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Capitulo V Concepces @ propostas de politica social: tendéndas @ perspectivos 1. Significado da politica social ¢ conceitos correlatos Nunca se falou tanto de politica social como nos tiltimos tempos. Nas sociedades contemporaneas, a mengio a esse tipo de politica, asso- ciada aos conceitos de politicas ptblicas, necessidades sociais e direitos de cidadania, tornou-se uma recorrente tendéncia intelectual e politica. No entanto, 0 que chama a atencao nessa tendéncia é que o destaque dado ao social e & dimensio piiblica da politica esté ocorrendo numa épo- ca regida pela ideologia neoliberal em que a politica como indicagéo de governo socialmente ativo e responsivo tornou-se um anacronismo. Portanto, nao deixa de ser curioso que se fale tanto de politica so- cial num contexto que lhe é ideolégico e politicamente adverso, ou que se recorra tanto a essa politica quando mais a sua funcao de concretizar direitos sociais pareca insustentavel. Das varias explicagSes para esse fato, uma, que interessa A discussio desenvolvida neste capitulo, é a imprecis4o conceitual da politica social. ite, nem sempre se tem claro o que o termo significa e caracteristicas e particularidades, A ten 164 POTYARA PEREIRA empregé-lo de forma genérica sem a devida mediacao teérico-concei- tual. Na lingua portuguesa, a situacdo se agrava porque sé ha um vocd- bulo para designar diferentes modalidades de politica, o que torna difi- cil detectar, jA na forma escrita ou pronunciada, a que tipo de politica o vyocdbulo se refere. Isso conduz aqueles que tém por hébito interpretar a0 pé da letra (ou ao pé do vocabulo) conceitos de contetido nao eviden- te, a conferir a politica social um sentido vago, ecuménico ou eclético — quando nao a confundi-la com agées pragmaticas, voluntaristas, clien- telisticas, que ferem direitos. Diante desse fato, nado admira a reserva que alguns circulos intelectuais, ciosos da cientificidade no trato dos temas sociais, mantém em relacao a ela; ou a rejeicdo desta pelos que eoncebem e defendem os direitos de cidadania como parametros de medidas sociais interventoras. Por outro lado, nao admira a utilizagao simplista, variada e até des- virtuada do termo por diferentes experiéncias nacionais. Segundo 0 in- glés Richard Titmuss (1981) — um dos pioneiros no esforgo de, nos anos 1950, conceituar politica social — muitos so os exemplos dessa md uti- lizagao. Os casos mais famosos s&o 0 dos Estados Unidos e 0 da Alema- nha nazista. O primeiro porque, nos anos 1960, produziu centenas de livros sobre o tema da pobreza e do bem-estar social num elevado grau de simplificagéo e sem a menor preocupagao com a melhoria dos servi- gos voltados para os pobres, que estes se rebelaram contra pesquisas acaclémicas e governamentais que os tinham como objeto. Dai nao ser surpreendente que os indigentes (...) e entre estes particular- mente os negros, tenham ameagado acabar com as investigacdes que se realizavam sobre a pobreza, a poluigao ambiental, os programas “pilo- to”, as avaliagGes referentes a participagio da comunidade etc,, [dizen- do}: “vocés conseguiram muitos titulos de PhD e escreveram muitos li- yros a nossa custa. O que conseguimos com isso”? (Titmuss, op. cit.: 18) Na Alemanha nazista, a situagao foi mais chocante. Hitller denomi- ‘nou de “politica social” experimentos criminosos em “enfermos, doen- fea mentais, judeus ¢ outros grupos étnicos, coma finalidade de submeté= POLITICA SOCIAL 165 los a investigacdes médicas, esteriliz4-los e envid-los 4 camara de gas” (Titmuss, p. 32). Por tudo isso, chega-se a conclusao de que, se nao é facil conceituar e definir politica social (Titmuss, 1981; Romero, 1998) — porque existem tantas definigdes quantos autores ou atores que tentam compreendé-la e colocé-la em pratica — torna-se imperioso fazé-lo sob pardmetros nao apenas cientificos, mas também éticos e civicos. Até porque a falta de definig&o coerente e consistente (embora nao absoluta) do que seja poli- tica social, afeta substancialmente nao sé a credibilidade e a razdo de ser dessa politica como politica de fato, mas também a vida em sociedade. Afinal, nao se deve esquecer que, mediante a politica social, é que direi- tos sociais se concretizam e necessidades humanas (leia-se sociais) si0 atendidas na perspectiva da cidadania ampliada. A importancia histérica dessa conclusio, forjada secularmente pe- los movimentos democraticos, deita definitivamente por terra o espon- taneismo no trato da politica social. Além disso, revela a imprescindibi- lidade da elaboracao do conceito e da teoria referentes a essa politica, visto que, sem este instrumental gnosioldgico, ela nao tera inteligibili- dade. Ou melhor, ela nao ser4 dotada de consciéncia da realidade em que deve atuar; nao possuira proposicdes explicativas das leis empiri- cas dessa realidade e nem poder informar, com conhecimento de cau- sa, a prética que Ihe compete realizar. Mas conceituar e definir politica social implica reconhecer que exis- tem paradigmas ou estatutos epistemolégicos competitivos e rivais co- locados & disposicéo desse processo — ja que nao ha unanimidade no campo do conhecimento, principalmente nas ciéncias sociais — e que é preciso eleger um deles. Quando Titmuss falava da dificuldade de se definir politica social, ele queria chamar a atengio para o fato de que, por tras de cada defini- cao circulante, havia — como de fato ha — ideologias, valores e perspec- tivas tedricas competitivas. Com isso, ele queria também lembrar que nao ha politica neutra, nem mesmo a social, 0 que coloca, de pronto, a necessidade de se eleger a perspectiva tedrica pela qual a compreensio da politica social devera se pautar. ROTYARA PEREIEA Nos capitulos anteriores deste livro, ja ficou clara a perspectiva pela qual a politica social sera aqui considerada. Trata-se daquela que apreende 88a politica como produto da relagao dialeticamente contraditéria entre eslrulura e historia e, portanto, de relagdes — simultaneamente antagd- Hieas e reciprocas — entre capital x trabalho, Estado x sociedade e princi Pios da liberdade e da igualdade que regem os direitos de cidadania. Sen- do assim, a politica social se apresenta como um conceito complexo que iio condiz com a idéia pragmatica de mera provisao ou alocagao de decis6es tomadas pelo Estado e aplicadas verticalmente na sociedade (como entendem as teorias funcionalistas). Por isso, tal politica jamais podera ser compreendida como um processo linear, de conotacdo exclu- sivamente positioa ou negativa, ou a servico exclusivo desta ou daquela classe. Na realidade, ela tem se mostrado simultaneamente positiva e Negativa e beneficiado interesses contrarios de acordo com a correlagao de forgas prevalecente. E isso que torna a politica social dialeticamente contraditéria. E é essa contradicéio que permite A classe trabalhadora e ‘0s pobres em geral também utilizé-la a seu favor. Dada essa caracteristica complexa e contraditéria da politica social, cla pode, de fato, assumir varios papéis, mas sem que estes deixem de se guiar por um paradigma comum, Modernamente, como esclarecem