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Rodolpho Caniato

CURRUPIRA
(Trecho de autobiografia)

CAMPINAS
2009
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A
Antonio e Luiza, meus pais, de quem
aprendi muito cedo a responsabilidade
e também
a visão do lado belo e iluminado
da VIDA.
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PARTE I

“Atalaia”
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Primeiro endereço

Nasci na Maternidade da Rua da Passagem, em Botafogo, no Rio de


Janeiro, no dia 13 de julho de 1929. Meu pai logo tratou de me registrar
com o nome do sonhador poeta, namorado da “Mimi”, personagem da
ópera “La Bohème” (Puccini), que logo no primeiro ato diz, cantando, que
apesar de pobre, tem a alma milionária. Essa ópera era também a preferida
de minha mãe. Da maternidade, fomos para nossa modesta casa, primeira
moradia no Rio de Janeiro, na rua Santo Amaro, 29, casa 11, uma vila no
bairro do Catete. Minha mãe sempre repetiu esse endereço com um misto
de saudade e orgulho de quem acabava de fazer uma grande e significativa
conquista: era o primeiro lar da nova família Caniato no Rio de Janeiro,
cidade que ela sempre tanto amou como sua terra de adoção. Para ambos,
Antonio e Luiza, pouco tempo antes chegados de São Paulo, além de ser o
primeiro endereço no Rio de Janeiro, Capital do Brasil, agora havia um
filho, o Rudy, a centralizar as atenções e preocupações numa terra nova e
ainda por descobrir. Ele, um jovem de 28 anos, paulista, autodidata
estudioso e “boa pinta”; ela uma viçosa jovem suíça de 23 anos, chegada de
sua terra, a Suiça em 1920.
Com o progresso de meu pai em sua atividade de “mètre” e logo depois
como gerente no belíssimo restaurante colonial “Lido”, depois de um ano,
mudamos para uma simpática vila de casinhas que ainda sobrevive na
Avenida Princesa Izabel, próximo ao Túnel Novo. São desse ambiente
minhas memórias mais remotas. Do outro lado da avenida, quase em frente,
havia um “rinque” de patinação cujos altofalantes tocavam os grandes
sucessos da época: “La Paloma”, “El manicero” e a “Lenda do beijo”,
melodias que me ficaram gravadas na memória com um gosto de beleza,
tranquilidade e nostalgia.
O “Lido”, lugar mais belo e famoso de toda a nova Copacabana, de frente
para o mar, ficava a poucas quadras de nossa nova casinha. Ao redor desse
famoso restaurante colonial havia um jardim encantador e mantido com
grande esmero. Os grandes caramanchões eram cobertos por buganvílias ou
primaveras e ornados por grandes vasos brancos de madeira, dotados de
grandes argolas de bronze. Os gramados, muito tratados e aparados, eram
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ornados por hibiscos que, talvez por isso, tenham se tornado as flores que
mais tenho apreciado e cultivado nos meus jardins ao longo de toda vida.
Muitas vezes em meus passeios com minha mãe por essa praça, fui
chamado para dentro do restaurante para ganhar um biscoito “champanhe”
do gerente, meu pai.

O “Atalaia Hotel”

Poucos anos depois, em 1932, meu pai foi convidado para ser o gerente do
“Atalaia Hotel”, ali, bem próximo do Lido, na Rua (ainda não se chamava
avenida) Copacabana, entre as ruas Duvivier e Rodolpho Dantas. Era para
toda a família uma grande mudança para melhor. Passávamos a morar num
completo apartamento no primeiro andar, com elevador, telefone e rádio,
ao lado da sala do gerente. O hotel tinha um restaurante onde também a
família do gerente era servida e com especial esmero. Isso representava,
por um lado um conforto e por outro uma mudança de costumes. Para
freqüentar o restaurante era preciso estar vestido adequadamente e ter um
cardápio mais formal, nem sempre do agrado de nossos costumes mais
caseiros. Eu agora já tinha três anos.
O “Atalaia” havia sido construído pouco depois do Copacabana Pálace, o
“Copa”(1924). Tanto os terrenos do lado direito quanto na parte de trás de
nosso prédio eram baldios: capinzais. Mesmo a quadra da parte de trás do
“Copa” era de terrenos onde havia dois morros, desabitados, com mato,
ligados por uma ponte cuja finalidade nunca entendi. Num desses morros,
do lado da rua Rodolpho Dantas havia uma grande brecha horizontal, a
“toca” onde sempre se abrigavam os mendigos daquela região.
Grande parte do tempo eu passava andando pelas calçadas da frente de
nosso prédio. Mesmo a quadra da rua Copacabana, bem em frente ao nosso
prédio, só tinha um pequeno edifício, o “Itabira” e uma lojinha, a “Casa do
Ovo”. Na Avenida Atlântica, esquina da Duvivier, havia, creio que o único
edifício de apartamentos na orla da praia e que foi dos últimos daquela
geração a desaparecer. Tanto a Avenida Atlântica, quanto a própria praia
eram muito estreitas mas ornadas de palacetes, belas casas e os
característicos postes de iluminação.
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Em edifícios próximos estavam sediadas muitas das embaixadas de países


junto ao governo do Brasil. Afinal o Rio de Janeiro era a capital do Brasil.
O Atalaia Hotel não rivalizava com o “Copa”. Era um hotel de classe
média. Era especialmente freqüentado por homens de negócios que vinham
de muitas partes do Brasil e do exterior. Entre os hóspedes muitos se
tornaram amigos de meu pai, graças às suas habilidades de poliglota
autodidata. Entre os estrangeiros, um americano, dono de uma empresa nos
EEUU, acabou por ficar residindo no hotel, tanto ele gostava do Rio de
Janeiro. Ele era muito velho, muito rico e fumava um perfumado
“Havana”. Com o passar dos anos, ele se tornou muito doente e muitas
vezes minha mãe teve que prestar cuidados de enfermagem e fazer
papinhas para esse senhor, Mister Joseph. Vez por outra ele me dava de
presente um pequeno chocolate ou uma “Fruna”, uns finos caramelos que
eram objeto de meus desejos e que eram vendidos numa fina
“bombonière” na outra quadra, do outro lado da rua, lugar proibido para
mim. Outros freqüentadores do Atalaia que ficaram muito amigos de nossa
família eram os Fosker, um casal dinamarquês. Ele vinha vender armas ao
governo brasileiro. Ele se entendia em inglês com meu pai e ela em alemão
com minha mãe. Deles recebi vários presentes: um deles me acompanhou
até a adolescência. Era uma caixa com peças mecânicas e algumas
ferramentas que permitiam diversos tipos de montagens. Esse brinquedo
era um “Märklin”, alemão. Entre os hóspedes brasileiros, alguns eram
grandes empresários que vinham de São Paulo tratar de negócios na capital.
Entre esses, alguns eram habituais e também ficaram nossos amigos: os
Bardella (industria mecânica), os Ghiraldini (órgãos Hamond), os
Chama(fábrica de tecidos), os Baldan (indústria mecânica). Desses, alguns
dos filhos brincaram comigo pelas calçadas na frente do Atalaia. Um deles,
Milton, da familia Ghiraldini, me atropelou com sua bicicleta na calçada:
um fundo corte na perna, feito pelo paralama de sua bicicleta. Fui levado
sangrando para o pronto socorro e tive que tomar uma dolorida injeção
antitetânica na barriga. O pronto socorro ficava próximo, atrás do Lido.
Esse jovem, Milton, que me atropelou se tornou mais tarde um grande
arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da USP. Seu pai Álvaro
Ghiraldini foi uma das nossas amizades mais duradouras. Ele era violinista
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e pessoa que me causou forte impressão pela gentileza e polidez. Ele vinha
ao Rio para tocar em orquestras, entre elas a da Confeitaria Colombo.Vinte
anos depois, eu já casado, ainda fui encontrá-lo em São Paulo e de sua
grande loja, no largo Paissandú, comprei, em 1955, um piano Kastner,
inglês, que o faz lembrado até hoje. Foi um dos grandes amigos de nossa
família.

A escola dos bondes

Nos tempos de minha infância em Copacabana, quase só se andava de


bonde. Havia poucos carros. Muitos deles eram carros das embaixadas e
representações diplomáticas próximas. Vê-los de perto, com suas marcas,
insígnias ou bandeiras já despertava a ideia da existência de outros paises.
Eu tinha paixão em vê-los de perto, saber-lhes a marca e a origem. Eu os
conhecia até por suas buzinas.
Os bondes eram o grande meio de transporte de quase todo mundo, quase
sempre dirigidos por bigodudos “motorneiros” portugueses, sempre
uniformizados de azul marinho e quepe. Toda a cidade e bairros eram
servidos por esse eficiente meio de transporte. Esses “elétricos” eram
identificados por um número e pelo nome da linha. Uma das primeiras
coisas a aprender era portanto reconhecer o seu bonde. “12 Ipanema/Túnel
Novo”, “13 Ipanema/Túnel Velho”, “5 Leme”, “10 Gávea”, “7 Humaitá” e
assim por diante. As viagens nesses coletivos se constituíram para mim e,
creio, para muita outra gente, a primeira escola: um método de
alfabetização direto e sem dor. O processo foi tão lúdico e eficiente que eu
e muitos de meus amigos das calçadas quando entramos para a escola já
estávamos plenamente alfabetizados. Esses bondes eram todos
inteiramente revestidos em sua parte interna, bem visível para os
passageiros, por “reclames”, a propaganda da época. Esses reclames eram
muito simples e ingênuos. Eram constituídos de uma figura do produto e ao
lado seu nome e suas virtudes. Visualmente todos conheciam os principais
e mais difundidos produtos pela sua imagem: Emulsão de Scott, Xarope
São João, sabonete Eucalol, A saúde da Mulher, Mitigal e Regulador
Xavier. Este com dois números: úmero “1”para “escassez” e número “2”
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para “excesso”. O “excesso” e “escassez” ficamos devendo, sem saber o


que era isso. O antológico Rhum Creosotado, como tantos outros muito
conhecidos, trazia até aqueles famosos e conhecidos versinhos. A
associação entre a imagem do objeto e seu nome sugeria que logo se
“decifrasse” o nome com a identificação das letras e das sílabas. O passo
seguinte era ler as propriedades ou virtudes do produto. Isso era possível e
quase inevitável porque se passava muito tempo dentro dos bondes, no
trajeto de ida e volta entre a cidade e a casa, tendo bem diante dos olhos
aquelas sugestões ou desafios. Geralmente os adultos, principalmente as
mães, acabavam conversando com outras mães, o “passageiro ao lado”.
Essa experiência se repetia com a grande freqüência com que se tinha que
viajar e de ter diante dos olhos aqueles chamados à atenção. Essa
aprendizagem fez com que eu entrasse para o primeiro ano e não para o
“Kindergarten” do Colégio Teuto Brasileiro da rua Siqueira Campos, a
escola mais próxima.

Contas com bolinhas de Gude e tampinhas

A aprendizagem das contas também se deu de maneira espontânea antes de


qualquer propósito didático. A rua Rodolpho Dantas que passa ao lado do
“Copa” também ainda não era asfaltada. Lembro-me de quando chegou o
primeiro rolo compressor, movido a vapor, com caldeira e fornalha a lenha,
para o início das obras de asfaltamento. Até ai, essa rua, na segunda quadra
a partir da praia, era nosso campo de “búlica” ou “biróca”. O jogo era
constituído de quatro buraquinhos eqüidistantes, sendo três alinhados e
um desviado em ângulo reto. A unidade de distância era um pouco variável
pois era o palmo de cada um. O jogo podia ser “à brinca” ou “à vera”.
Quando era “à vera” quem perdia tinha que “pagar”. O pagamento era
feito em bolinhas de gude. Essas tinham valores diferentes pela sua
“beleza” ou pelo seu tamanho. Havia ainda as “bilhas” que eram as
bolinhas de aço e que quebravam as de vidro quando o “teco” era mais
forte e frontal. Isso provocava um pequeno “comércio” com diferentes
proporções na troca. Alem de contar o “capital” com que se entrava no
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jogo, as trocas eram feitas em diferentes proporções como dois para um ou


três para um, dependendo do “valor” das diferentes bolinhas. Alem da
contagem aprendia-se a idéia de proporção. As disputas de “gude”
começavam com quem proponha o jogo e usava o privilégio de ser o
desafiador e primeiro a jogar. Para isso bastava usar a expressão “marraio,
feridor, sou rei” ou simplesmente “marraiofiridô sorrei”.
Esse tipo de aprendizagem se praticava também com as coleções de
tampinhas das bebidas. Nesse caso as trocas em diferentes proporções
tinham a ver com o “enriquecimento” de cada coleção.
Meus passeios pelas calçadas da quadra se ampliaram quando ganhei um
velocípede todo de ferro e com o qual ia até o outro lado da
quadra(rua......,hoje calçadão) onde muitas vezes visitava um amigo.
Entrando pela porte de serviço do prédio, deixava meu velocípede atrás da
porta, enquanto visitava o amigo. Numa das vezes, ao voltar para apanhar
minha “condução” ela havia sido roubada. Isso me custou, além da grande
e irreparável perda, uma tremenda bronca de meu pai.

O desastre do Circo Piolim

Os grandes espaços vazios ao lado do Atalaia Hotel, minha casa, eram o


lugar em que eu e meu melhor e mais próximo amigo, o Mário, um
menino pretinho um pouco maior que eu, brincávamos. Esse espaço
ocupado por um grande capinzal tinha dois grandes atrativos. Um deles era
proximidade possível com cavalos. Aí vinham colocadas a pastar as éguas
de um português que não por coincidência se chamava Manoel. Não por
coincidência, o filho do seu Manoel, um molecão, se chamava Joaquim.
Era o Joaquim das éguas que administrava a colocação e retirada daqueles
animais. Outra grande brincadeira, sempre com meu amigo Mário, era
organizar grandes “trens” constituídos por filas de grandes jacás de bambu
que aí eram atirados vazios pelos fornecedores das verduras para o
restaurante do hotel. Eu, meu amigo Mário e o Joaquim das éguas éramos,
senão os únicos, os mais assíduos freqüentadores desse capinzal. Num
certo dia fomos surpreendidos pela presença de uma grande faixa que
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anunciava: “Aqui brevemente, CIRCO PIOLIM”. Foi notícia que


alvoroçou toda gente do bairro. Piolim era já um famoso e original palhaço,
chefe de uma grande família circense e que havia tomado parte na Semana
de Arte Moderna. No dia seguinte ao aparecimento da faixa, em minhas
andanças no capinzal entre as éguas do Joaquim, encontrei um objeto
circular, pesado, com capa de couro e uma pequena manivela no centro. O
que seria e de quem seria aquilo? Mostrando o objeto a meu pai descobri
tratar-se de uma trena. Deveria ser da gente do circo. Meu pai me
aconselhou a guardar aquele objeto para devolvê-lo aos prováveis donos,
as pessoas do circo. Poucos dias depois quando por lá apareceu no capinzal
um grupo de pessoas fui ver se era mesmo deles o tal objeto. No grupo
havia um senhor bem mais velho que os demais. Dirigi-me a ele. Logo que
viu a trena em minhas mãos sorriu e veio em minha direção. –Você achou a
trena? Sem necessidade de qualquer outra pergunta, entreguei-lhe a trena.
Depois de me fazer elogios pelo encontro e devolução daquele importante
instrumento de trabalho da equipe, aquele senhor disse: “Você vai ganhar
uma permanente do circo”. Tirou do bolso um cartão onde escreveu:
“convidado permanente”. Assinou: Galdino Pinto. Era ele nada menos de
que o patriarca da família do circo e pai do famoso palhaço Piolim,
Alberto Pinto. Os dias seguintes foram de grande movimentação com a
chegada de todo equipamento e início da montagem do circo. No dia
marcado para a inauguração a banda em uniforme de gala tocava dobrados
na ilha que havia no meio da rua Copacabana, na esquina do “Copa”. Eu
teria entrada garantida mas a inauguração era solene e à noite. Fui com meu
pai para comprar as duas entradas adicionais. Logo seu Galdino me
reconheceu e conversou com meu pai sobre o episódio da trena. A essa
altura eu já havia acompanhado toda a montagem do circo e aí me sentia
“em casa”. Enquanto conversávamos com seu Galdino, ele olhou para o
alto da nova lona a ser inaugurada e comentou: “...esse vento está me
preocupando”. Enquanto fazia esse comentário seu Galdino apontou para o
alto da lona que começava a arfar com o vento. Já com as entradas nas
mãos voltamos para casa para os preparativos da “soirée”. As janelas de
nosso apartamento, do lado do prédio, tinham bem na frente a visão total
do circo no terreno vizinho. Em poucos instantes o vento “esquisito” se
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transformou num vendaval que destroçou todo o circo, rasgando em muitos


pedaços a lona, fazendo voar tábuas que bateram de encontro ao nosso
edifício. Em pouco tempo o circo ficou reduzido a escombros. Antes de
fechar nossas janelas pudemos acompanhar toda correria dos integrantes,
familiares e empregados tentando salvar partes que esvoaçavam com a
tempestade, deixando à mostra todo o interior e fundos do circo. Depois do
vendaval desabou um imenso aguaceiro sobre o circo já destruído. Na
manhã seguinte o espetáculo era de verdadeira desolação. Outro drama se
acrescentava à destruição. O palhaço “Camarão” de quem eu me tornara
amigo era sempre acompanhado de um macaquinho que lhe ficava sobre os
ombros. Na noite do temporal, o bichinho assustado caiu do alto para
dentro de um dos dois grandes postes tubulares de sustentação do circo.
Levou dias para que conseguissem resgatar o macaquinho, usando cordas
desde o alto para dentro do grande mastro de sustentação. Foram muitos
dias de reparos até que tudo fosse remontado e uma nova lona fosse
colocada para a adiada estréia. Essa demora, para mim foi altamente
interessante. Acompanhei todo o trabalho e já me tornara íntimo do circo,
podendo circular durante o dia, por entre os artistas, o equipamento e o
treinamento. Fiquei conhecendo por dentro a vida do circo, especialmente
tendo como cicerone o palhaço “Camarão”, muito gentil e generoso
comigo.

O Colégio Teuto Brasileiro.

Eu já havia completado sete anos quando fui para a escola. O Colégio


Teuto Brasileiro ou Deutschebrasilianische Schule ficava na Rua Siqueira
Campos, na primeira quadra da direita indo na direção do Túnel Velho.
Havia o jardim de infância ou Kinder Garten para crianças menores ou que
ainda tinham que ser alfabetizadas. Lembro-me ainda das palavras que a
Diretora ditou para verificar se eu estava mesmo alfabetizado e também
sabia escrever palavras simples, também em alemão. Nos primeiros dias
minha mãe me acompanhou. A partir daí passei a ir a pé sozinho, seguindo
pela rua Barata Ribeiro. Todas crianças tinham que levar seu material numa
bolsa de couro nas costas. Ninguém carregava nada nas mãos. A Diretora,
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alemã chamava-se Frau Glasenapp. O prédio do colégio não era grande:


uma antiga casa de moradia. Tinha, no entanto um imenso quintal, o
recreio, com muitas árvores como carambolas, sapotis, abius e cajamangas.
A disciplina era germânica. Algumas aulas eram em alemão. Um dos
professores, brasileiro, deixou em mim uma marca indelével pela sua
figura. Era um homem grande, muito bem penteado e alinhado: um
alvíssimo terno de linho. Tinha uma voz empostada, forte e grave que
causava a impressão de que dele emanava toda sabedoria. Muitos anos
mais tarde, já no científico, voltei a tê-lo como professor. Como me
enganara. Quanto pouco havia além daquela imagem que em mim ficara
de conhecimento e sabedoria. A culpa não era dele mas de minha
imaginação de criança. De um modo geral o ensino no colégio era muito
sério. Havia aulas de educação física em que tínhamos que “plantar
bananeira”, apoiando as pernas no muro do pátio. Numa das festas de Natal
tive que declamar em alemão alguma coisa que falava de Sant Niklas, o
papai Noel alemão. Por essa prosa ganhei um livro de historinhas em
alemão que guardo até hoje. Numa dessas festinhas participei de um
coralzinho de crianças que se apresentou no Teatro “Copa”. Alguns de
nossos eventos escolares se realizavam no Forte do Leme. Quando havia
passado para o segundo ano é que a família Caniato sairia de Copacabana
para um lugar em que, pelos próximos cinco anos, eu não veria mais
nenhuma lâmpada, muito menos uma escola.

Ginástica pelo rádio

Todas as manhãs, muito cedo, meu pai fazia uma sessão de ginástica pelo
rádio. Eram as aulas da “Hora da Ginástica” do Professor Oswaldo Diniz
Magalhães(1904-1998). Esse famoso professor dirigia ao vivo um
programa de ginástica, iniciado em 1932 que era acompanhado
ritmicamente por um pianista, também ao vivo, creio que na Radio Mairink
Veiga e que mais tarde se propagou em rede de várias emissoras. O
programa era também orientado por um grande mapa com as fotografias
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das posições básicas de cada módulo. Havia ginásticas feitas com um


“bastão”: um cabo de vassoura. Meu pai fazia o programa com uma
regularidade quase religiosa. Eu fui arrastado para o programa e o
acompanhei durante todos os anos, a partir de 1935 até 1938 quando
saímos do Rio de Janeiro. Além da ginástica, nos intervalos entre os
módulos, o Professor Magalhães fazia uma série de comentários e
conselhos que tinham a ver com uma vida saudável, cheia de otimismo e
conselhos sobre saúde, comportamento e cidadania. Creio que também
devo a esse professor uma parte importante em meus hábitos que sempre
incluíram ginástica e uma visão positiva e saudável da vida. Esse professor,
carioca do Meyer, prestou inestimável serviço à educação física e à
cidadania no Brasil. Seu programa se manteve no ar por mais de cinqüenta
anos e lhe valeu, além do reconhecimento nacional, uma estátua que está na
praça Saenz Peña, na Tijuca, no Rio de Janeiro.

As belezas do Rio de Janeiro

Desde muito cedo aprendi a apreciar as belezas do Rio de Janeiro. Acredito


que muito poucas cidades no mundo reúnam tantas e tão originais belezas
naturais. Desde recém nascido acompanhava meus pais aos freqüentes
“piqueniques” em Paquetá. O recanto que frequentávamos com amigos ou
parentes era “A Moreninha”. Em minha memória aquele recanto tinha algo
de paradisíaco: um encanto quase sobrenatural. A água calma, tépida, era
de um verde transparente. As pedras do alto de um dos lados da praia eram
cobertas de mata onde se fazia uma travessia pelo “túnel”. O topo daquela
pedra servia de mirante para a Ilha de Brocoió, em frente à Moreninha. A
sombra das grandes jaqueiras, mangueiras e coqueiros do pátio do
restaurante “A Moreninha”, junto ao mar, era o mais perfeito e suave
cenário tropical. De um lado o acesso direto à praia. Do lado oposto ficava
o grande portão onde chegavam os coches, puxados por parelhas de belos
cavalos, bem arreiados e dirigidos por um cocheiro modesto mas
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consciente da beleza e dignidade de seu romântico transporte. Além da bela


viagem pelas calmas e ainda limpas águas da baia da Guanabara, a chegada
e a saída da barca era um acontecimento cheio de emoções: alegria na
chegada e nostalgia na partida. Foi nesse, para mim paraíso, que aprendi a
andar de bicicleta. Décadas mais tarde quando voltei a essa ilha da fantasia
de meus sonhos de criança, encontrei quase tudo degradado: águas
poluídas, tudo empobrecido. Os antigos coches rotos e remendados com
trapos ou pedaços de arame. Seus condutores e os próprios cavalos eram a
figura da desnutrição causadas pelo empobrecimento. A poluição havia
levado quase todo encanto daquele sonho que se chamava “Paquetá”.
A Floresta da Tijuca era outro passeio habitual. A subida com o bonde
“Alto da Boa Vista”, começava na “Muda” e terminava na pequena
estação e quiosque próximo à entrada do parque, num belo jardim: era a
entrada para um dos pontos mais buscados pelos turistas: a “Cascatinha”.
Aí havia, além do restaurante e bar, os obrigatórios fotógrafos “lambe-
lambe”. Aí começava nossa caminhada pela floresta cuja primeira parada
era a Capela Mairinque. Seguíamos pelos caminhos e veredas até o
“Açude da Solidão”, onde fazíamos a parada para o “almoço”. Aí minha
mãe abria o nosso farnel: sanduíches de pão “Petrópolis” com “ovos
mexidos” e frutas. Depois de um descanso andávamos por outras veredas.
Várias vezes fomos até o “Pico do Papagaio”. Em todas as encruzilhadas
havia “despachos´ ou “trabalhos” de macumba. Nossa frequência nos fizera
conhecidos dos guardas da entrada do parque. Tanto que, com um deles,
muitas vezes meu pai trocava cumprimentos e breves conversas. Um
desses guardas nos contou de seu enxoval de cozinha feito de recolher a
grande quantidade de pratos, tigelas e outros matérias dos “despachos” e
“trabalhos” das encruzilhadas.
A floresta tropical da Tijuca, tão próxima da cidade é até hoje uma atração
especial e única no mundo. Ela já havia atraído o Rei Alberto I da Bélgica
que a visitou e até escalou seus picos. Ela se deve à iniciativa e
reconhecimento do problema do desmatamento seguido da erosão, por
Pedro II. O reflorestamento foi iniciado pelo major Archer em 1861 à
frente de um grupo de escravos e completado pelo Barão D´Escregnolle
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que foi o responsável pelo embelezamento dos recantos e atrativos


turísticos dessa extraordinária floresta urbana.

Corcovado e Pão de Açúcar

Esses dois ícones do Rio de Janeiro sempre estiveram diante de meus olhos
e na minha memória. Isso não só pela sua beleza e originalidade como pelo
fato de serem pontos obrigatórios nos passeios, repetidos quando chegavam
amigos ou parentes dos dois lados de nossa família. O trem ou bondinho do
Corcovado foi inaugurado por Pedro II, embora o monumento(Cristo) só
tenha sido erigido em 1932. Eu ainda era muito criança mas me lembro da
expectativa e dos comentários que se seguiram a um fato de grande
importância histórica naqueles anos. Guglielmo Marconi, o inventor do
rádio e premio Nobel de Física (“Physica”,1909), acionou desde a Itália, a
bordo de um navio, um sinal de radio que fez acender a iluminação do
Cristo. E´ fácil imaginar tanto a expectativa quanto a repercussão que isso
teve. Era de fato um acontecimento mundial e que alvoroçava o Brasil,
especialmente o Rio de Janeiro naqueles anos trinta.
O Pão de Açúcar, essa extravagante sentinela, bem na entrada da baia da
Guanabara sempre foi muito presente especialmente para todos que
moravam do centro para o Sul do Rio de Janeiro. Sempre foi, além de um
verdadeiro ícone da cidade, o lugar onde se ia também para levar parentes e
amigos que chegavam à Cidade Maravilhosa. Sempre imaginei o que deve
ter sido a entrada da primeira caravela naquele cenário deslumbrante e
virgem. O deslumbramento que deve ter ocorrido a quem via pela
primeira vez esse panorama único. Deve ter sido extraordinário o momento
e surpreendente também a visão dos que estavam em terra, os índios, da
entrada da primeira caravela e ver de dentro dela saírem seres tão
diferentes.

A Quinta da Boa vista


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Esse era outro dos meus passeios preferidos. Os grandes gramados e o


obrigatório piquenique eram grandes atrações. Mas o mais sensacional era
o passeio nos barcos a remo. Eram uns barcos muito mal cuidados e que
sempre “faziam água”. A gente acabava se molhando mas isso só
acrescentava emoção. O ponto culminante dessa emoção era a passagem de
barco pelo túnel que ligava os dois lagos em que se podia navegar. Era
preciso ir tirando água com uma lata que já fazia parte do “equipamento”
do bordo daqueles rústicos barquinhos.

O Carnaval nos anos trinta

E´ um grande exercício de memória a comparação do que se tornou o


carnaval carioca com aquilo que também já era a maior festa popular,
especialmente no Rio de Janeiro, mesmo nos anos trinta. Em Copacabana a
grande atração era o desfile dos carros abertos pela avenida Atlântica, em
que muita gente, principalmente as moças, em belas fantasias, atiravam
confetes e serpentinas. As mais freqüentes fantasias eram de pierrô,
colombina, pirata, toureiro, odalisca. Uma que me ficou gravada, pela sua
originalidade e ocasião, era a de “soldado mata-mosquito”, com a
maquininha de “Flit”, o inseticida usado no combate a aqueles insetos em
campanha nacional. È desse período a eleição do primeiro Rei Momo.
Pelas calçadas também desfilavam foliões com fantasias e havia
concentrações deles e “mascarados” nas “batalhas de confetes” e “lança
perfumes”. O lança perfume ainda era, para a maioria, uma brincadeira
ingênua. A coisa mais atrevida era esgichar lança perfume nas costas e nos
decotes das moças, especialmente das mais bonitas e exuberantes. O lança
perfume era importado, em frascos de vidro, outros em tubos metálicos.
Os blocos ou “batucadas” vinham principalmente dos morros e eram
constituídos em sua maioria por gente negra e mais humilde. O desfile de
carros alegóricos era organizado pelas “grandes sociedades”: os
“Fenianos”, os “Tenentes do Diabo”, “Democráticos” e eram feitos na
Avenida Rio Branco, no centro da cidade, vindo na direção do obelisco. Os
anos trinta marcaram também a consagração das marchinhas de
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carnaval. Certamente uma das de maior sucesso e que por isso ficou
gravada em minha memória foi “O teu cabelo não nega” de Lamartine
Babo. Acompanhando meus pais para assistir ao desfile das grandes
sociedades na Avenida Rio Branco, vi e ouvi as primeiras referências aos
bailes do Municipal, embora nunca tivesse entrado nele naqueles anos.
Getulio Vargas parece ter sido o primeiro político a entender o carnaval
como meio de comunicação, especialmente com as classes mais pobres da
sociedade.

Outras grandes “novidades” na capital

As praias, mesmo a mais famosa do Brasil, a “princesinha do mar”,


Copacabana, não tinham grande freqüência. Não era ainda tão difundido
quanto seria mais tarde o hábito de “ir à praia”. Tanto a avenida Atlântica
quanto a própria praia, a areia, eram muito mais estreitas que as de anos
depois. Vez por outra, ondas na preamar, em dias de “ressaca”, atingiam a
avenida Atlântica. Eu sempre frequentara a praia, desde muito criança,
entre o Lido e o Copa, em frente à rua Duvivier, com minha mãe que havia
aprendido a nadar em sua infância na Suíça. Outras vezes com meu pai ou
com um de meus tios, o “tio Nino”, que me levava em seus ombros até às
ondas. A orla era muito mais apreciada pela sua “vista para o mar” ou pelo
“footing” na calçada. Para quem passeava pela orla à noite já eram
familiares os lampejos do velho farol da ilha Rasa, bem em frente de
Copacabana a orientar os navios que chegavam ou partiam do porto do Rio.
Todos os navios que demandavam o porto do Rio de Janeiro sempre
tiveram que passar em frente a Copacabana. Faziam parte do cenário da
avenida Atlântica os luxuosos ônibus da Light, prateados, com assentos de
veludo e um motorista em rigoroso uniforme cinza e quepe. Não havia
cobradores. Era preciso despejar as moedas dentro de um recipiente de
vidro junto ao motorista. Só depois de conferir a quantia através do vidro é
que ele acionava uma alavanca que fazia as moedas caírem dentro do cofre.
Os bondes, muito mais baratos e mais usados, de Copacabana, depois de
passar pela “estação de bondes” ou “ponto de cem Reis”, onde hoje está o
Centro Comercial, na confluência da Siqueira Campos com a avenida
18

Copacabana, seguiam pela rua Barata Ribeiro e depois entravam na rua


ministro Viveiros de Castro em direção ao “Túnel Novo”.
Na véspera do dia em que nasci, um gigante dos ares decolava pela primeira
vez no lago de Constança, na Suíça. Estava surgindo o grande avião de dois
andares, feito de madeira e acionado por doze, isso mesmo doze, motores
colocados sobre a asa. Como não havia aeroportos ele tinha que ser um
hidroavião. Ele se chamava DOX Dornier e sobrevoou o Rio de Janeiro, e
especialmente a enseada de Botafogo, creio que em 1936. Do casal
dinamarquês que vinha ao Brasil e se hospedava no Atalaia, ganhei uma
réplica de brinquedo desse grande avião projetado por Dornier e que seria
por décadas o maior avião do mundo. A despeito do grande alvoroço
mundial causado por esse projeto alemão, feito na Suíça1 ele não teve êxito.
Parece que apenas três deles foram construídos mas não chegaram a operar
regularmente.
Outra das grandes novidades mundiais, foram as primeiras experiências
com o “autogiro” que daria origem ao helicóptero. Era uma criação do
piloto espanhol Juan de La Cierva. Embora eu não conseguisse ver com
clareza, estive com meu pai, na avenida Atlântica olhando para uma
máquina de voar, no céu e que todos diziam ser o novo invento, o autogiro.
Seu inventor, que morreu pouco depois, tinha partido, em seu projeto, de
um avião em que ele suprimiu as asas e colocou uma grande hélice (rotor)
horizontal por cima. O autogiro era propelido horizontalmente pelo motor
de avião convencional, na frente. A sustentação das asas era substituída
pela dá hélice horizontal e livre. Ele não caia mas também não podia
pairar, parar no ar.
As grandes novidades que o mundo vivia nos anos de minha infância,
ressoavam muito no Rio, capital do Brasil. No Rio, a grande vitrina dos
acontecimentos era Copacabana. Aí estava a maioria das representações
diplomáticas estrangeiras.
De todas as lembranças de coisas ou eventos que vi, nada entretanto podia
ser comparado ao Zeppelin. Até hoje essa aparição seria o mais espetacular
que se poderia ver. O leitor deve ter bem presente, por muitos meios de
comunicação, o espetacular que foi o “Titanic”: um imenso e luxuoso navio
1
A Alemanha estava proibida de construir aviões por causa do Tratado de Versalhes decorrente da
Primeira Guerra Mundial
19

de passageiros que naufragou em 1912, logo na viagem inaugural. Pois


agora imagine uma coisa daquele tamanho voando baixinho e calmamente.
Os “zepelins” tinham quase o comprimento do “Titanic”, apenas uns
metros a menos. Dois fizeram várias e regulares viagens, passando pelo Rio
entre 1930 e 1937. O primeiro deles, o “Graf Zeppelin”, fez cinco viagens.
O mais moderno e um pouco maior, o “Hindenburg”, fez quatro. Creio ter
visto todas essas passagens que eram esperadas com ansiedade. Minha avó
materna que criava um primo (Mausi), pouco mais novo que eu, relatava o
espanto do moleque quando do portão de sua casa no Belenzinho, em São
Paulo, correu para dentro assustado e dizendo em suíço: “uma grande
salsicha voando”. A passagem pelo Rio, deve ter sido também para aqueles
passageiros de alto luxo, uma coisa espetacular. Imagine todo o belo
panorama do Rio de Janeiro, visto a uns quinhentos metros de altura, num
vôo calmo e lento, podendo olhar por janelas abertas. A notícia de que ele
iria passar se espalhava como um rastilho por toda a cidade. Com minha
mãe e meu, pai, o gerente, subíamos para o terraço no Ataláia, por cima do
décimo primeiro andar. Nosso prédio era dos mais altos de Copacabana.
Daí víamos surgir por trás do Pão de Açúcar no morro do Leme aquele
imenso charuto voador, todo prateado, voando placidamente sobre o mar
por toda a praia de Copacabana, até desaparecer na direção do Leblon.
Ouvia-se apenas um pequeno zumbido dos motores diesel dos lados da
grande “barriga”. A linha era Frankfurt-Rio. Em Santa Cruz havia sido
construído pelos próprios alemães um imenso hangar para receber, abrigar
e fazer manutenção daquele “Gigante dos ares”. O governo brasileiro,
Getúlio Vargas, havia dado o terreno e a permissão para que se construísse
aquele que é ainda hoje, a única coisa do gênero no mundo. Um ramal de
trem também foi construído para servir de apoio operacional aos zepelins,
chegando até o grande Hangar2. O maior dos zepelins, o “Hindenburg”,
trazia na cauda a “suástica”, o emblema criado por Hitler que usou,
especialmente o mais moderno e maior deles, para mostrar a
“superioridade” do progresso e da tecnologia da Alemanha ou
-“Deutschland über alles” (a “Alemanha acima de tudo”).

