trabalho na cooperativa em Louveira Lá ele passava a manhã. A
bela égua marchadeira ficava durante toda a manhã amarrada ao moirão da
porteira da estação.Quando chegavam em casa, cavaleiro e montaria
estavam sedentos, cansados e empoeirados pelos muitos quilômetros pelo
estradão. Eu tinha um serviço adicional: livrar a égua dos arreios e tratá-la.
Ela logo se espojava em reviravoltas pela grama. Era preciso dar-lhe
também um “almoço” com milho.Toda nossa pequena família acabava
sendo onerada com o projeto da cooperativa. Meu pai deixando nosso
trabalho na uva. Minha mãe com o prolongamento das tarefas ligadas à
cozinha. Eu fiquei sozinho no meio do nosso talhão de uva. Com isso fui
ficando muitas horas sozinho em meio ao trabalho do nosso parreiral. Um
dos muitos trabalhos mais pesados em quase todas as culturas é o da carpa.
E´ preciso carpir o mato que invade e compete com a plantação. Eu, mesmo
com o dia todo de trabalho solitário já não estava dando conta. Eu era ainda
um adolescente mas já assumia o trabalho de roça em igualdade de
condições com meu pai. A falta dele durante metade do dia fez atrasar
nosso trabalho de carpa. Durante metade do dia eu trabalhava sozinho em
meio ao parreiral. Muitas vezes, além do cansaço físico, a perspectiva e a
quantidade de trabalho pela frente me faziam quase desanimar. Muitas
vezes, cansado, me apoiava no cabo da enxada para um pequeno descanso.
Do alto da colina, minha mãe acenava para me animar e me induzir ao
trabalho que eu tinha diante de mim. Com o passar das semanas nosso
trabalho ficou muito atrasado e eu não estava conseguindo vencer a
empreitada. O mato estava crescendo e naquele ritmo quando eu chegasse
ao fim já deveria começar de novo na outra extremidade da quadra. Numa
dessas manhãs em que me sentia quase desanimar, impotente diante de
tanto mato que crescia, tive uma surpresa que ficaria na minha memória
para sempre. Os vizinhos desde longe estavam vendo que eu estava sendo
vencido pela tamanho do trabalho. Apesar de todas as dificuldades em
entender sobre cooperativa e seus mecanismos, espontaneamente se
juntaram e vieram todos com suas enxadas. Ninguém disse nada. Todos se
puseram a carpir à minha volta. Eram nossos queridos vizinhos das duas
famílias Ceolim, mais dois de meus tios. Ao fim da tarde, quando passava o
70
trenzinho misto que era nossa “senha” para o fim da enxada, toda minha
uva estava carpida. Além do alívio para mim e para meus pais foi uma
grande experiência sobre amizade e solidariedade. Eles podiam não
entender muito da cooperativa que meu pai imaginava para todos, mas
mostraram entender muito de cooperação.
Trovões e relâmpagos
O calor durante o dia havia sido abrasador, mais que de costume. Além do
calor e do ar abafado, parecia que os dias anteriores, naquelas vésperas de
verão, haviam feito acumular no horizonte nuvens escuras, muito baixas,
carregadas e ameaçadoras. Eu e meu pai havíamos trabalhado o dia todo na
enxada, debaixo daquele sol inclemente, carpindo nosso parreiral, nossa
fonte de renda e sustento. Embora fosse época das chuvas, já havia muitos
dias sem elas. As nuvens pareciam cada dia mais ameaçadoras. Uma
“chuva de pedra(granizo) era nosso grande temor. Nossos horários eram
todos regulados pela passagem dos trens da “Paulista”. Duas vezes por dia,
às 11:00 às 16:45 passava um trenzinho chamado de “misto”. Era um trem
constituído apenas pela locomotiva e por dois vagões: um para pequenas
cargas e um de passageiros só de “segunda”. Era uma espécie de “cata
caipira” que parava nas pequenas estações, como Currupira, para as
pessoas que dele se serviam para ir fazer alguma compra ou ir ao médico
“na cidade”, em Jundiaí. A passagem desse trenzinho, o “misto” das 16:45,
era a “senha” para que eu deixasse o trabalho que estivesse fazendo e sair
para uma série de outras tarefas obrigatórias do fim do dia. Essas tarefas
começavam por “engatar”(atrelar) a carroça, ir cortar e trazer para o
piquete a carroçada de capim, distribuí-lo no piquete e depois ir recolher
nosso pequeno rebanho que ficava num pasto mais distante, onde ainda
havia uns alqueires de mata Atlântica. Nosso pequeno rebanho era
constituído por duas vacas leiteiras (Pombinha e Medalha), seus bezerros,
algumas vacas “solteiras”, algumas novilhas e o touro. Preparado o piquete
71
nossa real pequenez sobre a Terra pode nos ajudar a perceber a importância
da solidariedade para diminuir nossa solidão.
Os banhos no “tanque”.
A uns 500 metros de nossa casa, dentro de nosso sítio, havia um açude.