Alcock (1996) e Baldock et all, (1999), a politica social se refere tanto a uma disciplina académica, que é estudada em estabelecimentos de ensino, quanto ao contetido dessa dis- ciplina, Ademais, ela é identificada. como uma politica de aco, que tem perfil, fungdes e objetivos prprios e produz impactos no contexto ém que atua. Neste tiltimo caso, ela tem forte trago empirico, embora nao se reduza a ele, visto que, como politica, ela também 6 fruto de escolhas e de decisées definidas nas arenas conflituosas de poder. Trata-se, portan- lo, a politica social, de uma categoria académica e politica, de.constituicao teGrica e pratica, que-néo apenas se dispde a conhecer e explicar 0 mun- do real, mas também a agir neste mundo, visando mudancas. Como disciplina académica, a politica social se inscreve, institucio- falmente, no Ambito das chamadas Ciéncias Sociais, de par com outras VOUICA SOCIAL ™ disciplinas como a Sociologia, a Ciéncia Politica, a Economia, 0 Servigo Social, embora transite’ por todas elas, dado o seu cardter inter e multi- disciplinar. Ser uma disciplina, porém, tem suscitado debates e questio- namentos sobre 0 que efetivamente a constitui e como ela pode ser assim definida. Esta foi uma questao levantada na Gra-Bretanha quando, in- clusive, a politica social deixou de ser identificada com a Administragéo Social (Social Administration)* e passou a ganhar maior densidade teéri- co-metodolégica. Entretanto, como diz Alcock, a questo levantada nao tem sido s6 académica, mas também politica, como pode ser exemplifi- cada com o seguinte fato: no inicio dos anos 1980, 0 governo conserva- dor inglés, sob influéncia da Secretaria de Estado de Educacao e Ciéncia, deu énfase as investigagdes de cunho politico-social numa tentativa de mudar a tradicional énfase econdmica das pesquisas governamentais. A persisténcia do debate em torno do status da politica social como disciplina académica e, portanto, integrante do que, na lingua inglesa, denomina-se policy science? nao tem, contudo, sido negativa. Pelo con- trario, 6 por meio desse debate que 0 conhecimento teérico no seu ambi- to (da politica social) tem avangado e propiciado nitidez as suas relagdes com as demais disciplinas, tanto no que se refere as influéncias que de- Jas recebe quanto As que sobre elas exerce. Isso permite admitir que a politica social, apesar de ser inter e multidisciplinar, pode ter conceitos, contetidos e vocabuldrio proprios, bem como desenvolver pesquisas 1. Transitar nao significa ser transversal, pois a presenga da politica social nessas disciplinas, quando ocorre, se dé por dentro, de forma vertical ou horizontal, e n4o obliqua. 2, Enfoque pragmitico e reformista criado na Gra-Bretanha no rastro da tradicio de protegao social inaugurada por William Beveridge, nos anos 1940, ¢ seguida por grandes expoentes da poli- tica social britaniea, que lecionaram na London Scholl of Economics, dentre os quais © proprio ‘Titmuss. Nos Estados Unidos, este enfoque foi adotado sob a denominagao de politica social, proble ‘mas sociais ou bem-estar social (Mishra, 1989: 3). 3, Esta denominag&o foi criada por Harold Lasswell e outros autores, nos Estados Unidos € Ait Gra-Bretanha, para designar uma ciéncia da policy, isto é, da politica como ago, em contrapasigan 0s tradicionais estudos politicos focados nas dimensdes normativas ou morais dos goveHOh Git nas operagées de inslituicées politicas especificas. Com esta denominacao, esperava-se Inteyrar estudos da teoria politica com a pratica politica, sem cair na esterilidade dos estudos fF) : legais (Howlet e Ramesh, 1995: 8-9). 168 POTYARA PEREIRA reflexes auténomas. Por sinal foi o debate em torno dessa sua particular configuracao que desencadeou, segundo Alcock, o seu afastamento, nao sem conflitos, da Administracao Social, assim como mudancas concei- tuais e politicas que lhe afetaram significativamente. Dentre essas mudangas, ressalta a que concorreu para o estabeleci- mento da distingao entre politica social como disciplina, dotada de saber proprio, e politica social como campo de estudo e agao de pesquisadores © profissionais de diferentes formagdes. Esse fato, por sua vez, abriu flanco para disputas externas, com as disciplinas tradicionais, visto que varias delas nao a reconhecem como um saber particular ou a disputam como area ou setor especifico. Em relagao a esse debate, muitos consideram que a diferenca entre isciplina académica e campo de estudo é mais semantica do que con- evitual, no que, com base em Alcock), passa-se aqui a discordar. Como disciplina, hé a possibilidade de a politica social ser dotada de um corpo de conhecimento especializado, constituido por meio de tum processo continuo e sistemdtico de elaboragao tedrica, informado pela empiria e pela pratica politica — 0 que s6 pode ser possfvel com a tealizacao de pesquisas e producao de conhecimento que delimitem num todo organico complexo as suas particularidades. Jé como um campo de estudo ou agio, a politica social s6 pode ser considerada uma eventual fonte de fatos e informagées, ou um Iécus de atuacées, nos quais cada interessado recolhe ou faz o que lhe interessa, tendo como base Bhosiolégica a da disciplina a que pertence. E isso, obviamente, tem Implicagdes praticas sérias porque a politica social como politica de acao deixa de ter um referencial tedrico-pratico proprio e conexo as diferen- tes especialidades, sem interferir na natureza destas. Ao reivindicar ser disciplina académica, a politica social rompeu fom © voluntarismo e a fragmentagéio de seu uso, assumindo um corpo de conhecimento e agao particulares, que nao a atrela a nenhuma outra diseiplina social. Da mesma forma, e como j4 indicado, ro! com Ailininistragdo Social — com a qual, na Europa, e particular - POLITICA SOCIAL 169 Bretanha, ela se confundia — visto que, conforme Mishra (1989), a Social Administration apresentava as seguintes limitagoes: a) Era mais um campo do que uma disciplina. Portanto, nao possuia um puzzle ou um quebra-cabeca central que exigisse desvenda- mentos analiticos ancorados em teorias, pesquisas e metodolo- gias apropriadas; b) Era marcadamente pragmatica, empirica e prescritiva, mostran- do-se mais afeita a estabelecer automatica correlagao entre ne- cessidades sociais e prestacdo de beneficios e servigos, sem me- diagao teérica; c) Tinha um escopo de estudo e ago localizado, nacional, nao es- tabelecendo comparacées com experiéncias internacionais; d) Privilegiava as politicas sociais governamentais, estatutérias, em detrimento da relacao destas com iniciativas da sociedade (mer- cantis endo mercantis). Disso resultou a distincao que hoje em dia se faz entre politica social como politica de ago (policy) e administragao de agées politicas, que nem sempre tem a ver completamente com a Social Administration. Mas tal dis- tingdo torna-se necessaria justamente porque a politica social foi durante muito tempo associada a administragao de beneficios e servicos numa clara aluséo de que, 4 semelhanga do gerenciamento assumido pela Social Administration, a ela bastava engenho técnico e racionalidade operativa. Efetivamente, a administragio de acées politicas, “se preocupa com a execucgao de decisées j4 tomadas (...) 