2
Essa base se transformaria, depois, durante a Segunda Guerra Mundial, em Base Aérea de Santa Cruz.
20

Antes de ser colocado em linha regular, o “Hindenburg” havia dado a volta


ao mundo no ano em que nasci(1929). Sua última viagem terminou
tragicamente em 1937, na base de Lakehurst, EEUU), quando se preparava
para o pouso. Uma explosão e a combustão do Hidrogênio com que era
inflado terminaram com um período de grande e efêmera glória. O mundo
estava à beira da Segunda Guerra Mundial.

O que se ouvia pelas ruas do Rio

O Brasil já vivia uma grave “crise”. O recente “crack” da Bolsa de Nova


York(1929), tão grande ou maior que a que estamos vivendo agora(2009).
E` que o Brasil tinha sua economia apoiada sobre a exportação quase só do
café. O grande importador desse nosso produto eram a América. A política
do “café com leite”, pacto entre São Paulo e Minas, havia sido
interrompida pela revolução encabeçada por Getúlio Vargas. O presidente
Washington Luiz e o candidato que havia ganho as eleições, Júlio Prestes,
haviam sido exilados. Para evitar o colapso da produção cafeeira, Getúlio
comprava e queimava o café. Logo o descontentamento, especialmente dos
paulistas, fez eclodir outra revolução: a revolução constitucionalista de
1932. O clima político do pais era de tensão e isso se refletia e agravava a
atividade produtiva nascente mas ainda muito fraca. A radicalização das
correntes políticas de esquerda e de direita aumentavam um clima de
intranqüilidade. A chamada “intentona comunista” de 1935 tivera seu
principal episódio na Praia Vermelha, a pouco mais de um quilômetro de
casa. Eu não ouvi os tiros mas o clima de preocupação, comentários e o
nervosismo das pessoas era visível, especialmente em meus pais. Diante de
nossa porta vi o desfile provocador dos “camisas verdes”, os integralistas,
com o sigma, seu símbolo nas braçadeiras e gritando “anauê”! Estes
pregavam um fascismo tupiniquim idealizado e pregado por seu líder
Plínio Salgado.

O “cangaço” e Lampião.
21

Talvez o assunto do cangaço e as bárbaras proezas de “Lampião” tenha


sido o mais insistente e freqüente durante minha infância no Rio. Era muito
freqüente o comentário sobre as tentativas das “volantes” em capturar o
“bando” que atemorizava e muitas vezes barbarizava especialmente os
fazendeiros do Nordeste. Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, com
sua companheira Maria Bonita sempre escapavam e levavam “a melhor” no
confronto com as patrulhas do exército. Isso trazia não só intranqüilidade
como deixava visível a miséria do Nordeste. Lampião, para muitos era uma
espécie de “Robin Hood” diante da pobreza e degradação nordestina na
época dos grandes fazendeiros: os “coronéis”. Esses episódios trágicos
contribuíram para por em evidência a pobreza e a miséria reinantes numa
grande região do Brasil.
Finalmente uma patrulha, graças a uma delação, conseguiu emboscar e
derrotar o grupo de Lampião. Toda a liderança do grupo foi morta e
decapitada. Lembro-me da fotografia de jornal em que apareceram todas as
cabeças, cortadas e expostas numa tábua como “prateleira”, de Lampião,
Maria Bonita e de seus companheiros. Era um golpe fatal no cangaço que
havia aterrorizado o Nordeste durante as primeiras décadas do século XX.
Essa foi uma, sem dúvida a principal e mais chocante, das notícias que vi e
de que me lembro, pouco antes que nossa mudança deixasse, por anos, o
Rio de Janeiro, em 1938.

Outros grandes casos

O fato de estarmos num hotel frequentado por gente que vinha de outras
regiões do Brasil e de outros paises da Europa, além dos EEUU, fazia de
nossa casa uma caixa de ressonância de fatos e histórias que circulavam
pelo mundo. Meu pai como gerente e interprete era quem recebia os
principais clientes do hotel. Nosso principal hóspede, Mister Joseph, uma
vez por ano passava alguns dias nos EEUU mas preferia morar no Rio de
Janeiro, no “nosso” Atalaia. O casal Fosker também voltava sempre da
Europa, pelo menos cada dois anos. Isso fazia com que meu pai, alem de
22

ler os jornais, estava sempre em contato com pessoas que traziam


novidades do mundo. Por sua vez era inevitável que meu pai conversasse
em casa sobre aqueles assuntos tão palpitantes.
Sacco e Vanzetti haviam sido executados na cadeira elétrica em 1927,
depois de um longo, complicado e polêmico julgamento que ficaria na
história dos grandes processos dos EEUU. Tratava-se de dois imigrantes
italianos que eram, como muitos outros que vieram para o Brasil,
anarquistas. Esse dois, além de tomados como subversivos foram acusados
de um assalto com uma morte em que foi roubado todo o dinheiro do
pagamento dos funcionários de uma fábrica de calçados em Massachusets.
Depois de muitos anos de julgamento ambos foram executados na cadeira
elétrica. Como não havia tido flagrante do assassinato, sempre permaneceu
a dúvida sobre sua culpabilidade de morte ou se o processo não havia sido
“contaminado” por um sentimento contra imigrantes “subversivos” que
tomavam o lugar dos operários americanos e por uma espécie de “caça às
bruxas” contra anarquistas. Durante vários anos, em muitos paises foram
organizados “comitês” e movimentos populares apelando por clemência
para os dois. Até hoje se discute a legitimidade desse processo e a execução
dos dois imigrantes italianos.
Outro rumoroso caso discutido em todo o mundo nos anos trinta ressoava
no Atalaia: o caso Lindbherg-Hauptman. Charles Lindbherg era um herói
nacional nos EEUU. Ele havia feito sozinho a primeira travessia do
Atlântico, dos EEUU para a Europa, num avião monomotor. Isso em 1927.
Em 1932 um filho seu de menos de dois anos foi raptado e morto. Não
houve testemunhas oculares nem provas cabais. Havia fortes indícios ou
provas indiretas que recaíram sobre um carpinteiro alemão imigrante:
Bruno Richard Hauptman. Durante quatro anos o processo contra
Hauptman foi discutido não só na justiça americana como no mundo todo.
Por fim, o veredicto foi de pena capital na cadeira elétrica. Em abril de
1936 Hauptman foi executado, protestando inocência até o fim. A
repercussão aqui se fez sentir pela difusão do medo e restrições das mães
em deixar as crianças livres para brincar pelas ruas.
23

O Caso Dreyfus

Em meados de 1935 faleceu Alfred Dreyfus, um ex oficial de artilharia do


exército francês. Talvez nenhum outro caso na historia moderna do mundo
tenha agitado tanto a opinião pública quanto esse. Foi esse o tema que
celebrizou Emile Zola com seu “J´accuse”(Eu acuso) e a provável causa de
sua morte trágica e misteriosa. Embora o caso tenha tido seu início nos
últimos anos do século XIX, as questões que ele levantou com a marcha e
contra marchas de um processo complicado, provocaram movimentos
apaixonados e consequências graves em várias partes do mundo. Um
manuscrito encontrado numa cesta de papeis e levado às autoridades do
exército francês indicava a existência de um oficial de alta patente e traidor.
As suspeitas caíram sobre Dreyfus, único alto oficial de origem judia.
Instalou-se uma corte marcial e Dreyfus foi condenado à prisão perpétua na
Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Mais ainda, Dreyfus foi submetido à
cerimônia de degradação, sendo-lhe arrancadas as insígnias de oficial e
quebrada sua espada. O fato de ser Dreyfus judeu e a inconsistência da
acusação levantaram as suspeitas de uma perseguição contra os judeus na
França. A França e boa parte da Europa ainda viviam a tensão entre
monarquistas e republicanos. A França estava dividida entre opositores e
favoráveis a Dreyfus. Muitas empresas de judeus foram depredadas. E´
nesse clima de grande polarização política que Emile Zola publica seu
artigo “J´accuse” pondo em evidência que se tratava de uma farsa montada
e destinada a, de qualquer maneira, incriminar Dreyfus, pelo fato de ser
judeu. Zola, condenado à prisão e pagamento de multa, teve que se refugiar
na Inglaterra. Outra vez a polarização levantou protestos e graves episódios
em várias partes do mundo. Por fim se descobriu que um outro oficial
francês havia escrito o papel incriminador visando eliminar da alta
oficialidade francesa um judeu. Quando faleceu, em 1935, Dreyfus havia
sido reabilitado, sem que nunca tivesse reivindicado reparos pelos grandes
danos que havia sofrido. Seu caso, no entanto, discutido durante décadas,
24

ecoou por todo o mundo e havia contribuído para que se compreenda até
onde podem ir a xenofobia e o racismo. Esse rumoroso caso foi uma das
coisas que muito ouvi em minha infância, dentro de casa, e na recepção do
Atalaia hotel dos anos trinta. Meu pai era especialmente interessado em
questões envolvendo os grandes processos jurídicos.

O circuito da Gávea

Outro aspecto marcante dos anos trinta de minha infância no Rio foi a
corrida de carros: as “baratinhas”, como eram conhecidos os carros de
corrida. Desde muito pequeno assisti a muitas dessas corridas nos ombros
de meu pai. Algumas vezes empoleirados nos andaimes de uma construção
próxima às margens da corrida. A corrida era feita nas ruas do jovem bairro
da Gávea. Não havia nem autódromo nem lugares especiais para os
espectadores. A partida era dada na rua Marquês de São Vicente. O trajeto
seguia pelo Canal do Leblon, depois de passar pela porta do Hotel Leblon,
entrava na avenida Niemeyer e depois subia por uma estrada de terra, o
“trampolim do diabo”, onde está hoje a favela da Rocinha, descendo pela
estrada da Gávea e rua Marques de São Vicente. Também assisti a
corrida de onde era dada a partida, na Rua Marquês de São Vicente,
próximo ao canal do Leblon. Pelo Brasil, corriam Manoel de Tefé,
chamado de Barão de Tefé em uma “baratinha amarela e Irineu Correa.
Aquele, venceu em 1934. O segundo marcou o início do automobilismo
brasileiro de competição. Muitas vezes, fora da corrida essas baratinhas
amarelas dos brasileiros, eram vistas estacionadas na então rua
Copacabana, entre o Lido e o “Copa”, em frente ao Atalaia. Em 1934 o
vencedor foi Irineu Correa. No ano seguinte aconteceu o trágico acidente
em que ele morreu. Sua baratinha capotou e foi cair dentro do canal do
Leblon. Assisti à corrida e ao grande tumulto que isso provocou. A cada
ano essa corrida se tornava mais popular e arrastava multidões. A partir de
1935 a corrida ganhou mais prestígio com a chegada de grandes nomes do
25

automobilismo internacional. Em 1936 a Ferrari mandou um corredor com


um nome que se tornaria lendário e sinônimo da alta velocidade: o italiano
Carlo Pintacuda com sua baratinha vermelha. A Alemanha mandou Hans
Stcuck, o “Von Stuck”. Da França veio “madmoiselle” Helenice, com sua
baratinha azul. Essa, foi a primeira participação, talvez a única, de uma
mulher numa corrida desse gênero. Seu carro quebrou e ela não conseguiu
chegar ao fim da prova mas marcou época e causou muito “frisson”.Sua
aparição na praia de Copacabana, com maiô de duas peças também deu o
que falar. Creio que não havia escuderias como as hoje. Os carros
representavam os paises por suas cores: amarelos os brasileiros, vermelho
dos italianos, azul da França. A Alemanha mandou um carro espetacular,
capaz de muito maior potência, velocidade e com o aspecto de uma bala de
fuzil: o “flecha de prata” da Auto Union. A esta altura a Alemanha nazista
já estava empenhada numa forte campanha de propaganda internacional.
Aquele carro mais potente, mais reluzente e mais espetacular deveria
mostrar a “superioridade” da Alemanha. Não adiantou. O italiano
Pintacuda, da Ferrari, ganhou a corrida e se transformou num ídolo e num
ícone da velocidade. Esse prestígio popular se manifestou nos anos
seguintes numa das marchinhas de mais sucesso do Carnaval carioca: “sou
um pintacuda pra beijar”.

De Copacabana para a Penha, em São Paulo

Uma vez por ano meu pai, tirava uns dias de férias para visitarmos os
parentes em São Paulo. Para mim isso representava um ansioso alvoroço.
Desde a véspera eu acompanhava o arrumar das malas por minha mãe. Às
seis horas já tomávamos o táxi que nos levaria à estação Pedro II .
Atravessar o Túnel Novo em táxi, ainda com escuro produzia em mim um
efeito mágico: o passar rápido das luzes do túnel refletidas no capô do táxi.
Na estação, o burburinho das pessoas, dos carregadores de bagagens e o
embarque eram um verdadeiro “agito”. Depois de colocar as malas à bordo,
meu pai me levava para ver a grande locomotiva “Baldwin”, americana que
26

resfolegava, esquentando as caldeiras e “bufando”, pronta para a partida.


Depois de muitas despedidas, lágrimas e sorrisos, grande número de lenços
brancos acenando iam ficando para trás. Resfolegando e apitando, o trem
ia ganhando velocidade. Era tentador olhar para a paisagem, pondo a
cabeça para fora da janela. Mas isso custava o preço das fagulhas e fumaça
que voavam do chaminé da grande locomotiva. Muitas pessoas usavam um
guardapó para proteger suas roupas das fagulhas e da fuligem. Era preciso
manter os vidros fechados, apesar do calor. A primeira parada era em
Vassouras. Dessa estação ficou para sempre em minha memória o creme de
Vassouras, um delicioso requeijão em sua caixinha de papelão retangular,
com o gosto daquelas viagens. Em cada parada meu pai descia e passeava
até o último momento, subindo a bordo só quando o trem começava a se
movimentar, deixando-nos ansiosos. Depois de doze horas de viagem,
cansados e empoeirados, chegávamos à estação do “Norte”, em São Paulo.
O “Paschoalim, taxista filho de italianos, velho conhecido da família, nos
levava para a rua Guayauna, na Penha, onde moravam meus avós paternos:
Beppi Caniato e Ana Tiepo Caniato. Ele rovigotto(de Rovigo), ela de
Treviso, ambos vênetos. Depois da calorosa recepção, banho de bacia,
com a água aquecida em grandes chaleiras de ferro, a sopa de feijão com
macarrão. Para mim essa mudança radical tinha o gosto tão especial como
o de um sonho: era um mundo tão diferente pelo lugar e pelo afeto que
recebíamos na grande sala, acima do piano, estava o relógio que até hoje
evoca minha infância naquela casa.
Dos sete irmãos Caniato, três, ainda moravam na casa dos “velhos”: o mais
novo, tio Mário, muito moço, ajudava na leiteria e sorveteria, onde meu
avo fabricava, entre outros, o sorvete especial, o “esquimo”, picolé com
casquinha de chocolate. Isso exigia vários estágios de fabricação no grande
refrigerador que exalava um fortíssimo cheiro de amoníaco. Tio Mário, que
também tocava violão, me levava passear pela rua Guayauna no quadro de
sua bicicleta. Íamos visitar uma tia-avó, tia Amália cujo marido(“Zio”
Montesso), um velhote “brontolon” (resmungão), era o pai de uma grande
família que fabricava pinceis de alta qualidade. Tio Américo, já adulto era
muito hábil em diversos trabalhos de madeira em sua carpintaria no grande
quintal. Fazia rodas de muitos tipos e finalidades. Muito brincalhão e
27

criativo, fazia também uns carrinhos para descer na ladeira próxima da


casa. Era uma brincadeira que reunia adolescentes e adultos daquela
vizinhança. Como era uma ladeira muito longa e íngreme, os carrinhos
atingiam alta velocidade e tinham que ser dotados de um “breque”.
Também fiz essa descida com ele pilotando nosso “pintacuda”. Tio Luiz já
era um homem feito. Mantinha-se solteiro mas era o “arroz de festa dos
bailes” e disputadíssimo pelas moças da rua Guayauna e arredores. Pela
manhã sua refeição era uma monumental gemada de ovos de gansa com
chocolate, aveia e outros ingredientes. Era o “Gigi”, querido de minha avó
e um tio da mais grata memória, sempre muito alegre e brincalhão.
A casa era simples mas muito grande e rodeada por enorme quintal com
galinhas, patos, gansos e muitas árvores frutíferas. Desse cenário da
grande e importante rua Guayauna faziam parte a repetida cantilena do
italiano que vendia bata doce assada: “Bata..n..assad.. u.. furn” e o
vendedor de leite de cabras. Este trazia alguns desses animais, de úberes
cheios, atrelados uns aos outros e eram ordenhados na porta da casa de
quem tivesse uma criança “fraca”, necessitada de um “reforço” alimentar.
Para quem vinha, como eu, de Copacabana, era um mundo muito
diferente: uma aventura extraordinária.
Numa dessas viagens, tios e avós me fizeram uma inesquecível surpresa:
me presentearam com um cabritinho. Para mim uma emoção embriagadora
e inesquecível. Meu drama foi, na partida: eu queria levar o “meu” cabrito
para mostrá-lo aos meus amigos de Copacabana. O dia em que conheci
“meu” cabrito foi de tanta euforia que não quis acompanhar meus pais na
obrigatória visita à casa de minha avó materna. Eu quis ficar com o cabrito.
Só que, já noite, passadas as emoções com o cabrito, cansado e com sono,
senti falta de minha mãe, chorei e fiz meus avós me levarem da Penha para
o Belenzinho de bonde. Fazia muito frio e minha avó me envolveu em um
grande xale para me entregar no Belenzinho, na casa de meus parentes
suíços.
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A casa de minha avó materna.

Minha avó materna era suíça. Ela se havia separado de meu avô por
discordar do projeto de vir de um belo chalé na Suiça para um casebre em
Campo Limpo Paulista. Por isso vivia na casa da sua filha, minha tia Elza.
Esta era casada com um português, o tio Domingos. Ambos trabalhavam no
Hotel Esplanada, atrás do Teatro Municipal de São Paulo. Ela era
encarregada das “arrumadeiras” de um dos andares e ele “ascensorista”,
operador no elevador dos freqüentadores do hotel. Ambos saiam para o
trabalho muito cedo e voltavam durante a tarde. Assim, a administração da
casa era feita por minha avó. A casa tinha por isso um jeito todo suíço. A
limpeza era impecável e as camas, com edredons de penas de ganso tinham
um cheiro especial, um cheiro suíço. A sala tinha uma arrumação
minuciosa, presidida por um relógio vindo da suíça com a família e que
tocava suavemente a cada quarto de hora. O fogão a gás com bujões que
eram importados, era usado com econômica racionalidade. As panelas
tinham dois “andares”, visando o aproveitamento do calor. Nessa casa
vivia meu primo Marcel, o “Mausi”, pouco mais novo que eu, criado por
essa minha avó e uma tia. A família Schwyzer, de minha mãe, havia
chegado da Suíça em 1920 com o navio “Contessa Mafalda”, logo que se
restabeleceu a navegação de passageiros depois da Primeira Guerra
Mundial. Um dos irmãos de minha mãe, o tio Fritz, com dezoito anos
deixara na Suíça uma namorada, Maria, ainda menor. Quando ela
completou a maioridade, foi feito o casamento por procuração. Ela
embarcou em Gênova para vir encontrar o jovem marido. Os Schwyzer
foram recebê-la em Santos. Nove meses depois nasceu o meu primo mas a
jovem Maria, morreu no parto. Tia Elza, irmã de minha mãe e minha avó
assumiram a criação do menino Marcelo, meu primo. Esse meu primo, o
“Mausi”, foi aquele que correu apavorado para dentro de casa chamando a
avó por ter viso “uma grande salsicha voando” quando viu pela primeira
vez em São Paulo o Graf Zeppelin. Meu tio Domingos não era um homem
culto ou que lesse muito, mas tinha modos e falar muito polidos pois que
convivia o dia todo com hóspedes ilustres naquele que era o hotel mais
sofisticado da época em São Paulo. Seu aspecto era de um senador: terno
29

escuro de casimira inglesa, colete, chapéu de feltro, sapatos pretos


reluzentes e uma ostensiva corrente de relógio a lhe pender do bolso do
colete. No seu trabalho de “dirigir” o elevador dos hóspedes do Esplanada
envergava um impecável uniforme. Seu contato com a “nata” dos
freqüentadores de São Paulo era outra fonte de informações das grandes
coisas que iam pela paulicéia. Ele conhecia e cumprimentava em seu
elevador as celebridades que frequentavam o Esplanada, como os
grandes cantores que se apresentavam no teatro Municipal de São Paulo.
Alem dos bolos suíços, essa casa de minha avó, meio suíça meio
portuguesa, tinha para mim um grande atrativo infantil: o cavalo de pau, de
balanço de meu primo. Meu tio Fritz, com alma e habilidades de artista,
esculpiu um belo cavalo de madeira no qual meu primo fazia verdadeiras
proezas ao balançar. A rua onde eles moravam, Serra de Jairé, no
Belenzinho, era uma ladeira e ainda de terra. Para mim era um grande
atrativo ver as manobras dos “caminhões” de lixo puxados por quatro
mulas e burros bem tratados e adestrados. Só em São Paulo eu via isso.

De volta ao Atalaia

Depois de uma semana dividida entre as casas de meus avós paternos na


Penha e do lado materno, de minha avó e tios no Belenzinho, custava
muito para mim a volta para casa. Saíamos da rua Guayauna para a estação
do “Norte” levados pela “Buick” do Paschoalim. Tive que me despedir de
meu querido cabrito. Eu tinha esperança de voltar no próximo ano para
revê-lo.Nunca mais nos vimos; ele deve ter dado um grande bode. O
embarque no trem expresso da Central do Brasil para o Rio de Janeiro era
às sete horas da manhã. Era preciso levantar muito cedo. Outra vez as
dolorosas despedidas: pessoas queridas, aquele quintal e aquele afeto e
cheiro de uma casa “italiana”onde se fazia o pão. Finalmente estávamos a
bordo para a viagem de volta ao Rio, num trem puxado pelas grandes e
fumegantes locomotivas a vapor. Logo a tristeza pela despedida do cabrito,
o gosto das comidas e bolos das duas avós foram ficando para trás pela
30

quantidade de coisas que aquela viagem de trem oferecia. A primeira


parada do trem nessa viagem de volta ao Rio era em Jacareí. Ainda antes
que o trem parasse os vendedores se empenhavam, aos berros na venda dos
famosos biscoitos dessa cidade: os biscoitos de Jacareí. Nunca me cansei
de, em todas as curvas, observar a grande locomotiva que ia soltando
fumaça e fagulhas. Algumas vezes durante a viagem o trem parava parar
para reabastecer de água a sedenta locomotiva. Numa das paradas, em
Taubaté, havia entrado uma família cujo embarque nos havia chamado a
atenção. Com seus pais, uma menina de 6 ou 7 anos chorava por querer
fazer embarcar seu cachorrinho que ela trazia ao colo. Os pais se
acomodaram nas poltronas do vagão em que estávamos. A menina chorava
convulsivamente enquanto o cachorrinho latia da plataforma na direção da
janela do vagão. Quando o trem se pos em movimento, o cãozinho também
inconformado com a separação, passou a correr paralelamente ao vagão,
enquanto latia. Na medida em que o trem ia ganhando mais velocidade, o
cãozinho não desistia e continuava a correr paralelamente. Assim, durante
muito tempo aquele fiel cãozinho da menina correu desesperadamente até
que suas forças se exaurissem, ficando para trás e emocionando todos os
passageiros que apinhados nas janelas acompanhavam aquele singelo
drama de uma separação. Finalmente chegávamos de volta à estação
Pedro II no Rio de Janeiro. Já o cansaço da viagem não me permitia ver a
chegada em casa. Exausto pelas doze horas da viagem e por tantas emoções
adormecia no colo de minha mãe. O dia seguinte era destinado ao
reencontro com meus amigos e aos relatos, especialmente ao meu mais
chegado amigo Mario. Ele nunca havia andado de trem. Por isso tínhamos
agora mais assuntos e tanto que conversar.

O Hotel Atalaia

Desde os primeiros anos do século XX Copacabana se tornaria uma das


atrações do Rio de Janeiro. No entanto foi a inauguração do Copacabana
31

Pálace, o “Copa”, em 1923 que deu ao bairro e à cidade um grande atrativo


e maior notoriedade. Além da beleza natural de sua praia, da vista dos
navios que demandavam o porto, Copacabana passava a receber grandes
personalidades de projeção mundial. Bastaria citar Albert Einstein em 1925
e Santos Dumont em 1928 e o Rei da Bélgica, Eduardo I. Quando
inaugurado por seus proprietários da família Guinle esse, ainda hoje belo
projeto arquitetônico francês, era rodeado de terrenos baldios. Foi num
desses terrenos próximos que, logo depois do “Copa” foi construído o
“Atalaia Hotel”. Sua frente não era na praia mas na rua imediata, a rua,
mais tarde avenida Copacabana. Era uma prédio de 11 andares e se
destinava principalmente a homens de negócios que tinham afazeres na
capital do Brasil. Acima do décimo primeiro andar ficava um amplo terraço
de onde se podia ver a praia e todo o bairro. Foi desse terraço que vi as
espetaculares passagens do “Zeppelin”.

Quem era o gerente do “Atalaia”.

Meu pai, Antônio Caniato, o “Toni” para os pais e irmãos, era o filho mais
velho e o líder de uma irmandade de seis irmãos e uma irmã. Ele havia
nascido na Fazenda “Macuco”, na região de Campinas,SP, no mesmo ano
em que se inaugurava a grande Estação da Luz(1901). Seus pais, meus avós
paternos, eram imigrantes italianos vindos do Vêneto: ele de Rovigo, ela de
Treviso. Quando meu pai tinha pouco mais de uma ano, meu avô, José, o
“Beppi” Caniato, consegui um pouquinho de dinheiro, o suficiente para se
livrar daquela quase escravidão nos cafezais, para tentar a vida em São
Paulo. Logo conseguiu um emprego na fábrica de vassouras Fracalanza.
Trabalho e dedicação o promoveram para fabricar vassouras de “luxo com
acabamento em veludo” que eram destinadas às grandes residências e
palacetes de São Paulo. Ainda muito criança, meu pai o acompanhava e
ajudava no trabalho da fábrica. O ganho era por produção; por isso a
necessidade da ajuda, mesmo de crianças. Era preciso fazer uma longa
viagem de bonde, pelas frias madrugadas de São Paulo. Chegado à idade
da escola, o progresso do “Toni” foi notado pelo professor. Ainda guardo a
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carta do diretor da escola pedindo a meu avô que deixasse o menino


continuar o estudo. Mas o trabalho para ajudar na criação dos irmãos exigia
o abandono da escola. Não sei se por isso ou apesar disso, meu pai se
tornou desde cedo um autodidata. Sempre estudou e leu muito, sozinho.
Ainda adolescente conseguiu um lugar de “cumim”, auxiliar de garçom, no
restaurante da casa Mappin Store, no centro de São Paulo, freqüentado por
ingleses, engenheiros, administradores da Light e de outras empresas
estrangeiras. Sua natural facilidade para idiômas e sua aplicação aos
estudos solitários, logo lhe valeram promoções. O contato com clientes lhe
proporcionou mais experiência e oportunidade de exercitar seu inglês.
Esses contatos valeram também como alargamento de seus horizontes em
todos os sentidos. No meio dos anos vinte ele já era disputado como
“mètre” e já dispunha de algumas economias para maior ajuda aos pais e
irmãos.
Talvez sua origem rural, como a dos pais, lhe tenha sugerido a compra de
duas glebas de terra em um distante lugarejo no sertão, chamado Currupira,
entre Campinas e Jundiaí. Essas terras ficariam muito ligadas à história da
família Caniato.
O desenvolvimento de são Paulo e a crescente necessidade de hotéis
encontravam um problema: a falta de gente com qualificação para os
serviços gerais, o funcionamento e atendimento de uma clientela cada vez
maior e frequentemente estrangeira. Alguns hotéis e grandes restaurantes
importavam “brigadas” de funcionários, especialmente italianos para esses
serviços. Nesse ambiente de trabalho o Caniato progrediu e logo pensou em
ir em frente: ir para o Rio de Janeiro, capital do Brasil. Ainda em São Paulo
conheceu uma viçosa jovem suíça, Louise, que trabalhava com uma irmã
como camareira no Esplanada Hotel. Ela chegara ao Brasil em 1920, aos
quatorze anos vinda com toda sua família de Wettingen, na Suíça. No
Esplanada Hotel se hospedavam os cantores das óperas que se
apresentavam no Teatro Municipal. Esse hotel era escolhido pelos artistas
porque bastava atravessar a rua para entrar pelos fundos do teatro. Meu pai
era um aficionado por ópera, como quase todos os “oriundi”. Tanto que
ainda antes da maioridade tinha assistido o grande tenor Henrico Caruso no
Municipal de São Paulo, em 1917, na única ocasião em que esse grande
33

cantor esteve em São Paulo. Os já namorados, Antonio e Luiza(Louise)


viram muitas óperas juntos. Casaram no “civil” e juntos começaram a viver
juntos e a planejar a mudança para a então capital do Brasil. Depois de
meses de planejamento e economias, meu pai foi ao Rio providenciar uma
moradia e confirmar o novo emprego. Uma carta dele confirmava o projeto
Rio de Janeiro. De volta a São Paulo e feitas as malas, seguiram juntos para
o Rio ainda desconhecido dela e por conquistar. Ele levava uma
experiência que logo lhe garantiria o emprego no Rio: “mètre” no novo e
elegante ponto de Copacabana, o “Lido”. Pouco tempo depois ele passaria
a gerente dessa casa no mais belo ponto de Copacabana. Em poucos anos
sua experiência e dedicação lhe granjeou respeito e prestígio. Ele era
convidado para ser o gerente do “Atalaia Hotel”, ali bem pertinho do
“Lido”.