Devia ter aproximadamente uns 100 metros de comprimento por uns 20 de
largura e de 3 a 4 metros nos lugares mais fundos. Era um lugar com várias
finalidades. Servia de bebedouro para os animais, por ficar em um pasto, de
banho dos sábados e de nosso “balneário” para natação e brincadeiras
aquáticas. No verão aos sábados à tarde, depois de completadas as
obrigações era ora de um grande banho, o banho de sábado. Aí vinham do
sítio vizinho meus três tios ainda rapazes, Américo, Mario e Joãozinho.
Uma grande prancha de peroba fazia as vezes de trampolim para os saltos e
piruetas em que cada um exibia suas destrezas, alem do banho com muito
sabonete. Um desses meus tios, o tio Joãozinho, além de boa voz de tenor e
bom cavaleiro era extremamente vaidoso e namorador. Como não havia
desodorantes ou qualquer outro aromatizante masculino, tio Joãozinho
depois do banho ainda dava mais uma demão de sabonete sem o retirar do
corpo: era para ficar “perfumado”. Além do banho, o “tanque” era um
espaço para uma de minhas diversões aquáticas prediletas ao domingos de
calor. Eu descobrira que as bananeiras são ótimos flutuadores. Nosso
bananal fazia fronteira com o açude. Várias bananeiras amarradas juntas
com cipó de “São João” faziam uma perfeita jangada. Uma vara de bambu
era um varejão para empurrar a jangada. Nosso bananal era constituído de
banana “nanica”, de caules curtos. Longe do açude tínhamos também
alguma touceiras de banana “São Tomé”. Essas tinham caules muito altos e
compridos. Uma só dessas seria suficiente para navegar. Foi preciso
transportá-la com carroça: era muito pesada para eu carregar. Valeu o
sacrifício. Montado a cavalo nessa grande bananeira, naveguei por todo o
açude, usando como remo duplo um pau com duas pequenas tábuas de
caixa de uva pregadas nas extremidades. Esse era um dos grandes
divertimentos dos domingos de verão. Vez por outra também meu pai e
75
A vida do brejo
para caçar rãs, logo depois das chuvas. A simples presença de uma
pequena luz, não só mostra como alvoroça toda a vida do brejo a seu redor.
A forte impressão da grande variedade e a presença perturbadora da luz
sobre a vida do brejo ganhariam no futuro, para mim, um significado
muito maior. E´ que meu avô paterno, como muitos outros vizinhos, era
italiano e andava muito ansioso por notícias da guerra. A guerra agora
alvoroçava toda a vida da Europa e, em particular da “nostra” Itália.
Naquele lugar ermo, sem luz, a única maneira de obter alguma notícia seria
um rádio. Não só, não se tinha rádio. Não havia vestígio de iluminação
elétrica na região. A única lâmpada da região ficava na distante
estaçãozinha de Currupira, a alguns quilômetros de casa e era só da Estrada
de Ferro. Seria preciso arranjar um rádio e algo muito mais difícil: produzir
a necessária energia elétrica. Não só me lembro como acompanhei cada
passo e ajudei a montar uma mini-hidrelétrica para fazer funcionar o velho
e grande rádio que mais parecia um armário, tendo seu interior preenchido
por grandes lâmpadas: as “válvulas”. Obviamente, se esperava que além
de fazer funcionar o rádio, a mini-hidrelétrica deveria acender também
algumas lâmpadas para diminuir e escuridão em que todos vivíamos
imersos à noite. Foi um grande aprendizado assistir e ajudar aquela
montagem a partir de peças compradas no ferro velho. Depois de semanas
de trabalho, finalmente o pequeno “dínamo” de carro começou a rodar,
acionado por uma polia acoplada à roda d´água de uns três metros de
diâmetro. Esta por sua vez era tocada pela água num pequeno desnível no
regato que passava próximo ao brejo. Com grande expectativa e
ansiedade, o velho rádio foi ligado na presença de vários vizinhos que
haviam acompanhado e esperado aquela a montagem. As ondas curtas só
podiam ser sintonizadas à noite, mesmo porque de dia todos trabalhávamos
na enxada. Mais que alguma notícia fragmentada, o que mais se ouvia
daquele rádio eram ruídos: silvos, “pipocas”, assobios, estalos e “descargas
de estática”. Mesmo assim, nossos vizinhos mais próximos, vinham para
saber se tinha conseguido algum fragmento de notícia da guerra.
Juntamente com a “linha” constituída de dois arames que trazia e energia
elétrica do dínamo, instalado lá no rio, próximo ao brejo, meus tios
haviam instalado uma lâmpada para iluminar o caminho para algum
77
seguia seu caminho natural, agora andava alvoroçada e “fora dos trilhos”.
E´ bem verdade que também sem a lâmpada, todos aqueles insetos
voadores, sapos e cobras também estariam sujeitos aos riscos, a
imprevistos e à morte. Suas vidas também seriam efêmeras na escuridão.
Também muitos sapos seriam abocanhados pelas cobras. Também estas
poderiam acabar no bico de alguma seriema ou engolidas por outra cobra.