0 que requer precisa, estabilida- de e controle” (Lafer, 1978: 44), enquanto a policy, para além da execugao, implica escolha e tomada de decisio de atos que envolvem interesses, riscos e conjuntura (Lafer). Assim, embora a administragao possa con- trolar as policies (politicas de agao) em nome da eficiéncia e da eficacia, ela nao se confunde com estas. E nao se confunde porque, enquanto a politica social expressa, preponderantemente, uma representacao de in- teresses tecida a partir de complexas escolhas e tomadas de decisao, a administragio consiste na aplicagao e controle racionais de decis6es ja 10 — VOTVARA PEREIRA ' definidas. f dbvio que tal distingdo nao nega o fato dea policy ea admi- jilstyagdo se influenciarem mutuamente, Pois toda decisao ao ser coloca- ‘da em pratica afeta a conjuntura, requerendo novas decisées a serem Heridas pela administracao, Por isso, politica social e administragao an- dam juntas, mas nao significam a mesma coisa. ___ Sao associagées desse tipo que tém levado autores, que nao conce- ‘hem a politica social como disciplina, a falar de tenses no seu ambito Fiskine (1998), por exemplo, ressalta a tensao existente entre a andlise ¢ pritica da politica social. A andlise, diz cle, requer ceticismo, enquanto PYitica requer convicgao. Os que estudam politica social, afirma o refe- autor, tem que se guiar por evidéncias; mas a aplicagéo dessa poli- por mais racional que pretenda ser, envolve crencas e tomadas de Wtido que a ciéncia nao pode resolver. Entretanto, pode-se argumen- ue essa tensao nao é exclusividade da politica social e que valores ¢ ‘engas estado presentes nas atividades humanas, até mesmo nas cienti- fleas, Nao €por outro motivo que se diz que a ciéncia nao é neutra e que No seio da ciéncia convivem teorias em disputa. Quanto a matéria, ou ao objeto de conhecimento e ac&o que particula- Hizam a politica social como disciplina, existem — como nao poderia geixar de ser — numerosos entendimentos. Mas todos convergem para # idéia de que ela, embora incidindo no objeto das demais disciplinas Sociais, apresenta distingdes em relacao a estas. Assim, para exemplifi- fat, e recorrendo mais uma vez a Alcock (p. 4), vale lembrar que, en- quanto a sociologia esta mais interessada em explicar as circunstncias Sociais e individuais em que a politica social se da, esta politica tem um Ptopésito que ultrapassa essa explicagdo, qual seja: 0 de desenvolver e implementar agdes com vista a influir nessas circunstancias. De outra Parte, enquanto a economia se interessa em conferir a influéncia da po- Hitica social na producao de bens, riquezas e servicos, a politica social se Interessa em detectar a sua propria influéncia sobre 0 bem-estar dos ladaos, traduzido no acesso efetivo A satide, & educacéo, A moradia, 0 emprego, a seguranga alimentar, ao amparo A infancia, A velhice, a PIViGOs sociais pessoais, dentre outros. Entretanto, nunca é demais cha- ‘Mara atencao para o fato de que as fronteiras que separam essas disci- POLITICA SOCIAL we plinas silo moveis e permedveis a influéncias reciprocas. E que “o este do da politica social nado pode se separar do exame da sociedade como um todo, no conjunto de seus variados aspectos [hist6ricos, culturais] sociais, econémicos e politicos” (Titmuss, p. 16). Ou, em outras palavras, a politica social nao pode ser discutida e conceituada num vazio social (p. 17). Ademais, é importante reter que, por mais significativas que tenham sido as mudangas na natureza e no contetido da politica social, nos tilti- mos trinta anos, ela nao se desenvolve de forma homogénea em todos os paises e nem esté livre de descontinuidades ou retrocessos. No que diz respeito a sua configuracao como politica, é util enfati- zar que a politica social se coloca e se inscreve num proceso que ultra- passa os momentos de escolha e de tomada de decisao classicamente estudados pela ciéncia politica. Seu relativo diferencial em relagao a esta disciplina reside no fato de que a politica (de conotacio social) se ex- pressa fundamentalmente como um principio para a ago —incluindo, é claro, 0s momentos conflituosos de escolha e de tomada de decisao, que \ fazem parte de qualquer politica. Como afirma Titmuss (p-28), a politi ca social refere-se a principios que governam atuag6es dirigidas a fins, com 0 concurso de meios, para promover mudangas, seja em situacoes, |") sistemas e praticas, seja em condutas e comportamentos. Isso quer dizer que 0 conceito de politica social 56 tem sentido se quem a utiliza acredi- tar que deve (politica e eticamente) influir numa realidade concreta que precisa ser mudada. E com base nesse comprometimento que Alcock (apud C. P. Pereira, 2006), numa elogiiente reflexao acerca da pobreza, realca 0 cardter politico e ético da politica social, nestes termos: 0 sim- ples fato de estudar pobreza jé requer do estudioso (da politica social) compromisso com a sua erradicacao. Por isso, a pobreza nao deve ser apenas um objeto de estudo, mas também de intervengio. Conclui-se, portanto, que apesar de 9 termo politica social estar relacionado a todos os outros contetidos politicos, ele possui identidade propria. Refere-se a politica de agio que visa, mediante esforco organiza- do e pactuado, atender necessidades sociais cuja resolugao_ultrapassa a iniciativa privada, individual e espontanea,-e-requer. deliberada decisio coletiva regida por princfpios de justica social que, por sua vez, devem is POTVARA PEREIRA "Set amparados por leis impessoais e objetivas, garantidoras de direitos ‘Trataese, pois, do que, na lingua inglesa, é grafado como policy para dife- Tenelar de politics (referente aos temas classicos da politica, como elei- #0, Voto, partido, parlamento, governo) e de polity (forma de governo Ou sistema politico). Portanto, se na lingua inglesa os diferentes signifi- alos cle politica ja estao especificados graficamente, na lingua ale Hllesa tem que se ter o cuidado preliminar de qualificé-lo para evitar fonfusdes conceituais e analiticas. Contudo, a politica social esté inex- trineavelmente telacionada ao Estado, governos, politicas (no sentido dle politics e de polity) e aos movimentos da sociedade. Em poucas pala- Vrs, ela envolve 0 exercicio do poder praticado, onichahtateniedte Per individuos, grupos, profissionais, empresarios, trabalhadores, entre Varios segmentos sociais que tentam influir na sua constituigéo ff dire- io (Manning, 1999), Com essa caracterizagio, fica claro que a politica social assume uma fHHeEPSao que levanta, conforme Miller (1999: 5), pelo menos as seguin- ten Muestoes: a) embora 0 termo policy signifique basicamente cin para acto, o termo social, que a complementa, qualifica a acio a ser de- fenvolvida e os requerimentos indispensaveis a satisfacdo de deman- Has © necessidades. Disso resulta que 0 termo composto polftica social, longe de ser a mera soma de um substantivo com um adjetivo, achat uma area de atividade e interesses que requer: conhecimento do alvo A miingir, estratégias ¢ meios apropriados para_a consecucao, da politica