A Gerência do “Atalaia”

O Atalaia Hotel tinha onze andares e havia sido construído logo depois do
“Copa”, por volta de 1926. O bairro passava por um surto de progresso e
novidades. Depois de 1929 os eternos problemas do Brasil passavam por
mais um agravamento. A quebra da bolsa de Nova York havia quase
eliminado a exportação do café, a principal fonte de riqueza no Brasil.
Todo o comércio do país se ressentia disso. Meu pai assumiu a gerência em
1933. Além dos problemas do fraco desempenho da economia, a falta de
gente com qualificação para desempenho de uma grande diversidade de
funções, especialmente num hotel, era uma grande questão. O
funcionamento do hotel exigia gente com algum preparo para o
desempenho de cada função. Mas isso quase não existia. Não havia, ou
eram raríssimas, as pessoas que tinham alguma experiência prévia em cada
uma das áreas necessárias ao funcionamento de um hotel. A falta de
pessoal para executar mesmo as tarefas mais simples se constituía num
grande problema. A arrumação das camas, por exemplo, assunto dos mais
óbvios em um hotel, se constituía num grande problema. Era muito difícil
conseguir mulheres que tivessem alguma competência para aquela tarefa
simples. A higiene de banheiros: outro problema. Essas limitações na
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obtenção de pessoas que, precisando e pleiteando emprego, soubessem


executar tarefas, tornavam a administração muito difícil. Durante anos
acompanhei minha mãe também empenhada em ensinar tais cuidados às
“arrumadeiras” a quem cabiam aquelas tarefas. Ela possuía uma grande
experiência prévia desse trabalho num hotel de luxo em São Paulo onde
havia trabalhado: o Esplanada. Além disso, como qualquer jovem suíça,
conhecia obrigatoriamente todos os afazeres de uma casa. Se nos tempos
atuais, a escolaridade e a mão de obra competente ainda são problemas,
imagine-se naqueles anos em que o Brasil, nesse sentido, dava os primeiros
passos da grande hotelaria. Lembro-me de minha mãe ajudando a
administrar a rouparia para várias dezenas de apartamentos. Um dos
grandes trabalhos dela foi ensinar gente a bordar o emblema do hotel nas
fronhas dos travesseiros do hotel.
Os serviços de manutenção se constituíam em outro grande desafio,
principalmente tratando-se de água e eletricidade. Para resolver esses
problemas, lembro-me das lutas e aborrecimentos de meu pai. Um dos
empregados que ficou muito gravado em minha memória pelo muito que
esteve envolvido em situações “desesperadoras” para o gerente. Esse
empregado era um português muito saudável e forte e se chamava Manoel.
Lembro-me dos aborrecimentos que meu pai tinha pelas “soluções” que o
Manoel “inventava”. Embora fosse trabalhador e de boa vontade, era
profundamente ignorante e ainda teimoso na defesa de suas “soluções”.
Uma das dificuldades para o Manoel era admitir que parafusos na madeira
deveriam ser aplicados com chave de fenda e não simplesmente com o
martelo. Ele achava que a rosca dos parafusos era apenas para lhes conferir
mais retenção na madeira e se recusava a admitir que eles deviam ser
aparafusados. Ele insistia em “colocá-los a marteladas”. A mesa telefônica
era outro problema. Era muito difícil encontrar quem desse conta do
“recado” para todos os apartamentos, com discrição, polidez e clareza.
Depois de muitas tentativas desastradas, meu pai mandou vir um de seus
irmãos mais novos, de São Paulo para ensiná-lo a responder pela “mesa
telefônica”. Gastou tempo em prepará-lo. Esse meu tio tinha dezoito anos,
era forte, tinha bom aspecto, bonita voz e era capaz de ser muito gentil. Só
que ele era especialmente gentil com as senhoras mais jovens e bonitas e o
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que lhe faltava em prontidão na “mesa” telefônica, sobrava-lhe em


testosterona. Depois de muitos casos “delicados” e de ter arrumado um
“afair” com uma jovem e linda governanta, chamada Florisa, de um
palacete vizinho, meu pai, antes que a testosterona tivesse conseqüências,
teve que exportar o irmãozinho de volta para a Penha, em São Paulo.
O restaurante era outra fonte de grandes aborrecimentos para o gerente.
Quando meu pai assumiu a gerência do Atalaia já estava instalado um
encarregado do restaurante. O “seu” Fernandes era um português que tinha
mania de boxeador. Era uma pessoa de poucas letras, impulsiva grosseira e
que achava que a comida deveria ser portuguesa. Eram muito raros, se é
que havia, clientes portugueses no hotel. Daí a orientação de meu pai para
que a comida tivesse características mais internacionais. Quanto à
apresentação e tipos de cardápios meu pai tinha experiência, mas não sabia
fazer nem podia impor os pratos a serem feitos sob a supervisão de “seu”
Fernandes. O que evitava que a tensão entre meu pai e “seu” Fernandes
chegasse ao extremo era a delicadeza e habilidade pacificadora de sua
esposa, Dona Alice. Esse homem infernizou a vida de meu pai como
gerente e foi uma das futuras causas para que meu pai, na segunda metade
dos anos trinta desistisse da vida urbana por causa do “estresse da vida
moderna”, em 1938. Curiosamente, esse mesmo “seu” Fernandes, muitas
décadas depois, descobriu o endereço de meu pai, já aposentado, em
Campinas e lhe viesse pedir desculpas pelos aborrecimentos daqueles anos.
Fizeram as pazes e se tornaram muito amigos, até a morte, sempre por
iniciativa daquela meiga esposa, Dona Alice, um exemplo de alma delicada
e gentil.

Uma doencinha “incurável”.

Durante os primeiros anos de Atalaia nossas refeições eram feitas no


restaurante do hotel. Só o café da manhã, depois da ginástica pelo rádio,
fazíamos no apartamento. Um certo dia fui acometido de uma leve dor de
barriga. Isso se repetiu algumas vezes. Não era nenhuma dor que
assustasse mas a persistência dela fez com que minha mãe me levasse ao
médico. Depois de muitos exames a constatação: “desinteria amebiana”.
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Hoje isso não representaria nenhum problema. Mas no começo dos anos
trinta não havia disponíveis remédios eficazes para curar essa verminose.
Só havia tratamentos paliativos. Eram necessários cuidados com a
alimentação e esses seriam impraticáveis comendo-se em restaurante. Foi
quando minha mãe passou a cozinhar em nosso apartamento. Começaram
minhas restrições em relação a comidas e necessidades dos remédios
paliativos. Eu precisava ir frequentemente ao médico para exames. Isso
modificou bastante nossas vidas pelas restrições impostas pelo médico. Eu
perdi um pouco da minha liberdade nas brincadeiras e nas andanças pelos
terrenos baldios e ruas das vizinhanças. Fiquei um pouco estigmatizado
com essas limitações. Minha mãe redobrara os cuidados com minha
alimentação e mais vezes era preciso ir ao médico que ficava na Avenida
Princesa Izabel. Parece difícil acreditar que naqueles anos trinta uma
simples verminose, hoje tão corriqueira não tivesse um remédio específico
mas apenas paliativos. Muitas vezes nos ocorre dizer que “antigamente”
tudo era melhor. Hoje imagino que o médico possa ter dito que embora
não houvesse um remédio específico para minha “amebiana”, talvez ela
desaparecesse espontaneamente com alguma mudança de clima ou
simplesmente de águas.

O “clima” pré-guerra.

Além dos problemas de administração do Hotel “Atalaia”, tanto no Brasil


quanto no resto do mundo, as “pedras” do xadrês internacional, se
posicionavam numa configuração que resultaria na Segunda Guerra
Mundial. Meu pai, paulista, ardoroso entusiasta de sua terra, tinha sérias
restrições ao governo Getúlio Vargas. Já pela deposição e exílio do
“paulista” de Macaé, Washington Luiz, como do candidato paulista
vitorioso nas eleições presidenciais de 1930, também exilado pelo governo
de Getúlio. A derrota da revolução constitucionalista de 1932 também
deixara cicatrizes políticas nos paulistas. A Chamada “intentona
comunista” que tivera um sangrento episódio em 1935, ali bem perto de
Copacabana, na Praia Vermelha, e o surgimento do fascismo tupiniquim de
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Plínio Salgado, eram evidências de um acirramento do clima político,


especialmente na capital do Brasil, Rio de Janeiro. Os “camisas verdes” de
Plínio Salgado, marchavam em atitude ostensiva e provocadora por
Copacabana, bem em frente ao nosso prédio, enquanto berravam
“anauê!!!”. Isso tenho muito vivo na memória. Esse clima vinha afetando
também a frequência de hóspedes e agravando as dificuldades
administrativas também dos hotéis. A decretação do Estado Novo em 1937
era um novo fator de preocupação e tensão política. O pretexto de Getúlio
eram as duas “ameaças”, a “vermelha” dos comunistas de Luiz Carlos
Prestes e a “verde” dos integralistas de Plínio Salgado. Esta última
culminaria num assalto armado ao Palácio Guanabara, residência do
presidente da república.

O “estresse da vida moderna” em 1938.

A soma dos problemas vividos na gerência do Atalaia com a diminuição da


clientela, o sombrio clima político nacional, somados ao clima
internacional tenso fizeram meu pai chegar ao “estresse da vida moderna”.
Obviamente não existia essa expressão. Todo esse conjunto de fatores
deve ter sido a principal razão para que meu pai tomasse uma decisão
realmente radical: ir embora de Copacabana para o “mato”. Mas e a direção
do Atalaia? A par da disposição de ir embora, meu pai era uma pessoa
extremamente responsável. Além disso era pessoa de grande confiança dos
donos do “Atalaia”. Um deles, o mais chegado a meu pai, Senhor Greve,
pessoa a quem meu pai dedicava também uma grande admiração, veio
apelar para seu Caniato que não tomasse decisão tão radical. No entanto,
meu pai já havia decidido. Como auxiliar do gerente, havia um contador,
Senhor Rezende, o guarda livros. Meu pai sugeriu que seu Rezende ficasse
em seu lugar. O Senhor Greve concordou, com a condição de que meu pai
indicasse outra pessoa de sua inteira confiança para integrar a nova
gerencia, ainda que como “vice”. Meu pai então indicou seu irmão, Luiz, o
“Gíggi”, o irmão “do meio” entre os irmãos Caniato e que exercia o cargo
de “mètre” no restaurante de um hotel de São Paulo. Meu tio Luiz aceitou e
se dispôs a vir imediatamente para o Rio, onde passou quase toda sua vida.
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Logo depois ele se casou com uma tecelã de Sorocaba, Izabel Ocaña e teve
dois filhos: Wilson e Regina.
Nunca me foi dito por meus pais mas um motivo me perece pode ter tido
também algum peso na radical decisão deles de irmos de Copacabana para
Currupira, seu pedacinho de terra, comprado na mocidade. Talvez diante da
ausência de remédios específicos para curar minha “desinteria amebiana”,
o médico tivesse dito que era possível um cura espontânea com alguma
“mudança de ares, de águas e de clima”. Isso sempre ficou para mim como
uma suspeita. Era o começo de 1938. A decisão de ir embora estava
tomada.

Deixando Copacabana e o “Atalaia”

Em poucos dias minha mãe arrumou as malas para a mudança. Nós iríamos
de trem e um caminhão levaria a mudança. Acompanhei com grande
ansiedade aquela atividade que prenunciava mudanças radicais em nossas
vidas. A última coisa que vi ser colocada sobre o caminhão foi uma velha
bicicleta que meu comprou de última hora não sei de quem. E´ que
recentemente eu havia aprendido a “andar de bicicleta” num de nossos
passeios a Paquetá. No dia seguinte um táxi às 6 horas nos levou à estação
Pedro II da Central do Brasil. Embarcamos em meio a aquele burburinho
de um trem que se ia lotando, envolvido pelo “clima” das despedidas,
lágrimas, bagagens, fumaça e ruídos. Enquanto a locomotiva a vapor do
expresso começava a se por em movimento a bufar e apitar ficava
definitivamente para trás minha infância nas calçadas de Copacabana. Não
pude me despedir de meu amiguinho Mario, tão amigo e que eu nunca mais
voltaria a encontrar.
Como já acontecera outras vezes, depois de doze horas de trem chegamos a
São Paulo. O táxi do Paschoalim, o taxista conhecido dos Caniato nos
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levou à rua Guayauna, casa de meus avós. Essa era a escala necessária
também para o caminhão cujo motorista nunca tinha ouvido falar em
Currupira, destino final da mudança. Não havia nenhuma grande estrada
asfaltada no Brasil, mesmo entre Rio e São Paulo. O caminhão com a
pequena mudança só chegou depois de três dias de viagem, coberto da
grossa poeira. Aí seria acrescentado à mudança um cachorrinho preto,
ainda filhote, que viria a ser, por anos, meu fiel e inesquecível
companheiro, O “Duque”.
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PARTE 2
CURRUPIRA
(DE COPACABANA PARA O MATO)

Indo para o mato

A partir da Penha foi mais um dia inteiro para chegar ao “nosso” sítio, o
Sítio dos Caniato, no bairro dos Fernandes, a cerca de dois quilômetros da
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estaçãozinha de Currupira. De São Paulo não havia trem que parasse em


Currupira. Depois de chegar a Jundiaí pela São Paulo Railway, a “Inglesa”,
fizemos “baldeação” para o “misto” da Companhia Paulista, um cata-
caipira que, à tarde com apenas dois vagões, um de encomendas e outra
para passageiros, só de segunda classe ia parar em Currupira. Apeando do
trem na pequena plataforma descoberta tivemos que atravessar o pasto para
chegar até a “venda” do Antonio Miguel, o “Toninho Turco”. Todos já
conheciam, meus tios, os Caniato que moravam no Sítio. Nós três, meus
pais e eu, seguimos a pé da estaçãozinha de Currupira até a nossa nova
morada no Bairro dos Fernandes. Aí já moravam meu tio Nino(Hilário
Caniato), casado e o tio Joãozinho, solteiro. Ambos já haviam trabalhado
no Rio: o tio Nino como garçon no Lido. O tio Joãozinho tinha ficado
menos de um ano como telefonista do Atalaia. Meu pai havia acertado por
cartas, com os irmãos, sua ida para o Sitio. Não era possível prever o dia
naqueles tempos em que não existia naquela região qualquer vestígio de
telefone, nem de luz elétrica. Depois de caminhada pelo estradão,
chegamos ao alto da curva do estradão de terra que passava nas imediações,
a rodovia São Paulo-Campinas(de terra). Do alto do morro, aos berros e
movimentos de braços, meu pai conseguiu se fazer visto pelos irmãos que
nos esperavam naqueles dias, sem saber exatamente quando e como. No dia
antes de nossa chegada havia chovido torrencialmente na região. O ribeirão
da divisa de entrada de nosso sitio estava fora do seu leito e alagara toda a
estradinha próxima à pequena ponte. A enchente nos deteve a 200 metros
da entrada de nosso destino final. Meu tio Joãozinho nos acenou para que
esperássemos e foi correndo buscar a carroça. Atrelar um dos animais
podia demorar e nos fazer esperar a poucos metros de nosso destino,
depois da longa viagem. Jovem e muito forte, tio Joãozinho, ele mesmo
veio puxando a carroça e com ela atravessou a baixada com a água acima
dos joelhos. Do outro lado, depois dos abraços, nos fez subir na carroça e
nos transportou salvos e secos até o outro lado. Estávamos na nossa nova
morada.
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A nossa nova moradia.

A casa era a sede de uma das glebas contíguas que meu pai havia comprado
na sua mocidade. Ele nunca havia morado aí, embora aí já tivessem morado
seus familiares. Eu mesmo, ainda muito criança aí havia estado em visita
aos tios que agora sairiam para que nós aí ficássemos morando.
A casa era grande e antiga. Não havia na região nenhum sinal de luz
elétrica a não ser a linha eletrificada da Companhia Paulista de Estradas de
Ferro, para os trens que passavam num aterro a mais de um quilômetro.
Também não havia água encanada. O piso da casa era de tijolo já bem
gasto, apenas rejuntado de cimento. A privada, distante cerca de 25 metros
da porta da casa, era apenas um cubículo de tijolo com portinha de madeira.
No lugar de vaso sanitário havia apenas um buraco numa pequena laje de
concreto que tampava a fossa. Ao lado da casa havia um poço com balde,
corda e roldana para tirar a água de uso na cozinha. Próximo da casa, a uns
dez metros da entrada, passava um córrego com uma bica que, dia e noite,
despejava água dentro de uma grande tina de madeira. Era o lugar a céu
aberto, destinado e se lavar a roupa, mãos, rosto e dentes. Pouco abaixo da
casa ficava um grande rancho coberto com sapé onde eram guardadas todas
as ferramentas, a carroça e os arreios, tanto de montar quanto outros
apetrechos. Do lado de baixo do rancho, como um puxado, era o lugar em
que se armazenava lenha cortada e seca. O fogão rústico de lenha tinha ao
lado o pequeno depósito da lenha de uso imediato e o borralho onde se
acumulava a cinza retirada do fogão. As portas internas tinham trincos com
grandes chaves e traves de ferro que entravam no batente em cima e no
chão de tijolo. Havia forro de madeira apenas na sala e eram muito comuns
as goteiras que faziam a gente correr para acudir com baldes, latas ou
bacias em dias de muita chuva. A uns trinta metros, atrás do rancho ficava
a horta que junto com o galinheiro, desempenhava um papel fundamental
no abastecimento da casa. No obrigatório chiqueiro que ficava mais longe
da casa, era engordado o porco, parte também importante para o
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suprimento de alimento e sabão feito em casa. Os poucos lampiões de


querosene, com vidros bojudos eram destinados à sala e ao quarto
principal. Os demais aposentos eram iluminados por simples lamparinas
portáteis de querosene com a chama exposta e bastante fuligem. As paredes
eram rústicas e apenas caiadas.Os colchões das camas eram enchidos com
palha de milho.

(inserir desenho feito por Tio Nino)


Quem morava na casa.

Quando chegamos a casa era habitada por meu tio “Nino”, sua mulher,
Roseta Carbonari e meu tio Joãozinho, solteiro. Eles já aí viviam havia
alguns anos e tiravam seu mais que modesto sustento do cultivo de uvas. O
casal estava deixando a casa em que chegávamos. As uvas cultivadas eram
as variedades “Barbera”, “Izabel”, ambas pretas, e um pouco de “Niagara”
branca. Ainda não havia acontecido a mutação espontânea que poucos anos
depois daria origem à variedade Niagara rosada, uma mutação espontânea
da branca, até então a única uva de mesa no mercado. O tio Joãozinho que
ficaria conosco era um homem de estatura média, muito forte, trabalhador,
bom cavaleiro e tinha uma bela voz de tenor que se acompanhava ao
violão. Meu tio Nino era uma pessoa muito especial. Homem muito
inteligente, sempre foi um autodidata muito estudioso e de honestidade
linear. Durante muitos anos, à noite, à luz de lampiões ele deu aulas de
português e cultura geral para os vizinhos que além de professor o
consideravam um conselheiro. Para tanto ele se obrigava a estudar à noite,
muito e sempre. Ele viria, décadas depois, do sitio, para se tornar vereador
e presidente da Câmara Municipal de Jundiaí. Antes de nossa chegada ele
havia sido convidado por seu cunhado, Luiz Carbonari, este, viticultor já
estabelecido no bairro do Traviú e bem sucedido, para um empreendimento
novo em viticultura. Esse empreendimento constituiu-se na compra do
“Varjão”, parte de uma grande e abandonada sesmaria da família Mesquita,
então, os donos do “Estadão”. O projeto que meu tio e seu cunhado
desenvolveram transformou-se nos “Vinhedos Extravitis”, de sucesso e que
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conquistariam muitos prêmios nas exposições da “Festa da Uva” em


Jundiaí,SP, anos depois.

Vida radicalmente diferente.

As mudanças em nossas vidas eram radicais em todos os sentidos. Das


luzes de Copacabana para a escuridão do sertão. Passados os primeiros dias
em que os poucos móveis foram distribuídos nos grandes e rústicos espaços
da casa grande, começávamos a nos habituar à imposição de hábitos muito
diferentes. Meu pai logo se pos em roupas rústicas e foi capaz de assumir
imediatamente o trabalho na uva que começava pela enxada. Minha mãe
tinha que se desdobrar em todos os serviços de uma casa grande, rústica
sem água encanada, sem luz e sem banheiro e com uma privada mais que
rústica. Eu estava vivendo uma verdadeira embriaguez de espaços e
liberdade de movimentos. Com apenas nove anos, minhas primeiras
atividades foram na pequena ajuda à minha mãe. Logo o que mais me
atraiu foi lida com as éguas, de montaria e de tiro, na carroça. Logo me
habituei a montá-las em pelo: uma se chamava “Roleta” e a outra era a
“Boneca”. A primeira muito mansa e dócil, a segunda ágil e arisca como
um lambarí. Ainda vivia em nosso pasto como “aposentada” uma velha
égua branca chamada “Paulista”. Ela havia sido um lindo animal, muito
estimada pela sua beleza, mansidão e serviços prestados à família, tanto
para serviços gerais como para montaria. Ela figurava garbosa em muitas
fotografias da família, no passado. Já velha, eu a montava e me divertia
com suas “impertinências” ao fazê-la dar coices à toa. Quando nas
proximidades de casa, eu tirava água do poço para minha mãe. Apesar da
rudeza da nova vida, apreendendo a andar de tamancos, ela a assumiu com
entusiasmo e valentia um mundo de novas obrigações. Era preciso tratar da
casa, da roupa, e alimentar a família que agorincluía meu tio Joãozinho.
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Nos primeiros dias, tive que ir comprar leite num vizinho, na família
Bôrtolo. Logo trataríamos de ter nosso próprio suprimento desse
indispensável produto .

Alegria e primeiro revés.

Como o leite era de importância para toda a família. Meu pai logo tratou da
compra de nossa primeira vaca. Ainda de madrugada ele saiu com o tio
Joãozinho para ir fazer a compra da vaca nuns antigos conhecidos: a
família Biasi. Eles moravam longe, na Abadia, estaçãozinha de uma
pequena estrada de ferro chamada “Itatibense”. Entre Louveira e Itatiba.
Como carroças não podiam trafegar na estrada de rodagem estadual,
mesmo sendo estas só de terra, era preciso fazer voltas e o caminho ficava
mais longo. Já o sol se havia posto quando com grande ansiedade ouvimos
o latido dos cachorros da vizinhança. Eu e minha mãe saímos pela nossa
porteira e fomos ao encontro de meu pai com a preciosa novidade. Ele
havia comprado uma linda vaca, a “Pombinha” que vinha acompanhando a
carroça onde estava sua recente cria, uma linda bezerra marrom de longas
orelhas. A “Pombinha” era uma vaca de meio sangue holandês, branca com
manchas marrom quase vermelho e de chifres curtos e curvados para
frente: parecia uma vaquinha de reclame de chocolate suíço. Eu e minha
mãe havíamos gasto grande parte do dia no preparo para a recepção dos
novos integrantes de nossa família. A cocheira de sapé estava toda limpa e
arrumada para receber as novas moradoras, mãe e filha. Foi uma grande
recepção e muito nos alegramos em ver a bezerrinha mamar sofregamente e
depois deitar em seu pequeno “quartinho” limpo e macio, com cerquinha
de bambu e cobertura de sapé. Antes que o sol raiasse era preciso fazer a
ordenha e pôr a bezerra a mamar. Eu e meu pai fomos como ajudantes,
amarrando o rabo da vaca e fazendo outros serviços periféricos. Embora
minha mãe nunca tivesse lidado com uma vaca. sua disposição e empenho
compensaram sua falta dessa experiência. Em poucos dias ela já o fazia,
senão com perfeição mas com destemor, total segurança e eficiência. Todos
os dias tínhamos dez litros de leite além do que a bezerra mamava. Em
nossa inexperiência, logo nos afeiçoamos a esses animais quase como se
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fossem pessoas da família. Ainda mais que o precioso leite, naqueles


rincões, longe de tudo, era de importância vital. Foram se passando os dias,
as semanas. A bezerrinha, batizada de “Mocinha”, crescia a olhos vistos e
prometia ser uma bela novilha para aumentar nosso plantel. Já se passavam
alguns meses quando na ordenha matinal, minha mãe notou que a bezerra
teve dificuldade para mamar e apresentava uma espuma na boca. Não
sabíamos o que era aquilo. Consultados os vizinhos mais próximos veio o
“diagnóstico”: aftosa. Não se dispunha de veterinários, nem se tinha acesso
a esse tipo de informação. Havia um único remédio que em toda vizinhança
se usava para todos os “males” dos animais. Chamava-se Benzocreol. Era
aplicado tanto para uso interno quanto para bicheiras, feridas e outros
males. Só variava a dose. A bezerra estava triste e já não queria mamar. O
jeito era aplicar o tal de Benzocreol, única coisa que se podia fazer. Feita a
mistura, o problema era fazer a bezerra engolir aquilo. Segundo os vizinhos
“entendidos” aconselhavam devia ser uma dose de mais ou menos meio
litro. Quando tentamos fazer ir goela abaixo, a bezerra esperneou e foi com
muito custo que conseguimos fazê-la engolir parte do “remédio”.
Pouco depois, deitada, a bezerra virou os olhos, estrebuchou e morreu. Sua
morte abrupta deve ter sido provocada pelo efeito do remédio ou por
sufocamento, se o líquido invadiu os pulmões. Foi um desespero para nós
todos; quase como se tivesse morrido alguém da família. Meus pais
chegaram a falar em ir embora. Minha mãe chorou de tristeza com a perda
daquele animal que, além de querido, representava nossas esperanças de
progresso. Vizinhos nos aconselharam a tirar o couro da bezerra para
“enganar” e “consolar” a vaca. Nós não tivemos coragem. Nossa
“mocinha” foi enterrada com nosso profundo sentimento de perda e quase
com nossas esperanças na nova vida de sítio. Era nosso primeiro revés na
vida rural. Mas o pior ainda estava por vir. A vaca mugiu sem parar, dia e
noite, durante muitos dias na cocheira que ficava ao lado de casa. Além da
perda, o triste lamento repetido sem cessar da “Pombinha” não nos deixava
dormir, além de nos manter viva a idéia da perda. Sem a bezerra a mamar,
provavelmente a vaca “secaria” o leite. O zelo e os cuidados especiais de
minha mãe para com a sofrida vaquinha de estimação devem ter ajudado.
Fui mobilizado a ajudar num super tratamento tanto de capim fresco quanto
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de escovação e bom trato para a “Pombinha”. Embora tenha diminuído


muito sua produção, ela continuou a nos dar seu precioso leite. Com o
passar das semanas, embora abalados fomos em frente.

Meu novo mundo.

Não sei explicar como nem por que as coisas aconteceram assim.
Inexplicavelmente ocorreu em mim uma grande transformação. Em poucos
meses eu estava completamente adaptado à nova vida. Talvez a tal
mudança de “clima e de águas” tenha feito o “milagre”. Nunca mais se
falou qualquer coisa que lembrasse a “diarréia amebiana” que me limitava
a vida em Copacabana. Na verdade tínhamos mudado de águas, de clima,
de tudo. Meus pais não me puseram qualquer limitação e eu fui assumindo
novas funções, especialmente as relacionadas com os animais.
Frequentemente, aos sábados, meu tio Nino vinha nos visitar. Ele vinha de
longe, de um novo bairro chamado Poste, mais ou menos uma hora a
cavalo. Ele vinha montado em sua “Odalisca”, uma grande e garbosa égua
baia e marchadeira. Quando chegava, ele me entregava o belo animal, bem
arreiado para que eu tomasse conta, com a autorização para “dar uma
volta”. Eu montava e saia na “Odalisca” em bela marcha até um trecho
visível da estrada. Já longe da vigilância eu fazia a égua dar toda sua
potência em um grande galope. Depois voltava à sua marcha, na chegada. E
´ que eu logo me tornara muito habituado a cavalgar “em pelo”, sem
arreios.
Com uma segunda vaca, uma holandesa grande e boa leiteira, a “Medalha”,
comprada com sua bezerra na fazenda Barreiro, perto de Louveira,
aumentaram muito minhas obrigações de manejo. Essas duas vacas de leite
nos forneceram juntas ou alternadamente, leite durante os cinco anos de
nossa vida em Currupira. Logo aprendi e assumi todo o manejo das vacas e
bezerros, deixando para minha mãe apenas a ordenha. Essa prática me
conferiu, sem que então me desse conta disso, uma enorme auto confiança
48

e independência. Logo aos onze anos eu assumiria muitas outras funções


de trabalho de um adulto.

(não) “descobrindo” a manteiga

Em nossa vida de Copacabana, a manteiga era obrigatória no pão do café


da manhã. Toda semana eu acompanhava minha mãe nas compras por
Copacabana. Um dos lugares em que íamos era a Leiteria LECA onde
minha mãe comprava creme de leite e manteiga. Essa leiteria ficava na Av.
Copacabana, do lado direito de quem ia na direção de Ipanema, creio que
na terceira quadra depois da rua Siqueira Campos.Quando nos mudamos
para Currupira meu pai, ainda no Rio, comprou uma máquina de fazer
manteiga. A idéia era de que no sítio também viéssemos a contar com
nossa manteiguinha. Essa máquina muito simples era constituída por um
vidro de quatro ou cinco litros, dotado de uma boca larga onde se adaptava
a tampa. Esta munida de um sistema de manivela e uma engrenagem que
acionava a batedeira de madeira dentro vidro. Das primeiras iniciativas de
meu pai, já em nosso sitio de Currupira, foi a de comprar a nossa vaca
Pombinha. Sempre tivemos pelo menos, cinco litros de leite por dia. Nosso
dia todo, desde a ordenha muito cedo, era tomado por inúmeras tarefas
principalmente no cultivo de nossas videiras. Fazer manteiga, seria uma das
tarefas extras, quase um luxo, só possível à noite. Em volta do lampião de
querosene nos postamos os três e, na grande expectativa de ver produzida
na máquina a “nossa” manteiga. Eu estava ainda mais ansioso por fazer
funcionar nossa máquina que transformaria leite em manteiga. Carregada a
máquina com os quatro ou cinco litros de leite, logo comecei a manivelar:
RRRRRR..........RRRRRR,.....................RRRRRRR............. Depois de
alguns minutos manivelando, me cansei e passai a máquina para meu pai.
Ele também: RRRRRRR.......RRRRRRR.........RRRRRRR ...RRRRR, até
que ele também se cansasse e a passasse para minha mãe. Ela também
manivelou por muito tempo............ e a manteiga não aparecia. Depois de
várias rodadas dos três novos “manteigueiros”, a manteiga não aparecia.
Depois de nos cansarmos os três, resolvemos desistir e descarregar a
máquina. Quando minha mãe tirou o leite da máquina havia apenas
49

vestígios de manteiga ao redor da agitador de madeira: nada mais que uma


colher de manteiga. Que decepção! Nos dia seguintes fizemos mais
algumas tentativas e sempre o mesmo resultado: nada além de traços de
manteiga. Desistimos de “fabricar” manteiga. Não tínhamos a quem
perguntar. Na região, os vizinhos não usavam manteiga. Também não se
tinha acesso a fontes de informação. A única publicação que circulava na
região era um folheto do “reclame” de um fortificante, com a história do
Jeca Tatú, sua indolência e preguiça causadas pelo
“amarelão”(ancilostomíase). Assim depois de muito suar manivelando
nossa máquina de manteiga, por não saber e por não termos conseguido
algo ou alguém que nos ensinasse , desistimos do projeto. Só anos depois,
não me lembro como, ficamos sabendo que manteiga não se faze batendo
leite mas simplesmente batendo a nata onde está concentrada a gordura do
leite. Para a retirada da nata é preciso deixar o leite em repouso, colher a
nata na superfície e depois batê-la ou retirá-la por uma máquina centrífuga
ou desnatadeira. Essas eram operações impossíveis ou muito difíceis
naquelas rústicas condições de nossa vida rural. Afinal, a manteiga seria
tirada de nosso próprio leite. Diante dessas dificuldades continuamos a
tomar a manteiga dentro do nosso leite. Nosso pão é que continuou sem a
manteiga.

Tirando leite da égua.

Era um fim de tarde. Eu e meu pai estávamos sentados na grama, perto da


porteira, depois de realizadas todas as tarefas do dia. Nossa casa ficava à
beira de uma estrada interna por onde passava gente a pé, com charretes,
carroças ou a cavalo. Durante o dia grandes carroções de carga de lenha,
puxadas por três parelhas de mulas passavam em frente de nossa casa.
Vinham carregadas de lenha para alimentar os fornos das olarias da região,
especialmente as do Finamore e do Pasti em Louveira. A região ainda tinha
grandes manchas de mata Atlântica que ia sendo derrubada para alguma
nova lavoura, embora num ritmo nada parecido ao de hoje. Ainda por lá
50

ninguém usava nem conhecia motoserra: era tudo no machado. Enquanto


olhávamos o raro movimento em frente de casa, passou o Dito “Capuxo”,
filho do velho Capuxo (Capuccio ?). Ele vinha trotando montado em pelo
numa égua branca. Diante de nós ele, já nosso conhecido, parou e ofereceu
a égua por 120 Cruzeiros. Entre tantas virtudes da Branquinha, a mansidão
era a maior. Mas segundo e vendedor, a égua “tava mojano”, isto é,
aumentando o úbere em vésperas de ter cria. A barriga era realmente maior
que o habitual. Além da barriga grande, era visível o úbere entumecido. A
idéia de que pudesse nascer um cavalinho em casa era muito simpática a
meu pai e para mim era um verdadeiro sonho. Depois de muito negociar o
Dito deixou a égua por 100 Cruzeiros e foi embora a pé. A Branquinha
ficou imediatamente a meus cuidados. Durante todos os anos que ficamos
no sítio, essa égua foi um animal querido pela utilidade, tanto na montaria
quanto na carroça e sobre tudo pela mansidão. Eu montava sempre em pelo
para o trabalho com nosso pequeno rebanho. Numa viagem que tive que
fazer para mais longe, mais de uma hora a cavalo, para levar algo para meu
tio Nino, meu pai me aconselhou que usasse um arreio. No meio dessa
viagem, uma senhora me chamou a atenção para a barrigueira que estava
frouxa. O arreio e eu podíamos cair. Eu logo respondi que não podia
apertar a barrigueira porque a Branquinha estava “esperando cavalinho”.
Varias décadas depois essa senhora lembrava a admiração que lhe causou
aquele encontro. Naqueles tempos, naqueles lugares, esses eram assuntos
só “de gente grande”. Era muito estranho que um moleque se preocupasse
com uma barriga “prenha”. Afinal a Branquinha nunca deu cavalinho
nenhum. A barriga grande era só de capim. Mas eu, fazia demonstrações de
ordenha, fazendo esguichar leite das tetas da Branquinha. As pessoas não
acreditavam e me pediam que mostrasse Durante anos ela manteve o leite
sem ter cria. Tanto esse animal nos foi útil e querido que, numa viagem a
São Paulo, meu pai procurou e encomendou uma consulta de um
veterinário do Instituto Biológico de São Paulo. O veterinário veio de
trem, fomos buscá-lo na estação e levá-lo de volta. Depois de examinar a
Branquinha, ele receitou um vermífugo. A dose foi tão forte que a égua
passou vários dias imóvel, com febre, em pé dentro da água do nosso
51

açude. Passada a febre e o efeito do remédio, felizmente para todos nós, a


Branquinha voltou à sua normalidade, mas com a mesma barriga de antes.