Todos aqueles seres viventes eram também morrentes, como todas as
formas de vida que povoam a Terra. O que a lâmpada provocou foi um
grande alvoroço e a precipitação da morte daqueles que poderiam ter
vivido mais na modéstia de sua escuridão. Talvez muitos se tenham
beneficiado pela presença da luz. Alguns, mesmo tendo visto alguma luz,
não se deixaram ofuscar por ela. Eles puderam ver pelo menos o tipo de
tragédia que se abateu sobre aqueles que se deslumbraram pela luz e
terminaram por não ver mais nada do pouco que viam antes. Alguns não
chegaram a ter as asas queimadas mas já não conseguiam ver mais nada
alem daquela luz: ficaram “convertidos” para a luz e já não conseguiam
ver nem participar da vida na escuridão em que todos estão mergulhados. E
´ preciso aprender e conseguir viver com as desvantagens mas também
com as vantagens e satisfações possíveis naquela forma de vida a que já
estavam adaptados. Esse aprendizado é que havia determinado a
sobrevivência de todas as espécies nas condições daquele seu habitat. O
lugar em que vivi essa experiência da luz acesa no brejo, ficava no sítio de
meu avõ paterno, ao lado do nosso sítio. Por mera casualidade, esse sítio
foi, muitos anos mais tarde, adquirido por um grande filósofo e escritor:
Huberto Rhoden. Fui conhecê-lo. Era realmente uma figura humana que
causava forte impressão. Além de sua cultura vastíssima e do invejável
domínio da palavra, sua imagem era imponente: seu porte ereto e grande,
sua basta cabeleira já toda branca. Seus olhos azuis, pareciam estar sempre
focados no infinito. Seu tom de voz era sempre profético. Tudo fazia desse
homem excepcional um verdadeiro luzeiro.
Aprendi muito com esse homem de grande cultura e sabedoria. A mim
fascinava especialmente seu domínio sobre a etimologia: o conhecimento
sobre a origem das palavras e suas raízes mais fundas. Sua área era a
Filosofia Universal. Seu currículo de professor nos EEUU, seus muitos
79
livros, sua fala calma e segura, sem qualquer tropeço e sua convivência
com Albert Einstein em Princeton, faziam dele um grande mestre. Para
muitos, mais que isso: um verdadeiro “guru”. Para muitos ele se tornou
uma grande lâmpada no brejo de suas vidas. Para muitos, esse homem se
tornou uma “luz” tão forte que lhes ofuscou e tolheu a visão das outras
coisas de suas vidas. Até mesmo as limitações e as fraquezas, próprias de
qualquer ser humano, se tornavam virtudes excelsas para muitos dos
deslumbrados. Não por culpa dele, mas por culpa daqueles que se
deixaram ofuscar pelo fato de só olharem para aquela “luz”. Estes
passaram a “orbitar” cativos, tão próximos que já não conseguiam ver
outra coisa a não ser olhar para o mestre e repetir suas palavras. Vários
outros casos conheci, como do grande Pietro Ubaldi, autor de “A grande
Síntese”. Vi coisas semelhantes a seu redor. Homens que pela brilho do
que diziam podiam ser considerados grandes “luzeiros”. Menos por culpa
deles e mais daqueles que os fitam tão fixa e unicamente, muitos destes se
“queimaram as asas” e passavam a enxergar menos do que viam no
apagado de suas vidas mais simples. Se por um lado devemos buscar as
“luzes” de quem sabe mais para jogar alguma claridade sobre nossos
caminhos, não nos devemos deixar ofuscar ao ponto de só olharmos para a
“luz”. Não podemos perder de vista nosso querido “brejo”. Nem as mais
brilhantes lâmpadas valem nossa renuncia de conduzirmos nossas próprias
vidas, mesmo que modestas ou sem grande brilho.Todos os fanatismos que
nos fazem olhar para uma única” luz” acabam por nos cegar para as
limitações e possibilidades da vida. A escuridão com que temos que
conviver é às vezes desconfortável e sempre cheia de riscos. No entanto a
certeza de uma única “luz” para onde devemos olhar parece ridícula, diante
de tantos diferentes pontos de luz para onde podemos olhar ainda melhor
de nossa escuridão. O olhar fixo para uma única luz nos faz perder a
possibilidade de aprender e desfrutar coisas que vemos na penumbra e até
na escuridão do Mundo em que vivemos. E´ desde a mais completa
escuridão que melhor podemos ver o esplendor do céu, cheio de uma
infinidade de estrelas, mesmo estando no “brejo” de nossas modestas
vidas.
80
Estudando catecismo
luar. Era também outra oportunidade de ver minha catequista “amada”. Foi
também nesses ensaios que se iniciou o namoro de uma das catequistas
(Maria) com meu tio (Joãozinho)que tinha uma bela voz de tenor. A
“proteção” desse meu tio era meu “passe” para poder sair à noite e
caminhar por estradinhas pelo mato e pelos vinhais da região, junto com a
turma da igreja. As missas que só aconteciam uma vez por mês eram
celebradas pelo Padre Casarim que vinha de longe em seu modesto
cabriolé. Ele vinha desde a igrejinha de Capivari onde era pároco e residia.