Beaetzacio, amparo legal e pessoal capacitado; b) apesar de nem cent ‘Pie a politica social produzir bem-estar, este 6 de fato o seu fim ultimo Tal concepgao pauta-se por uma vis&o que, considerando a socie- tle como uma macroestrutura em tensa relagio com Estado, difere de ‘fas concepgées que identificam a politica social como mera regula- Social e distribuigao de recursos entre cidadaos, visando ao seu bem- Isso porque a politica social tem que ser vista como uma politica FOLFTIEA SOCIAL vw que, antes de interrogar sobre os recursos a serem distribuidos, leva em. conta as posigdes desiguais dos cidadaos na estrutura de classes da s0- ciedade, Em conseqiiéncia, a concepgao de politica social deve também contemplar o conhecimento de como se criam as necessidades e de como estas se distribuem, com 0 objetivo de modifica-las. ‘Ao contemplar todas as forcas e agentes sociais, comprometendo 0 Estado, a politica social se afigura uma politica piiblica, isto é, um tipo, dentre outros, de polftica puiblica. Ambas as designagées (politica social e politica ptiblica) sao policies (politicas de aco), integrantes conhecimento denominado policy science, 6 que a politica social. espécie do género politica priblica (public policy). Fazem parte desse géne- ro relativamente recente‘ na pauta dos estudos politicos, todas as politi- cas (entre as quais a econémica) que requerem a participagao.ativa do Estado, sob o controle da sociedade, no planejamento e execugao de pro- cedimentos e metas voltados para.a satisfagao de necessidades sociais. Logo, pelo fato de a politica social ser uma politica publica, faz-se neces- sdrio definir 0 termo piiblico que a qualifica. uma De acordo com a perspectiva nao estatista aqui adotada, o termo miblico, associado a politica, nao é uma referéncia exclusiva ao Estado. Refere-se, antes, a coisa piiblica, do latim res (coisa), publica (de todos), ou seja, coisa de fodos, para todos, que compromete todos — inclusive a lei que est acima do Estado — no atendimento de demandas e necessida- 4, Segundo Howlett e Ramesh (p. 2), a politica puiblica, como parte da policy science, surgiu nos Estados Unidos e na Europa no segundo pos-guerra, quando estudiosos dos assuntos politicos procuravam entender a dindmica das relagoes entre govenos ¢ cidadaos, para além das tradicio- nais dimensdes normativas e morais. Contudo, como informam Meny e Thoenig (1992), as preacupa- ‘c0es iniciais desses estudiosos nao eram de ordem teGrica. Privilegiando métodos empiricos, trans- formaram a politica publica num campo dominado por economistas. Estes, ao se interessarem exclusivamente pelas varidveis econémicas, relegaram a segundo plano fatores politicos como ins- tituigdes, partidos, eleigdes. No entanto, a batalha de paradigmas que, a partir daf, se estabeleceu entre determinagdes econdmicas e politicas na produgao da politica publica, permitiu a esta signi- ficativa modificagio. Ela passou a ser concebida como variavel independente, capaz, de determl- nar politica (politics), trazer a luz a participacao de atores estratégicos na sua produgao requerer teorias politicas e sociais para a sua explicagao. Além disso, ela propiciou um novo olhar sobre ai agdes do Estado na sua tensa relagéio com a sociedade. V4 POTYARA PEREIRA des sociais, sob a égide de um mesmo direito e com 0 apoio-de uma comunidade de interesses. Portanto, embora a politica piiblica seja re- gulada é freqiientemente provida pelo Estado, ela também engloba de- mandas, escolhas e decisées privadas, podendo (e devendo) ser contro- lnda pelos cidadaos. Isso é 0 que se chama de controle democrittico. Politica ptiblica expressa, assim, a conversao de demandas e deci- sOes privadas e estatais em decisdes ¢ agdes piiblicas que afetam e com- prometem a todos. Trata-se, no dizer Lafer (1978), da integracao da polt- fica inter-partes com a politica super-partes. Por ser priblica (e nado pro- priamente estatal ou coletiva e muito menos privada), ela, assim como lodas as suas espécies (ai incluida a politica social), tem dimensao e es- copo que ultrapassam os limites do Estado, dos coletivos ou corpora- GOes sociais e, obviamente, do individuo isolado. Por isso, 0 termo “pu- blico” que a qualifica como politica tem um intrinseco sentido de univer- sulidade e de totalidade. Esta concep¢ao contraria a idéia corrente de que a politica ptiblica, para ser duradoura e sobreviva a diferentes mandatos governamentais, deva se transformar em “politica de Estado”, por oposigao a “politica de poverno”, Contraria porque 0 que garante a inviolabilidade de uma politica é o seu carater ptiblico — que nao é monopélio do Estado — assentado na sua legitimidade democratica e na sua irredutibilidade ao poder discricionério dos governos. Logo, toda politica ptiblica compro- mete sim o Estado, na garantia de direitos; mas compromete também a Sociedade na defesa da institucionalidade legal e integridade dessa poli- tied ante os seguintes eventos: assédio de interesses particulares e parti- lirios; clientelismo; calculos contabeis utilitaristas e azares da econo- jin de mercado, Sendo assim, a realizagao de tal politica exige e reforca constituigio de.esferas publicas, isto 6, de espacos de todos (e nao de Wvguém, como também é entendido), nos quais a liberdade positiva seja \dligao basica para: a participacao politica e civica; 0 exercicio da auto- wmnia de agéncia e de critica; e a pratica responsdvel de direitos e deve- fes, Trata-se, por conseguinte, a esfera. publica, de um Iécus construido, ial e historicamente, na interconexdo da relagio entre Estado e socie~ POLITICA SOCIAL 175 dade; e, como tal, apresenta-se como um campo de conflitos @ negoela- Ges em que se entrecruzam demandas diferenciadas e se teeem delibe- rag6es baseadas em “parametros ptiblicos que reinventam a politica no reconhecimento de direitos” (Telles, 1999: 163). Por liberdade positiva entende-se, com Plant (2002; 1998), a capacida- de objetiva de acao dos cidadaos que, para tanto, devem contar con) meios materiais e politicos institucionalmente garantidos. Trata-se, as~ sim, de algo que compromete o Estado e a sociedade na sua consecugao, exigindo a mediagao de politicas puiblicas. Esse tipo de liberdade difere da liberdade negativa, prezada pelos liberais classicos e contemporaneos, para quem os individuos deverao agir livres de compulsao, coersio, interferéncias e uso de forca fisica, mas também de qualquer ingeréncia ou acdo protetora do Estado. Neste caso, a liberdade afigura-se, como diz Plant, um direito mal concebido que nivela equivocadamente a possibilidade de agir com a capacidade de agir, visto que ninguém pode, com seus préprios meios, fazer tudo o que é livre para fazer. A esse respeito, pergunta Plant: 0 que dizer da liberdade que tém os pobres de ir e vit, se ndo dispdem da capacidade financeira de se locomover para além dos seus limitados ambientes de vivéncia rotineira? Daf a importancia, enfatiza o autor, de se fazer a dis- tincdo entre possibilidade e capacidade de agir, ao se usar 0 conceito de liberdade como direito, 0 que vai confrontar a liberdade positiva — que supée atengio ao principio da