Uma grande surpresa

Fazia alguns meses que havíamos mudado para Currupira, quando


recebemos uma visita que quase não podíamos acreditar. Num fim de
tarde de sexta feira aparece em nossa casa meu tio Domingos, com seu
terno preto de casimira, colete e chapéu, alinhado como sempre ia e voltava
de seu emprego de ascensorista do Esplanada Hotel de São Paulo. Agora
ele chegava com seu chapéu, terno de casimira e sapatos pretos, de verniz,
empoeirados por mais de uma hora de caminhada pelo estradão de terra,
desde Louveira até nossa casa. Ele vinha de São Paulo e trazia pela mão
meu primo Marcelo, o “Mausi”, de uns seis anos. Esse primo era aquele
cuja mãe, menor, casada por procuração com meu tio Fritz, vinda da Suíça,
havia morrido no parto do menino. Ele era pouco mais novo que eu. Nosso
tio Domingos, sua mulher, tia Elza e minha avó materna o criavam, com
muito zelo e carinho, desde seu nascimento e morte da mãe. O pai do
menino, irmão de minha mãe, tio Fritz, havia se casado novamente mas
agora com uma alemã que também trazia um filho de outro casamento.
Todos os familiares dessa sua nova mulher viviam na Alemanha e
contavam eufóricos, por cartas, o progresso de seu país naqueles anos.
Tanto insistiram que acabaram convencendo meu tio a também ir para a
“terra do progresso”, a Alemanha de Hitler. Ele levaria também seu filho,
meu primo Marcel, o “Mausi”, apesar da contrariedade daqueles que o
criavam. Meu tio Domingos, chefe da família, trazia o menino para uma
despedida que parecia ser definitiva: o menino brasileiro, iria com o pai
suíço, para Colônia na Alemanha, acompanhando uma nova madrasta,
alemã que levava um filho brasileiro adolescente. Meu tio por afinidade,
português e o menino passaram o fim de semana conosco para depois
enfrentar a longa caminhada a pé até a estação de Louveira e de lá, de trem,
para São Paulo. Depois das despedidas e choro da minha mãe e tristeza de
todos, acompanhei os dois por nossa estradinha interna até a
desembocadura no estradão estadual. Daí os acompanhei olhando e
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acenando até que desaparecessem no alto morro, na curva da empoeirada


estrada. Pouco tempo depois, o Mausi, com sua nova família, seguia de
navio para a Alemanha. Menos de um ano depois dessa despedida, irrompia
a Segunda Guerra Mundial. Colônia, a cidade em que viviam foi, mais
adiante, arrasada pelos bombardeios americanos. Eles viveram entre
escombros, passaram fome e só foram resgatados depois do fim da guerra,
por um comboio de socorro suíço à procura de seus cidadãos. Foram
levados sãos e salvos para Suíça por ser meu tio Fritz cidadão daquela
terra(Suíça) que nunca abandona seus cidadãos. Só depois de meu primo já
adulto, alguns anos depois do fim da guerra, essa família voltou ao Brasil
mas com um a menos. O adolescente brasileiro também fora convocado na
Alemanha parta ser soldado “SS” e desapareceu numa das batalhas no
interior da Rússia. Sua mãe, minha tia “torta”, nunca deixou de chorar a
perda daquele filho do qual só recebeu a “cruz de ferro”. Depois do fim da
II Guerra, já adulto fui vê-los em sua escala de navio, no Rio de Janeiro,
quando chegavam da Europa para viver em São Paulo. Meu primo já não
falava mais português. Haviam se passado cerca de dez anos.

Um desastre de “cabriolé”.

No fim de semana que meu primo passou conosco para as despedidas,


meus pais queriam proporcionar a ele pelo menos um passeio de “cabriolé”
até a estaçãozinha e a igrejinha de Currupira. E se aproveitaria para fazer
algumas compras na venda do Antonio Miguel, principal atração no
“centro” de Currupira. Na época eram muito raras as charretes com rodas
de pneus; só gente rica tinha esse “luxo”. Nosso “cabriolé” era uma
charrete com grandes rodas de madeira e aros de ferro. O cavalo que ia
atrelado aos varais era um cavalo baio chamado “Pinhão”. Esse cavalo não
era nosso mas estava já algum tempo prestando serviços, emprestado por
seu dono que temia deixá-lo abandonado no pasto e sem trabalho. No
banco do “cabriolé”, meu pai conduzia às rédeas, sentado do lado do
“cocheiro”, à esquerda. Do lado direito sentava o tio Nino que nos visitava.
Entre ambos ficamos eu e meu primo Mausi. Nosso “cabriolé” ia lotado.
Atrás, a cavalo, iam o tio Joãozinho e o tio Américo em suas éguas
53

“Roleta” e “Boneca”. Saindo da estradinha interna por todo o bairro dos


Fernandes, entramos no “estradão” oficial de terra (ainda não existiam
estradas asfaltadas nem em São Paulo). Estávamos no alto de Currupira.
Começávamos a descer uma grande ladeira que terminava numa forte curva
para a esquerda, já perto venda. Com a forte ladeira, o cavalo segurava
nossa viatura na retranca. Com isso as correntes de tração ficaram frouxas e
uma delas se soltou. A corrente solta se enroscou nas pernas do cavalo. O
cavalo, assustado, disparou ladeira abaixo. Por mais que meu pai tentasse
deter o cavalo puxando as rédeas, não conseguia. Disparávamos ladeira a
baixo sem controle. Era também evidente que naquela velocidade, ainda
que quisesse, o cavalo não conseguiria fazer a curva. Sem fazer a curva
iríamos diretos para um precipício do lado direito da curva. Foram
momentos de aflição. Tio Nino jogou meu primo para fora e pulou, apesar
da velocidade. Ambos rolaram na estrada e só se fizeram arranhões.
Ficamos eu e meu pai sobre o cabriolé que aumentava a velocidade ladeira
abaixo, com o cavalo em disparada. Meu pai apoiou os pés na frente do
assento para puxar com toda sua força as rédeas e tentar deter o cavalo que
mais assustado mais galopava ladeira abaixo. Enquanto fazia esses esforço,
meu pai resvalou no apoio dos pés e também caiu do cabriolé na frente da
roda de ferro que lhe passou em diagonal sobre o peito. Fiquei só sobre o
cabriolé que ia em desabalada corrida já agora saindo da estrada para a
marginal em forte declive e no limite do aterro da estrada, rumo ao
precipício. Ao resvalar para fora da estrada em alta velocidade o cabriolé
bateu contra um poste de telefonia onde ficou preso com cavalo e tudo.
Com o poste entre a roda e os varais todo o conjunto ficou preso abeira do
precipício. No baque contra o poste eu caí entre uma das rodas e as patas
traseiras do animal. Cada vez mais assustado e agora também ferido pelo
impacto e preso entre arreios, varais, o poste e a cerca que margeava a
estrada, o cavalo assustado coiceava sem parar. Eu estava desfalecido ou
atônito entre os pés do cavalo aos coices e a roda do veículo. Nesse
momento, meu tio Nino fez um rápido e decidido ato de verdadeira bravura
para me retirar da iminência de levar um coice na cabaça. Dando as costas
para o cavalo que não parava a saraivada de coices, meu tio me puxou para
fora. Para me proteger ele levou um daqueles furiosos coices do cavalo
54

numa omoplata. Eu não tinha nenhum ferimento visível. Eu e meu primo


ficamos próximos ao barranco oposto, lívidos de susto enquanto meu pai e
meus tios tentavam deter o cavalo que continuava a se debater preso aos
restos do desastre. Quando meu pai se aproximou de mim ainda ficaríamos
mais assustados. Ele olhou apavorado para um filete de sangue que me
escorria do ouvido. Aquele filete de sangue poderia ser resultante de um
ferimento dentro de minha cabeça. Afinal eu ficara embaixo, na traseira do
cavalo que não parava de se debater e dar coices. Percebi o pavor que a
idéia causou a meu pai. Mesmo sem palavras, o semblante assustado de
meu pai me apavorou, ao olhar o filete de sangue que me escorria de uma
orelha.Felizmente era só o sangue de um ferimento numa dobra da orelha.
Como vinham logo atrás de nós, meus tios, Joãozinho e Américo, apearam
e trataram de dominar e livrar o animal que enlouquecido se debatia,
também todo ferido pelo impacto no poste.
Voltamos para casa quase como um cortejo fúnebre. Além de assustados,
trazíamos dois “troféus” do acidente. A camisa de meu pai com uma faixa
diagonal, a marca da roda que lhe atravessara por cima do peito. Meu tio
Nino exibia nas costas um ferimento com a marca completa da ferradura,
deixada por um dos coices do cavalo. Meu primo Mausi levaria para a
Alemanha muito que contar de um passeio e uma aventura em Currupira.

O convívio dos Caniato

Quando chegamos ao sítio dos Caniato, ai moravam, meu tio Nino com
sua mulher Roseta (Carbonari) e o tio Joãozinho, solteiro. Todos já haviam
morado algum tempo no Rio e de lá haviam trazido dois vira-latas de
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estimação: Tody e Mossoró.Com a nossa chegada, tio Nino se mudaria para


sua nova casinha no bairro Poste, a pouco mais de uma hora a cavalo. Era
um bairro de viticultores a ser desbravado e que resultava do
desmembramento de uma velha sesmaria da família Mesquita. Joãozinho,
ficara conosco. Alguns meses depois de nossa chegada, meus avós paternos
vieram de São Paulo para o sítio para viver conosco. Com o casal já idoso
vinham os dois mais novos dos irmãos Caniato: tio Américo e tio Mário.
Ambos tinham pouco mais de vinte anos, temperamentos e talentos muito
diferentes. Tio Américo, além do trabalhar no sítio dirigia seu pequeno
caminhão Ford “bigode” 29, com o qual, além do trabalho do sítio fazia
pequenos carretos para vizinhança. Era um “chofer” muito craque e fazia
toda manutenção de sua preciosa máquina. Era um homem de muitos
talentos, muito inteligente e criativo. Suas habilidades iam desde produzir
belos cabos de canivetes feitos de chifre de boi como em trabalhos de
marcenaria e mecânica. Foi ele o principal “bolador” e montador de uma
mini hidrelétrica para produzir a energia necessária a fazer funcionar um
velho rádio de grandes válvulas. Toda a pequena hidrelétrica era montada
com peças compradas por meu avô nos “ferrovelhos” de Jundiaí e até São
Paulo. Tio Américo, décadas depois, montaria uma das maiores oficinas de
consertos de motos de Jundiaí, na rua Torres Neves. Chegou mesmo a
fabricar com as próprias mãos um pequenina moto para seu filho Bruno.
Este herdaria muitas de suas habilidades. Mário, o caçula dos irmãos
Caniato foi o único a ter alguma escolaridade mais regular, nos tempos em
que moraram na Penha, em São Paulo. Era muito tímido, introspectivo mas
muito inteligente. Tinha grande pendor para a música. Além da sanfona de
botões que tocava nos bailes, tocava bem violão sobre o qual montou um
dispositivo que lhe permitia tocar simultaneamente uma gaita de boca.
Algumas das músicas que ele tocava nos bailes da vizinhança eram de sua
autoria. Talvez por ser o mais jovem, foi também o mais próximo de mim.
Foi tio Mário quem me ensinou a fazer os muitos consertos que se
impunham para nossas velhas bicicletas, longe que estávamos de qualquer
outro recurso, como oficinas. Joãozinho, o do meio era o mais forte dos
irmãos. Era muito trabalhador, bom cavaleiro, dono de bela voz de tenor,
vaidoso e namorador. Era muito impetuoso e às vezes emburrava. Também,
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cantando se acompanhava ao violão. Meu tio Luiz, com a saída de meu pai
da gerencia do “Atalaia”, foi da Penha(São Paulo) para ocupar a vice-
gerência do Atalaia, no Rio de Janeiro. Quando conseguia uns dias de
férias, vinha passá-los conosco no sítio em Currupira. Sempre foi o mais
alegre e brincalhão dos irmãos. Era muito querido por todos. Eu esperava
com grande ansiedade sua chegada pela alegria que vinha com ele além de
ser o querido “Giggi” de minha avó. De vez em quando vinha da Penha, de
São Paulo, minha tia Maria, única mulher entre os irmãos Caniato. Ela
trazia suas três filhas: Rute, Norma e Anininha. Norma, a do meio, não
queria mais tomar leite quando descobriu de onde saia o leite: nunca antes
havia visto uma vaca.
Minha mãe e minha vó conseguiram conviver num clima de cordialidade e
divisão de terefas e nas horas de folga, enquanto minha mãe fazia crochê
ou tricô minha vó Ana dava altas gargalhadas das piadas que minha mãe
inventava. O trabalho principal de minha avó era o preparo da sopa de
feijão e a obrigatória polenta do jantar. Essa era o resultado de uma
operação curiosa e de que dependia a qualidade de polenta continuamente
remechida no “parollo” , a grande panela de ferro,com uma grande colher
de pau, enquanto as bolhas quentes espoucavam na superfície escaldante. A
finalização dessa operação era uma “apoteose” culminava com a “derrama”
da polenta na tábua redonda, já sobre a mesa, onde todos aguardavam. A
polenta vinha logo depois da sopa de feijão com macarrão.A polenta era
acompanhada com fritada de “codeguim”, um lingüiça feita com couro de
porco. No período da quaresma minha avó fazia no forno de barro, fora da
casa, uma espécie de pão doce que se chemava “bussolá”, com aroma de
“sambuca”, uma espécie de essência de erva doce. Para mim ela fazia um
desses pães em forma de uma pomba. Só na minha velhice vi aparecer no
comércio a “colomba pascal”. Coisa curiosa era o teste de que o forno
estava quente o suficiente para assar o pão: lascas de massa do pão eram
colocadas no forno. Quando o forno atingia a temperatura certa, os pedaços
de massa de amostra se contorciam em “stregas”(bruxas), ficando logo
assados. Esse subproduto do ritual de assar o pão era disputado e eu sempre
ganhava o meu quinhão. Hoje, algumas padarias de italianos ou “oriundi”
57

produzem regularmente essas aparas, as “stregas”, muito apreciadas


especialmente para aqueles que, além do sabor, as têm na memória;.

Uma porca sem porcaria

Um dos amigos da família era o seu Américo Montovani que de


vez em quando nos fazia uma visita e nos divertia com os causos que
relatava e muitos que certamente criava. Numa dessas visitas ele trouxe de
presente uma pequena leitoa, de presente para Dona Luiza, minha mãe. Era
uma porquinha apenas desmamada, Nós na nossa nova casa não tínhamos
nem porcos nem chiqueiro. Agora tínhamos que fazer com toda urgência
uma moradia para a nova porquinha que minha mãe logo “batizou” de
Chica. Logo eu e meu pai construímos um puxado em nosso rancho que
abrigava carroça, arreios e madeira para confecção das caixas para
embalagem da uva. Nossa cultura urbana não admitia um chiqueiro como
os que habitualmente eram usados na redondeza. Era muito simples, de
madeira cortada em nosso mato ou de “costaneiras”, restos de aparas das
toras vendidas pelas serrarias. O piso previa que todos os excrementos
caíssem por aberturas, deixando sempre fácil a limpeza. Nossa “Chica”
também não seria alimentada com restos de comida. Seu alimento principal
era mandioca que minha mãe picava, depois de lavada no córrego que
passava próximo à nosso rancho.Enquanto carpíamos o vinhal colhíamos
“berdoega”(beldroega), caruru e “piocão doce”. Da horta, as sobnras de
couve e outras verduras eram também parte da dieta de nossa “Chica”.
Cada dois ou três dias ela ganhava um pouco de milho. Além de viver num
lugar decente a “chica” acompanhava minha mãe em suas tarefas pelo
galinheiro, comoi um simpático animal de estimação. Jamais por nossas
cabeças passaria a idéia de matar a “chica”. Mas a chica se tornou adulta,
roliça e muito bonita, sem as “porcarias “ geralmente associadas a esses
animais. Logo ficou evidente que se teria que fazer alguma coisa com a
porquinha de estimação. A idéia foi obter dela um cria de leitões. Logo
nosso vizinho, amigo e que havia presenteado minha mãe com a chica,
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sugeriu e se ofereceu para trazer um “cachasso” para fazer a cobertura da


chica. Era o casamento da chica. Seu Mantovani com a carroça trouxe,
embrulhado em um saco o “noivo” para fazer a cobertura da chica. Todos
queríamos ver a chegada do “noivo” da chica. Logo que se desvensilhou do
saco em que era transportado nos causou uma decepção A cachaço era
horrível de feio: muito magro, um focinho muito comprido, orelhas grandes
e caídas, um corpo liso e sem pelos e uma exuberante, enorme bolsa
escrotal: um verdadeiro saco. Era tudo menos o galã que se esperava, à
altura da chica. A chica o repudiou violentamente a mordidas. Para nós
parecia evidente que o “galã”, ainda muito menor que a porquinha bem
nutrida, não estava mesmo à altura daquela nossa “beldade”. Depois de
alguns dias de ferozes “desentendimentos” de convívio no chiqueiro, as
coisas se acalmaram e a nossa chica sucumbiu aos assédios amorosos do
“namorado”. Feita a cobertura, o feio cachasso foi levado de volta para sua
casa. A chica estava prenha. Principalmente por parte de minha mãe, nossa
porquinha foi objeto de cuidados ainda maiores: mais cuidados com sua
“casinha” e sobretudo mais milho na ração. Muito mais barriguda ela ainda
segui minha mãe pelo quintal antes de ser recolhida aos s eus “aposentos”.
Finalmente chegou o dia em que a chica teve sua ninhada. Um mais
fraquinho, incapaz na disputa pela vida, morreu.. Sete ou oito filhotes
disputavam as generosas tetas da chica. Ela deitada pacientemente, era
assaltada pela frenética disputa dos seus leitões. Quando cresceram os
porquinhos foram dados ou vendidos na vizinhança. A chica ainda teve
várias outras crias, sempre mansa a acompanhar minha mãe nas andanças
pelos arredores da casa e do galinheiro. Quando meu pai vendeu o sítio, de
“porteira fechada”, lá ficou também a chica, mais uma razão a alimentar
nossas saudades daqueles tempos de vide rude mas feliz.

“El comandante lo matê Yo”.


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Nossas quadras de videiras, como em quase toda a região, eram das


variedades “barbera” e “izabel” que produziam uvas de menor valor no
mercado. A quadra de uvas “Niagara” branca, a mais valorizada era de
videiras muito velhas e pouco produtivas. Era preciso renovar e ampliar
nossa produção. Os “cavalos” ou porta enxertos já haviam sido plantados.
Agora, um ano depois, era preciso fazer a enxertia de todo o talhão. O
“cavalo” ou porta enxerto é de uma videira selvagem que não produz frutos
mas que tem um sistema radicular mais forte e eficiente como também é
mais resistente a pragas. Depois de um ano, quando atinge
aproximadamente a espessura de um dedo adulto, essa videira “brava” é
cortada dez centímetros acima do solo e se lhe aplica duas cunhas feitas
com galhos, ou “bacelos”, da uva que se deseja produzir. Embora a idéia
seja simples, há alguns aspectos que são delicados e podem comprometer o
êxito do enxerto. As duas cunhas devem ter uma perfeita concordância ou
ajuste no tronco cortado e rachado. Nessa época, fim da década de trinta
estava ocorrendo uma mutação genética da uva “niagara” branca.
Apareceram espontaneamente em alguns lugares, galhos que produziam
uma uva semelhante em todas as propriedade mas diferente na cor: aparecia
a uva “niagara” rosada. Isso havia ocorrido em duas chácaras de grande
produção, na região de Traviú, em dois ramos da família Carbonari. Uma,
nos vinhedos em que meu tio Nino era sócio. Já no ano seguinte se
dispunha de muitos “bacelos” (fragmentos de ramos maduros) para serem
enxertados da nova variedade. Eu e meu pai fizemos uma longa viagem de
carroça para trazer galhos da nova variedade. Agora era preciso enxertá-los
sem perda de tempo. Era preciso enxertar milhares de videiras em poucos
dias. Meu pai contratou vários enxertadores entre os vizinhos e mais um
espanhol que andava pela região a procura desse serviço. Esse senhor que
todos chamavam de “Paco”, havia fugido da Espanha ao final da guerra
civil daquele país e que tinha culminado com a vitória de Francisco Franco
e a derrota de todas as forças da esquerda republicana. Seu “Paco” não
morava na região e por isso ele teve que ficar por uns dias hospedado em
nossa casa. Durante todo o dia, enquanto enxertava videiras, ia contando
episódios em que tomara parte naquele sangrento conflito da guerra civil
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espanhola. Eu o acompanhava em cada enxerto. Cada videira logo depois


de feita a enxertia tinha que ter um pequeno acabamento especial. O
primeiro era amarrar firmemente o enxerto com uma fibra natural, a
“imbira” que colhíamos em nosso mato. Isto ainda era feito pelo enxertador
profissional. Depois era preciso isolar o enxerto com barro, uma argila
bem amassada, macia e úmida, bem lisa para se tornar impermeável. Isso
se fazia para evitar a exposição e desidratação no corte da videira. Depois
disto, a fase final era a cobertura completa com terra: um cone de uns trinta
centímetros de altura. Essas duas últimas fases estavam por minha conta
junto ao seu “Paco”. As histórias que ele contava eram do horror da guerra
civil espanhola. A matança entre as facções civis, o refúgio, às vezes inútil
nas igrejas que eram saqueadas. Esse conflito acabou por se tornar
internacional, com republicanos vindos de outros paises e a primeira
grande aplicação da aviação de guerra de Hitler a favor de Franco: o
bombardeio e a destruição do povoado de Guernica. Mas nosso “Paco”
contava especialmente os detalhes em que seu grupo de guerrilheiros
conseguiu vencer uma batalha de rua. Todo um grupo de franquistas foi
cercado e morto a tiros. Mesmo estando do lado derrotado na guerra, em
vários dos relatos que nos fez sobre o episódio em que seu grupo esteve
envolvido, arrematava com orgulho:“el comandante lo mate Yo”.

Assumindo uma mudança radical

Dona Luiza, minha mãe, havia chegado da Suíça para São Paulo com 15
anos, em 1920. Seu pai, meu avô materno era chefe de trem na Suíça. Não
eram ricos mas tinham um bangalô próprio de dois andares e até maquina
de lavar roupas. Ela era a penúltima em idade entre cinco irmãos. Todos
haviam feito boa escola primaria em Wettingen, no cantão de Aargau,
próximo a Zurique. A chegada ao Brasil acabou por separar a família e
todos tiveram que assumir suas vidas. Depois de trabalhar em casa de
várias famílias alemãs e suíças ela e a irmã mais velha foram trabalhar no
Esplanada, como camareiras. Nessa fase ambas já haviam feito alguma
61

economia juntas e haviam comprado suas máquinas de costura. Ambas


trabalhavam na arrumação e organização dos apartamentos freqüentados
na época principalmente por artistas das companhias líricas que se
apresentavam no Municipal de São Paulo. Isso lhes valeu a experiência de
um convívio num ambiente de gente polida. Antes da vinda para o “mato”,
minha mãe tivera que se adaptar a uma vida mais formal de esposa do
gerente de um ambiente freqüentado por gente muito polida ou “chik”,
nem sempre muito educada. Como meu pai e também pelo convívio com
ele, ela se habituara a muita leitura e convívio com gente mais refinada.
Quando havia hóspedes que só falavam alemão sua intervenção era quase
obrigatória. No sítio, da noite para o dia ela teve que aprender a ordenhar,
cozinhar em fogão de lenha, lavar roupa no córrego, a céu aberto, tratar da
horta, cuidar das galinhas e do indispensável porco. A mais pesada das
tarefas era tirar água do poço.Todas essas tarefas dobraram de tamanho
quando meu avô paterno, com minha avó e mais dois filhos, meus tios
Mario e Américo, decidiram vir para perto do irmão mais velho e líder,
meu pai. Minha avó paterna, já idosa e com velhos hábitos de “grande
família” fizeram pesar toda responsabilidade da casa sobre minha mãe.
Talvez, sabendo ou adivinhando essa sobrecarga, minha avó materna nos
veio visitar e ficou horrorizada de ver a quase insuportável carga de
trabalho que caíra sobre sua filha, minha mãe, a querida Louise de minha
avó. Ela, muito discreta e docemente, fez meu pai prometer que aliviaria
tão grande peso sobre os ombros da sua delicada “Louise”. Ela não se
conformava em ver tão grande carga de trabalho e a transformação sobre a
menina de quem ela fizera as tranças antes de seguir para a escola, na
Suíça.
Meu pai logo tratou de iniciar a construção de nossa nova casa dentro de
sua antiga gleba vizinha. Tomei parte ativa na nova construção,
especialmente em pregar as ripas do telhado. A nova casa, no alto da
colina, tinha banheiro interno, sanitário e encanamento para água, sem água
porque durante os anos que lá estivemos ainda não chegara por lá a luz
elétrica.
62

Um poliglota na enxada.

Meu pai também assumira seu projeto com determinação. Afinal embora
tivesse sempre ouvido minha mãe, a decisão para a mudança radical havia
sido dele. Aquele homem polido que tratava com pessoas das mais
diferentes procedências e falava vários idiomas, tinha uma invejável
redação e caligrafia, agora puxava enxada, juntava esterco e abria covas
para plantar suas novas videiras. Logo o rosto escanhoado todas as manhãs
ficou barbudo, crestado pelo sol e pela poeira. O terno e gravata alinhados
e diários cederam lugar a um “culote” caqui feito por minha mãe e
perneiras de couro. Sua coragem e determinação foram notáveis e
exemplares. Logo no entanto ele se defrontou com uma característica e
limitação sua: a impaciência. Nos primeiros tempos do nosso “mato”, meu
pai ajudava minha mãe na ordenha. Logo sua impaciência e irritabilidade
se tornaram percebidos no trato com nossa querida vaca de leite, a
“Pombinha”. Muitas vezes a vaca não fazia ou não ficava na posição que
meu pai entendia como necessária ou melhor. Ele ficava impaciente,
tentando forçá-la a fazer como ele achava. Da impaciência ele ia
rapidamente à irritação e à raiva. Logo a relação dele com a Pombinha
ficou tensa. Essa relação piorou muito quando, já fora da hora de ordenha,
meu pai, inconformado com alguma “teimosia” da vaca, deu-lhe uma
paulada. Ela passou a ter medo dele. Uma vaca com medo ou “nervosa”
“suspende” o leite. Nós, os três, percebemos que era melhor que meu pai se
afastasse dessa tarefa; a Pombinha “escondia” o leite se ele estivesse por
perto. Essa foi uma circunstância que naturalmente me “promoveu”
definitivamente a ajudante de minha mãe na ordenha. Com isso eu evolui
rapidamente para ser o responsável pelo nosso pequeno rebanho. Em pouco
tempo me tornei hábil na montaria em pelo e adquiri autonomia em todas
atividades de manejo com os animais, menos na ordenha que continuou
sempre a cargo de Dona Luiza, minha mãe. Mesmo um touro nosso que
amedrontava todo mundo, não constituía problema para mim por conviver
próximo e conhecer bem seus hábitos. Eu me divertia provocando e
fazendo-o chifrar o chão e levantar poeira com as patas dianteiras.
63

Descobrindo coisas sobre sexo.

Todo mundo sabe que a lactação tem a ver com a cria. As vacas começam a
produzir leite quando nascem seus bezerros, depois de alguns dias de
colostro. Bezerros nascem nove meses depois de serem as vacas cobertas
pelo touro. Portanto é muito importante saber para quando a vaca deverá
ter sua cria. Por essa razão eu tinha também a incumbência de observar o
comportamento da vaca e do touro. Muitas vezes o touro tentava cobrir
uma vaca sem que ela permitisse o final do intento. Só quando ela está
mesmo no cio é que ela se deixa cobrir sem sair de baixo do touro. Essas
minhas observações eu relatava à minha mãe para que ela anotasse na
“folhinha”, como se chamava o calendário. Se a vaca se deixou cobrir,
nove meses depois ela deve parir e, portanto, produzir leite. Essa minha
observação passou a ser de importância “estratégica” para o leite de
família. Daí para frente acompanhei o cio das vacas, as coberturas do touro
os partos de nossas vacas e os problemas que às vezes acompanham esse
evento. Num dos relatos que fiz à minha mãe sobre uma de nossas vacas de
leite, descobri algo novo para mim. Eu tinha já idéia clara e acompanhava
aqueles fatos ligados ao cio das vacas, cobertura do touro, prenhez,
nascimento dos bezerros e sua amamentação e a produção do leite. Isso era
parte das minhas tarefas de todo dia. Num desses “relatórios” correu-me
perguntar à minha mãe se isso era parecido ao que acontece com a gente.
Ela calmamente respondeu-me que “era quase igual”. No momento
pareceu-me chocante, especialmente tendo presente meu testemunho da
cobertura do touro. Eu não havia pensado nisso, principalmente naquele
“era quase igual”. Eu começava a ver o mundo e as pessoas de um modo
um pouco “diferente”. Durante dias fiquei “ruminando” aquela idéia, até
digerí-la: então “....entre as pessoas..... era... quase.... igual..................?”.
64

Meus novos amigos.

Meus novos amigos eram garotos das famílias vizinhas, quase todos
sitiantes de origem italiana. Isso era outro aspecto curioso de minha nova
vida. Dos cariocas de Copacabana para os moleques que nunca haviam
estado em uma cidade. Os mais chegados eram os irmãos mais novos da
família Antonio Ceolim: Orlando e Mário. Orlando era o mais próximo
pela idade e pelo temperamento mais gentil e interessado em ouvir. De
Copacabana eu levara para o sítio um baú com os brinquedos acumulados
em vários natais. Isso era um forte atrativo para meus amigos que nunca
haviam visto nada igual: ficavam encantados. Esses dois frequentemente
vinham à nossa casa, sempre descalços e de calças curtas de suspensórios.
Aos domingos, um dos programas era bater longos papos, sentados no
pomar dos Ceolim. Primeiro colhíamos um monte de laranja lima e laranja
cravo. Depois chupávamos laranja até não agüentar mais. Essa era a hora
de grandes conversas. Hoje eu diria que foi um grato e útil encontro de
diferentes culturas. Eu ainda não sabia nada das coisas familiares para eles:
fazer e usar estilingues, arapucas, alçapões, bolas de meia e tantas outras
coisas. Eu nunca havia descascado uma laranja. Aqui todos tinham seu
canivete marca “Corneta” para isso. Fazer as necessidades, era sempre no
“exterior”. Só havia uma privada em casa e ninguém voltava para casa para
isso. Era só buscar um lugar um pouco mais discreto e “soltar o barro”. No
lugar de papel higiênico sempre se usava algumas folhas. Quase todos,
menos eu, tinham fezes secas e duras e nem folhas usavam. No começo eu
ainda levava do Rio a minha “amebiana” que sem qualquer medicação
também desapareceu. Por outro lado eu tinha muito que contar e eles
estavam ávidos por saber. Eu vinha da capital do Brasil: conhecia o mar,
vira navios, aviões, auto giro, o futuro helicóptero e sobretudo vira várias
vezes o “Zeppelin”. Era muito assunto. Eles queriam que eu contasse e eu
gostei de contar. Todos aprendemos algo de novo. Logo comecei a por em
prática as novas coisas aprendidas. Fiz muito estilingue, arapuca, alçapões.
65

Foi de grande utilidade futura o aprendizado que tive em fazer as coisas


com as próprias mãos. Logo tive que aprender também a usar uma modesta
espingarda “picapau” de carregar pela boca. Era preciso aprender a carregar
cada vez, com chumbo, “pórva” e espoleta. Caçar passarinhos tinha duas
finalidades. A primeira era matar ou afugentar aqueles que atacam as uvas,
causando prejuízos ao nosso meio de sustento: sanhaços, tico-ticos,
cagacebos, etc. A segunda era fornecer para a cozinheira o material,
especialmente rolinhas, para uma panelada de passarinhos para se comer
com polenta: “poenta e oséi” (polenta com passarinhos) dos vênetos. E´
daí que vem o “frango a passarinho”, cortado em pequenos pedaços
pequenos como passarinhos. Na falta do frango este era substituído por
uma panelada de passarinhos, principalmente rolinhas por serem mais
gordinhas.

Escola nunca mais

No Colégio Teuto Brasileiro em Copacabana, na rua Siqueira Campos, eu


havia apenas começado o segundo ano primário quando abandonamos o
Rio de Janeiro. Nos primeiros tempos da nova vida no “mato”, minha mãe
fez várias vezes a tentativa de manter em mim acesa a chama do estudo.
Durante algum tempo ela insistia em fazer ditados para que eu não perdesse
de todo o contato, pelo menos, com ler e escrever. Mas isso durou muito
pouco tempo. A quantidade de afazeres urgentes e indispensáveis pesou
logo e fortemente sobre os ombros dela. Era para ela uma carga estafante e
que não lhe dava trégua o dia todo. Ao fim do dia e depois de servir o
jantar à luz de lamparinas ainda sobrava muito que fazer. Essa pressão dos
afazeres foi tirando dela o tempo e a energia que poderia dedicar para meu
estudo ou, pelo menos, para que eu não deixasse de ler e escrever. À noite
todos estávamos exaustos e à luz de lamparinas. De minha parte, de início a
embriaguez pela amplidão dos espaços e a liberdade de movimentos me
atraiam mais que qualquer possível “dever” escolar. Com o passar dos
66

meses, minha vida foi se enchendo de novas responsabilidades a tomar


todo meu tempo, toda minha atenção e todo um dia de trabalho. Assim
todos os vestígios do que seria um estudo regular foram desaparecendo e
dando lugar a outro tipo de experiência. Meu pai embora fosse um homem
de muito ler, também ia sendo absorvido por uma enorme carga de
trabalho principalmente braçal. Em pouco tempo a aprendizagem da nova
vida e a pletora de obrigações e muito trabalho físico foi absorvendo todo
tempo e toda a energia da família. Minha escolaridade ficou totalmente
abandonada. A escola ficara mesmo para trás. Havia agora uma
aprendizagem de outro tipo: tarefas concretas que precisavam ser
aprendidas e executadas, sem possibilidade de serem adiadas.

O trabalho com a uva.