Seus sermões eram rústicos e simples e quase se resumiam a exortar aos
fiéis a que doassem mais “prendas”, frangos e leitões para os leilões das
quermesses, afim de que se pudesse arrecadar mais “fundos” para a
igrejinha. Era um homem muito simples de vocação e formação tardias,
sem muitas letras mas um homem bom e honesto. Muitos anos mais tarde
encontrei-o numa fila de ônibus em Campinas, já bem velho e com uma
batina muito pobre e surrada. Recordei-me daqueles distantes anos. Dirigí-
me a ele e depois de cumprimentá-lo ocorreu-me perguntar: - O senhor
mora em Campinas?. –“Não, vim só trazer o dinheiro para o chefe”, foi sua
resposta, referindo-se ao bispo.
Se para todos nós adaptação à nova vida rural, longe de recursos e meios
da cidade foi um desafio, para minha mãe coube um esforço muito
maior.Todas as tarefas de uma casa onde não luz elétrica nem água
encanada, bastariam como grande carga de trabalho. A ordenha das nossas
duas vacas de leite, as galinhas, a horta também estavam no “ministério”
de minha mãe.Nossa nova casa no meio da colina, ficava muito acima do
nível em que estavam nossas principais atividades, tanto na uva, quanto na
horta e na cocheira. Só os pastos e o pedaço de mata ou capoeira ficavam
em cotas maiores. Meu pai escolhera o lugar que nos proporcionava uma
vista mais ampla e arejada da redondeza. Essa visão mais ampla e arejada
83
nos custava o preço da constante subida e descida por uma rampa. Nesse
“belo panorama” o poço, obrigatoriamente tinha que ser muito fundo, mais
de vinte metros. Não havia qualquer energia elétrica na região e por isso
toda a instalação de água encanada com caixa d´água, pia da cozinha e
banheiro envelheceram virgens “a espera da energia elétrica. Tirar toda a
água para uma casa, em latas de 20 litros de dentro de um poço tão fundo
era um trabalho muito duro e estafante. Sempre que podíamos, estando em
casa, eu ou meu pai “puxávamos” água para minha mãe. Mas nosso
trabalho era principalmente fora e às vezes longe de casa. Tivemos que
montar um grande sarilho, uma espécie de “carretel” com duas velhas
rodas de carroça para “tirar” água de maneira menos sofrida que uma
simples roldana. Ainda era preciso levar as latas cheias para dentro de
casa. Apesar de nossa ajuda sobrava muito também desse trabalho para
minha mãe. Nessas condições todo o trabalho da dona de casa era
realmente estafante. Colher qualquer coisa na horta “lá em baixo” a fazia
descer e subir nossa rampa. A ordenha das vacas, na cocheira também
ficava lá embaixo; o galinheiro também. A responsabilidade de alimentar
a família era muito grane e difícil quando, além do dinheiro muito limitado
se está muito longe de qualquer fonte de abastecimento. Por essa razão
minha mãe tinha um zelo muito grande com suas galinhas. Elas tinham
nomes e eram conhecidas de minha mãe por seus diferentes
“comportamentos” e “temperamentos”. Uma dessas galinhas prediletas de
minha mãe, chamava-se “minerona”. Enquanto muitas galinhas são
agitadas e nervosas, ciscando os ovos para fora do ninho e pouco
“competentes” para criar suas ninhadas, a “minerona”, muito calma e
mansa, chocava seus ovos com segurança e “tirava” belas ninhadas de
pintinhos. Isso era fundamental para futuras poedeiras e futuros frangos
para o macarrão do domingo. Nossa produção de milho era pequena e
anual. Quando se guarda o milho no paiol ele é muito atacado pelo cupim e
boa parte se perde. Por essas dificuldades em alimentar as galinhas no
confinamento do galinheiro, essas aves eram mantidas soltas, alimentando-
se pelo pasto e tendo apenas um pequeno complemento de milho no fim da
tarde. Só à noite todas ficavam fechadas e protegidas no galinheiro à
prova de predadores.Logo pela manhã, antes de tratar das duas vacas
84
“destalar”(tirar o talo central das folhas) fumo. Eram ótimos pretextos para
grandes conversas, convívio e cafezinho com bolinhos ou mesmo “pinga”
para os homens adultos. O grande pomar dessa família era o lugar
preferido em que nós moleques passávamos horas de domingo batendo
papo enquanto chupávamos montes de laranja lima e laranja cravo.
A outra grande família vizinha tinha como chefe o Sr. Santo Ceolim. Este
era um verdadeiro patriarca, homem muito magro e alto, com aspecto
frágil, de voz fraca e mansa. Esse aspecto frágil e quase doentio escondia
um pai de uma imensa prole, de grande valor pelo trabalho, honestidade,
liderança da grande família e respeito por parte de toda comunidade. Dessa
família eram as principais catequistas, nossas amigas e que convenceram
minha mãe a que me deixasse acompanhar o catecismo e fazer a primeira
comunhão. Uma delas, Maria, muito mais tarde casou-se com um de meus
tios, o Joãozinho. Os irmãos mais velhos, Henrique, o “Rico” e Amélio já
começavam a desbravar uma nova terra que a família havia adquirido
próximo de onde hoje passa a estrada Anhangüera. De lá eles traziam
carroçadas de forragem de “capim gordura” ou “catingueiro” para forrar
suas videiras. As casas dessas duas grandes famílias Ceolim, Antonio e
Santo, eram unidas por uma estradinha de meio quilômetro, cercada por
uma alameda de ameixeiras que se uniam pelas copas formando um
verdadeiro túnel, às vezes verde, às vezes todo florido ou carregado de
tentadoras ameixas. Vez por outra meu pai, minha mãe e eu fazíamos,
depois do jantar, uma visita a essa grande família por quem nutríamos
grande amizade e admiração. Meu pai e todos os Caniato desfrutavam de
grande prestígio junto a essas e outras famílias vizinhas. Em meio a
animada conversa, “seu” Santo fazia servir um vinho feito por ele de sua
uva Kurbina (Seibel). Independentemente da qualidade ou sabor, para mim
intragável daquele vinho, ele representava uma verdadeira celebração de
amizade. Notável também era a animada e alegre participação na conversa
de Dona Ida, a matriarca da família que mesmo depois de tantos filhos
mantinha grande vigor e disposição para o trabalho. Era uma pessoa
simples, de pés descalços mas cheia de vigor, bondade e sabedoria da vida.