igualdade social — com a liberdade negati- va, que considera a desigualdade um fato natural, de responsabilidade pessoal e, por isso, dispensa (nega) a protecao ptiblica. Indo mais além nas principais distingdes entre instituigdes, proces- sos e formas de atividades no ambito da politica social, 6 valido rever sinteticamente a diferenga entre politica social e Estado de Bem-Estar ou Welfare State, j4 tratada no primeiro capitulo deste livro. Para Mishra (1995: 123) politica social (social policy) & um conceito mais amplo, comparado ao Welfare State, pois este tem uma conotagao historica (0 segundo pés-guerra) e institucional (0 Estado capitalista re- gulador e provedor de beneficios e servigos sociais, de inspiragio 176 POTYARA PEREIRA keynesiana) que nao pode ser ignorada. Com isso ele quer dizer que, _ enquanto a politica social é uma politica de agao que antecedeu o perio- do do segundo pés-guerra e se desenvolveu, historicamente, sob a dire- gio de diferentes formas de Estado, o Welfare State nao. O Estado de Bem-Estar é basicamente uma instituigéo do século XX, caracterizada por um tipo de relagao entre Estado e sociedade, antes inexistente, regida por princfpios que, fazendo jus as reivindicacées sociais da 6poca, inspi- raram os seguintes objetivos e politicas: extensao dos direitos sociais, oferta universal de servigos sociais, preocupagao com o pleno emprego © institucionalizac&o da assisténcia social como rede de defesa contra a pobreza absoluta e meio de garantir a manutengao de padrdes minimos dle atencao as necessidades humanas basicas (Mishra). E neste sentido que as politicas sociais do Welfare State tém uma forte identificagao com © conceito de cidadania, diferentemente das politicas sociais das Leis dos Pobres (Poor Laws), por exemplo, instituidas desde o século XIV, e que, apesar de constituirem um sistema de protecao estatal, nao assegu- ravam direitos. Pelo contrario, a historia registra que as Leis dos Pobres, idas e desenvolvidas na Gra-Bretanha sob 0 patrocinio de diferen- tes governos monarquicos, tiveram como motivacio basica o medo da desordem social — em decorréncia do aumento da pobreza — e como objetivo principal a repressdo a “vagabundagem’”. Mais tarde, mesmo reconhecendo a existéncia de pobres incapazes de trabalhar, ao lado de desempregados dos clasificados como preguicosos, as Leis dos Po- bres n&o conceberam a politica social como um dever do Estado. Os pobres impotentes para o trabalho eram estigmatizados pela propria "politica social que os tratava como intiteis. Acrescente-se a isso 0 fato de exsas politicas sociais nao obedecerem a planos consistentes e duradou- ¥os de atencao social, apresentando, por isso, flagrantes improvisagées @ versatilidades. ica claro, portanto, que os princfpios e critérios que informaram {44 politicas sociais nos séculos que antecederam o Welfare State, ndo con- diziam (embora ainda hoje existam) com a concepgao de bem-estar do século XX, conhecido como o século dos direitos sociais. E que, apesar do Welfare State ser também contraditério e de dificil conceituagio, é as POLITICA SOCIAL " possivel identificar, na pratica, aspectos que o diferenciam do padriio de “bem-estar anterior”, Nas palavras de Fraser (1984), o Welfare State é um sistema de organizacao social que procura restringir as livres forgas do mercado em trés principais direges: a) garantindo direitos e seguranga social a grupos especificos da sociedade como criangas, idosos e traba- Ihadores; b) distribuindo, de forma universal, servicos como satide e educagiio; e c) transferindo recursos monetérios para garantir renda aos mais pobres, face a certas contingéncias como a maternidade ou a situa- ces de interrupgao de ganhos devido a fatores como doenga, pobreza e desemprego. A historia recente da politica social refere-se, basicamente, a essas ités direcdes, sendo que nem sempre elas tém sido assumidas exclusi- vamente pelo Estado. A ingeréncia maior do Estado nesses direciona- mentos deu-se a partir dos anos 1940 no rastro de varios acontecimen- tos, que exigiram intervencao organizada dos poderes piblicos, a saber: asegunda guerra mundial; a prosperidade econémica de pés-guerra; 0 surgimento do fascismo; a ameaca do comunismo; o fortalecimento da classe trabalhadora, dentre outros. E por isso que autores como Gough (1982) e Offe (1991) percebe- ram 0 Welfare State como um sistema de protegao social contraditério, porque, tal como a politica social, ele atende ao mesmo tempo interesses contrarios. Ademais, sustenta Gough, o Welfare State nao surgiu desgar- rado de determinagées econémicas e politicas, caracterizando-se como produto de um longo processo que abarca mais de 100 anos de confli- tos de classes (e, portanto, entre imperativos da rentabilidade’ econd- mica privada e demandas das necessidades sociais) e mais de 50 anos de desenvolvimento de servicos sociais conquistados por movimentos democraticos. Finalmente, dois importantes esclarecimentos precisam ser presta- dos a respeito do Welfare State: a) o termo bem-estar (welfare) acoplado & palavra Estado (State), nao significa necessariamente que um Estado assim qualificado garan- ta, de fato, bem-estar a todos, especialmente aos mais necessitados, Os 178 POTYARA PEREIRA modernos Welfare States s4o assim denominados nao apenas porque fa- zem parte dos modernos Estados-nagao, mas também — vale lembrar — porque 0 arcebispo inglés William Temple assim os denominou como um contraponto ao Estado beligerante nazista, da Segunda Grande Guer- 1a, vislumbrando 0 nascimento de um Estado de paz a partir da recons- truco européia pelos aliados (Pierson, 1991; 102). Logo, onde hé um Estado de Bem-Estar funcionando nao significa que ali deva haver auto- maticamente inquestionvel bem-estar social. E por isso que convém fazer a distincao entre a instituigéo denomi- nada Estado de Bem-Estar (Welfare State) e o processo denominado bem- estar social (social welfare). Como ja assinalado, 0 Welfare State 6 a institui- Gao encarregada de promover o bem-estar social, enquanto o social welfare 6 resultado de uma agao politica que confere efetivo bem-estar a indi- viduos e grupos. Em particular, o bem-estar tem estreita relagdo com a politica social visto que a esta compete garantir & populagao niveis de renda e acesso a recursos e servicos basicos, impedindo-lhe de cair na pobreza extrema, no abandono e no desabrigo. William Beveridge, no seu famoso Relatério de 1942, j4 associava 0 bem-estar ao combate de cinco gigantes (miséria, doenga, ignorancia, ociosidade, insalubridade) por meio das politicas de seguro social, satide, educagao, emprego e habitacao). Nota-se a partir dessa distincao que 0 conceito de bem-estar social, comparado ao de Welfare State, é factualmente mais consistente, pois, ao contrario deste, nao é um rétulo criado com base numa aspirac4o, mas 0 resultado de politicas realizadas em contextos sdécio-culturais particula- tes, Isso tem estrita relagéo com o segundo esclarecimento a seguir. b) o Welfare State, no seu funcionamento, varia de um contexto na- cional para outro; ou seja, nao hé um modelo tinico de Welfare State que possa servir de paradigma geral. Sendo assim, ha Estados de Bem-Estar que promovem satisfatorias condigdes de bem-estar social e outros que, apesar do nome, dos gastos despendidos e das acdes sociais realizadas, nfo apresentam o mesmo desempenho. Daf a existéncia na literatura da politica social de varias classificagées de Welfare State indicande, ne fun- POLITICA SOCIAL i do, a maneira como 0 bem-estar é interpretado e tratado por cada mode= lo particular de Estado. 