O trabalho com a produção de uvas é muito grande, variado e de ciclo


anual. Depois do plantio do “cavalo”, da uva selvagem, em covas grandes e
bem adubadas é preciso esperar o ano seguinte para fazer a enxertia. Se o
enxerto “pega”, em cerca de trinta dias começam a sair os primeiros brotos
esperados com ansiedade. Quando se percebe o entumecimento das gemas
do galho enxertado, retira-se a terra que o esteve cobrindo; é o sinal de que
o enxerto “pegou”. Os novos brotos quando de boa cepa, já nascem
deixando visível os botões que se transformarão em flor e em cachos de
uva. Esses brotos, muito frágeis devem ser conduzidos através de uma
estaca e amarrados para que alcancem o primeiro dos três arames
horizontais que constituem a parreira. Os primeiros poucos cachos são
produzidos próximos ao chão, sujeitos aos respingos de barro da chuva e,
por isso de menor valor comercial. Só no fim do segundo ano a videira se
torna adulta e capaz de produzir quase plenamente. Nesse segundo ano os
brotos muito frágeis devem ser conduzidos verticalmente para o segundo
arame. Aí começa o grande trabalho de amarração, desbrota e o tratamento
contra pragas que, é feito principalmente com calda “bordaleza”\; solução
67

de sulfato de cobre neutralizada com cal. Este é um trabalho dos mais


penosos por ser feito com maquina costal, de cobre de 20 litros. Além de
carregar o grande peso às costas é preciso bombear com o braço esquerdo e
espargir o líquido sobre as folhas, com o braço direito. As caixas de
madeira, para embalagem da uva, são montadas pelo viticultor com a
madeira já cortada, comprada em fardos. Semanas antes do início da
colheita se começa a montar as caixas: muito prego e martelo e, no começo,
muitas marteladas nos dedos. Colhida e “encaixotada” era preciso levar a
carga de carroça para a estaçãozinha de Currupira. Como não havia desvio
para vagões de carga era preciso fazer o transbordo rápido para livrar a
passagem para trem rápido que devia encontrar a linha livre. Essas caixas
iam para o mercado com um rótulo de consignação para a estação de Pari,
em São Paulo. O “barraqueiro” do Mercado Municipal de São Paulo,
geralmente era um “carcamano”, italiano do Sul. Este retirava e vendia
nossa produção. Como não havia telefone, só depois de terminada a safra,
vinha ele prestar contas sobre quanto havia sobrado, retiradas as despesas e
a comissão. Depois de tanto trabalho. Ficava-se à mercê do “barraqueiro”.
Todos produtores, os “sitiantes”, se lamentavam dessa condição. Foi
quando meu pai “inventou” a Cooperativa dos Fruticultores de Louveira.
Era preciso ir a Louveira porque Currupira, embora próxima, não dispunha
de qualquer serviço de correio. Louveira tinha uma estação maior, desvio
para carga, o telégrafo da estação e aí paravam alguns trens de passageiros.
Era um centro um pouco maior, ponto final de correio, mas bem mais
longe. Em Louveira, na grande estação paravam alguns grandes trens de
passageiros vindos de São Paulo e do interior. O chefe da estação andava
em rigoroso e alinhado uniforme de casimira, com quepe: parecia um,
general. O chefe da estação de Louveira de meu tempo tinha uma filha
muito bonita e que era alvo das investidas românticas de um de meus tios:
bom cavaleiro, muito forte, de bonita voz de tenor e a quem sobrava a
testosterona.

A luta pela cooperativa.


68

Era evidente que todos os pequenos produtores ficavam inteiramente à


mercê dos “barraqueiros”. Embora não houvesse nenhum caso conhecido
de não pagamento da uva enviada, todos os pequenos produtores se
queixavam do pouco que recebiam, da demora e dos muitos
descontos:sobrava muito pouco. Via-se algum dinheiro depois de meses de
enviar a produção. Mas ninguém daquela região sabia o que era uma
cooperativa. Meu pai também não era grande conhecedor do assunto mas
tinha idéias, afinal ele havia sido gerente de um grande hotel no Rio de
Janeiro. A tarefa maior seria convencer os pequenos produtores a se
reunirem em torno de uma iniciativa da qual não sabiam nada. Além de
tudo, todos eram pessoas muito simples que trabalhavam na enxada e de
poucas ou pouquíssimas letras. Mas a idéia de meu pai logo se espalhou.
Os vizinhos passaram a vir à noite, depois do trabalho, em nossa casa. Esse
foi outro aprendizado para todos, inclusive para mim. Passei a ouvir os
diálogos entre meu pai e cada vizinho. Era uma verdadeira “catequese” em
que meu pai se empenhava par que os pequenos produtores entendessem
da importância da união de todos em uma cooperativa. A muito custo ele
conseguiu reunir pouco mais que uma dezena de sitiantes dispostos a aderir
à nova idéia. A fundação da cooperativa exigia no entanto muitas
formalidades e autorização de órgãos públicos. Foi então pedida a presença
do agrônomo responsável de Jundiaí. Este também passou a freqüentar
nossa casa. Finalmente foi fundada a Cooperativa dos Fruticultores de
Louveira. Meu pai ficou sendo seu primeiro Diretor-gerente. Só que não
havia qualquer recurso. Os pequenos produtores não estavam dispostos,
nem tinham como pagar nada. O que eles buscavam era defender seus
parcos ganhos, ao fim de cada safra, com a uva. Além do trabalho de graça
de meu pai, para fazer funcionar algo que pretendia ser a Cooperativa meu
pai se dispôs a um trabalho sem qualquer remuneração. O armazém do
“seu” Bento Cruz, ao lado da estação, ponto de correio, cedeu um pequeno
espaço com uma mesinha e uma cadeira. Isso e meu pai constituíam a
cooperativa. Não bastava a idéia. Era preciso por a cooperativa de pé e sem
dinheiro algum. Todos os dias antes de amanhecer eu ia buscar no pasto
uma das nossas éguas, a Estrela, uma bela égua tordilha e marchadeira. Eu
a trazia do pasto montado em pelo e a encilhava para meu pai. Depois do
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café, às seis horas da manhã, ele saia para a viagem de muitos quilômetros
para o trabalho na cooperativa em Louveira Lá ele passava a manhã. A
bela égua marchadeira ficava durante toda a manhã amarrada ao moirão da
porteira da estação.Quando chegavam em casa, cavaleiro e montaria
estavam sedentos, cansados e empoeirados pelos muitos quilômetros pelo
estradão. Eu tinha um serviço adicional: livrar a égua dos arreios e tratá-la.
Ela logo se espojava em reviravoltas pela grama. Era preciso dar-lhe
também um “almoço” com milho.Toda nossa pequena família acabava
sendo onerada com o projeto da cooperativa. Meu pai deixando nosso
trabalho na uva. Minha mãe com o prolongamento das tarefas ligadas à
cozinha. Eu fiquei sozinho no meio do nosso talhão de uva. Com isso fui
ficando muitas horas sozinho em meio ao trabalho do nosso parreiral. Um
dos muitos trabalhos mais pesados em quase todas as culturas é o da carpa.
E´ preciso carpir o mato que invade e compete com a plantação. Eu, mesmo
com o dia todo de trabalho solitário já não estava dando conta. Eu era ainda
um adolescente mas já assumia o trabalho de roça em igualdade de
condições com meu pai. A falta dele durante metade do dia fez atrasar
nosso trabalho de carpa. Durante metade do dia eu trabalhava sozinho em
meio ao parreiral. Muitas vezes, além do cansaço físico, a perspectiva e a
quantidade de trabalho pela frente me faziam quase desanimar. Muitas
vezes, cansado, me apoiava no cabo da enxada para um pequeno descanso.
Do alto da colina, minha mãe acenava para me animar e me induzir ao
trabalho que eu tinha diante de mim. Com o passar das semanas nosso
trabalho ficou muito atrasado e eu não estava conseguindo vencer a
empreitada. O mato estava crescendo e naquele ritmo quando eu chegasse
ao fim já deveria começar de novo na outra extremidade da quadra. Numa
dessas manhãs em que me sentia quase desanimar, impotente diante de
tanto mato que crescia, tive uma surpresa que ficaria na minha memória
para sempre. Os vizinhos desde longe estavam vendo que eu estava sendo
vencido pela tamanho do trabalho. Apesar de todas as dificuldades em
entender sobre cooperativa e seus mecanismos, espontaneamente se
juntaram e vieram todos com suas enxadas. Ninguém disse nada. Todos se
puseram a carpir à minha volta. Eram nossos queridos vizinhos das duas
famílias Ceolim, mais dois de meus tios. Ao fim da tarde, quando passava o
70

trenzinho misto que era nossa “senha” para o fim da enxada, toda minha
uva estava carpida. Além do alívio para mim e para meus pais foi uma
grande experiência sobre amizade e solidariedade. Eles podiam não
entender muito da cooperativa que meu pai imaginava para todos, mas
mostraram entender muito de cooperação.

Trovões e relâmpagos

O calor durante o dia havia sido abrasador, mais que de costume. Além do
calor e do ar abafado, parecia que os dias anteriores, naquelas vésperas de
verão, haviam feito acumular no horizonte nuvens escuras, muito baixas,
carregadas e ameaçadoras. Eu e meu pai havíamos trabalhado o dia todo na
enxada, debaixo daquele sol inclemente, carpindo nosso parreiral, nossa
fonte de renda e sustento. Embora fosse época das chuvas, já havia muitos
dias sem elas. As nuvens pareciam cada dia mais ameaçadoras. Uma
“chuva de pedra(granizo) era nosso grande temor. Nossos horários eram
todos regulados pela passagem dos trens da “Paulista”. Duas vezes por dia,
às 11:00 às 16:45 passava um trenzinho chamado de “misto”. Era um trem
constituído apenas pela locomotiva e por dois vagões: um para pequenas
cargas e um de passageiros só de “segunda”. Era uma espécie de “cata
caipira” que parava nas pequenas estações, como Currupira, para as
pessoas que dele se serviam para ir fazer alguma compra ou ir ao médico
“na cidade”, em Jundiaí. A passagem desse trenzinho, o “misto” das 16:45,
era a “senha” para que eu deixasse o trabalho que estivesse fazendo e sair
para uma série de outras tarefas obrigatórias do fim do dia. Essas tarefas
começavam por “engatar”(atrelar) a carroça, ir cortar e trazer para o
piquete a carroçada de capim, distribuí-lo no piquete e depois ir recolher
nosso pequeno rebanho que ficava num pasto mais distante, onde ainda
havia uns alqueires de mata Atlântica. Nosso pequeno rebanho era
constituído por duas vacas leiteiras (Pombinha e Medalha), seus bezerros,
algumas vacas “solteiras”, algumas novilhas e o touro. Preparado o piquete
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com o capim, era preciso ir buscar o gado. Desengatada (desatrelada) a


égua,“Branquinha” da carroça, nela eu galopava “em pelo”(sem arreios) na
direção do pasto para trazer o gado. Meu cachorro, Duque, amigo
inseparável, corria na frente. Antes que eu chegasse ao pasto distante
desabou o temporal. Já era o fim da tarde. A noite parecia se antecipar pela
escuridão do temporal. Ao chegar próximo do pasto onde esperava
encontrar o gado, já chovia forte em meio a trovões e relâmpagos. Não
havia nenhum sinal do gado. Com o barulho assustador do temporal o
gado se havia refugiado no meio do mato. Eu não conseguia achar meu
rebanho. Agora já estava escuro. Eu cavalgava apressado pelas barrocas à
procura do gado. Durante uma meia hora eu e minha montaria corremos pra
cima e pra baixo, no meio do mato, em meio ao temporal e à chuva.
Minhas pernas, de calças curtas, já estavam arranhadas pelo mato, além de
molhadas pela chuva e pelo suor de minha montaria. Aflito de tanto
procurar, na escuridão e na chuva, sem encontrar meu gado, voltei para
casa abatido e frustrado. Quando cheguei de volta à cocheira encontrei
meu pai de semblante contraído. Antes que eu esboçasse qualquer
explicação ele me ordenou: “Não me volte sem o gado!” Aquela ordem,
naquele tom não deixava dúvida. Era imperioso voltar para o mato e trazer
o rebanho. Nossas duas vacas de leite tinham que alimentar seus bezerros
presos na cocheira e delas era nosso indispensável leite da manhã seguinte.
Desconsolado e aflito, fiz meia volta e de novo galopei na direção do
pasto. Agora já estava escuro e chovia a cântaros, em meio a trovoadas a
relâmpagos. Agora tudo era mais penoso. A escuridão só era rompida pelos
repetidos relâmpagos. Agora eu e minha montaria, a Branquinha,
estávamos mais cansados, molhados e arranhados pela busca no meio do
mato. Além da aflição, meus fundilhos ardiam pela cavalgada no lombo
molhado e sem arreios da égua. Outra vez, fiz muitas tentativas de
encontrar minhas vacas. E meu gado não aparecia, com certeza, assustado e
abrigado nalguma grota mais escondida. Aflito, cheio de desconforto, na
noite tempestuosa, numa curva da picada parei e apeei exausto. Sentei
sobre os calcanhares para descansar os fundilhos e pensar no que fazer,
enquanto segurava as rédeas de minha mansa égua Branquinha, ofegante,
bem a meu lado. Nesse momento senti, além do desconforto do corpo
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molhado e arranhado, uma grande solidão e abatimento. Era um sentimento


como jamais eu havia experimentado. Meu cachorro, o Duque, que sempre
corria na dianteira, também ofegante, deitou-se a meu lado, depois de me
lamber a cara molhada de lágrimas e da chuva que caia. A solidão e a
desventura que eu nunca havia experimentado vieram acompanhadas da
confortadora presença de dois seres que estavam comigo, no mesmo
cansaço e desconforto. Essas presenças foram tão confortadoras naquele
inesquecível momento de aflição. Mesmo sendo animais, eles estavam
junto a mim e de alguma maneira solidários naquela situação. Eles não me
abandonaram. Essa noite me reservaria uma experiência importante e
inesquecível: solidão e solidariedade. Abracei com gratidão, tanto minha
égua, a Branquinha, como meu inseparável amigo, o cachorro Duque, pela
confortadora companhia que me proporcionavam.De repente, um estalo na
mata. Mais um susto. Pulei no lombo da Branquinha, enquanto o Duque se
pôs a rosnar. Mais um relâmpago e pude identificar a cabaça de nosso touro
apenas saída numa clareira do mato. Aí estava meu rebanho. Logo tangi o
touro que, erguendo a cauda, se pos em desabalada corrida pela encosta, na
direção de casa. Logo foram saindo do mato, atrás dele, os demais
integrantes de meu pequeno rebanho. Em meio à noite escura, debaixo de
chuva, os relâmpagos me deixavam ver, vez por outra, o rebanho correndo
para casa. Na frente ia o touro. Logo a seguir vinham as novilhas, muito
ágeis. Atrás, muito pesadas, com úberes cheios, iam nossas vacas
Pombinha e Medalha, esperadas pelos seus bezerros fechados e famintos na
cocheira, em casa. Agora minha aflição era substituída pelo júbilo de haver
conseguido encontrar o gado e cumprir minha tarefa, mesmo em meio ao
temporal que desabava. Fechando nosso “cortejo” vinha eu, cansado e
esfolado pela procura no mato mas aliviado e orgulhoso por haver passado
por uma “prova”. Junto à cocheira estavam, meu pai preocupado com
minha “prova” e minha mãe aflita pelos riscos e minhas aflições que ela
adivinhava. Ainda foi preciso concluir a tarefa, soltando os bezerros para
que mamassem. Chovia, mas agora estava todo mundo em casa e garantido
nosso leite da manhã seguinte. Os cuidados de minha mãe, a sopa quente e
logo depois a cama, nunca me haviam parecido de tanto conforto e
aconchego. Adormeci com o barulho da chuva em nosso telhado destituído
73

de qualquer forro. Encerradas todas as tarefas, havíamos subido para nossa


casa que ficava no alto da colina. Com os relâmpagos se podia ver algumas
casas da vizinhança, situadas ao longo do vale dos Fernandes, próximo à
estaçãozinha de Currupira. Ao entrar em casa, uma ultima olhada pelo vale
revelou que ainda havia algum sinal de luz na casa de meu avô paterno que
ficava a uns quinhentos metros da nossa. Ele fustigava e sacudia um velho
rádio de grandes válvulas que havia trocado por uma égua e que era
alimentado pela eletricidade gerada numa mini-hidrelétrica cuja
construção caseira eu acompanhara. Aquele rádio produzia muito mais
silvos, chiados e “estática” em “ondas curtas” que qualquer coisa
entendível. Era uma tentativa de conseguir algum fragmento de notícia da
guerra que se desenrolava na Europa. No dia seguinte ficamos sabendo do
ataque japonês a Pearl Harbour. Com isso os Estados Unidos entravam na
segunda “II Grande Guerra” que passava a ser mundial, estendendo-se à
Ásia e ao Pacífico. De um lado agora estavam os “Aliados”, com os
Estados Unidos e do outro o “Eixo”, também chamado de RoBerTo, de
Roma Berlim e Tóquio. Estávamos em dezembro de 1941 e eu completara
12 anos.
Muitos anos mais tarde, eu já adulto, essa mesma experiência seria por
mim evocada e me ajudaria a compreender a angustia da solidão e a
importância confortante da solidariedade. Quando comecei a estudar
Astronomia, fui me dando conta da esmagadora solidão em que nos
encontramos, vagando pelo espaço em nossa minúscula “nave”, o nosso
planetinha Terra. Na medida em que nos conscientizamos de nossa
pequenez, de nossa insignificância, fragilidade e isolamento, somos
invadidos por uma forte sensação de solidão e impotência. Isso é inevitável,
na medida em que compreendemos as distâncias Astronômicas a pequenez
e a fragilidade da Vida em sua história sobre nosso planeta. Acredito ser
essa assustadora vertigem do caráter efêmero e insignificante da vida que
faz as pessoas buscarem refúgio nas religiões. E´ assustador aceitar a
simples mortalidade do homem, como nos demais seres vivos. A
solidariedade, as amizades e o amor podem mitigar nosso medo de findar
para sempre, de voltar para o mesmo nada de onde viemos. Daí nossa
“necessidade” de criar “outras” vidas no “outro mundo”. A consciência de
74

nossa real pequenez sobre a Terra pode nos ajudar a perceber a importância
da solidariedade para diminuir nossa solidão.

Os banhos no “tanque”.

A uns 500 metros de nossa casa, dentro de nosso sítio, havia um açude.
Devia ter aproximadamente uns 100 metros de comprimento por uns 20 de
largura e de 3 a 4 metros nos lugares mais fundos. Era um lugar com várias
finalidades. Servia de bebedouro para os animais, por ficar em um pasto, de
banho dos sábados e de nosso “balneário” para natação e brincadeiras
aquáticas. No verão aos sábados à tarde, depois de completadas as
obrigações era ora de um grande banho, o banho de sábado. Aí vinham do
sítio vizinho meus três tios ainda rapazes, Américo, Mario e Joãozinho.
Uma grande prancha de peroba fazia as vezes de trampolim para os saltos e
piruetas em que cada um exibia suas destrezas, alem do banho com muito
sabonete. Um desses meus tios, o tio Joãozinho, além de boa voz de tenor e
bom cavaleiro era extremamente vaidoso e namorador. Como não havia
desodorantes ou qualquer outro aromatizante masculino, tio Joãozinho
depois do banho ainda dava mais uma demão de sabonete sem o retirar do
corpo: era para ficar “perfumado”. Além do banho, o “tanque” era um
espaço para uma de minhas diversões aquáticas prediletas ao domingos de
calor. Eu descobrira que as bananeiras são ótimos flutuadores. Nosso
bananal fazia fronteira com o açude. Várias bananeiras amarradas juntas
com cipó de “São João” faziam uma perfeita jangada. Uma vara de bambu
era um varejão para empurrar a jangada. Nosso bananal era constituído de
banana “nanica”, de caules curtos. Longe do açude tínhamos também
alguma touceiras de banana “São Tomé”. Essas tinham caules muito altos e
compridos. Uma só dessas seria suficiente para navegar. Foi preciso
transportá-la com carroça: era muito pesada para eu carregar. Valeu o
sacrifício. Montado a cavalo nessa grande bananeira, naveguei por todo o
açude, usando como remo duplo um pau com duas pequenas tábuas de
caixa de uva pregadas nas extremidades. Esse era um dos grandes
divertimentos dos domingos de verão. Vez por outra também meu pai e
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minha mãe também se divertiam em nosso “balneário”. Minha mãe, desde


criança na Suíça aprendera a nadar e o fizera muito em Copacabana, antes
de nossa internação em Currupira. Nosso açude também tinha algumas
variedades de peixes expedição noturna. De vez em quando fazíamos uma
pescaria. Com meus amigos da vizinhança em manhãs de domingo
pescávamos lambaris para fritá-los inteiros. Às vezes fazíamos expedições
noturnas pára pescar bagres e enguias e, às vezes cascudos.

A vida do brejo

Para mim as luzes da jovem e vaidosa Copacabana tinham sido s pela


escuridão e também pelo luar do sertão, coisas que eu nunca imaginara. O
céu da cidade, cuja presença eu nem notara, agora se apresentava num
esplendor que me deixou deslumbrado e cativo para o resto da vida. Agora
era preciso aprender a andar na escuridão, pelos caminhos rústicos
trafegados apenas a pé, por carroças ou animais. O luar desconhecido da
cidade, agora, além da poesia, tornava os caminhos bem visíveis; mudava
muito a vida da gente. Das noites no sertão ficaram em mim impressões e
lembranças que nunca se apagariam. Além do luar e do céu estrelado, a
familiaridade com todo um mundo de ruídos da noite: os latidos distantes
dos cães que guardavam seus terreiros, as corujas e os curiangos piando
seus solos e como grande coral, o coaxar da saparia pelos brejos. Se todo o
mato tem uma grande variedade de ruídos noturnos, os brejos têm algo de
especial. Aí vivem numa imensa variedade e proximidade, sapos, sapinhos,
sapões, rãs e pererecas, além de aves, cobras e uma multidão de insetos
aéreos e terrestres. No verão, essa variedade se enriquece com vagalumes e
pirilampos que riscam com sua suave luz a escuridão da noite. E´
interessante que essa espantosa variedade de seres vivos “dá expediente”
principalmente à noite. Toda essa imensa diversidade de vida “funciona”
plenamente na mais completa escuridão. Algumas dessas “descobertas”
pude fazer muito cedo, ainda criança. Com um precário lampião a
querosene ou com a mais “avançada tecnologia” da época: um lampião a
carbureto. Com ele fazia “expedições” para pescar em pequenos riachos ou
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para caçar rãs, logo depois das chuvas. A simples presença de uma
pequena luz, não só mostra como alvoroça toda a vida do brejo a seu redor.
A forte impressão da grande variedade e a presença perturbadora da luz
sobre a vida do brejo ganhariam no futuro, para mim, um significado
muito maior. E´ que meu avô paterno, como muitos outros vizinhos, era
italiano e andava muito ansioso por notícias da guerra. A guerra agora
alvoroçava toda a vida da Europa e, em particular da “nostra” Itália.
Naquele lugar ermo, sem luz, a única maneira de obter alguma notícia seria
um rádio. Não só, não se tinha rádio. Não havia vestígio de iluminação
elétrica na região. A única lâmpada da região ficava na distante
estaçãozinha de Currupira, a alguns quilômetros de casa e era só da Estrada
de Ferro. Seria preciso arranjar um rádio e algo muito mais difícil: produzir
a necessária energia elétrica. Não só me lembro como acompanhei cada
passo e ajudei a montar uma mini-hidrelétrica para fazer funcionar o velho
e grande rádio que mais parecia um armário, tendo seu interior preenchido
por grandes lâmpadas: as “válvulas”. Obviamente, se esperava que além
de fazer funcionar o rádio, a mini-hidrelétrica deveria acender também
algumas lâmpadas para diminuir e escuridão em que todos vivíamos
imersos à noite. Foi um grande aprendizado assistir e ajudar aquela
montagem a partir de peças compradas no ferro velho. Depois de semanas
de trabalho, finalmente o pequeno “dínamo” de carro começou a rodar,
acionado por uma polia acoplada à roda d´água de uns três metros de
diâmetro. Esta por sua vez era tocada pela água num pequeno desnível no
regato que passava próximo ao brejo. Com grande expectativa e
ansiedade, o velho rádio foi ligado na presença de vários vizinhos que
haviam acompanhado e esperado aquela a montagem. As ondas curtas só
podiam ser sintonizadas à noite, mesmo porque de dia todos trabalhávamos
na enxada. Mais que alguma notícia fragmentada, o que mais se ouvia
daquele rádio eram ruídos: silvos, “pipocas”, assobios, estalos e “descargas
de estática”. Mesmo assim, nossos vizinhos mais próximos, vinham para
saber se tinha conseguido algum fragmento de notícia da guerra.
Juntamente com a “linha” constituída de dois arames que trazia e energia
elétrica do dínamo, instalado lá no rio, próximo ao brejo, meus tios
haviam instalado uma lâmpada para iluminar o caminho para algum
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conserto à noite. Aquela lâmpada, muito fraquinha não iluminava muito


mais que nossos lampiões a querosene. Ela ficava sobre um pequeno poste
à beira do cominho que, pelo brejo, ia da casa até a pequenina “usina”.
Apesar de fraca, aquela lâmpada instalada na beira do brejo alvoroçou toda
vida que até então ali se desenrolava normalmente em plena escuridão.
Uma imensa variedade de insetos alados passou a esvoaçar freneticamente
ao redor daquela luz. Alguns esvoaçavam até próximo da lâmpada e logo
voltavam para sua escuridão. Outros voavam em grandes voltas sem
parar. Outros, aparentemente deslumbrados e seduzidos pela luz, voavam
em voltas cada vez mais próximas e mais frenéticas. Estes já não
conseguiam sair de seu deslumbramento, já não viam mais nada senão a
luz e acabavam por “orbitar” tão próximos à lâmpada que queimavam
suas asas. De asas queimadas caiam indefesos e moribundos. Até muitos
vaga-lumes que antes enfeitavam a noite com suas delicadas luzes, se
deixaram ofuscar, perderam a luz própria e caíram em agonia, encontrando
a morte. Aos poucos o chão ia se enchendo desses ex-voadores
moribundos que, na busca da luz, haviam perdido as asas, a visão que
tinham do seu mundo e a própria vida. Enquanto o terreno ia se enchendo
de insetos mortos e moribundos, outras coisas começavam a acontecer
naquela relva iluminada. E´ que os sapos, atraídos pelos “petiscos”
acumulados no chão, se aproximavam para um verdadeiro “banquete”:
uma comilança farta e fácil como nunca tinham tido. Eles, os sapos, já não
tinham que correr os riscos da caça na escuridão. Nem sequer corriam os
riscos de, por engano, abocanhar um “freguês” meio amargo ou indigesto.
Agora era só escolher e empanturrar-se sem “fazer força”. Assim, os sapos
se locupletavam na claridade que agora parecia em seu proveito. Tão
felizes e despreocupados estavam os sapos com a nova “conjuntura” que
não se deram conta de que outro desdobramento estava em marcha. E´ que,
esguias e sorrateiras, algumas cobras espreitavam os sapos, desde a
escuridão. Deslizando pela penumbra, as cobras podiam ver os sapos no
campo iluminado, sem serem vistas e seguir-lhes os movimentos. Assim os
sapos se tornaram alvo fácil para as cobras. Elas agora podiam escolher
seus sapos mais apetitosos sem correr o risco e o trabalho de emboscar
sapos menos adequados a seu paladar.Enfim, toda aquela vida que antes
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seguia seu caminho natural, agora andava alvoroçada e “fora dos trilhos”.
E´ bem verdade que também sem a lâmpada, todos aqueles insetos
voadores, sapos e cobras também estariam sujeitos aos riscos, a
imprevistos e à morte. Suas vidas também seriam efêmeras na escuridão.
Também muitos sapos seriam abocanhados pelas cobras. Também estas
poderiam acabar no bico de alguma seriema ou engolidas por outra cobra.
Todos aqueles seres viventes eram também morrentes, como todas as
formas de vida que povoam a Terra. O que a lâmpada provocou foi um
grande alvoroço e a precipitação da morte daqueles que poderiam ter
vivido mais na modéstia de sua escuridão. Talvez muitos se tenham
beneficiado pela presença da luz. Alguns, mesmo tendo visto alguma luz,
não se deixaram ofuscar por ela. Eles puderam ver pelo menos o tipo de
tragédia que se abateu sobre aqueles que se deslumbraram pela luz e
terminaram por não ver mais nada do pouco que viam antes. Alguns não
chegaram a ter as asas queimadas mas já não conseguiam ver mais nada
alem daquela luz: ficaram “convertidos” para a luz e já não conseguiam
ver nem participar da vida na escuridão em que todos estão mergulhados. E
´ preciso aprender e conseguir viver com as desvantagens mas também
com as vantagens e satisfações possíveis naquela forma de vida a que já
estavam adaptados. Esse aprendizado é que havia determinado a
sobrevivência de todas as espécies nas condições daquele seu habitat. O
lugar em que vivi essa experiência da luz acesa no brejo, ficava no sítio de
meu avõ paterno, ao lado do nosso sítio. Por mera casualidade, esse sítio
foi, muitos anos mais tarde, adquirido por um grande filósofo e escritor:
Huberto Rhoden. Fui conhecê-lo. Era realmente uma figura humana que
causava forte impressão. Além de sua cultura vastíssima e do invejável
domínio da palavra, sua imagem era imponente: seu porte ereto e grande,
sua basta cabeleira já toda branca. Seus olhos azuis, pareciam estar sempre
focados no infinito. Seu tom de voz era sempre profético. Tudo fazia desse
homem excepcional um verdadeiro luzeiro.
Aprendi muito com esse homem de grande cultura e sabedoria. A mim
fascinava especialmente seu domínio sobre a etimologia: o conhecimento
sobre a origem das palavras e suas raízes mais fundas. Sua área era a
Filosofia Universal. Seu currículo de professor nos EEUU, seus muitos
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livros, sua fala calma e segura, sem qualquer tropeço e sua convivência
com Albert Einstein em Princeton, faziam dele um grande mestre. Para
muitos, mais que isso: um verdadeiro “guru”. Para muitos ele se tornou
uma grande lâmpada no brejo de suas vidas. Para muitos, esse homem se
tornou uma “luz” tão forte que lhes ofuscou e tolheu a visão das outras
coisas de suas vidas. Até mesmo as limitações e as fraquezas, próprias de
qualquer ser humano, se tornavam virtudes excelsas para muitos dos
deslumbrados. Não por culpa dele, mas por culpa daqueles que se
deixaram ofuscar pelo fato de só olharem para aquela “luz”. Estes
passaram a “orbitar” cativos, tão próximos que já não conseguiam ver
outra coisa a não ser olhar para o mestre e repetir suas palavras. Vários
outros casos conheci, como do grande Pietro Ubaldi, autor de “A grande
Síntese”. Vi coisas semelhantes a seu redor. Homens que pela brilho do
que diziam podiam ser considerados grandes “luzeiros”. Menos por culpa
deles e mais daqueles que os fitam tão fixa e unicamente, muitos destes se
“queimaram as asas” e passavam a enxergar menos do que viam no
apagado de suas vidas mais simples. Se por um lado devemos buscar as
“luzes” de quem sabe mais para jogar alguma claridade sobre nossos
caminhos, não nos devemos deixar ofuscar ao ponto de só olharmos para a
“luz”. Não podemos perder de vista nosso querido “brejo”. Nem as mais
brilhantes lâmpadas valem nossa renuncia de conduzirmos nossas próprias
vidas, mesmo que modestas ou sem grande brilho.Todos os fanatismos que
nos fazem olhar para uma única” luz” acabam por nos cegar para as
limitações e possibilidades da vida. A escuridão com que temos que
conviver é às vezes desconfortável e sempre cheia de riscos. No entanto a
certeza de uma única “luz” para onde devemos olhar parece ridícula, diante
de tantos diferentes pontos de luz para onde podemos olhar ainda melhor
de nossa escuridão. O olhar fixo para uma única luz nos faz perder a
possibilidade de aprender e desfrutar coisas que vemos na penumbra e até
na escuridão do Mundo em que vivemos. E´ desde a mais completa
escuridão que melhor podemos ver o esplendor do céu, cheio de uma
infinidade de estrelas, mesmo estando no “brejo” de nossas modestas
vidas.
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Estudando catecismo

Tanto do lado de meus de meus avós paternos quanto dos maternos


ninguém era muito religioso. Meus avós paternos fizeram uma longa
viagem de carroça, da fazenda Macuco até a estaçãozinha de Rocinha, hoje
Vinhedo, para tomar o trem e se casarem na catedral de Campinas em
1900. Embora nunca tenham vivido em Campinas, cinqüenta anos depois
voltaram a essa cidade com todos os familiares para celebrar as bodas de
ouro na mesma catedral e fazer a fotografia de toda a família. Todos os
filhos foram batizados na igreja católica mas nada muito mais que isso.
Meu avô materno não só não freqüentava igreja como tinha certa antipatia
pelos hábitos muito conservadores dos tradicionais suíços. Todos os seus
cinco filhos, entre eles minha mãe, estudaram numa escola em que os
professores eram noviços do Wettingen Kloster, um convento católico
próximo de casa da família em Wettingen, na região de(Aargau) Zurique.
Foi sua busca e sonho por uma terra mais aberta que o inspiraram a trazer a
família para o Brasil. A chegada ao Brasil dispersou a família e ninguém
seguiu hábitos ou freqüência a qualquer religião. Em minha primeira
infância, até entrar para a escola meus pais não me haviam dito nada sobre
religião. Quando no primeiro ano da escola me perguntaram qual era
minha religião, se católico ou protestante, fiquei sem saber o que responder
e fui perguntar em casa. Não havia qualquer definição segura. Como só
havia duas opções, fiquei do lado católico, apenas para não ficar para fora.
Quando fomos para Currupira eu tinha nove anos. Nossos vizinhos eram
todos muito católicos. Não havia protestantes senão muito distantes de
nosso bairro. Além, disso, nossos vizinhos das duas grandes famílias
Ceolim eram gente boníssima com quem mantínhamos fortes laços de
amizade. Meus amigos de infância eram todos católicos. Mais pela
companhia deles, eu os acompanhava à missa que se realizava uma vez por
mês na igrejinha de Currupira. Durante a missa eu ficava bem atrás e me
ocultava por trás da gente grande, com receio de que o padre me visse ou
me dirigisse a palavra. Aos domingos havia à tarde aulas de catecismo
onde eram preparadas as crianças que iriam fazer a primeira comunhão. As
catequistas eram as moças das famílias vizinhas, especialmente as da
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família Santo Ceolim, Maria e Regina e as da família Bianchim, Arminda e


Ítala. Mesmo sem sermos definidamente católicos, minha mãe me sugeriu
que seria bom que eu fizesse a primeira comunhão e frequentasse o
catecismo “para não ficar diferente” dos meus amigos e da comunidade.
Passei a freqüentar o catecismo. Logo me enamorei platonicamente por
uma das catequistas da família Bianchim. Talvez ela nunca nem tenha
sequer sabido disso, por mais que lhe dirigisse o olhar “apaixonado”. Além
das aulas na igrejinha, as catequistas me passaram lições que eu devia
estudar. Estudar à noite era inviável pela cansaço do trabalho diário e pela
precariedade da luz de querosene. Durante os meses de inverno era preciso
complementar a alimentação de nosso pequeno rebanho, especialmente
nossas duas vacas leiteiras. Eu tinha então que conduzir e pastorear nosso
rebanho onde houvesse capim fresco e recém brotado. Isso acontecia pelos
morros, nos lugares em que havia sido cortado o capim gordura para forrar
nossas videiras. Depois de conduzir o gado eu me sentava sobre um
cupinzeiro, para ter melhor visibilidade do rebanho e aí dividia minhas
atenções entre as vacas e o estudo do catecismo, num livrinho emprestado
por minhas catequistas. Essa situação me teria passado despercebida ou
esquecida não fosse a observação feita por uma das catequistas à minha
mãe. Essa catequista, Maria Ceolim, muitos anos mais tarde se casaria com
um de meus tios, o tio Joãozinho. Depois de algumas semanas de
catequese eu estava “pronto” para a cerimônia de primeira comunhão com
meus amigos mais próximos, Mario e Orlando Ceolim. Por não estar
habituado às coisas de igreja e também por levar muito a sério minha
“iniciação”, eu vivia uma ansiedade muito grande. Chegou o dia. Quem
nos deu a primeira comunhão foi o Padre Domingos Casarim. Logo depois
tivemos um café da manhã com chocolate, “pão da cidade” e um pãozinho
de mel na casa sede do sitio do seu Egidio, próxima à igreja mas do outro
lado do estradão. Essa proximidade com as catequistas me fez um pouco
mais “enturmado” com as pessoas que freqüentavam a igrejinha e serviu de
contato com o coralzinho que cantava nas missas. Cantar no coralzinho,
além de um certo “status” me conferia o direito de ir à noite aos ensaios na
casa de um maestro (João Rissetto) que morava muito distante, no bairro
do Traviú. Era uma oportunidade de passeio pela escuridão da noite ou ao
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luar. Era também outra oportunidade de ver minha catequista “amada”. Foi
também nesses ensaios que se iniciou o namoro de uma das catequistas
(Maria) com meu tio (Joãozinho)que tinha uma bela voz de tenor. A
“proteção” desse meu tio era meu “passe” para poder sair à noite e
caminhar por estradinhas pelo mato e pelos vinhais da região, junto com a
turma da igreja. As missas que só aconteciam uma vez por mês eram
celebradas pelo Padre Casarim que vinha de longe em seu modesto
cabriolé. Ele vinha desde a igrejinha de Capivari onde era pároco e residia.
Seus sermões eram rústicos e simples e quase se resumiam a exortar aos
fiéis a que doassem mais “prendas”, frangos e leitões para os leilões das
quermesses, afim de que se pudesse arrecadar mais “fundos” para a
igrejinha. Era um homem muito simples de vocação e formação tardias,
sem muitas letras mas um homem bom e honesto. Muitos anos mais tarde
encontrei-o numa fila de ônibus em Campinas, já bem velho e com uma
batina muito pobre e surrada. Recordei-me daqueles distantes anos. Dirigí-
me a ele e depois de cumprimentá-lo ocorreu-me perguntar: - O senhor
mora em Campinas?. –“Não, vim só trazer o dinheiro para o chefe”, foi sua
resposta, referindo-se ao bispo.