Era ela quem cuidava e administrava o trabalho ao redor da casa, como a
horta, galinhas, porcos, ordenha e cuidados com as vacas leiteiras. A
87
Outros vizinhos
de lenço ao passar de trem. Logo ele nos veio contar suas aventuras e
desventuras de “servir” naqueles confins do Brasil, próximo da Bolívia.
O velho “Capucho”
Os Barbosa.
moveis tendo logo à entrada uma mesinha que era um oratório cercado de
muitas imagens, estatuetas de santos e velas acesas. O pátio diante da casa
era cercado de velhos “chorões”, espécie de pinus que por ter as folhas
como finos fios, produzia um constante zumbido, quase um choro, com a
passagem mesmo de uma leve brisa. O quintal era povoado de velhas e
grandes mangueiras. Nos fundos desse quintal, próximo ao brejo, passava
um pequeno regato que fazia funcionar o velho mas ativo monjolo. O
pouco que essa velha “maquina” produzia ainda era o pobre sustento
daquele casal tão simpático e amigo. Seu Barbosa devia ter uns setenta
anos. Era moreno de basta cabeleira quase toda branca e um largo sorriso,
sempre disposto a uma boa prosa e a contar causos, sempre pitando seu
“picadão”. Sua mulher, Dona Tudinha, embora não fosse tão idosa, já
trazia os sinais da velhice precoce pela vida rústica e pobre que viviam,
sem qualquer evidente aspiração por conquistar melhoria. Pareciam muito
felizes na sua mais que simplicidade. Dona Tudinha era muito conhecida
por ser a maior rezadeira e benzedeira do bairro. A casa dos Barbosa era
lugar de freqüentes noites de rezas, novenas, terços e trezenas, sempre
orientados e “puxados” por Dona Tudinha. Muitas vezes me detive a
conversar com seu Barbosa e sempre lhe fiquei grato por ser capaz de dar
atenção a mim, um “moleque”, o que não era habitual. Os mais velhos não
costumavam dar muita conversa aos jovens.
No outro lado da estradinha, bem defronte aos Barbosa viviam dois
irmãos, autênticos caboclos, Adão e Lazinho. Ambos viviam num
ranchinho de “pauapique”: estrutura de bambu e revestimento de barro
aplicado à mão, com cobertura de sapé. O ranchinho se resumia a dois
cômodos de chão de terra batida: uma pequenina “sala” onde havia dois
banquinhos, um mais que rústico e improvisado fogão, amontoado de
alguns tijolos. O “quarto” era “mobiliado” por dois catres munidos de
apenas um cobertor. Era o mais típico ranchinho de caboclo. O pequeno
quintal não tinha mais que uns pés de mandioca e uma touceira de bananas.
Adão, o mais velho tinha uma cara muito redonda e um grande e freqüente
sorriso que deixava visível a falha de um dente. Era um tipo bonachão,
muito tímido, respeitador e destituído de qualquer vaidade. A maneira de
falar era aquilo que de mais típico se poderia imaginar do caipira paulista.
91
puxava os cânticos nas procissões de festa. Uma irmã mais nova, Ítala era
aprendiz de catequista e objeto de minha platônica e secreta paixão.
Os Montovani
Essa era uma grande família chefiada pelo “velho” Américo Montovani. A
numerosa família de moças e rapazes trabalhava na roça de uvas e
principalmente num grande bananal que chegava rente à estradinha do
bairro. Seu Américo Montovani era muito falador e contador de causos e
vantagens. Nas suas freqüentes visitas à nossa casa fazia todo mundo rir de
sua abundante falação sobre seus feitos, sempre levando “a melhor”.
Contava sempre que antes de casar sua noiva lhe preparava um belo
frango assado. “Depois só sobravam uns pedaços. Quando a mulher deu à
luz o primeiro filho, o frango ia para a canja da convalescente. Quando
vieram os filhos, as melhores partes eram deles. E assim o frango foi
sumindo”. Depois de casado, além de capitanear sua grande família,
cultivar uva e um grande bananal, seu Américo administrava um moinho
de fubá, bem ao lado de sua casa, tocado por uma roda d´água.