2. Divisdo social do bem-estar ¢ diferentes tipos de Welfare States Antes de tecer consideragées sobre os diferentes tipos de bem-estar indicados na literatura especializada, vale repetir uma pergunta feita por Esping-Andersen no capitulo 9 de seu livro intitulado Fundamentos sociales de las economias postindustriales (2000, traducao espanhola): “por que os paises respondem de maneiras tao distintas a um conjunto de riscos sociais que, afinal de contas, sio bastante similares?” (p. 219). E por que a Escandinavia responde com Estados de Bem-Estar globais e integrais; a Europa Continental e a Asia com o familismo e a seguridade social corporativa; e o mundo anglo-saxéo com uma protecgao voltada para grupos especfficos com a maxima presenca do mercado?” Segundo Esping-Andersen, existem diversas respostas a essas ques- tes, nas quais figuram tradicées de construgao nacional; conflitos entre Estado e Igreja; forte intervencionismo estatal; configuracio do poder de classe. Mas, quase sempre, todas essas respostas nao contemplam o porqué, em contextos determinados, a construgao do sistema de bem- estar seguiu, desde 0 seu comeco, uma direcdo e nao outra; porque a unidade e a mobilizagao da classe trabalhadora foram tao fortes na Sué- cia e tao fracas nos Estados Unidos; porque existem Estados mais gene- 1080s, maduros e consistentes do que outros; e porque, uma vez criadas ¢ estabelecidas, as instituigdes de bem-estar tém perdurado e se repro- duzido, nao obstante os percalcos enfrentados. Responder a esse conjunto de questes fugiria do escopo deste ca- pitulo e deste livro. Significaria penetrar, como faz Esping-Andersen, nos meandros dos determinantes estruturais, politicos, histéricos e até morais de uma dada sociedade; da matéria-prima disponivel aos traba- Thadores para construirem ou deixarem de construir sua fortaleza; e das: 100. POTYARA PEREIRA forcas das quais depende a trajetéria institucional dos diferentes siste- mas de bem-estar. No entanto, para os propésitos da reflexdo aqui reali- vada, essa diversidade explica a existéncia de diferentes modalidades de bem-estar e de Estados de Bem-Estar, sob uma mesma base capitalis- {a, que tém sido detectadas e classificadas pelos estudiosos da politica social. E s&o essas diferentes modalidades de bem-estar e de Estados de Hem-Estar que serao tratadas a seguir, sem esquecer de situd-las num eontexto tedrico e ideolégico também diversificado. Segundo Johnson (1990), as diferengas entre Estados de Bem-Estar existem efetivamente; s6 que elas vao além das comparacoes entre pai- S08, Geralmente subestima-se, diz ele, diferencas dentro de paises que, dependendo do lugar, sao significativas e atingem grupos raciais, reli- filosos, regionais — especialmente quando nao hé uma Constituicéo unitéria. O caso mais conhecido é 0 dos Estados Unidos, onde existe consideravel variacdo regional e os governos estaduais e locais tm au- tonomia para definir e executar programas préprios de bem-estar. Isso constitui um dos fatos que torna enganoso, salienta 0 autor, falar de um Hstado de Bem-Estar norte-americano. Do exposto infere-se que os esforgos cientificos de identificar o que torna o Estado de Bem-Estar uma instituicéo de bem-estar efetivo, tem propiciado, no dizer de Castles (apud Johnson, p. 21), uma “batalha de paradigmas”. Hé aqueles que enfatizam fatores socioecondmicos e a yelagdo direta entre o crescimento econémico de um pais e a elevacao de seus indices de bem-estar; ou, como no caso de Wilenski (1975), relacio- nam a expansao da provisao social ao volume de gastos empregado na politica social.5 Entretanto, ha outros que, ao rechagarem essa direta re- Jago — visto que nem sempre os paises ricos sao obrigados a gastar em politica social e nem todo gasto social é socialmente correto — dao énfa- (Os adeptos dessa tendéncia costumam dizer que é um contra-senso distribuir recursos es- ‘eas © que, por isso, hé que se fazer o “bolo crescer para depois distribuf-lo”. A relagdo direta eilie determinantes econémicos e bem-estar social caracterizou uma vertente de pensamento que Hiaieou époce, principalmente quando os estudos econdmicos dominavam a temitiea da politics social (Meny © Toenig, 1992). ‘: POLITICA SOCIAL se a determinantes politicos. Nestes, predomina o papel dos politicos, em suas disputas pelos votos dos eleitores, e dos gr pressao sobre o Estado em busca de maior protegao social. Assoclado aos determinantes politicos, o fator ideolégico é também considerado, tanto que o préprio Wilenski, em seus tiltimos escritos (Johnson), pas= sou a considerar a relacao entre gastos sociais e partidos politicos de esquerda ou de direita. Em sua opiniao, a ascensao ao poder politico dos partidos de esquerda nao implicou, nos paises industrializados, maior gasto social, no que foi contraditado por Castles (apud Johnson). Este, baseado em suas proprias investigagoes realizadas no perfodo compreen- dido entre 1960 e 1970, chegou a conclusao de que ha forte correlagdo entre o crescimento do Estado de Bem-Estar e 0 dominio politico de partidos nao-liberais/conservadores. Entretanto, contrastando com es- sas inferéncias, a vertente marxista da énfase a politica de classe em vez da politica de partidos. E a pressao dos trabalhadores e da burguesia, dizem estes, que, independentemente do sistema parlamentar, respon- dem pelo rumo e extensao das politicas sociais; e, em apoio a esta com- preensio, Mishra (1989) sustenta que, quanto mais sindicalizada for uma sociedade, maiores serao as suas possibilidades de possuir um Estado de Bem-Estar digno dessa denominacao. Isso explica porque a Gra-Bre- tanha, altamente sindicalizada, e os Estados Unidos, fracamente sindi- calizados, construiram sistemas de protegio social diferentes, ap6s as duas grandes guerras. Na Gré-Bretanha, 0 Estado de Bem-Estar tornou- se forte, enquanto, nos Estados Unidos, s6 nos anos 1930, com a grande depressio econémica, houve um programa social mais consistente — 0 New Deal. Todavia, extrapolando os limites das classes sociais, outras explicacdes resgatam como forca politica influente nas politicas sociais os grupos de pressdo. Mas, dado o pequeno potencial de transformagéo de cada grupo isolado, ha quem fale da unio entre eles na qual deveré figurar os movimentos trabalhistas. Aj, efetivamente, eles ganharao maior poder politico ¢ explicativo. Por fim, uma outra vertente salienta a im- portancia da burocracia publica, pois sem uma estrutura administrativa bem montada é impossivel criar e manter politicas sociais complexas (Johnson), Acemais, como j4 conhecido, essa estrutura administrativa, 102 POTYARA PEREIRA uma vez estabelecida, ganha impulso proprio e passa a investir na am- pliacao de sua esfera de acao, influenciando a produgio, a execugao ea difusao de politicas sociais. Esta breve apresentacao das principais explicagdes a respeito da variedade de formas de politica social adotadas por diferentes paises e Estados de Bem-Estar, d4 uma idéia de quéo complexo é 0 campo de estudos desta tematica. Por isso, varios estudiosos recorreram a cons- trugdo de tipologias para agrupar tracos de convergéncia dominante nas diferentes experiéncias de politica social, mesmo sabendo, conforme Baldwin® (1992) e Abrahamson (1995), que esse procedimento nao é a mais segura opgao metodoldgica. Contudo, o certo, numa perspectiva dialética, 6 nao separar determinantes econ6micos, politicos e ideolégi- cos na andlise da formacao e desenvolvimento da politica social, visto que todos eles esto presentes, com maior ou menor intensidade, mas de forma imbricada, nesses processos. 