A santa ira de Dona Luiza.

Se para todos nós adaptação à nova vida rural, longe de recursos e meios
da cidade foi um desafio, para minha mãe coube um esforço muito
maior.Todas as tarefas de uma casa onde não luz elétrica nem água
encanada, bastariam como grande carga de trabalho. A ordenha das nossas
duas vacas de leite, as galinhas, a horta também estavam no “ministério”
de minha mãe.Nossa nova casa no meio da colina, ficava muito acima do
nível em que estavam nossas principais atividades, tanto na uva, quanto na
horta e na cocheira. Só os pastos e o pedaço de mata ou capoeira ficavam
em cotas maiores. Meu pai escolhera o lugar que nos proporcionava uma
vista mais ampla e arejada da redondeza. Essa visão mais ampla e arejada
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nos custava o preço da constante subida e descida por uma rampa. Nesse
“belo panorama” o poço, obrigatoriamente tinha que ser muito fundo, mais
de vinte metros. Não havia qualquer energia elétrica na região e por isso
toda a instalação de água encanada com caixa d´água, pia da cozinha e
banheiro envelheceram virgens “a espera da energia elétrica. Tirar toda a
água para uma casa, em latas de 20 litros de dentro de um poço tão fundo
era um trabalho muito duro e estafante. Sempre que podíamos, estando em
casa, eu ou meu pai “puxávamos” água para minha mãe. Mas nosso
trabalho era principalmente fora e às vezes longe de casa. Tivemos que
montar um grande sarilho, uma espécie de “carretel” com duas velhas
rodas de carroça para “tirar” água de maneira menos sofrida que uma
simples roldana. Ainda era preciso levar as latas cheias para dentro de
casa. Apesar de nossa ajuda sobrava muito também desse trabalho para
minha mãe. Nessas condições todo o trabalho da dona de casa era
realmente estafante. Colher qualquer coisa na horta “lá em baixo” a fazia
descer e subir nossa rampa. A ordenha das vacas, na cocheira também
ficava lá embaixo; o galinheiro também. A responsabilidade de alimentar
a família era muito grane e difícil quando, além do dinheiro muito limitado
se está muito longe de qualquer fonte de abastecimento. Por essa razão
minha mãe tinha um zelo muito grande com suas galinhas. Elas tinham
nomes e eram conhecidas de minha mãe por seus diferentes
“comportamentos” e “temperamentos”. Uma dessas galinhas prediletas de
minha mãe, chamava-se “minerona”. Enquanto muitas galinhas são
agitadas e nervosas, ciscando os ovos para fora do ninho e pouco
“competentes” para criar suas ninhadas, a “minerona”, muito calma e
mansa, chocava seus ovos com segurança e “tirava” belas ninhadas de
pintinhos. Isso era fundamental para futuras poedeiras e futuros frangos
para o macarrão do domingo. Nossa produção de milho era pequena e
anual. Quando se guarda o milho no paiol ele é muito atacado pelo cupim e
boa parte se perde. Por essas dificuldades em alimentar as galinhas no
confinamento do galinheiro, essas aves eram mantidas soltas, alimentando-
se pelo pasto e tendo apenas um pequeno complemento de milho no fim da
tarde. Só à noite todas ficavam fechadas e protegidas no galinheiro à
prova de predadores.Logo pela manhã, antes de tratar das duas vacas
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leiteiras, eu abria o galinheiro. Algumas galinhas botavam ovos em moitas


pelo pasto. Era preciso vigiar para que não ficassem fora do galinheiro à
noite, sujeitas aos predadores silvestres como também a ataques de
cachorros da vizinhança que vagavam pela noite. Em tempos de boa
postura, de vez em quando, minha mãe chegava a vender umas poucas
dúzias de ovos por semana, ajudando o orçamento da família. Quem os
comprava era um português chamado Jesus que fazia uma coleta por todo
o bairro para depois revendê-los. Várias vezes ocorreu que alguma
galinhas sumissem e vinte e um dias depois aparecessem com uma nova
ninhada de pintinhos. Muitas vezes porem galinhas, patos e até nossos
gansos ,eram atacados por cachorros do mato, uma espécie de raposa que
habita nossos matos e capoeiras. Algumas vezes também cachorros da
vizinhança atacavam as galinhas. Isso era uma das preocupações de minha
mãe. Frangos e ovos eram parte importante de nosso suprimento. As
galinhas soltas garantiam parte de sua alimentação que era apenas
complementava com o chamado para uns punhados de milho, no fim da
tarde, antes de se fechar o galinheiro. De repente, minha mãe começou a se
dar conta de que mais galinhas desapareciam. Só se encontrava restos de
penas que evidenciavam a presença de um predador. Isso ocorreu várias
vezes seguidas. Num certo dia, minha mãe surpreendeu o grande cachorro
policial dos meus tios, devorando uma ninhada de ovos. Ela ficou furiosa,
pois isso abalava o nosso suprimento no momento e no futuro pela falta
dos pintos que se tornariam galinhas e frangos.
Isso aconteceu uma segunda vez e, além do estrago, criava um problema
com meus tios, donos do grande cachorro. Meu pai então pediu aos irmãos,
também nossos vizinhos, que tratassem de deixar o cachorro preso com
corrente para que isso não voltasse a acontecer. Haviam se passado alguns
dias quando minha mãe surpreendeu “Leão”,o cachorrão que, arrastando a
corrente, se havia soltado e estava devorando os ovos de uma ninhada
justamente da sua galinha de estimação, a “minerona”. Isso era demais.
Minha mãe tomada de um acesso de fúria, conseguiu pegar o cachorro pela
corrente que ele arrastava, prendeu-a a um moirão da cerca e, munida de
uma lasca de madeira, partiu de cacetadas para cima do grande cachorro.
Eu e meu pai vínhamos chegando e nos deparamos com aquela cena.
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Minha mãe transtornada e tomada de uma verdadeira fúria, batia


violentamente no cachorrão que gania e se debatia preso. Só a muito
custo, meu pai conseguiu detê-la do intento de matar o grande cachorro.
Eu nunca tinha visto, nem imaginado, minha mãe, pessoa tão delicada e
afável, tão transtornada. Misturavam-se em seu rosto, a raiva, agitação e o
cansaço de tanto bater no grande cachorro policial. Ele, acuado poderia tê-
la atacado com graves conseqüências mas Dona Luiza não parava de
golpear o “leão”. Ela estava tomada de uma “santa ira” na defesa de coisas
importantes para sua família.

Testemunhas de minha infância-adolescência

Nossos vizinhos mais próximos, em sua grande maioria eram brasileiros de


origem italiana. Eram filhos de imigrantes italianos. Já iam rareando os
imigrantes originais. Nossos vizinhos mais próximos eram as duas grandes
famílias Ceolim: Santo Ceolim e Antonio Ceolim. Eram dois grandes
patriarcas, chefes de grandes famílias. Meu contato mais próximo era com
a família do Antônio Ceolim porque daí eram meus amigos mais
chegados, de minha idade, companheiros das aventuras e brincadeiras dos
domingos: Orlando e o Mário. Orlando o meu mais próximo era um
menino gentil e generoso, mais “ajuizado” e introspectivo. O Mário era
mais novo e mais estourado: facilmente “emburrava” ou fazia uma briga
por causa de qualquer coisa. Quase sempre as brigas não iam além de
resmungos, olhares ferozes e xingamentos. Ambos trajavam sempre calças
curtas com suspensórios e sempre descalços, mesmo no tempo mais frio.
Todos os demais irmãos eram mais velhos: Aurélio, Américo (Meriquim) e
Guilherme (Jermo) e uma irmã, a Regina. A mãe da família, Dona Corona
de voz muito estridente e esganiçada, fazia benzimentos, rezas e “tirava
bicho de dente”. Eu assisti a um desses rituais e vi os “bichos de dente”,
pequenos vermes que saiam de umas frutinhas usadas no ritual. “Seu”
Antonio Ceolim, de voz grave, forte e estridente o patriarca da família,
promovia freqüentes mutirões noturnos ora para debulhar milho, ora para
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“destalar”(tirar o talo central das folhas) fumo. Eram ótimos pretextos para
grandes conversas, convívio e cafezinho com bolinhos ou mesmo “pinga”
para os homens adultos. O grande pomar dessa família era o lugar
preferido em que nós moleques passávamos horas de domingo batendo
papo enquanto chupávamos montes de laranja lima e laranja cravo.
A outra grande família vizinha tinha como chefe o Sr. Santo Ceolim. Este
era um verdadeiro patriarca, homem muito magro e alto, com aspecto
frágil, de voz fraca e mansa. Esse aspecto frágil e quase doentio escondia
um pai de uma imensa prole, de grande valor pelo trabalho, honestidade,
liderança da grande família e respeito por parte de toda comunidade. Dessa
família eram as principais catequistas, nossas amigas e que convenceram
minha mãe a que me deixasse acompanhar o catecismo e fazer a primeira
comunhão. Uma delas, Maria, muito mais tarde casou-se com um de meus
tios, o Joãozinho. Os irmãos mais velhos, Henrique, o “Rico” e Amélio já
começavam a desbravar uma nova terra que a família havia adquirido
próximo de onde hoje passa a estrada Anhangüera. De lá eles traziam
carroçadas de forragem de “capim gordura” ou “catingueiro” para forrar
suas videiras. As casas dessas duas grandes famílias Ceolim, Antonio e
Santo, eram unidas por uma estradinha de meio quilômetro, cercada por
uma alameda de ameixeiras que se uniam pelas copas formando um
verdadeiro túnel, às vezes verde, às vezes todo florido ou carregado de
tentadoras ameixas. Vez por outra meu pai, minha mãe e eu fazíamos,
depois do jantar, uma visita a essa grande família por quem nutríamos
grande amizade e admiração. Meu pai e todos os Caniato desfrutavam de
grande prestígio junto a essas e outras famílias vizinhas. Em meio a
animada conversa, “seu” Santo fazia servir um vinho feito por ele de sua
uva Kurbina (Seibel). Independentemente da qualidade ou sabor, para mim
intragável daquele vinho, ele representava uma verdadeira celebração de
amizade. Notável também era a animada e alegre participação na conversa
de Dona Ida, a matriarca da família que mesmo depois de tantos filhos
mantinha grande vigor e disposição para o trabalho. Era uma pessoa
simples, de pés descalços mas cheia de vigor, bondade e sabedoria da vida.
Era ela quem cuidava e administrava o trabalho ao redor da casa, como a
horta, galinhas, porcos, ordenha e cuidados com as vacas leiteiras. A
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administração do trabalho executado pelo velho e plangente monjolo que


ouvíamos desde minha casa, era do chefe da família, o patriarca Santo
Ceolim. Embora seu Santo já não trabalhasse na enxada devido à sua saúde
mais frágil, era ainda ele quem planejava e dirigia o trabalho daquela
grande família no trato de seu vinhal. Era ele também o fiel depositário do
dinheiro da igrejinha de Currupira. Quando o Brasil declarou guerra ao
“eixo”(Alemanha, Itália e Japão), em 1942, Santo Ceolim teve que
renunciar por determinação do governo do Brasil, ao cargo de depositário e
administrador do dinheiro da igreja de Currupira. Todos os italianos e seus
descendentes eram considerados “suspeitos” se ocupassem algum cargo
com poder em dinheiro. Embora soasse muito injusto no caso, meu pai
ajudou seu Santo a entender que nada havia de pessoal contra ele. Era uma
questão do “governo”. Esse também era visto com desconfiança por parte
de quase todos os paulistas, especialmente depois da revolução
constitucionalista de 1932 e do Estado novo de 1937.

Outros vizinhos

Seguindo pela estradinha que ia do bairro dos Fernandes até o alto de


Currupira, o primeiro sítio a fazer divisa com o as terras de meu avô era o
dos Bôrtolo. O mais novo dos irmãos dessa família era o Mário, também
um dos meus amigos. Ele também participava de nossa “pelada” no pátio
da casa dos nossos amigos Orlando e Mário Ceolim. Nossas posições no
time podiam ser de “gortipa”, “beque”, “centrefor” o “centerarfo”. As
faltas podiam ser “penarti”, “corne” ou “fau”. A bolinha “moderna” eu
trouxera de Copacabana entre alguns dos meus brinquedos. Era uma bola
de “capotão”, muito melhor que as que existiam no sítio que eram feitas de
meias velhas cheias de palha de milho. Mesmo essa “moderna” bola, vinda
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de Copacabana, tinha que ser cheia na pressão da bochecha, amarrado o


umbigo com barbante e empurrado para dentro da “abotoadura”, uma
espécie de “braguilha” que ficava saliente , comprometendo a esfericidade
da “bola” e proporcionando alguma cabeçada de “mau jeito”.
Um dos rapazes da família Bôrtolo, o Paschoal, muito amigo nosso e
especialmente de meus tios, em 1939, foi convocado para “servir e
exército”. O pior é que sua convocação tinha sido para servir no interior de
Mato Grosso. Sua partida se deu com emocionadas despedidas e com o
choro inconsolável de sua mãe. Durante mais de um ano essa senhora
vinha a nossa casa conversar com minha mãe e mina avó para se lamentar
do querido filho ausente e do qual não tinha notícias. Além de filho, o
Paschoal era a principal força de trabalho e o líder daquela família. Poucas
notícias ele deu. Só depois de ano e meio de sua partida, chega uma carta
dizendo que estaria próxima sua “baixa” e a conseqüente volta para casa.
A saudosa mãe nos trouxe a carta para que meu pai esclarecesse bem seu
conteúdo:... “ma quaaando sará que ele vorta?”. A carta apenas vagamente
informava estar “próxima” a “baixa”, sem no entanto precisar quando isso
aconteceria. A partir daí, a velha e saudosa mãe passou ficar várias horas
por dia junto á porteira, de onde se podia ver a passagens dos trens pelo
grande aterro dos Fernandes. Ela esperava que seu filho Paschoal
certamente acenasse com um lenço branco, como se costumava, quando
passasse de trem pelo grande aterro visível desde nosso bairro. Passaram se
muitas semanas com a saudosa mãe num incansável plantão a olhar,
esperançosa, para todos os trens que passavam no distante aterro. No fim
de um desses demorados e cansativos plantões, ao sol, no alto da porteira,
ela veio mais uma vez, chorosa e abatida, consolar-se e desabafar com
minha mãe e minha avó: “num güento mai.... meus óio tom muito cansado
de tanto oiá.”
Ficaram registradas na história de nossa família, as freqüentes vindas, o
sofrimento, sua expressão em um português meio caipira, meio italianado e
nossa compaixão pela longa e penosa espera daquela mãe. Naqueles
tempos Mato Grosso nos perecia estar a uma distância quase lendária.
Só depois de mais alguns meses o Paschoal chegou de Mato Grosso, sem
que sua mãe já “caaans a a a da ...de tanto... oiá”, tivesse visto seu aceno
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de lenço ao passar de trem. Logo ele nos veio contar suas aventuras e
desventuras de “servir” naqueles confins do Brasil, próximo da Bolívia.

O velho “Capucho”

Passando a porteira dos Bortolo havia um pequeno sítio do velho


“Capucho”(Cappuccio?). Era um senhor bem velho, gordo, siciliano,
difícil de se entender pela fala muito misturada ao seu dialeto original. Ele
estava sempre às voltas com uma carroça puxada por uma velha mula de
estimação que se chamava “Baroneza”. “Capucho” com sua carroça era
uma figura digna da ópera “cavalleria rusticana”. Uma coisa que era
“famosa” dessa figura era sua mula baia, muito velha mas ainda muito boa
de carroça e que tinha a “barda”(mania) de morder quem se distraísse perto
dela. Numa parada do seu Capucho em frente à nossa casa, meu pai se
deteve a conversar com ele. Sem se dar conta, meu pai se aproximou muito
da mula e levou uma tremenda mordida da “Baronesa” no braço: um
ferimento que focou visível por muitas semanas.

Os Barbosa.

Na primeira bifurcação da estradinha que ia dos Fernandes a Currupira,


logo depois da pequena ponte ficava a casa dos Barbosa. Era um casal
autenticamente caboclo naquela comunidade em que eram maioria os
“oriundi”, descendentes de italianos. Eles tinham um filho já adulto: o Dito
Barbosa. A casa era de alvenaria mas muito simples, com muito poucos
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moveis tendo logo à entrada uma mesinha que era um oratório cercado de
muitas imagens, estatuetas de santos e velas acesas. O pátio diante da casa
era cercado de velhos “chorões”, espécie de pinus que por ter as folhas
como finos fios, produzia um constante zumbido, quase um choro, com a
passagem mesmo de uma leve brisa. O quintal era povoado de velhas e
grandes mangueiras. Nos fundos desse quintal, próximo ao brejo, passava
um pequeno regato que fazia funcionar o velho mas ativo monjolo. O
pouco que essa velha “maquina” produzia ainda era o pobre sustento
daquele casal tão simpático e amigo. Seu Barbosa devia ter uns setenta
anos. Era moreno de basta cabeleira quase toda branca e um largo sorriso,
sempre disposto a uma boa prosa e a contar causos, sempre pitando seu
“picadão”. Sua mulher, Dona Tudinha, embora não fosse tão idosa, já
trazia os sinais da velhice precoce pela vida rústica e pobre que viviam,
sem qualquer evidente aspiração por conquistar melhoria. Pareciam muito
felizes na sua mais que simplicidade. Dona Tudinha era muito conhecida
por ser a maior rezadeira e benzedeira do bairro. A casa dos Barbosa era
lugar de freqüentes noites de rezas, novenas, terços e trezenas, sempre
orientados e “puxados” por Dona Tudinha. Muitas vezes me detive a
conversar com seu Barbosa e sempre lhe fiquei grato por ser capaz de dar
atenção a mim, um “moleque”, o que não era habitual. Os mais velhos não
costumavam dar muita conversa aos jovens.
No outro lado da estradinha, bem defronte aos Barbosa viviam dois
irmãos, autênticos caboclos, Adão e Lazinho. Ambos viviam num
ranchinho de “pauapique”: estrutura de bambu e revestimento de barro
aplicado à mão, com cobertura de sapé. O ranchinho se resumia a dois
cômodos de chão de terra batida: uma pequenina “sala” onde havia dois
banquinhos, um mais que rústico e improvisado fogão, amontoado de
alguns tijolos. O “quarto” era “mobiliado” por dois catres munidos de
apenas um cobertor. Era o mais típico ranchinho de caboclo. O pequeno
quintal não tinha mais que uns pés de mandioca e uma touceira de bananas.
Adão, o mais velho tinha uma cara muito redonda e um grande e freqüente
sorriso que deixava visível a falha de um dente. Era um tipo bonachão,
muito tímido, respeitador e destituído de qualquer vaidade. A maneira de
falar era aquilo que de mais típico se poderia imaginar do caipira paulista.
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Já o mais novo, Lazinho, era um tipo diferente: embora partilhando a


mesma pobreza que o irmão, era vaidoso e notório galanteador para com as
moças. Ambos viviam de pequenas empreitadas em serviços eventuais de
enxada. O quintal da casa, como seu interior, era de terra batida e não
dispunha de qualquer horta ou qualquer outra coisa além de uns pés de
mandioca e a touceira de banana.
Logo atrás da casa dos Barbosa, no desvio da estradinha que ia na direção
de onde hoje está hoje a Via Anhangüera, morava o Bastião Galo, caboclo
de pouca prosa, mal encarado que quase sempre passava a pé por nossa
casa, já meio “tomado”, vindo da venda do Finamore. Não sei se Galo era
mesmo seu sobrenome ou se se devia a alguma outra “virtude” desse
caboclo. Sua casa, típica de caboclo, ficava num pequeno terreno em que
havia apenas uns pés de mandioca, umas touceiras de banana e de cana.
Pouco adiante dessa mesma estradinha variante, do lado oposto, ficava a
casa de Orlando Montovani, jovem pai de uma grande família e irmão mais
velho entre os filhos do “seu” Montovani. Orlando era o “piloto” de uma
parelha de mulas que obedeciam por comando de voz: “ooooaaa”, para a
direita, “vem, vem, vem” para a esquerda e “ppprrrr” para parar. Uma
chupada de beiço do “comandante” era como dar partida num carro
moderno. Era uma das coisas que eu admirava. Era um comando de
“última geração”: um comando de voz.
Pouco mais adiante, nessa mesma estradinha, numa descida para a direita
ficava o sítio do “seu” Dante Mussi, chefe de uma grande família, homem
muito trabalhador e honesto que freqüentou nossa casa. Era um dos
viticultores que meu pai havia “doutrinado” para que entrasse para a
Cooperativa. Ele vinha a cavalo e sempre pitando um cigarro de palha que
já lhe causara um evidente inchaço e ferimento no lábio inferior. O ramal
de sua estradinha subia o morro, atravessava um bananal e passava em
frente à casa dos Lourenção, já próximo ao bairro Traviú.
Naquela vizinhança, já mais perto de onde hoje passa a Anhanguera ficava
a casa do Alexandre Bianchim, também viticultor e pai de outra grande
família. A mais velha de suas filhas, Arminda, muito alta, era uma das
principais catequistas na igrejinha de Currupira. Era ela também que
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puxava os cânticos nas procissões de festa. Uma irmã mais nova, Ítala era
aprendiz de catequista e objeto de minha platônica e secreta paixão.

Os Montovani

Essa era uma grande família chefiada pelo “velho” Américo Montovani. A
numerosa família de moças e rapazes trabalhava na roça de uvas e
principalmente num grande bananal que chegava rente à estradinha do
bairro. Seu Américo Montovani era muito falador e contador de causos e
vantagens. Nas suas freqüentes visitas à nossa casa fazia todo mundo rir de
sua abundante falação sobre seus feitos, sempre levando “a melhor”.
Contava sempre que antes de casar sua noiva lhe preparava um belo
frango assado. “Depois só sobravam uns pedaços. Quando a mulher deu à
luz o primeiro filho, o frango ia para a canja da convalescente. Quando
vieram os filhos, as melhores partes eram deles. E assim o frango foi
sumindo”. Depois de casado, além de capitanear sua grande família,
cultivar uva e um grande bananal, seu Américo administrava um moinho
de fubá, bem ao lado de sua casa, tocado por uma roda d´água.
Periódicamente eu ia a cavalo, montando minha Branquinha em pelo, para
fazer moer o milho que se transformaria em nosso fubá, com o pagamento
de uma “parcela” do milho para o moinho. Muitas vezes surgiram
pequenos atritos entre seu Montovani e meu avô, Beppi(José) Caniato. Isso
porque o moinho estava a montante, no mesmo regato que a mais de um
quilômetro, a jusante, movia outro pequeno moinho e a mini
“hidroelétrica” de meu avô. Quando havia pouca água, seu Montovani,
fechava as pequenas comportas de seu açude para reservar mais força para
seu moinho. Meu avô, a jusante, tinha que parar sua engenhoca por falta
daquela água. Uma das coisas que constituíam o orgulho e as vantagens
que seu Américo contava era sua parelha de pequenas mulas de carroça.
Era um casal: “brinquedo” e “boneca”. Essa parelha obedecia a comandos
de voz, sem necessidade de rédeas. Isso para mim que também lidava com
carroça se constituía numa grande admiração. Era uma espécie de
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“tecnologia de ponta” de carroceiros. Uma vez consegui convencer meu


pai a pedir emprestada aquela parelha para um serviço muito pesado para
minha égua sozinha na carroça. Para mim foi um dia de grande realização
comandar a parelha apenas com comando de voz: senti muito orgulho de
ser um carroceiro com tecnologia “avançada”.
Dessa grande família saiu uma das moças(Lídia) que se casou com um de
meus tios, o tio Américo e se tornou minha tia Lídia. Esse casal teve um
casal de filhos, meus primos Celi e Bruno. Durante o namoro desses dois,
Américo e Lidia, ocorreu uma tragédia: a morte por tifo de uma das moças
mais novas da família, a Rosinha. Foi uma acontecimento que comoveu e
abalou a vida do bairro. Eu fiquei muito impressionado de ver aquela bela
jovem no caixão, o desespero e o choro convulsivo da família. Foi a
primeira vez que vi uma pessoa morta: um cadáver.

Os Crepaldi

Pouco adiante da casa dos Montovani, do lado oposto mas rente à estrada
de Currupira ficava a casa dos Crepáldi. Era também uma grande família
chefiada por Julio Crepaldi, um viticultor. Alem de muito alegre e grande
piadista, Júlio era o sanfoneiro do bairro. A família era constituída por
várias moças e rapazes. Das moças a mais velha, Leonilda, casou-se com o
mais novo de meus tios, o Mario e se tornou a minha tia Leonilda. Estes
tiveram três filhas: Vera, Neli e Rosana, minhas primas. Lembro-me
quando a matriarca da família, Dona Rosa, morreu de parto, junto com o
bebê. Foi outra tragédia no bairro. Os filhos mais novos daquela família,
Anésio, Raul e Dorival também foram meus amigos nas brincadeiras de
bola e pião e colegas de catecismo na igrejinha de Currupira.
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Outro Bianchim

Já chegando ao alto da estradinha de Currupira, próxima de onde esta


desembocava no estradão estadual, ficava o sítio do Eugênio Bianchim.
Baixote, de nariz arrebitado, olhos muito azuis e apertados, o Bianchim
era o maior contador de vantagens e lorotas. Além de viticultor, como
quase todo mundo na região, Eugênio Bianchim era um autodidata prático
de “veterinária”. Naturalmente a “veterinária” que ele praticava era na base
do que ele achava, sem qualquer informação que viesse de livros ou de
qualquer outra fonte que não sua intuição e prática. Numa ocasião em que
nossa vaca leiteira, a “medalha”, ficou mal, suspendeu o leite e ficou com a
barriga inchada, fomos chamar o Bianchim. Ele veio prontamente e depois
do “diagnostico” ele enfiou todo o braço pela traseira da vaca que
imobilizada se limitava a uns gemidos como eu nunca ouvira. Eu fiquei
muito impressionado com aquela “cirurgia”: nunca tinha visto nem
imaginado uma cena parecida e para mim repugnante, assistida também
por meus pais. Não sei até hoje se a vaca se salvou por causa ou apesar da
intervenção do Eugênio Bianchim. Além de um pequeno rebanho de vacas,
seu Bianchim tinha umas cabras que vagavam pela estrada. Na volta de
uma das aulas de catecismo, numa tarde de domingo, eu e alguns de meus
amigos Mario e Orlando, corremos atrás do bode e das cabras do Bianchim
que se embrenharam pela capoeira. Não fizemos nada além disso. À noite
em casa, quando já havíamos jantado, alguém bate à nossa porta. Fui abrir.
Era o Eugênio Bianchim. Eu gelei de susto e apreensão. Achei que ele
vinha fazer queixa a meus pais sobre nossa corrida atrás de suas cabras.
Foi um grande alívio ouvir a conversa normal de simples visita de cortesia
e que não era nenhuma queixa sobre minha participação na corrida atrás de
suas cabras. Se ocorreu alguma reclamação, ela foi “em off”. Bianchim
era, além de chefe de família, um grande contador de piadas e “causos”.
No alto de seu sítio acabava a estradinha que vinha lá dos Fernandes até
desembocar no estradão estadual já a uns quinhentos metros da vendo do
Antonio Miguel, o “Antonio Turco”.
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A venda e o Antonio Miguel

Por ser a única da região, a venda do Antonio Miguel, o Antonio Turco,


era uma espécie de centro para onde convergia todo o bairro. Num raio de
vários quilômetros não havia qualquer outro negócio ou ponto de
abastecimento. Mesmo aí não havia luz elétrica mas apenas lamparinas e
lampiões de querosene. Os cereais como arroz, feijão ficavam depositados
em recipientes de madeira com tampas inclinadas ou diretamente em sacos
“guardados” por sonolentos gatos como seguro contra os ratos. Aí se
comprava sal, açúcar, óleo comestível, balas, querosene, velas, barbante,
fumo de rolo, formicida “Tatu”, alguns poucos outros itens de suprimento
e o mais importante deles: a pinga. Quase todos os homens que vinham
fazer alguma compra também tomavam um trago. Por isso sempre havia
também algum bêbado, cambaleando. Cada vez que ouço a “moda da
pinga” cantada pela Inezita Barroso, acende-se em minha memória todo
aquele cenário real. Além de vendeiro, o Antônio Miguel também era o
barbeiro da região. A estaçãozinha de Currupira ficava a uns cem metros
atrás de vendinha do “Tónho Migué”. Para se chegar à estaçãozinha era
preciso atravessar um pequeno pasto onde reinava um belo garanhão
chamado “Tarzã” : um belo cavalo de linda pelagem “pampa”(de grandes
manchas brancas e marrons, quase vermelhas). Quando se embarcava ou
desembarcava do trenzinho misto, o “catacaipira”, único que aí parava,
obrigatoriamente se passava pela venda. Todos os cavalos da região
automaticamente entravam para o pátio da venda onde descansavam
enquanto o dono fazia as compres ou tomava uma pinga. Na falta do titular
da venda, excepcionalmente os clientes eram atendidos por uma de suas
irmãs: Sâmia ou Vitória, ambas amigas de nossas famílias e admiradoras
dos irmãos Caniato, meus tios. Na venda do Miguel tudo era empoeirado.
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E´ que o estabelecimento ficava bem a beira do “estradão”, entre duas


ladeiras de terra por onde passava todo o grande tráfego especialmente de
caminhões a gasogênio no período da II Guerra Mundial que, nos dois
sentidos, tomavam embalo para a vencer a subida seguinte. Essa estrada
era a que fazia a ligação de São Paulo, capital, para o interior. Só muitos
anos mais tarde surgiria a Via Anhanguera.
Era nessa venda que eu vinha, a cavalo na minha Branquinha, em pelo,
fazer as pequenas compras para minha mãe. Quase todo o caminho era
feito pela estradinha interna do bairro dos Fernandes. Ao chegar ao alto do
Bianchim era preciso fazer os últimos quinhentos metros na descida do
estradão, até a venda. Desde muito cedo, aos dez anos, meus pais me
deram essa autonomia que também era ditada pela necessidade. Essas
viagens me conferiram muita autoconfiança e me fizeram conhecido e
conhecedor de toda a redondeza. Não conheci em toda a região outro
garoto que desfrutasse de tamanha autonomia e ao mesmo tempo de tanta
responsabilidade quanto eu. Nossos costumes eram bastante diferentes do
habitual na região naqueles tempos.

A Igrejinha de Currupira.