Periódicamente eu ia a cavalo, montando minha Branquinha em pelo, para
fazer moer o milho que se transformaria em nosso fubá, com o pagamento
de uma “parcela” do milho para o moinho. Muitas vezes surgiram
pequenos atritos entre seu Montovani e meu avô, Beppi(José) Caniato. Isso
porque o moinho estava a montante, no mesmo regato que a mais de um
quilômetro, a jusante, movia outro pequeno moinho e a mini
“hidroelétrica” de meu avô. Quando havia pouca água, seu Montovani,
fechava as pequenas comportas de seu açude para reservar mais força para
seu moinho. Meu avô, a jusante, tinha que parar sua engenhoca por falta
daquela água. Uma das coisas que constituíam o orgulho e as vantagens
que seu Américo contava era sua parelha de pequenas mulas de carroça.
Era um casal: “brinquedo” e “boneca”. Essa parelha obedecia a comandos
de voz, sem necessidade de rédeas. Isso para mim que também lidava com
carroça se constituía numa grande admiração. Era uma espécie de
93
Os Crepaldi
Pouco adiante da casa dos Montovani, do lado oposto mas rente à estrada
de Currupira ficava a casa dos Crepáldi. Era também uma grande família
chefiada por Julio Crepaldi, um viticultor. Alem de muito alegre e grande
piadista, Júlio era o sanfoneiro do bairro. A família era constituída por
várias moças e rapazes. Das moças a mais velha, Leonilda, casou-se com o
mais novo de meus tios, o Mario e se tornou a minha tia Leonilda. Estes
tiveram três filhas: Vera, Neli e Rosana, minhas primas. Lembro-me
quando a matriarca da família, Dona Rosa, morreu de parto, junto com o
bebê. Foi outra tragédia no bairro. Os filhos mais novos daquela família,
Anésio, Raul e Dorival também foram meus amigos nas brincadeiras de
bola e pião e colegas de catecismo na igrejinha de Currupira.
94
Outro Bianchim
A Igrejinha de Currupira.
Um aprendizado diferente.
O grande jacarandá.
Quando nos mudamos para a gleba de 40 alqueires que era de meu pai, foi
preciso construir uma nova casa. Acompanhei toda a construção dela
tomando parte direta como ajudante e fazendo pequenos serviços. Quando
100
Vestido de noiva.
Viagem à cidade.
104
Corria o ano de 1942. Vez por outra alguém trazia da cidade notícias
sobre a II Guerra Mundial. De repente uma abalou a todos. Era a notícia
sobre o afundamento de navios brasileiros nas costas do Brasil.
Submarinos alemães, haviam torpedeado e afundado vários navios entre os
quais o “Baependi”. Foram algumas centenas de mortos, além da perda
total daquelas embarcações. O governo de Getúlio que até então nutria
certa simpatia pelo “eixo”, foi levado pela pressão dos EEUU a se definir
e a reagir a aquele ato de guerra. Havia também um clamor popular
nacional de reação a ostensiva hostilidade e afronta à soberania do Brasil.
O Brasil então declarou guerra ao “eixo”. Em muitos lugares do Brasil
ocorreram manifestações e campanhas patrióticas de apoio à entrada do
país na Guerra, ao lado dos aliados. Chegou-se a fazer campanha de coleta
de metais para fabrico de armamentos. Eram as “montanhas da Vitória”.
Por toda a região e portanto, também no nosso bairro dos Fernandes, perto
de Currupira, chegou a notícia de uma grande evento patriótico que seria
realizado na cidade de Rocinha, hoje Vinhedo. Seria um misto de
manifestação política e festa. O ponto alto da festa seria um grande rodeio
em que a maior atração seria um burro (mulo) que se tornara famoso pela
sua indomabilidade. Em varias festas e rodeios passados, em outros
lugares, nenhum peão tinha conseguido ficar por mais de uns poucos
segundos no lombo daquela verdadeira “fera”, um burro chamado
“Ruano”, por sua cor (ruão)”baia” com crina muito mais clara. Esse animal
era uma verdadeira “lenda”: era indomável. O “clima” de patriotismo e o
burro Ruano estavam eletrizando as expectativas em relação a aquele
106
Um jovem matuto
fios. Embora não tivesse sido fatal para muitas moscas, minha “invenção”
foi importante para mim. Comecei a perceber que tinha que entender coisas
“diferentes”, além do muito que havia aprendido nos anos no sítio, longe da
eletricidade. Eu estava de novo num ambiente urbano mas muito diferente
do que ainda estava em minhas memória de Copacabana.Uma quadra para
baixo da nossa rua, na rua da Penha, havia um grande terreno onde se havia
instalado um grande circo. Durante todas as tardes grandes altofalantes, no
topo dos mastros tocavam os sucessos da época. Havia cinco anos que não
ouvíamos rádio. Especialmente as músicas de Orlando Silva, arrancavam
os suspiros das moçoilas do bairro. Nesse ambiente conheci as primeiras
filas do Brasil, as “filas do açúcar”. Era época da II Guerra Mundial e
muitas coisas estavam “racionadas”. Foi nesse lugar que também fiz dois
amigos de muitas das brincadeiras de rua. Ambos tinham nomes muito
brasileiros: Ubirajara e Ubiratã, o menor. Ambos me ajudaram a vender
nossas tralhas quando, meses depois nos mudaríamos para o Rio. Foi
também nas filas do açúcar que senti pela primeira vez uma paixão
“avassaladora”. Era uma garota chamada Yolanda, maior que eu e que
passava muito garbosa pela nossa rua. Ela ia e vinha de uma rua de terra,