2.1, Categorias de bem-estar A mais antiga e ainda util classificagao de tipos de bem-estar, é a de ‘Titmuss (1976), que sustenta ser essencial levar em conta a existéncia de uma divisao social do bem-estar para compreender os diferentes mode- los de Welfare State. Nesta divisao, identificou trés principais categorias de bem-estar, a saber: a) Bem-estar social (social welfare); b) Bem-estar fiscal (fiscal welfare); c) Bem-estar ocupacional (occupational welfare). Para Titmuss, essa categorizagao nao revela uma diferenga funda- Mental nas fungdes ou objetivos declarados dessas trés formas de bem- estar, mas, sim, uma diferenga de método ou de estratégia de aplicacdo 6, A principal eritica de Peter Baldwin ao uso de tipologias deve-se ao fato de esse recurso ana Jitieo geralinente nao possuir comensurabilidade comparativa e simplificar realidades: complexes. POLITICA SOCIAL de cada forma, que esta relacionada a diviséo do trabalho des complexas e 4 diferenciagao social resultante desta divisio, O desenvolvimento, no século XX, da primeira categoria de estar — social welfare — esta relacionado ao colapso das velhas fo de protecao social e ao conseqiiente surgimento de um padrao de provi- sao reconhecido como direito social. Ao contrério das Leis dos Pobres, este padrao de bem-estar nao mais encara a pobreza como um desvio da normalidade, mas como uma conseqiiéncia direta do desenvolvimento industrial capitalista. Assim, ao lado dos alvos naturais de protecéo pti- blica — criangas, idosos debilitados, pessoas incapacitadas para o traba- Iho — outros segmentos populacionais passaram a ser objeto dessa pro- tec&o, por uma questdo de direito de cidadania: desempregados e subem- pregados, trabalhadores amparados por legislacao preventiva e protetora, aposentados, jovens com tardia insergéo no mercado de trabalho, viti- vas, dependentes, dentre outros. Trata-se, portanto, do que tradicional- mente é qualificado de prestagdes sociais priblicas ou servigos sociais, com- preendendo transferéncias de renda; servicos de satide e educagaio; em- prego; servicos sociais pessoais, dentre outros (Johnson). Ou daquilo que, conforme Gough (2003), “refere-se ao resultado final nas condigoes de individuos e grupos” (p. 239). O bem-estar fiscal abrange uma ampla gama de subsidios sociais e isengdes de tributos, de contribuicdes e de pagamento de tarifas publi- cas, assim como de descontos em impostos progressivos (mediante os || quais quem ganha menos paga menos). Trata-se de uma espécie de fi- | nanciamento indireto a determinados grupos, seja por insuficiéncia de renda (segmentos mais pobres da populacao), seja por idade e incapaci- dade (criangas, idosos e pessoas com deficiéncia) ou ainda pela condi- cdo de prestadores voluntdrios de assisténcia social (instituigdes filan- tropicas). Esse esquema gerou, com o passar do tempo, insatisfagées por parte dos contribuintes mais abastados economicamente, pois estes passaram a encarar tal financiamento indireto aos pobres como uma intrusdo do Estado nos sagrados direitos individuais de propriedade. Dai a “revolta fiscal” que eclodiu nos anos 1970 em paises com tradigao iM POTYARA PEREIRA trabalho na area do bem-estar, como foi 0 caso da Gra-Bretanha, e do erescente debate em torno da hoje controvertida questao da crise fiscal do Estado. Além disso, o chamado bem-estar fiscal foi, na pratica, aco- ‘imetido por sérias distorgdes, pois, em muitas sociedades, os mais ricos © © grande capital passaram ser alvo do financiamento indireto, sob a forma de isengées de tributos, ao desempenharem atividades filantrépi- cas, Isso, sem contar com a pritica empresarial de sonegar impostos ou transferir a sua carga para os consumidores em geral (incluindo os mais pobres), fazendo com que o carter progressivo da tributagao se tornas- se regressivo. No bojo dessas tendéncias tem ganhado destaque o terceiro esque- ‘ma de bem-estar: 0 ocupacional welfare, ou o bem-estar que inclui presta- bes e beneficios associados ao trabalho formal. Segundo Titmuss (1976), 0 beneficios ocupacionais podem ser em dinheiro ou em matéria e tém aleancado consideraveis proporgées no curso da histéria da politica so- cial, Eles incluem pensées para empregados, cénjuges e dependentes; uxilio funeral; creches; servicos de satide e educagao; despesas pes- soais para viagens, roupas e equipamentos; tickets para refeicao e trans- porte; subsidio A moradia; abonos de férias, areas de lazer. Como diz Johnson, aqui, como nas categorias anteriores, a lista completa seria ex- tensa. Porém, trata-se de uma modalidade de bem-estar que, na verda- de, se superpée as duas primeiras, criando, tanto do ponto de vista do imétodo quanto dos objetivos, uma dualidade na prestacao de beneficios © servicos, qual seja: os que estao empregados, principalmente os me- thores colocados, sio generosamente amparados em relagdo aos desem- pregados ou aos precariamente inseridos no mercado de trabalho, os quais ficam a mercé da atencao social do Estado, que tende a ser resi- dual, ou da caridade privada. Nao ha dtivida, como diz Titmuss (1976), que o bem-estar ocupa- elonal expressa o desejo do sistema de manter (ou comprar) “boas rela- ges humanas” no mercado de trabalho; mas, dada a sua crescente utili- ‘gagio, ele entrou em choque com os valores da politica social de pos- guerra, ao produzir os seguintes efeitos: criagdo de privilégios entie os POLITICA SOCIAL empregados e fragmentacao da lealdade dentro da solapando, dessa forma, a possibilidade de a politica em beneficio de todos. Em vista disso, uma importante questao a ser colocada 6 s¢ @ medida os beneficios fiscais e ocupacionais podem ser considerados ti pos de atendimento as necessidades humanas basicas. E esta ques! que serd explorada na andlise dos modelos de Estados de Bem-Estar que foram construidos desde os anos 1960. 