Durante algum tempo freqüentei a igrejinha nas tardes de domingo para


aprender catecismo. Isso foi até a realização da primeira comunhão. Uma
vez por mês vinha o Pe. Casarim, com seu cabriolé, desde Capivari, de sua
casa paroquial perto de Louveira. Ele vinha por uma estrada interna que
passava ao lado da Estação Experimental do Governo do Estado. Ficava
todo mundo batendo papo no lado de fora da igrejinha até que o Pe
Casarim despontasse na ladeira do “Instituto”. Esse tempo antes da missa
era dedicado à cuidadosa arrumação e preparação do altar feita pelas
catequistas e também dedicado ao ensaio de um pequeno coro onde o
solista era um tio meu, o tio Joãozinho que possuía bela voz de tenor.
Algumas vezes eu também participei do coralzinho, embora isso não fosse
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habitual para menores. Habitualmente, durante a missa eu ficava próximo à


porta por trás dos mais velhos para que o padre não me visse. Eu tinha
medo que ele me pudesse dirigir a palavra.
Uma vez por ano acontecia a festa da Igreja. O pátio se enchia de
bandeirolas e barraquinhas. A mais movimentada era a barraca do leilão.
Aí o leiloeiro apregoava em altos brados as prendas que eram
principalmente frangos assados, leitões e um que outro brinde. Durante a
manhã, depois da missa, havia a procissão pelos arredores da igreja,
acompanhada pela banda do Santo Scaranzi que também vinha do
Capivari, perto de Louveira. Numa dessas ocasiões vi chegar para
procissão o Engenheiro Francisco de Monlevade que morava nos
arredores. O Doutor Monlevade era uma das principais figuras da
Companhia Paulista de Estradas de Ferro que era motivo de orgulho dos
paulistas. Ele havia sido o engenheiro responsável pela eletrificação da
ferrovia alguns anos antes. Era uma figura impressionante: alto magro,
muito elegante e de cavanhaque já todo grisalho. Ele vinha acompanhado
de um pequeno séqüito de criados e parentes. Uma de suas prestigiosas
cozinheiras viria, muitos anos mais tarde, a ser minha sogra.
Para uma das festas da igreja consegui que minha mãe me entregasse 500
Reis para que eu participasse da festa. Tomei um picolé importado de
Jundiaí por 200 reis e de volta da festa prestei contas do gasto e devolvi o
troco de 300 Reis à minha mãe. Nas procissões eu acompanhava as letras
“puxadas” pelas catequistas. Muitas dessas letras estavam estropiadas e
muitas sílabas se juntavam formando cacófatos que eu não entendia.
Acredito que muita gente, mesmo com todo o fervor não entendia o que
elas queriam dizer. Eram muitas. Uma dessas era “susvoai”. Eu me
perguntava: “que será susvoai”?. Só depois de adulto descobri que com
certeza deveria ser “Sus!, voai”. “Voai” já seria intrigante mas “susvoai”
eu não conseguia entender. E assim muita outra coisa relacionada ao culto
e aos cânticos, especialmente arrastados pela multidão nas procissões. Para
a molecada, como eu, boa parte da festa era constituída pela possibilidade
de um picolé, pela ansiedade da caminhada em grupos na ida e volta até a
igreja e pelo borborinho anunciado pelo foguetório que começava na
alvorada e pela banda do Santo Scaranzi que vinha desde Capivarí.
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Um aprendizado diferente.

Eu tinha apenas o início da aprendizagem formal da escola, no Rio de


Janeiro e isso tinha ficado longe e para trás. O aprendizado agora era de
natureza muito diferente. Valeria e encheria um livro, só com isso. A
primeira coisa era andar pela casa à noite só à luz de um lampião de
querosene ou as pequenas lamparinas de chama fuligenta e mal cheirosa.
Era preciso aprender a andar no escuro. Em compensação o céu me
apareceu num esplendor que me marcaria para sempre. A presença do luar
ficara ostensiva e mudava o que se podia fazer e andar à noite.
Providenciar a indispensável lenha seca para o fogão. Acender o fogão.
Tirar água do poço. Fazer horta e regá-la todos os dias. Limpá-la do mato
que cresce muito mais depressa que o que se plantou. A ordenha, o
alimento da vaca, o lidar com a cria, o bezerro que tem que se juntar e
separar da vaca. Os cavalos, ou melhor, nossas éguas eram nosso
transporte de sela ou de carroça. O uso e manutenção dos arreios tanto de
montaria quanto de carroça. Um mundo de coisas com que já no dia
seguinte à nossa chegada se nos impunham como necessidades que não
podem ser adiadas. Nem se dispensam em domingos e feriados. Tudo isso
devia ser aprendido com urgência e eficácia. Tudo isso também além do
trabalho com as videiras que seriam nosso sustento e meio de vida.
Aos domingos no entanto, algum tempo depois de ordenhadas as vacas,
havia um intervalo até às 16:00, quando se precisava distribuir o capim
cortado aos animais, alimentá-los, tratar dos bezerros,etc.
Essas horas de domingo tiveram para mim um significado importante,
além das brincadeiras e das peladas com a bolinha carioca. È que meus
amigos queriam que eu lhes contasse como era a capital do Brasil, o que eu
havia visto: aviões, navios, zepelins, auto-giro, rádio, muitos automóveis,
embaixadas, bondes. Foi minha primeira oportunidade de exercitar
exaustivamente a narrativa de tudo que eu trazia em minha memória de
vida em Copacabana. Foi um verdadeiro encontro de culturas diferentes.
Eu precisava aprender urgentemente as coisas em que eu era totalmente
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ignorante e inexperiente. Houve uma autentica troca entre minha cultura


urbana e a cultura caipira que eu ainda não conhecia e precisava com
urgência conhecer e praticar. Meus amigos ficaram sabendo através de
minhas narrativas coisas de que tinham apenas longinquamente ouvido
falar e muitas coisas das quais nunca tinham sabido nada. Isso me valeu
também, sei hoje, um certo treinamento de verbalização e narrativa. À
medida que o tempo foi passando fui aprendendo rapidamente tanto pela
pressão imposta pela urgência como pela necessidade, muitos dos afazeres
de adulto. Esse aprendizado incluiu de início ajuda nas tarefas de ajuda
especialmente à minha mãe nos arredores da casa, como horta ordenha e
trato das vacas. Logo essas obrigações evoluíram para o trato das éguas de
tiro e montaria. Saber como funciona, o que faz e aplicar os arreios para
um animal que entre os varais vai puxar uma carroça, não são coisas tão
óbvias. Atrelar um segundo animal ou na “guia”(frente) ou na
“boléia”(lado), faz muita diferença na coordenação e no equilíbrio de uma
carroça carregada com uma montanha de forragem, por exemplo. O
equilíbrio de uma carroça tem muitas implicações tanto de segurança
quanto de esforço sobre o animal do “varal”. Uma carroça muito “traseira”,
isto é, com carga muito para trás, tende a levantar o animal do varal,
diminuindo sua capacidade de tração. Carroça muito “dianteira” maltrata o
animal e lhe acrescenta peso no lombo. Carga muito alta diminui a
estabilidade, especialmente quando se transita em caminhos irregulares ou
inteiramente “off road”. Para colocar uma carga, como um saco de milho,
ou se tem força para colocá-lo direto sobre a carroça, e eu não tinha, ou
logo se aprende sobre plano inclinado, simplesmente com dois paus
paralelos do chão à carroça. Saber quanto trabalho há atrás de qualquer
coisa feita ou produzida é uma idéia que reputo fundamental para um
exercício de cidadania que não seja só discurso ou demagogia.

O grande jacarandá.

Quando nos mudamos para a gleba de 40 alqueires que era de meu pai, foi
preciso construir uma nova casa. Acompanhei toda a construção dela
tomando parte direta como ajudante e fazendo pequenos serviços. Quando
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chegou na hora da construção do telhado eu já estava “craque” no uso do


martelo e fiz parte considerável da colocação das ripas do madeiramento,
junto com meu pai. Coloquei centenas de pregos, depois de muitas
marteladas erradas ou nos dedos. Meu pai fez questão de completa
instalação hidráulica para banheiro, pia da cozinha, tanque de lavar roupas,
enfim “água encanada”. Só que não havia na região qualquer vestígio de
energia elétrica e assim toda a “hidráulica” envelheceu virgem até nossa
saída, anos depois, em 1943. Nessa casa tivemos que construir toda a
infraestrutura como cocheira, galinheiro, chiqueiro, piquete para o gado e
rancho de apoio para carroça, arreios e ferramentas. A construção da
cocheira para ordenha e guarda dos bezerros marcou época em nossas
vidas. Meu pai sempre teve idéias que tinham a ver com, largueza,
arejamento, belas vistas e espaços amplos. Por essa razão nossa casa já
havia sido construída numa colina, cujo acesso exigia uma cansativa
subida.Uma das conseqüências da visão panorâmica foi o poço de 30
metros. Isso exigiu um grande sarilho feito com rodas de carroça para tirar
água do poço. A cocheira também deveria ser “ampla, alta, bem arejada”,
diferente do que se costumava entre os modestos sitiantes da região. Tudo
entretanto deveria ser feito com madeira retirada de nosso mato. Já
havíamos derrubado uma parte do mato para fazer um milharal. A lenha
havia sido vendida e transportada pelas pesadas carroças dos donos das
olarias da região. Na margem de nossa derrubada de mato havíamos
encontrado um grande jacarandá, muito reto e alto e que devia ter quase
um metro de diâmetro na sua base. Esse seria o principal esteio de nossa
cocheira. Sua derrubada, a machado e a separação da tora principal levou
todo um dia de machadeiros, meu pai com a ajuda de seus irmãos
Joãozinho, o mais forte, Mario o mais novo e Américo, o do meio. Este
último, o tio Américo, era de muito inteligente, criativo e ficava “bolando”
meios engenhosos de como iríamos transportar aquela tora grande e muito
pesada do grande jacarandá, desde o mato até as proximidades de nossa
casa, onde seria erguida nossa cocheira. O nosso jacarandá tinha cerca de
oitenta centímetros de diâmetro na base e cinco metros de comprimento. O
jacarandá é madeira das mais pesadas entre as “madeiras de lei”. Arrastar
aquele monstro pelo mato exigiu as mais criativas soluções; não existiam
101

tratores na região, era preciso “inventar” soluções. Removê-lo uns poucos


metros até o carreador” foi uma operação com alavancas, cordas e força
dos irmãos juntos, sob a “engenharia” do tio Américo. No carreador, o
caminho no mato, a grande tora foi alavancada para cima de roletes de pau
cortados no mato ao redor. Feito isso foi trazido o “Brioso”, um mulo que
também entrou para a história da família por várias de suas proezas, pelo
seu tamanho, força e por ser inseparável(“amadrinhado”) da bela égua
marchadeira de meu pai. Era difícil segurá-lo longe dela. Atrelado à grande
tora, o Brioso arrastou por muitos metros a grande tora até que ela caísse
dos roletes. Todos achavam que saída de cima dos roletes a pesada tora,
arrastando no chão, se tornaria pesada demais para ser puxada. Foi um dos
momentos de glória do valente Brioso. Diante da maior força necessária, o
brioso, quase de joelhos de tanto esforço, bufando, arrastou por dezenas de
metros a pesada tora, quebrando cipós e fazendo um grande ruído pela que
ia levando de arrasto no meio do mato. Agora era preciso transpor a
“barroca”, um vale que separava em duas partes o caminho que ia para
casa. Ai foi preciso “inventar” outras técnicas para transposição daquele
pequeno “cânion” no nosso mato. Foram então tomados por empréstimo os
grandes moitões da Companhia Paulista de Estradas de Ferro que eram
mantidos num nosso vizinho(Túlio Framba) que era encarregado da
manutenção das linhas de “força” que corriam paralelas à estrada de ferro.
Foram mais dois dias de operação com cordas alavancas e moitões até a
transposição da “barroca”. Chegávamos com a tora até onde se atingia uma
estradinha de carroça. Agora o caminho era mais aberto mas ainda no meio
do mato. Ainda era preciso vencer duas ladeiras, uma descendo e outra
subindo. Estávamos a cerca de um quilômetro de casa. Para outros serviços
pesados, meu avô paterno, freqüentador dos grandes “ferro-velhos”, havia
comprado um par de rodetes de ferro de vagoneta(pequeno vagão) sobre
os quais o tio Américo havia montado um pequeno vagão de carga feito de
pranchas de madeira. Essa vagoneta andava sobre trilhos de madeira que
eram constituídos por pares de caibros unidos por tábuas transversais
fazendo as vezes de dormentes. Esses trilhos eram móveis e podiam ser
transportados, assim como toda a vagoneta desmontada. A vagoneta seria a
solução para o trajeto final da tora até o local da nova cocheira. Todo
102

aquele arsenal “ferroviário” tinha que ser levado desmontado e remontado


no mato. Para chegar ao local onde o jacarandá esperava, tinham que ser
vencidas as duas ladeiras, uma descendo e outra subindo. Ao Brioso coube
também a grande tarefa de puxar a carroça com toda aquela tralha ao local
onde estava o jacarandá. Havia ainda uma grande subida a ser vencida
com a carga da vagoneta desmontada. Será que o Brioso sozinho daria
conta? Na dúvida, meus tios resolveram colocar como ajuda para o Brioso
a égua Roleta a puxar na “boléia”. A “boléia” de uma carroça fica do lado
direito que era o lado do barranco em que a estrada estava cortada no
morro da grande e última subida. Quando a carroça carregada estava quase
vencendo a subida, a égua da boléia se sentiu assustada e puxando de lado
fez o Brioso perder o pé no grande esforço de tração. Meu pai guiava a
carroça, puxando o Brioso pela rédea na frente. Eu, mais a frente e
acompanhava a grande arrancada na subida. O desequilíbrio e força para
trás da égua, contra o barranco na ladeira estreita, fizeram a carroça
desabar pelo barranco abaixo tombando com a pesada carga e os
animais.Foi uma assustadora visão do desastre. Depois do primeiro tombo
pelo barranco, o gancho que prendia a égua felizmente se soltou e a
carroça parou tombada contra uma árvore e com o pobre e valente Brioso
ainda bufando preso aos varais. Quando meu pai conseguiu soltar os
arreios que prendiam o Brioso à carroça. Esta deu mais um tombo e foi
parar no fundo do barranco. Vivi todos momentos de aflição de ver um
grande desastre com nossa carroça e nossos animais. Além de assustado e
com alguns ferimentos o Brioso teve uns dias de férias e de recuperação,
ficando no pasto junto com sua querida Tordilha. A pesar de assustador, o
desastre não tinha feito grandes estragos. Depois de alguns dias o trabalho
foi retomado e finalmente o grande jacarandá, chegando sobre a vagoneta
se tornou o grande esteio da “ampla e arejada” cocheira, como queria
“seu” Antonio, meu pai.
103

Vestido de noiva.

Durante quase toda minha vida conheci a máquina de costura de minha


mãe. Era uma Singer comprada nova por ela em 1925. Ela e a irmã(tia
Elza) como arrumadeiras do Hotel Esplanada, haviam comprado cada uma
sua maquina e aprendido a costurar. Toda vida ela fez suas próprias
roupas. No sítio, em Currupira, além de costurar para a família ela se
tornou a costureira a fazer os vestidos de muitas noivas das vizinhanças.
Uma das primeiras foi a noiva de um nosso querido amigo da famíla
Ceolim. Era o casamento do Amélio Ceolim com uma moça da família
Batista: Aparecida. Foi uma grande festa. Várias vezes a noiva esteve em
casa para as provas do vestido. Quando da festa, nossa família foi
especialmente convidada pelo patriarca da família, Santo Ceolim por quem
nutríamos grande estima e admiração. Meu pai ainda guardava roupas do
seu tempo de gerente e até um fino “smoking”. Era um casamento com a
noiva vestida pela Dona Luiza, minha mãe. Fomos vestidos com roupas
ainda do Rio de Janeiro. A festa de casamento se estendia da casa para o
terreiro coberto por uma grande lona onde logo depois da chegada dos
noivos começou um “arrasta pé”. A lona havia sido armada ainda de dia e
guardava um grande calor. O animado baile logo levantou um grande
poeirão. Lembro-me de Dona Ida, a matriarca da Família Ceolim
oferecendo muito gentil e cerimoniosa “um docinho” a meu pai: era um
pires com doce de abóbora. Nunca um “smoking” havia tomado tanta
poeira. Voltamos empoeirados mas felizes de haver participado da
primeira festa de casamento na roça e de gente tão amiga.
Várias outras noivas foram vestidas pelas criativas e hábeis mãos de Dona
Luiza. Uma dessas, casando-se com meu tio Américo tornou-se minha tia
Lydia, uma das várias moças filhas da grande família de Américo
Montovani. Entre elas a Sisse, uma das namoradinhas platônicas da minha
adolescência em Currupira.

Viagem à cidade.
104

Os suprimentos feitos na venda do Antonio Miguel eram apenas para


coisas mais rudimentares. Uma ou duas vezes por ano era preciso ir à
cidade. A cidade era Jundiaí. Essa viagem começava com uma caminhada
a pé, muito cedo até a estaçãozinha de Currupira. Aí se tomava o “misto”,
o “cata caipira” das sete horas, com apenas um vagão para passageiros de
segunda classe e um vagão para pequenas cargas e encomendas. Em
Jundiaí as compras eram feitas no grande armazém da família Rappa, na
rua Barão, no centro da cidade. Além das compras daquilo que não existia
na venda do Antonio Miguel, ia-se de vez em quando ao dentista que era o
Dr. Jurandir, também no centro da cidade. O almoço era de pão crocante
“da cidade” com mortadela, acompanhado de Malzbier, na grande padaria
e bar do Abílio. À tarde ia-se a pé pela rua Torres Neves até a pequena
estação da Paulista onde só parava o trenzinho catacaipira, o “misto”, que
nos levava de volta a Currupira. Mais uma caminhada de uns quilômetros
pelo estradão era a última etapa da viagem à cidade.
Uma viagem à cidade marcou muito meus tempos de Currupira. Não sei
como, meu pai ficou sabendo de uma temporada lírica no Municipal de
São Paulo. Ele que havia freqüentado aquele teatro nos seus tempos de
mocidade, quis que eu assistisse ao “Rigoletto” de Giuseppe Verdi, nada
menos do que no Teatro Municipal de São Paulo. Saímos logo cedo para
tomar o Misto em Currupira para Jundiaí. Lá fizemos baldeação para um
trem da “Inglesa” até a estação da Luz em São Paulo. Chegamos a São
Paulo à tarde e meu pai me mostrou o centro da cidade, nas imediações do
Viaduto do Chá e arredores do Teatro Municipal.Até então eu só conhecia
de São Paulo a casa de meus avós paternos, na rua Guayauna, na Penha e o
Belenzinho(Quarta Parada), onde morava minha avó materna e minha tia
Elza. Como menores não podiam entrar na ópera, especialmente à noite,
foram necessárias umas “manobras” que nunca entendi por completo. O
fato é que saímos da enxada, em Currupira para assistir a uma noite de
ópera no Teatro Municipal de São Paulo. Para mim isso foi tão
extraordinário e inesquecível que fiquei com a ópera completa, de ponta a
ponta na memória até hoje. A beleza do teatro em noite de ópera, a
orquestra, a música, o regente, cada cena, até os lampejos dos relâmpagos
105

sintetizados pelas luzes e orquestra no desfecho daquele drama ficaram em


minha memória para sempre. Depois desse episódio eu não seria mais o
mesmo em todos os sentidos. Foi uma experiência única e transformadora,
em contraste com a vida rústica que levávamos, longe da cidade e de suas
luzes, em meio ao trabalho de enxada, brejos,vacas e poeira.

O Brasil na II Guerra e um burro chamado Ruano

Corria o ano de 1942. Vez por outra alguém trazia da cidade notícias
sobre a II Guerra Mundial. De repente uma abalou a todos. Era a notícia
sobre o afundamento de navios brasileiros nas costas do Brasil.
Submarinos alemães, haviam torpedeado e afundado vários navios entre os
quais o “Baependi”. Foram algumas centenas de mortos, além da perda
total daquelas embarcações. O governo de Getúlio que até então nutria
certa simpatia pelo “eixo”, foi levado pela pressão dos EEUU a se definir
e a reagir a aquele ato de guerra. Havia também um clamor popular
nacional de reação a ostensiva hostilidade e afronta à soberania do Brasil.
O Brasil então declarou guerra ao “eixo”. Em muitos lugares do Brasil
ocorreram manifestações e campanhas patrióticas de apoio à entrada do
país na Guerra, ao lado dos aliados. Chegou-se a fazer campanha de coleta
de metais para fabrico de armamentos. Eram as “montanhas da Vitória”.
Por toda a região e portanto, também no nosso bairro dos Fernandes, perto
de Currupira, chegou a notícia de uma grande evento patriótico que seria
realizado na cidade de Rocinha, hoje Vinhedo. Seria um misto de
manifestação política e festa. O ponto alto da festa seria um grande rodeio
em que a maior atração seria um burro (mulo) que se tornara famoso pela
sua indomabilidade. Em varias festas e rodeios passados, em outros
lugares, nenhum peão tinha conseguido ficar por mais de uns poucos
segundos no lombo daquela verdadeira “fera”, um burro chamado
“Ruano”, por sua cor (ruão)”baia” com crina muito mais clara. Esse animal
era uma verdadeira “lenda”: era indomável. O “clima” de patriotismo e o
burro Ruano estavam eletrizando as expectativas em relação a aquele
106

rodeio patriótico. Já dias antes um famoso peão de Jundiaí, o Zico Peão,


tido como o “maior” dos peões da região, aceitara o desafio de montar o
Ruano. A festa contaria com oradores, a presença do prefeito de Rocinha,
banda de música e, certamente, uma multidão. Para quem morava, como
nós, em Currupira, seria preciso tomar o trem de Louveira até Rocinha.
Primeiro teríamos que fazer a caminhada de quatro quilômetros a pé até a
estação de Louveira. De lá pegaríamos o trenzinho parador, o “misto”,
para Rocinha. Nessa caminhada e viagem, com meus treze anos,
acompanhei meu tio Joãozinho. Da estação de Rocinha ainda seria
necessária uma grande caminhada morro acima até o local onde teria lugar
o grande acontecimento, no ponto mais alta da então pequenina cidade que
só anos depois, seria chamada de Vinhedo. Quando lá chegamos já havia
uma multidão ao redor do grande cercado de tabuas onde aconteceria o
rodeio. Ao lado havia um outro cercado onde estavam os animais, cavalos
e mulos que seriam montados. Depois dos discursos patrióticos ia começar
o rodeio. Apresentou-se a equipe dos “orelhadores”, os peões encarregados
de imobilizar aqueles animais xucros até que lhes fosse aplicado o
“solfete”, uma cinta com alça, único “arreio” no animal e apoio do peão.
Os vários “orelhadores”, depois do animal laçado, lhe torciam as orelhas
até que, creio que de tanta dor, bufando e resfolegando, o bicho ficava
imóvel. Além dos “orelhadores”, outro peão aplicava um “cachimbo” no
focinho do burro. “cachimbo era um pau munido numa das extremidades,
de um laço de couro trançado. Depois de aplicado no focinho do animal o
cabo de madeira ia sendo torcido até que o bicho se imobilizasse. Só
depois de o peão estar montado a equipe da “seguração” soltava, orelhas e
o beiço do animal. A reação deste era como quando se solta uma mola
comprimida. Aos pulos, coices e corcoveando sem parar, aqueles animais
xucros quase sempre conseguiam se livrar de suas montarias. Quando um
dos peões agüentava a “pulação” no lombo do animal xucro, era
ovacionado pela multidão. Todos os animais trazidos já haviam sido
montados. Agora seria a hora da grande final em que se defrontariam o
Ruano, burro até agora “invicto” nos rodeios, e Zico Peão, o desafiador e
herói do espetáculo, que vinha de “fora”, de Jundiaí. Como aquele seria o
final e apoteose da festa, antes do duelo Zico Peão versus Ruano, falou o
107

prefeito e a banda tocou mais um dobrado. Agora o silêncio nervoso e a


grande expectativa da multidão. Foram necessários vários laçadores, em
diferentes direções para que os orelhadores conseguissem botar as mãos
nas orelhas e focinho do Ruano. O burro era mesmo “endiabrado”. Só
depois de muito esforço dos laçadores, segurando em direções opostas, os
“orelhadores” conseguiram segurar aquele bicho brabo. Aplicado o
torniquete no focinho, aquela “fera” muar rosnava e estrebuchava aos
arrancos. Finalmente a equipe da “seguração” conseguiu aplicar o solfete
no Ruano. A multidão silenciou. Só se ouvia o rosnar do burro imobilizado
quase até a asfixia. Sob palmas, entra então o Zico Peão para montar. Ele
monta, segura o solfete, joga o chapéu para o alto e grita ...“larga”! O burro
pula furiosamente como uma mola enlouquecida. Os pulos daquele animal
tinham mesmo um ímpeto e uma fúria como nenhum dos anteriores. A
multidão, depois de alguns instantes em que o Zico Peão resistia a tantos
pinotes, começou a aplaudir e a gritar o nome do herói que resistia. O
burro pulava e o Zico não caia. De repente, o burro , parando de pular, sai
como uma flecha em direção ao tablado vertical que limitava o espaço do
rodeio. Sem corcovear, mas galopando a toda brida, como uma flecha, o
burro se atira de cabeça contra as tabuas do cercado, atravessando-o e
deixando o Zico Peão desfalecido pela peitada contra a tábua superior do
cercado. Desfalecido, muito ferido mas vivo, Zico Peão, foi levado pela
ambulância de plantão, sem poder ouvir a ovação que recebeu pela sua
bravura em resistir no lombo do Ruano. O animal, com certeza muito
assustado e ferido, sumiu no poeirão daquele fim de tarde. A multidão, sem
o Ruano e sem o herói, finda a festa, se dispersou. Era o epílogo
inesperado do grande evento: um verdadeiro anticlímax pela ausência dos
dois principais protagonistas daquela memorável tarde na cidade de
Rocinha, hoje Vinhedo.

A luta contra a saúva


108

Eram os tempos em que se dizia: “ou o Brasil acaba com a saúva ou a


saúva acaba com o Brasil”. A saúva era um verdadeiro flagelo de grande
parte da agricultura e particularmente para o pequeno agricultor. Grande
parte de nossas terras muito antes de serem compradas por meu pai, era
constituída de cafezais e pastos abandonados. Felizmente nossa quadra de
videiras de cerca de cerca de três hectares era quase toda cercada de
pequenos córregos. Por isso as videiras ficavam menos sujeitas à ação da
saúva. Mesmo porque aí qualquer ataque se tornaria mais visível e podia
ser combatido localmente. Meu pai sonhava em ter um pomar,
especialmente de laranjas e outros citrus.. Desde sua vida urbana ele trazia
o hábito de chupar pelo menos uma laranja como primeira parte do
desjejum. Nessa propriedade não havia, até nossa mudança nenhum pé de
laranja. Meu pai resolveu então que deveríamos formar um pomar. Por
plantio direto uma laranjeira leva vários anos para se tornar adulta e
produzir. Era preciso encurtar esse tempo. A única solução era ir ao
Instituto Agronômico de Campinas para comprar mudas já enxertadas.
Acompanhei meu pai nessa viagem que começava com a caminhada a pé
até a estaçãozinha de Currupira. Ai tomamos o “misto”, o “cata caipira” de
apenas dois vagões que ia até Campinas. Da estação tomamos o bonde e
chegamos ao IAC. Feita a compra, as mudas seriam despachadas, com
muitas formalidades, até Currupira. Para vir embora, lembro-me
nitidamente de, esperando na Av.Andrade Neves em frente ao grande
portão do IAC, ver aparecer o bonde que nos levou às proximidades do
Mercado Municipal. Aí comemos um lanche: sanduíche de mortadela com
“Tubaína”, no bar “Pinguim”, ao lado do Mercado. No fim da tarde
estávamos chegando de volta a Currupira. Mais meia hora de caminhada e
à noite estávamos de volta em casa. Nas duas ou três semanas seguintes
fui a cavalo à estação saber se as mudas haviam chegado. Depois de várias
viagens inúteis, finalmente as mudas chegaram. Agora era preciso ir buscá-
las de carroça na estação. Já estavam feitas as vinte covas com muito
esterco e terra boa. As laranjeiras foram plantadas com um cuidado quase
religioso. Eram nossa esperança de um pomar. Todos os dias carregávamos
regadores de água para apressar a tão esperada brotação das nossas
laranjeiras. Finalmente começaram a sair os esperados brotos.
109

Acompanhávamos a cada dia o crescimento de cada um deles. Já


estávamos cheios de entusiasmo com a brotada de todas as vinte jovens
laranjeiras. As covas bem estercadas estavam promovendo uma exuberante
brotada. Numa das manhãs, a decepção: varias tinham sido peladas pela
saúva cortadeira. As delicadas folhas estavam no chão e sendo
transportadas nos “carreadores” feitos pelas saúvas à noite. Nos dias
seguinte, fomos buscar mais formicida “Tatu” e “Quatro Paus”, as marcas
mais conhecidas e encontradas. O Combate que se podia fazer na época era
incapaz de debelar ou mesmo controlar a ação da saúva nos ligares
infestados. Só muito poucos lugares não eram infestados: os brejos ou
lugares cercados por água.Nossa principal “arma “ era um fole movido a
braços que soprava através de um recipiente de ferro onde se colocava
algum ingrediente como borracha para fazer fumaça que era assoprada para
dentro dos “olheiros”(buracos) das formigas. Era um trabalho exaustivo
ficar bombando com o fole até que a fumaça saísse em algum outro
“olheiro”. Aí se tampava o olheiro por onde saíra a fumaça, se retirava o
fole e se derramava formicida. Era o que dispúnhamos como arma mas de
eficiência quase nula. Durante anos, a cada nova brotada as formigas
cortavam as novas folhas, até que as plantas definhavam e morriam.
Durante vários anos mantivemos essa luta, gastando formicida, tempo e
ânimo para plantar. As culturas em pequena escala e com as armas de que
se dispunha, a saúva era mesmo uma grande ameaça, especialmente para o
pequeno produtor. À medida que foram aumentando tanto a escala das
plantações quanto os recursos e produtos para combate à saúva essa
“guerra” foi sendo vencida. Mas, durante muitos anos a saúva foi uma
grande ameaça à pequena agricultura. No caso das nossas laranjeiras,
fomos derrotados. Meu pai alugou uma grande laranjeira caipira de um
caboclo que não se interessava por aquela fruta. Toda semana íamos a
cavalo buscar dois meios sacos daquela produção “alugada”. Também não
havia quem comprasse. O que se produzia também valia pouco, quase
nada.
110

Um jovem matuto

Havíamos chegado a Currupira em meados de 1938 quando eu tinha nove


anos. Cinco anos já se haviam passado. Estes eu havia passado sem
qualquer escola. Ler era impossível. O trabalho nos ocupava a todos de
escuro a escuro. À noite à luz de lamparinas ou, na melhor das situações,
de um lampião também de querosene, o cansaço do dia de trabalho não
dava qualquer chance a qualquer estudo ou simples leitura. Enfim, eu
estava crescendo um verdadeiro matuto. Nos momentos em que eu era
quase dominado pelo cansaço e pela falta de perspectiva, meu pai me
animava com a possibilidade de termos “no futuro” algum progresso onde
eu poderia ter um bom cavalo, com bons arreios. Certamente tanto ele
quanto minha mãe, que sabiam da importância da educação, deviam estar
preocupados com meu futuro. Isso deve ter sido a razão por que em 1942
meu pai tomou a decisão de vender o sítio e voltar com a família para a
cidade onde eu pudesse retomar os estudos apenas começados e
abandonados cinco anos antes. A idéia era vender o sítio de oito alqueires,
“de porteira fechada”, isto é com a safra de uva a ser colhida, animais,
arreios, carroça, tudo. Ele foi a São Paulo para colocar anúncios nos
jornais. O contato com interessados era feito por carta e era preciso ir
buscar as pessoas na estação de Louveira e transportá-las pelos quatro
quilômetros que nos separavam daquela estação, onde paravam alguns
trens vindos de São Paulo. Vários candidatos vieram e, como a visita ao
sítio levava o dia inteiro, ainda era preciso oferecer-lhes, além do
transporte, um almoço. Isso sobrecarregava minha mãe que além de todos
os afazeres, tinha que pegar, matar, limpar, assar e preparar um frango para
almoço de gente “fina” da cidade. Muitos candidatos apenas desfrutaram
do passeio e do almoço, ainda diminuindo nosso estoque dos minguados
111

frangos, reservados para o almoço dos domingos. Finalmente apareceu um


candidato que realmente se interessou e meu pai fechou o negócio por 40
contos de Reis, de porteira fechada. Já era o começo de 1943. O
comprador era um senhor francês que falava mal português com forte
assento de sua origem: Sr. Renè Jaquê, químico mchefe da Rhodia de
Santo André. Como nossa pequena safra de uvas já havia sido colhida, era
hora de fazer as malas para a partida. Já estávamos em março de 1943.
Quando as malas começaram a ficar prontas e visíveis comecei a sentir que
se iam romper fortes laços criados entre mim e aquela vida de muito
trabalho mas de grande liberdade de ação e de espaço. Além dos laços
com aquela vida, aquelas coisas, e aqueles amigos, eu tinha laços com
dois seres que comigo conviviam em quase todas as tarefas do dia a dia e
aos quais, sem me dar conta, eu me afeiçoara profundamente: minha égua
Branquinha e meu fiel e inseparável cachorro, o Duque. Chegou a dia da
partida. Fui dar um último abraço na minha dócil Branquinha. O Duque
não pôde entender minhas lágrimas quando o abracei pela última vez.
Quando eu e minha mãe subimos no cabriolé de meu avô que nos levaria a
Louveira para tomar o trem, ainda olhei para o alto daquela colina. Dei
uma última olhada para aquela que fora a nossa querida casinha. À medida
que nos fomos afastando fui sendo tomado por uma sensação indefinida de
que uma importante página de nossas vidas ia sendo virada. Ainda
passamos pela frente da casa dos Gumiero e pela venda do Finamore. Em
Louveira tomamos o trem. Nessa estação que eu frequentara, chegava
também o trenzinho da Itatibense. Aí ficava o armazém do Bento Cruz, o
bar do Belmiro Niero, a farmácia do Zezinho, a ferraria da família Niero
onde ferrávamos os animais e a cerâmica do Pasti. Tudo ficou para trás.
Quando o trem passou pelo aterro do bairro dos Fernandes ainda pude ver
o nosso vale, a casa dos Ceolim, a casa de meus tios e avós paternos e o
sítio que, mesmo tão familiar, já não era mais nosso. O trem passou em
alta velocidade pela estaçãozinha de Currupira e por aquelas coisas tão
familiares para mim naquele cenário: a venda do Toninho e a igrejinha de
Currupira. Tudo foi ficando definitivamente para trás. Uma página da
minha vida estava sendo definitivamente virada.
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Primeira instalação elétrica e uma grande aflição