perpendicular à nossa, sem parar e sem olhar para os lados. Quando a via,
já a uma quadra distante, eu ficava tão emocionado e com palpitação que
nunca consegui dizer-lhe nada quando me passava perto, muito menos
falar-lhe sobre minha “paixão”. Esse sentir com essa intensidade também
era uma coisa nova para mim. Eu estava começando a descobrir outras
coisas para dentro de mim. Enquanto isso, meu pai esperava alguma
definição para sua volta a empregos no seu “métier”, a hotelaria, no Rio de
Janeiro, onde ele ainda tinha conhecidos e contatos. No entanto era
preciso dar tempo para refazer tais contatos e negociações que eram feitas
por carta. Ir para o Rio com a família sem ter as coisas já arranjadas era
uma temeridade. Lendo um jornal, lhe chamou a atenção um anuncio para
admissão num cargo de caixa de uma empresa no ramo de metalurgia e
de âmbito nacional. Ele se apresentou e logo foi contratado. Como era
comum na época, em cargos de grande responsabilidade com dinheiro,
exigia-se uma coisa chamada “caução”. A rigor isso se chamava caução
fidejussória. Era um depósito de garantia quando um funcionário
114
Parte 3
117
Da ampla
liberdade ao confinamento
De volta ao Rio
. O Brasil entrara na Guerra que continuava na Europa e agora se estendia
também ao Pacífico contra o Japão. O Rio de Janeiro também mudara
muito. Havia muito mais gente, especialmente gente fugida da Guerra. Não
se encontrava casa para morar. Por isso fomos morar numa pensão na Av.
Copacabana, esquina da Djalma Ulrich, perto do Posto 5. Era preciso e
urgente que eu voltasse à escola. Eu agora tinha 14 anos. Acompanhei
118
meus pais na tentativa de encontrar uma vaga nas escolas da zona Sul.
Todas as escolas estavam lotadas. Fomos ao Colégio Santo Inácio na rua
São Clemente. Não havia vaga mas um dos padres aconselhou meu pai,
diante das dificuldades, a procurar um lugar onde, segundo ele, era
possível encontrar lugar. Era o Colégio Salesiano Santa Rosa em Niterói.
Fizemos a travessia das velhas barcas e fomos para lá, no bairro Santa
Rosa. Havia uma vaga mas somente como interno. Era preciso decidir
imediatamente. Havia gente na fila. Meu pai ponderou sobre nossa
urgência diante de meu jejum de escola e nossa falta de moradia. O padre
prefeito do colégio aceitou com a condição de que tomássemos a vaga
imediatamente. Lá fiquei, só com a roupa do corpo. Longe de casa, ou
melhor, sem casa e longe de meus pais, como nunca havia ficado. Agora
tudo era tão estranho para mim. Eu tinha que conviver tão próximo de
padres e obedecer, sempre em silêncio ou rezando: só se falava nas horas
de recreio e durante algum tempo durante as refeições. A disciplina era
rigorosa. Mesmo às refeições era preciso ouvir em silencio à leitura de
textos “edificantes”. Rezava-se a cada movimento. O imenso dormitório
dos “médios” tinha cerca de 300 camas com seus pequenos armários ao
lado. Nos quatro cantos do imenso espaço ficavam os quatro “assistentes”,
os noviços que nos vigiavam dia e noite. Nunca ficávamos no escuro: o
dormitório ficava durante toda a noite sob uma luz azul. Às seis nosso
“assistente”, um clérigo(noviço) batia palmas e dizia “Benedicamus
Dominum” e todos tinham que responder em voz alta “Deo gratias”.
Depois de lavar a cara, ainda no dormitório, entrávamos em fila, em
silêncio, para a ir todos os dias assistir e participar da missa das sete. Além
da missa diária, com comunhão de quase todos, rezava-se o terço
completo, com todos os “mistérios” e depois se repetia toda a “ladainha”
de Nossa Senhora, tudo sempre em latim. Muitos desse títulos de Nossa
Senhora ficaram em minha memória por toda a vida: “regina angelorum”,
“regina patriarcarum”, “turris ebúrnea”, “turris davidica”, “domus áurea”,
“phoederis arca”, etc. A cada um desses cerca de 50 titulos os cerca de 400
alunos respondiam “ora pro nobis”. Era uma religiosidade que nos invadia
por absoluta saturação, sem chance de qualquer outra idéia e sem qualquer
possibilidade de outra escolha. Aos domingos havia, além da missa regular
119
das sete, a missa das 10, com a presença do público. Era uma oportunidade
de ver, ainda que de longe, gente e se “arriscar” uma olhada para algumas
garotas que freqüentavam aquela missa e nos “tentavam” com alguma
olhada mais marota. Qualquer olhar de uma dessas garotas para o nosso
lado era capaz de causar grande alvoroço de nossas emoções adolescentes
reprimidas. Com olhares aparentemente sedutores, uma dessas garotas, a
Terezinha, fez enlouquecer de paixão a um de meus colegas. Não
resistindo a esses encantos, o “apaixonado” conseguiu pular o muro de um
dos pátios, em busca da sedutora. Ao encontrá-la teve a maior decepção. A
tão desejada “Julieta” não quis nem conversa com o “fedelho”, metido a
Romeu que ganhou um mês de suspensão. O castigo dele foi de ficar em
pé, durante todos os recreios, diante do gabinete do Diretor, durante um
mês. As visitas dos familiares eram aos domingos, depois do meio dia, até
as 5 horas. Minha mãe veio com absoluta regularidade durante os meus
três anos e meio de internato. Alguma roupa, uns biscoitos “Aymoré” e
umas maçãs (só existiam argentinas) eram o contato com o Mundo.
Um pássaro na gaiola.
Adaptação e estudo.
maior tempo de exposição para que a luz pudesse sensibilizar o filme. Para
manter o obturador aberta seria preciso imobilizar a máquina. Com
conseguir isso.Ocorreu-me colocar a máquina dentro de um dos
bebedouros cônicos de latão que havia pelo pátio. Na próxima Lua cheia
eu estava a postos com a máquina. Coloquei-a dentro do bebedouro e
consegui uma posição em que ela ficasse voltada para o céu, na direção da
Lua. O obturador da máquina tinha um ponto “t”(time) com o qual era
possível deixar a objetiva aberta. Apontando e segurando a ´máquina
imobilizada fiz “clic” e segurei o obturador acerto por um tempo, talvez de
um ou dois minutos, antes de fazer o “clac”. Mandei revelar o filme e
esperei alguns dias com grande ansiedade. Finalmente o filme voltou. Foi
ao mesmo tempo uma decepção e uma descoberta. Em lugar da Lua
apareceu uma imagem que maus parecia uma salsicha. No tepo em que o
obturador permaneceu aberto, a Lua óbviamente se deslocou fazendo uma
imagem curva e borrada. Também apareceram pequenos pedaços de arcos
que correspondiam a algumas estrelas que estavam dentro do campo da
objetiva e que entre o “clic” e o “clac” também se deslocaram. Eu acabava
de descobrir a rotação do céu junto com a Lua. Esse fato teve um grande
efeito para mim e me fez pensar no que eu nunca tinha notado: como gira
o céu. Era meu primeiro encontro com um conceito sobre céu e
Astronomia.
Os anos de vida rural foram também meu primeiro contato mais próximo
com alguma música. Meus três tios tocavam violão. Um deles, o mais
novo, tio Mário tocava também gaita e sanfona de botões. As noites de luar
nos encorajavam e sugeriam nossa reunião em casa de meus avós paternos
e tios. Minha mãe sempre gostou de cantar, como quase todo suíço. Ela e a
irmã Elza, solteiras, cantavam a duas vozes: haviam aprendido isso na
escola ainda na Suiça. Minha mãe ainda solteira já no Brasil,conhecia e
cantarolava o “Quem sabe” de Carlos Gomes. Foi dela que, ainda criança,
ouvi e aprendi essa famosa modinha. Nas noites do sertão fazíamos coro
com meus tios: Luar do Sertão, Tristeza do Jeca, Chuá chuá, Saudades de
Matão, Maringá eram as mais freqüentes a de nosso repertório. Minha avó
paterna também fazia coro com nossas canções mas fazia algum solo,
especialmente com o “mazzolin de fiori”, cantado por todos os vênetos.
Meu pai sempre participava como ouvinte. Embora fosse apaixonado por
música até às lágrimas, era incapaz de uma nota afinada. Ainda antes de
estar “enturmado” com o pessoal do coralzinho na igrejinha de Currupira,
eu já começara a participar das cantorias com meus tios, minha mãe e
Dona Ana, minha avó paterna. Agora, no colégio se cantava durante a
missa. Eu o fazia com grande entusiasmo e achava que tinha voz forte.
Sempre esperei que os padres me convidassem para integrar um pequeno
coral que participava com orquestra em grandes solenidades com “Te
Deum”. Nunca consegui ser convidado para isso. Aquele coral era
integrado por adolescentes “especiais” e muito próximos aos padres. Três
irmãos que eram escolhidos tinham pais espanhóis que cantavam no Coral
do Municipal do Rio de Janeiro. Nesse seleto grupo eu nunca consegui
nada, embora o almejasse. Só consegui cantar próximo à orquestra mas à
margem. Eu ficava tomado de grande emoção e cantava forte mas nunca
consegui ser “descoberto” e menos ainda ser incluído entre os cantores que
tinham o privilégio de ficar junto com a orquestra dirigida pelo Pe.
Virgínio Fistarol nas grandes solenidades em que se cantava o “Te Deum”.
Num certo dia fomos convocados para assistir aulas de manossolfa, o uso
das mãos para representar as notas musicais. Fomos reunidos em grupos
para ter aulas de preparação com os vários assistentes do Maestro Heitor
Villa Lobos. Depois dessas aulas tivemos vários encontros com Villa
127
FIM