Nosso sítio de 40 alqueires havia sido vendido de “porteira fechada”, isto é


com tudo que havia dentro dele, por 40 Contos de Reis. O comprador, um
dos diretores da Rhodia de Santo André havia pago à vista e, mesmo sendo
um preço baixo por ser, era em dinheiro considerável para um novo
começo de vida. Não posso garantir se nos planos de meu pai nossa escala
em São Paulo seria pela dificuldade de se ir direto para o Rio sem medidas
prévias ou se ele contava com alguma possibilidade profissional antes de
nossa volta ao Rio. Era fevereiro de 1943. Fomos morar na rua Padre João,
80, uma travessa da rua da Penha, no alto da Penha. Nossa casa era a parte
alta de um sobrado a que se tinha acesso por uma longa e estreita escada.
Sem demora fui colocado no Colégio São Vicente das freiras vicentinas. O
Colégio ficava bem nos fundos da famosa e concorrida igreja da Penha.
Apesar de contar com água encanada, o fogão era a carvão. Minha mãe
teve que fazer um novo aprendizado para lidar com carvão. Eu tinha o meu
primeiro contato com uma casa com instalação elétrica, depois da primeira
infância até os nove anos no Rio. Agora eu trazia do sítio uma grande
iniciativa em agir e ajudar nas coisas da família. Uma dessas tarefas foi a
de fazer uma instalação de uma luz de cabeceira. Eu já havia observado,
desde o sítio, que as instalações elétricas visíveis que eu conhecia tinham
sempre dois fios. Todas as que eu via eram externas e tinham fios
desencapados. Eu já havia comprado arames para montar um varal.
Também com eles fiz a instalação elétrica, juntando e torcendo juntos os
dois arames que deveriam fazer funcionar o abajur. Quando coloquei os
fios na tomada, aconteceu o inevitável estouro e fogo provocado pelo
“curto” dos dois fios juntos e desencapados. Aprendi então a necessidade
de dois fios porem isolados. Desse aprendizado resultou uma pequena
“invenção” minha. Uma máquina elétrica para matar moscas. Uma caixinha
de goiabada coberta por pares de fios alternados, vindos dos dois fios da
tomada. O açúcar dentro da caixinha atraia as moscas que tinham que
atravessar a rede tocando em dois fios alternados de “positivo” e
“negativo”. As moscas ficavam eletrocutadas “fritando” entre os pares de
113

fios. Embora não tivesse sido fatal para muitas moscas, minha “invenção”
foi importante para mim. Comecei a perceber que tinha que entender coisas
“diferentes”, além do muito que havia aprendido nos anos no sítio, longe da
eletricidade. Eu estava de novo num ambiente urbano mas muito diferente
do que ainda estava em minhas memória de Copacabana.Uma quadra para
baixo da nossa rua, na rua da Penha, havia um grande terreno onde se havia
instalado um grande circo. Durante todas as tardes grandes altofalantes, no
topo dos mastros tocavam os sucessos da época. Havia cinco anos que não
ouvíamos rádio. Especialmente as músicas de Orlando Silva, arrancavam
os suspiros das moçoilas do bairro. Nesse ambiente conheci as primeiras
filas do Brasil, as “filas do açúcar”. Era época da II Guerra Mundial e
muitas coisas estavam “racionadas”. Foi nesse lugar que também fiz dois
amigos de muitas das brincadeiras de rua. Ambos tinham nomes muito
brasileiros: Ubirajara e Ubiratã, o menor. Ambos me ajudaram a vender
nossas tralhas quando, meses depois nos mudaríamos para o Rio. Foi
também nas filas do açúcar que senti pela primeira vez uma paixão
“avassaladora”. Era uma garota chamada Yolanda, maior que eu e que
passava muito garbosa pela nossa rua. Ela ia e vinha de uma rua de terra,
perpendicular à nossa, sem parar e sem olhar para os lados. Quando a via,
já a uma quadra distante, eu ficava tão emocionado e com palpitação que
nunca consegui dizer-lhe nada quando me passava perto, muito menos
falar-lhe sobre minha “paixão”. Esse sentir com essa intensidade também
era uma coisa nova para mim. Eu estava começando a descobrir outras
coisas para dentro de mim. Enquanto isso, meu pai esperava alguma
definição para sua volta a empregos no seu “métier”, a hotelaria, no Rio de
Janeiro, onde ele ainda tinha conhecidos e contatos. No entanto era
preciso dar tempo para refazer tais contatos e negociações que eram feitas
por carta. Ir para o Rio com a família sem ter as coisas já arranjadas era
uma temeridade. Lendo um jornal, lhe chamou a atenção um anuncio para
admissão num cargo de caixa de uma empresa no ramo de metalurgia e
de âmbito nacional. Ele se apresentou e logo foi contratado. Como era
comum na época, em cargos de grande responsabilidade com dinheiro,
exigia-se uma coisa chamada “caução”. A rigor isso se chamava caução
fidejussória. Era um depósito de garantia quando um funcionário
114

manipulava grandes quantias em dinheiro vivo. Meu pai acabava de vender


o sítio à vista e dispunha do dinheiro. Eu não saberia precisar de quanto foi
a tal caução mas sei que era uma parte considerável do que ele tinha
apurado da venda do sítio. Acredito que entre um décimo e um quarto do
total da venda do sítio, entre quatro e dez contos de Reis dos quarenta por
que tinha vendido o sítio. A sede da empresa era luxuosa e ficava no
centro de São Paulo. Meu pai começou a trabalhar. Uma semana depois,
meu pai foi preso com toda a “alta diretoria” da “arapuca” e levado para O
DOPS. A empresa era de fachada e armada por figuras importantes. No fim
da tarde alguém da polícia veio ao nosso endereço e nos avisou, a minha
mãe e eu, que meu pai estava preso no DOPS e que não voltaria para casa.
Ficamos desesperados. Imediatamente minha mãe tratou de saber onde era
o tal DOPS e para lá fomos de bonde. O DOPS, um prédio, cor de tijolo de
aspecto sinistro, bem perto da estação Júlio Prestes. Acompanhei minha
mãe naquele momento de preocupação e aflição, na tentativa de saber e ver
meu pai. Não nos deixaram entrar. Na impossibilidade de entrar, ficamos
da calçada oposta olhando para aquele prédio lúgubre, tentando ver ou
saber algo do que havia acontecido e de como estava meu pai. Não
conseguimos nada. Já noite minha mãe decidiu que invés de voltarmos para
casa fôssemos para a casa de minha tia Elza no Belenzinho. Lá chegamos
já tarde da noite e tivemos que bater e chamar para acordar. Tio Domingos
com cara muito assustada abriu a janela que dava para frente da casa e
logo, apressado, abriu a porta e nos acolheu. Era um momento de grande
medo e aflição. Polícia, especialmente para quem jamais estivera
envolvido com ela, era uma coisa amedrontadora, ainda mais nos tempos
do Getúlio e de sua famigerada polícia desde os tempos do “chefe” Felinto
Müller que entregara Olga, mulher do Prestes, aos nazistas. Meu tio
Domingos era muito generoso conosco mas não lhe ocorria o que se devia
ou podia fazer. A idéia que ocorreu, creio que de minha mãe, foi de
mandar um recado para o tio Nino no Traviú. Mas telefone era uma coisa
rara. Não sei exatamente como mas por vias indiretas por alguém de
Louveira, onde havia um telefone e onde chegava correspondência, minha
mãe conseguiu fazer chegar um recado ao tio Nino. Logo que soube ele
veio à nossa casa em São Paulo e tentou, em vão, chegar até meu pai preso
115

no DOPS. Não conseguindo nada, também aflito e inconformado com o


que acontecia com seu querido e admirado irmão mais velho, ele voltou a
Jundiaí e foi procurar o Dr. Romeiro Pereira, advogado e deputado regional
pelo PSD. Meu tio Nino já era conhecido pelo deputado, pois já
freqüentava mais Jundiaí. Cerca de dois anos antes, meu pai e esse meu tio
tinham estado juntos tratando junto ao Governo do Estado para
possibilidade de conseguir um vagão direto da Central do Brasil que
chegasse a Louveira. Essa conquista beneficiara muito a todos os
viticultores da região pois se evitava que toda a carga de um vagão tivesse
que, em São Paulo, ser transferida para outro vagão da Central do Brasil,
com destino ao Rio. Nessa negociação tinha sido contatado o deputado Dr.
Romeiro que, então conhecia meu pai e sua atuação como fundador da
Cooperativa dos Fruticultores de Louveira junto com o Dr. Otoni,
agrônomo da casa da Lavoura de Jundiaí. Meu tio Nino conseguiu o
contato pessoal com o deputado e pediu sua ajuda. Bastou um telefonema
do deputado e meu pai foi libertado no dia seguinte. Até esse desfecho
feliz se haviam passado cerca de dez dias, tempo em que meu pai dividiu
uma cela com muitas outras pessoas mas não da sua “diretoria”. Só quando
se passa por um dissabor desse tamanho pode-se avaliar o que foi a emoção
da chegada de meu pai em casa. Lembro-me bem de sua imagem, barbudo
e abatido, subindo a estreita escada de nossa casa. Durante muito tempo os
dois, Antonio e Luiza choraram abraçados. Depois nos abraçamos os três.
Seguiram-se horas de relatos, tanto dele na prisão como dela sobre nossas
aflitas peregrinações sem saber como livrá-lo e imaginando o que poderia
estar acontecendo. Enfim era um final feliz, mas sem conseguir reaver
aqueles preciosos contos de Reis da “caução fidejussória”. No dia
seguinte meu tio Nino veio do Traviú e mais uma vez pude testemunhar
sua dedicação, a amizade e a admiração mútua entre aqueles dois, meu pai
e seu irmão(Hilário Caniato). Nas semanas seguinte, com â ajuda de meus
amigos Ubirajara e Ubiratã, vendemos na vizinhança todas as tralhas de
casa, fizemos as malas e fomos para o Rio, mesmo sem novas
confirmações de casa e trabalho para meu pai. São Paulo tinha sido um
“desastre” para nós. Mais uma vez eu interrompia a apenas reiniciada
escola, ajudando a carregar as malas, agora para o Rio de Janeiro.
116

Parte 3
117

Da ampla
liberdade ao confinamento

De volta ao Rio
. O Brasil entrara na Guerra que continuava na Europa e agora se estendia
também ao Pacífico contra o Japão. O Rio de Janeiro também mudara
muito. Havia muito mais gente, especialmente gente fugida da Guerra. Não
se encontrava casa para morar. Por isso fomos morar numa pensão na Av.
Copacabana, esquina da Djalma Ulrich, perto do Posto 5. Era preciso e
urgente que eu voltasse à escola. Eu agora tinha 14 anos. Acompanhei
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meus pais na tentativa de encontrar uma vaga nas escolas da zona Sul.
Todas as escolas estavam lotadas. Fomos ao Colégio Santo Inácio na rua
São Clemente. Não havia vaga mas um dos padres aconselhou meu pai,
diante das dificuldades, a procurar um lugar onde, segundo ele, era
possível encontrar lugar. Era o Colégio Salesiano Santa Rosa em Niterói.
Fizemos a travessia das velhas barcas e fomos para lá, no bairro Santa
Rosa. Havia uma vaga mas somente como interno. Era preciso decidir
imediatamente. Havia gente na fila. Meu pai ponderou sobre nossa
urgência diante de meu jejum de escola e nossa falta de moradia. O padre
prefeito do colégio aceitou com a condição de que tomássemos a vaga
imediatamente. Lá fiquei, só com a roupa do corpo. Longe de casa, ou
melhor, sem casa e longe de meus pais, como nunca havia ficado. Agora
tudo era tão estranho para mim. Eu tinha que conviver tão próximo de
padres e obedecer, sempre em silêncio ou rezando: só se falava nas horas
de recreio e durante algum tempo durante as refeições. A disciplina era
rigorosa. Mesmo às refeições era preciso ouvir em silencio à leitura de
textos “edificantes”. Rezava-se a cada movimento. O imenso dormitório
dos “médios” tinha cerca de 300 camas com seus pequenos armários ao
lado. Nos quatro cantos do imenso espaço ficavam os quatro “assistentes”,
os noviços que nos vigiavam dia e noite. Nunca ficávamos no escuro: o
dormitório ficava durante toda a noite sob uma luz azul. Às seis nosso
“assistente”, um clérigo(noviço) batia palmas e dizia “Benedicamus
Dominum” e todos tinham que responder em voz alta “Deo gratias”.
Depois de lavar a cara, ainda no dormitório, entrávamos em fila, em
silêncio, para a ir todos os dias assistir e participar da missa das sete. Além
da missa diária, com comunhão de quase todos, rezava-se o terço
completo, com todos os “mistérios” e depois se repetia toda a “ladainha”
de Nossa Senhora, tudo sempre em latim. Muitos desse títulos de Nossa
Senhora ficaram em minha memória por toda a vida: “regina angelorum”,
“regina patriarcarum”, “turris ebúrnea”, “turris davidica”, “domus áurea”,
“phoederis arca”, etc. A cada um desses cerca de 50 titulos os cerca de 400
alunos respondiam “ora pro nobis”. Era uma religiosidade que nos invadia
por absoluta saturação, sem chance de qualquer outra idéia e sem qualquer
possibilidade de outra escolha. Aos domingos havia, além da missa regular
119

das sete, a missa das 10, com a presença do público. Era uma oportunidade
de ver, ainda que de longe, gente e se “arriscar” uma olhada para algumas
garotas que freqüentavam aquela missa e nos “tentavam” com alguma
olhada mais marota. Qualquer olhar de uma dessas garotas para o nosso
lado era capaz de causar grande alvoroço de nossas emoções adolescentes
reprimidas. Com olhares aparentemente sedutores, uma dessas garotas, a
Terezinha, fez enlouquecer de paixão a um de meus colegas. Não
resistindo a esses encantos, o “apaixonado” conseguiu pular o muro de um
dos pátios, em busca da sedutora. Ao encontrá-la teve a maior decepção. A
tão desejada “Julieta” não quis nem conversa com o “fedelho”, metido a
Romeu que ganhou um mês de suspensão. O castigo dele foi de ficar em
pé, durante todos os recreios, diante do gabinete do Diretor, durante um
mês. As visitas dos familiares eram aos domingos, depois do meio dia, até
as 5 horas. Minha mãe veio com absoluta regularidade durante os meus
três anos e meio de internato. Alguma roupa, uns biscoitos “Aymoré” e
umas maçãs (só existiam argentinas) eram o contato com o Mundo.

Um pássaro na gaiola.

De repente, da ampla liberdade de movimentos e da grandeza dos espaços


eu estava totalmente confinado e “enquadrado”. Outra vez em minha vida
acontecia um abrupto corte, uma mudança radical. Sofri muito pelas
primeiras semanas. Nos dias seguintes minha mãe veio trazer algumas
mudas de roupa, toalhas e artigos de cuidado pessoal. Era o começo do
segundo semestre de 1943. Vínhamos de Currupira, interior de São Paulo,
onde fazia bastante frio nessa época do ano. No colégio era obrigatório o
uso do uniforme caqui de calças compridas. Mas o uniforme mandado
120

fazer na “Colegial”, na rua sete de setembro, no centro do Rio, só ficaria


pronto depois de duas semanas. Enquanto isso eu permaneci de calças
curtas, e com um blusão marrom trazido de Currupira. As calças curtas e o
blusão logo me valeram um apelido: Gijo, nome de um goleiro da época.
Na divisão dos médios onde fiquei, havia um grupinho de adolescentes um
pouco maiores, mais velhos que eu. Eu chamava muito a atenção pelo fato
de ser o único de calças curtas em meio de uma centena de “médios”. As
primeiras semanas foram de muito sofrimento. Era brutal a diferença entre
a liberdade nos grandes espaços rurais e agora um confinamento tão
rigoroso e com hábitos tão diferentes. Muitas vezes fiquei agarrado às
grades do pátio olhando para o lado da baia da Guanabara. Era exatamente
a sensação de um pássaro que subitamente, depois de voar livre, se vê
preso a uma gaiola. Além dos hábitos de disciplina permanentemente
vigiada havia uma malícia por mim desconhecida e dolorosamente
descoberta. Com meus amigos nos tempos de sítio, também estávamos
descobrindo o próprio sexo. Muitas vezes, conversando enquanto se
chupava montes de laranja lima e laranja cravo, se fazia “concurso de
piroca”:quem tinha pênis maior. Um dos meus amigos fazia até uma
experiência e demonstração bizarra. Enfiava uma haste de um fino capim
pela uretra a dentro para exibir o comprimento de seu pênis, diante de toda
a turma. Nesses tempos, eu não sabia e creio que meus amigos rurais
também não sabiam o que era homosexualidade. Uma experiência muito
me marcou e me deixou alerta no colégio. A comida do colégio era
horrível, o pão era “pão de guerra”, pesado e com um certo azedume
devido à forte presença de farinha mandioca, pois não havia importação de
trigo durante a guerra. Todos viviam uma forte privação na qualidade da
alimentação. Num dos recreios um colega, um pouco maior que eu, que
havia ganho de sua visita um tablete de chocolate, me ofereceu um pedaço
daquela coisa rara. Eu não tive dúvidas em, inocentemente, aceitar. Logo
depois percebi uns rizinhos e uns olhares diferentes de outros colegas.
Aquilo não tinha sido um gesto de gentileza mas sim uma “cantada”. Eu
não sabia da existência desse tipo de relação. Foi para mim um aviso e a
descoberta do clima meio mórbido que se pode estabelecer numa
coletividade de jovens adolescentes. Os hormônios começam a se
121

manifestar e são apenas fortemente reprimidos por permanente saturação


religiosa e vigilância. Abertos os olhos, comecei a perceber relações
estranhas entre um par de colegas: quase “namoros”. Esse par de
“namorados” da minha divisão, a dos “médios”, foi surpreendido na cama
e imediatamente expulso. Esse era um caso extremo e que se tornou mais
que visível, explosivo. E´ muito difícil para um jovem discernir o limite
em que começa o que pode ser ou se tornar de fato um abuso, diante da
forte e repressiva autoridade de seus superiores, ainda mais quando num
clima de afetividade religiosa. Lembro-me também de muito falatório
sobre padres que davam muitos abraços em certos alunos. Era um novo
aprendizado de algo que, em geral não se aprende em livros. Para mim
uma triste descoberta e um alerta, embora não tenha sido sequer,
testemunha ocular de qualquer fato dessa natureza.

Adaptação e estudo.

Se por um lado a privação da liberdade foi inicialmente sofrida, logo,


minha avidez por conhecimento encheu todo o meu tempo. Eu não havia
feito o “primário”, condição para entrar no “ginásio”. Nesses tempos havia
a possibilidade de se fazer o exame de “admissão”. Passei então todo o
segundo semestre de 1943 estudando muito para esse exame. O que me
faltava em pratica de estudo, sobrava-me em vontade de aprender e
aplicação. Eu havia sentido por uma experiência vivida, a importância do
conhecimento. Consegui naqueles seis meses colocar em dia os
conhecimentos para passar no exame de admissão. Grande parte do tempo
dos alunos era passado nas grandes salas de estudos, em absoluto silencio.
Isso foi muito proveitoso e me permitiu tirar o atraso dos anos de jejum
escolar. Em 1944 comecei o primeiro ano ginasial e durante quase todo o
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ano estive em primeiro ou segundo lugar na classificação de minha turma.


No ano seguinte, 1945 eu já estava adaptado às regras do Colégio e até à
sua cultura religiosa. Rezávamos a cada movimento; creio que umas
cinqüenta vezes por dia. Adotei também os valores e hábitos impostos pelo
convívio diário com os padres e com a visão religiosa. Cheguei mesmo a
sentir fervor religioso e me parecia até poder falar com Jesus Cristo e
Nossa Senhora. Fazia comunhão diária e confissão todos os sábados. Além
da rotina de rezar a cada movimento, durante o ano havia um período de
três dias de retiro espiritual. Não se estudava. Rezava-se quase sem parar
ou lia-se biografias de santos ou de vidas edificantes. Vinham padres
pregadores de fora. Alguns eram mesmo grandes oradores e nos deixavam
com a forte impressão de estarmos à beira do fogo e da condenação do
inferno. Numa ocasião fui convidado e aceitei a ajudar o pároco da grande
igreja do colégio, N.S. Auxiliadora a fazer evangelização nas populações
pobres nos morros entre Santa Rosa e Saco de São Francisco. Às quartas
feiras, no fim da tarde vinha um cavaleiro rebocando dois outros pangarés
pobremente arreiados para os evangelizadores, o pároco e eu. Íamos a
cavalo por quase uma hora pelo espigão dos morros de Viradouro, saindo
por trás do grande monumento de N.S. Auxiliadora, na direção do Saco de
são Francisco. Aí o padre era esperado e havia um pequeno grupo de
casinhas muito humildes. Umas quinze pessoas já aguardavam o padre.
Dentro de uma das casas o vigário fazia sua pregação depois de me
entregar um grupo de umas dez crianças, quase todas negras ou mulatas.
Enquanto o padre fazia sua pregação dentro de uma das casas, eu fora dela,
à beira de um pequeno e humilde jardim deveria ensinar aos pequenos “o
que é ser cristão”. Foi minha primeira experiência desse tipo. Aqueles
pequenos olhos negros me fitavam e esperavam a minha palavra. Eu havia
ganho uma medalha de ouro como “campeão” de catecismo mas de nada
adiantaria nem seria em nada entendido se lhes repetisse as coisas que
sabia de cor. Foi uma forma de um bom e suave desafio. Essa catequese
teve várias semanas de duração. Não sei se algo do que eu disse a aquelas
crianças ficou em suas memórias. Na minha ficou uma forte impressão
daqueles pequenos olhos negros que me fitavam e esperavam que eu lhes
dissesse algo. Além dessa atividade de catequese, aprendi a ajudar a missa
123

naqueles tempos em que toda a celebração era em latim, incluindo as


respostas dadas pelo coroinha. Tão integrado eu estava em todas as
atividades que meus superiores me chamaram para elogiar atuação e me
aconselhar a seguir a carreira de padre. Entretanto essa idéia em nenhum
momento me pareceu aceitável.
Apesar da grande privação de liberdade, o período de internato foi para
mim de grande crescimento nos estudos. Tive vários professores muito
bons. Destacaria especialmente um padre, Pe.Heriberto José Schmidt, meu
professor de português. Ele nos fez estudar quase toda a “Gramática
Expositiva” de Eduardo Carlos Pereira. Anos depois, no Colégio Juruena
em Botafogo, já fazendo o “científico”, o professor de português ficou tão
admirado de meu conhecimento de análise lógica por diagrama que pelos
dois anos seguintes me passou com alta nota sem nunca mais me perguntar
nada. De latim também tive como bom professor um padre polonês muito
alto e magro, com cara de caveira e que nos assustava com seu jeito meio
sinistro e destituído de qualquer graça ou sorriso. Tive também um bom
professor de Geografia, Prof. Vieira, com quem sempre tirei notas altas.
Ainda me lembro também do Prof. Vanier, muito sério e exigente que nos
fez conjugar todos os tempos de dezenas de verbos em Frances. Esse
estudo também se mostrou útil e importante para minha futura leitura no
idioma de Voltaire. Tivemos também outro professor de Frances que se
queixava de uma mal que o deixava meio indisposto e o obrigava a tomar
um remédio, uma colher de sopa, durante a aula. Um colega descobriu que
o “remédio” era conhaque. As aulas de história do Brasil ficavam por conta
de um professor muito corpulento e que fazia um discurso triunfalista
sobre o Brasil. Ele contava também as glorias de ser um ardoroso torcedor
do time de futebol Botafogo.

Uma descoberta intrigante


As aulas de Ciências Np colégio se limitavam a estudo do corpo humano
naquelas descrições mais tradicionais: “cabeça, tronco e membros”. Eu
tinha, sem saber por que, uma grande curiosidade por saber como as
coisas funcionam. Nem eu tinha idéia do que fosse Ciência. Eu andava
124

solitariamente pensando como devia funcionar um chuveiro elétrico, por


exemplo. Numa rápida viagem de férias, eu havia estado de visita rápida
com meu tio Américo em Jundiaí. Ele estava fabricando em sua oficina
uma série de pequenos chuveiros elétricos inteiramente feitos por ele. Isso
me havia deixado pensando como seria o funcionamento daqueles
dispositivos. Cheguei a fazer uns esboços em desenho, pensando sobre o
que teria dentro daqueles tubos metálicos que meu tio fabricava e vendia
na vizinhança. Outra coisa que me causara grande impressão eram as
locomotivas a vapor. Depois de muito pensar e fazer algumas perguntas a
um padre amigo, Pe.Daniel Feder, cheguei a entender como a idéia geral
do funcionamento básico. Mas ainda me instigava como devia ser a vávula
para comandar a entrada e saída do vapor do cilindro principal. Fiz muitas
tentativas de esboçar como deveria ser o comando da válvula que regula a
entrada e saída do vapor. Mas não havia com quem trocar idéias sobre isso,
a não ser fazer uma ou outra pergunta quando o Pe. Daniel passava pelo
nosso pátio. Outra coisa que me havia impressionado muito nos anos de
nossa “diáspora” no mato, em Currupira era a beleza do céu estrelado e as
noites de luar. Um outro tio, o Tio Nino, me havia mostrado umas estrelas
e me havia até dado o nome de um grupo de estrelas para onde eu às vezes
olhava. Ele me falou de que aquele grupo se chamava de Orion, mas de
forma muito vaga. Do pátio em que ficávamos em recreio depois do jantar,
já na divisão dos “maiores”, tinha-se uma boa visão do céu e do morro
sobre o qual estava o grande monumento a N.S. Auxiliadora, a padroeira
do colégio.Nas noites de Lua cheia, eu ficava fascinado com a visão da
Lua aparecendo sobre o mato, por trás do grande monumento.Eu queria
registrar aquela coisa que me impressionava. Pensei em fotografar a
Lua.Numa das visitas, pedi à minha mãe que trouxesse a velha maquina
fotográfica marca “Contessa Netel”, de grande fole, de meu pai. Numa
outra visita ela trouxe a máquina.Depois de comprado o filme consegui
colocá-lo na máquina o que já implicava em uma operação que eu nunca
havia feito. Esperei a próxima Lua cheia. Tirei várias fotos. O filme foi
para a revelação e depois de muito tempo chegou a revelação: uma
decepção. Não saiu nada, tudo preto. Fui perguntar ao Pe. Daniel e ele me
deu muito breve explicação. A luz tinha sido insuficiente. Seria preciso um
125

maior tempo de exposição para que a luz pudesse sensibilizar o filme. Para
manter o obturador aberta seria preciso imobilizar a máquina. Com
conseguir isso.Ocorreu-me colocar a máquina dentro de um dos
bebedouros cônicos de latão que havia pelo pátio. Na próxima Lua cheia
eu estava a postos com a máquina. Coloquei-a dentro do bebedouro e
consegui uma posição em que ela ficasse voltada para o céu, na direção da
Lua. O obturador da máquina tinha um ponto “t”(time) com o qual era
possível deixar a objetiva aberta. Apontando e segurando a ´máquina
imobilizada fiz “clic” e segurei o obturador acerto por um tempo, talvez de
um ou dois minutos, antes de fazer o “clac”. Mandei revelar o filme e
esperei alguns dias com grande ansiedade. Finalmente o filme voltou. Foi
ao mesmo tempo uma decepção e uma descoberta. Em lugar da Lua
apareceu uma imagem que maus parecia uma salsicha. No tepo em que o
obturador permaneceu aberto, a Lua óbviamente se deslocou fazendo uma
imagem curva e borrada. Também apareceram pequenos pedaços de arcos
que correspondiam a algumas estrelas que estavam dentro do campo da
objetiva e que entre o “clic” e o “clac” também se deslocaram. Eu acabava
de descobrir a rotação do céu junto com a Lua. Esse fato teve um grande
efeito para mim e me fez pensar no que eu nunca tinha notado: como gira
o céu. Era meu primeiro encontro com um conceito sobre céu e
Astronomia.

Aulas com Villa Lobos.


126

Os anos de vida rural foram também meu primeiro contato mais próximo
com alguma música. Meus três tios tocavam violão. Um deles, o mais
novo, tio Mário tocava também gaita e sanfona de botões. As noites de luar
nos encorajavam e sugeriam nossa reunião em casa de meus avós paternos
e tios. Minha mãe sempre gostou de cantar, como quase todo suíço. Ela e a
irmã Elza, solteiras, cantavam a duas vozes: haviam aprendido isso na
escola ainda na Suiça. Minha mãe ainda solteira já no Brasil,conhecia e
cantarolava o “Quem sabe” de Carlos Gomes. Foi dela que, ainda criança,
ouvi e aprendi essa famosa modinha. Nas noites do sertão fazíamos coro
com meus tios: Luar do Sertão, Tristeza do Jeca, Chuá chuá, Saudades de
Matão, Maringá eram as mais freqüentes a de nosso repertório. Minha avó
paterna também fazia coro com nossas canções mas fazia algum solo,
especialmente com o “mazzolin de fiori”, cantado por todos os vênetos.
Meu pai sempre participava como ouvinte. Embora fosse apaixonado por
música até às lágrimas, era incapaz de uma nota afinada. Ainda antes de
estar “enturmado” com o pessoal do coralzinho na igrejinha de Currupira,
eu já começara a participar das cantorias com meus tios, minha mãe e
Dona Ana, minha avó paterna. Agora, no colégio se cantava durante a
missa. Eu o fazia com grande entusiasmo e achava que tinha voz forte.
Sempre esperei que os padres me convidassem para integrar um pequeno
coral que participava com orquestra em grandes solenidades com “Te
Deum”. Nunca consegui ser convidado para isso. Aquele coral era
integrado por adolescentes “especiais” e muito próximos aos padres. Três
irmãos que eram escolhidos tinham pais espanhóis que cantavam no Coral
do Municipal do Rio de Janeiro. Nesse seleto grupo eu nunca consegui
nada, embora o almejasse. Só consegui cantar próximo à orquestra mas à
margem. Eu ficava tomado de grande emoção e cantava forte mas nunca
consegui ser “descoberto” e menos ainda ser incluído entre os cantores que
tinham o privilégio de ficar junto com a orquestra dirigida pelo Pe.
Virgínio Fistarol nas grandes solenidades em que se cantava o “Te Deum”.
Num certo dia fomos convocados para assistir aulas de manossolfa, o uso
das mãos para representar as notas musicais. Fomos reunidos em grupos
para ter aulas de preparação com os vários assistentes do Maestro Heitor
Villa Lobos. Depois dessas aulas tivemos vários encontros com Villa
127

Lobos, pessoalmente. Esse grande maestro e compositor brasileiro, além


de seu prestígio internacional, era quase o músico oficial do período
Vargas. Além da música erudita, Villa lobos desenvolvia experimentos e
projetos de canto orfeônico com a juventude. Depois de preparados pelos
seus assistentes tivemos então oportunidade de participar dos experimentos
orfeônicos com o grande e excêntrico regente. Além de cantar e fazer
outros ruídos, tínhamos que acompanhar os sons com movimentos
corporais, especialmente de mãos e braços. Antes de cada reunião com
Villa lobos os padres nos faziam mil recomendações de cuidados de
comportamento, considerando o conhecido, impetuoso e desbocado
comportamento daquele maestro. Realmente pudemos testemunhar, não só
experimentos nunca antes feitos nessas proporções no Brasil, como
também as “explosões” temperamentais de um dos mais famosos
compositores do Brasil, reconhecido mundialmente. Além do respeito pela
celebridade tínhamos medo das conseqüências de algum erro que pudesse
desencadear a “ira” do regente. Os experimentos orfeônicos de que
participei sob a regência de Villa Lobos foram realizados num ginásio
coberto, numa praça de Niterói, entre Icaraí e o Ingá. Era a primeira
metade da década de quarente.

Fim da II Guerra Mundial (1945)

Esse ano teve outro evento marcante, memorável: o fim da Segunda II


Guerra Mundial. Em 7 de maio acontecia a rendição da Alemanha nazista.
Em 6 de agosto o bombardeio atômico de Hiroshima. Só depois do
segundo bombardeio, em Nagasaki acontecia o episódio final:a rendição
do Império Nipônico. Lembro-me do repicar dos sinos das igrejas,
anunciando o fim daquela grande tragédia mundial. Quando os pracinhas
voltaram da Itália foram recebidos com um verdadeiro delírio da multidão.
Eu fui com um grupo de outros sete colegiais, em traje de gala, para
participar da recepção aos nossos soldados, os “pracinhas” da FEB. Eles
desembarcaram do navio na praça Mauá, desfilaram em fila indiana pela
av.Rio Branco, em meio à comoção de uma massa humana que chorava, os
128

ovacionava, e abraçava, enquanto os altofalantes tocavam o Hino da FEB


e outros hinos patrióticos. Esse foi um dia histórico, inesquecível de que
fui testemunha ocular. Outro fato que me marcou essa época foi a visita à
mais famosa casa noturna de espetáculos da época no Brasil. Meu pai me
convidou para conhecer o Cassino da Urca, numa noite em que vi alguns
dos mais famosos artistas da época: Grande Otelo e Carlos Ramirez.
Em fins1946 eu acabava o terceiro ano ginasial e completara 17 anos. O
ano havia sido de grande proveito na escola com a “colheita” de várias
medalhas de “ouro”. Eu conquistara várias medalhas pela aplicação nos
estudos e também no estudo da religião, o catecismo. Meu pai que
trabalhava restaurante do Cassino da Urca, a mais famosa das casas
noturnas do Brasil, acabava de perder o emprego. O Presidente Dutra,
numa de suas primeiras medidas, pressionado pela Igreja, fechara todos os
cassinos do Brasil. Felizmente e graças ao seu conhecimento de idiomas,
meu pai foi logo contratado para as primeiras linhas internacionais da
PANAIR do Brasil. Em sua primeira viagem a Buenos Aires ele trouxe
alguns quilos da preciosa farinha de trigo, coisa que já havia tempo não se
encontrava no Brasil. Minha mãe logo fez em casa o pão de trigo, o
primeiro que comíamos depois dos anos de guerra. Meu pai acabava
também de assumir a compra de um apartamento em Botafogo, na rua
Bambina, 180, esquina de São Clemente. Eu não podia mais aceitar, aos
dezessete anos, que meu pai me sustentasse no colégio. Além disso eu
também não suportava mais a vida de colégio interno e ansiava por
liberdade e autonomia. Meus pais entenderam e concordaram que eu saísse
para assumir meus estudos e um trabalho. Nos primeiros dias de dezembro,
encerrado o ano letivo, minha mãe veio para a última visita, ou melhor,
para me levar embora. Eu ia sair do colégio. Ao sair pela portaria do
grande Colégio Salesiano Santa Rosa, de Niterói, eu deixava para trás
outro capítulo de minha história que havia exigido de mim o esforço de
adaptação a outra mudança radical . Agora se abria diante de mim outro
horizonte em que eu assumiria minha vida, meu trabalho e minha vida
pessoal. Nunca a travessia com as velhas barcas de Niterói havia tido
aquele sabor. A brisa do mar sentida no rosto naquela travessia, me
pareceu tão diferente. Senti uma imensa euforia e uma grande embriaguez
129

de vida e de liberdade, como se o Mundo se abrisse de par em par para me


receber.

FIM

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