22. Modelos de Estado de Bem-Estor ‘Viu-se que uma das caracteristicas dos Estados de Bem-Estar e de suas politicas sociais é que eles nao so uniformes e homogéneos. Viu- | se também que, devido a esta caracteristica, eles variam de um pais para outro e sao mais e menos generosos, embora tenham um denominador | comum: 0 pressuposto de que o homem nao é s6 uma unidade de pro- dugio e, portanto, nao é totalmente responsavel pelos seus problemas s6cio-econémicos, cabendo ao Estado protegé-lo. Na tentativa de oferecer uma classificagao que dé conta dessa va- | riagdo, Titmuss (1981) novamente apresenta trés modelos de politicas dos Estados de Bem-Estar nos quais podem ser encontradas, com maior ou menor desenvolvimento, as trés categorias de bem-estar anterior- mente mencionadas. Nao hé, portanto, um modelo puro em que apenas uma categoria esteja contemplada. Mas, antes de se apresentar os principais modelos, convém indicar 0 que eles significavam para Titmuss (1981: 37-8). Significavam um re- curso explicativo que ajudava a dar certa ordem num conjunto confuso de fatos, sistemas e eleigdes que interessam ao pesquisador. Por isso, “o propésito que se pretende alcancar ao construir um modelo [dizia ele], nao consiste em admirar a sua arquitetura”. Sao trés, portanto, os modelos de Titmuss. 100 POTYARA PEREIRA a) O residual, baseado na premissa de que ha duas instituicdes naturais (ou socialmente dadas) mediante as quais as necessidades dos individuos sao adequadamente atendidas: 0 mercado e a familia. So- mente quando essa duas instituicdes falham é que o Estado devera interferir e, mesmo assim, temporariamente para nao competir com as formas espontaneas e mais dignas de auto-ajuda. Implicita neste mo- delo estd a concepgdo do Estado como érbitro, desgarrado da socieda- de, e da individualizacao dos problemas sociais, valorizadora da racio- nalidade do mercado e da solidariedade familiar como meios capazes dle resolver problemas sociais. Neste caso, as politicas sociais puiblicas devem ser intencionalmente escassas ou residuais. Segundo Titmuss (1981: 38) as bases te6ricas deste modelo remontam aos primeiros momentos da Lei dos Pobres inglesa e encontram apoio nas visdes de sociedade como um mecanismo organico-biolégico, tal como propostas por socidlogos como Spencer e Radcliffe-Brown e economistas como Friedman e Hayek. b) O modelo baseado no desempenho e performance industrial, 0 qual atribui as instituigdes de bem-estar importante fungao de colabora- glo a eficiéncia econdmica. Isso significa que as necessidades sociais devem estar submetidas a légica da rentabilidade econémica e, portan- to, devem ser atendidas de acordo com o mérito do trabalhador — ou com a produtividade e resultados alcangados por este no seu posto de trabalho. Este modelo “deriva de varias teorias econ6micas e psicologi- cas relacionadas com os incentivos, 0 esforgo e as recompensas, e com a formacio de lealdades de classe e de grupo. Foi descrito por Titmuss mo o ‘modelo a servico da casa’” (Titmuss, p. 39). ©) O modelo institucional redistributivo, que elege o bem-estar social como o principal tipo de protecao, incumbindo ao Estado o papel de ‘rogulador das leis de mercado e de provedor de bens e servigos univer- ‘sais baseado no critério das necessidades sociais. Esse modelo “se apéia parte em teorias que levam em conta os efeitos multiplos das mu- dangas sociais e do sistema econdmico, e, em parte, o principio da a POLITICA SOCIAL dade social. Fundamentalmente incorpora sistemas de (Titmuss). ‘ Segundo Pierson (1991), esta classificagéo permaneceu anos 1990, tendo servido de referéncia a autores como Goran Gosta Esping-Andersen que, no intuito de aperfeicod-la, apresentam seguintes informag6es: os trés modelos de Titmuss nao sao excludentes. entre si e nem sugerem uma evolugao do tipo residual para o institucio= nal. Com base nessa perspectiva, Therborn (1989) adotou uma classifi- cagao que elegeu como parametro duas dimens6es ou varidveis: a) 0 nivel de reconhecimento dos direitos sociais e b) a orientag&o para 0 mercado e para o pleno emprego. A partir daf detectou quatro tipos de Welfare State: a) Estados de Bem-Estar intervencionistas fortes que combinam politi- ca social extensiva e compromisso institucional com 0 pleno emprego (Therborn, p. 86). Este, a seu ver, foi o modelo que prevaleceu na Suécia, Noruega, Austria e Finlandia, onde 0 gasto médio em politica social esteve acima da média da Organizac&io para Cooperacao do Desenvol- vimento Econ6émico (OCDE) e a politica de emprego mostrou-se bastan- te ativa, ainda que nem sempre eficaz. b) Estados de Bem-Estar compensatérios brandos, nos quais prevale- cem generosas provisées sociais, mas que se destinam fundamentalmente a compensar necessidades advindas do desemprego. Trata-se de politi- cas que, embora tenham tentado seguir orientacdo keynesiana, baseada no controle da demanda, adotaram, em meados dos anos 1970, um ca- minho pés-keynesiano, com pouca influéncia no mercado de trabalho. Este foi o caso de paises como a Bélgica, Dinamarca e Holanda. A Fran- ¢a, Italia, Alemanha e Irlanda também foram inclufdas nesta classifica- cao, embora apresentassem menor generosidade em suas prestagdes sociais. c) Estados de Bem-Estar orientados para o pleno emprego com escassa politica de bem-estar. Neste modelo as prestacdes sociais ptiblicas mos- tram-se reduzidas, visto que o compromisso do Estado prioriza a ma- nutengado do pleno emprego, tal como aconteceu no Japio e na Suiga, 108 POTYARA PEREIRA d) Estados orientados para o mercado com escassa politica de bem-estar. sta foi a performance de paises que abragaram a ideologia liberal ou liberal-conservadora, como a Austrélia, Canada, Estados Unidos, Nova Zelandia e onde tanto a provisao social publica quanto a garantia estatal de empregos revelaram-se limitados. Como a tipologia de Therborn compreendeu o perfodo da chama- da crise do Welfare State, isto é, os anos 1970/1980, o autor chegou a conclusdo de que a propaganda em torno da inevitabilidade dessa crise nil correspondeu fielmente a realidade. Segundo ele, no capitalismo eentral, a maioria dos Estados nacionais procurou manter seus sistemas keynesianos de bem-estar, mesmo que provocando a seguinte bifurca- gio em relacao ao pleno emprego: uns paises procuraram manter eleva- dio indice de empregabilidade, enquanto outros ostentaram elevado in- dlice de desemprego, sendo intermediados por um grupo, da qual fez parte a Nova Zelandia, que ficou entre as duas tendéncias. Isso levou o autor a extrair duas principais inferéncias: primeiro, de que esta divisdo nio se explica pelas diferencas na taxa de crescimento econémico e/ou pelo crescimento da populagdo economicamente ativa, mas pelas dife- vengas das politicas econdmicas e sociais adotadas pelos paises. “O fra- easso da Alemanha, com uma economia relativamente forte, em manter © pleno emprego, é surpreendente e explica em grande parte a intensi- dade das criticas ao Estado de Bem-Estar alem4o” (Therborn, p. 87). Se- gundo, de que a histéria dos Estados de Bem-estar revela que estas ins- lituigGes sao resistentes a mudangas radicais — como toda instituicdo consolidada. Tais Estados, afirma ele, usando uma figura de retérica, “nilo sao cataventos, mas petroleiros, que dao partida lentamente e, uma vex em movimento, mudam de rumo com grande dificuldade’ (id. ib.). Comparando a tipologia de Therborn & de Esping-Andersen (1991), “Apresentado a seguit, chega-se ao entendimento de que: a) nao é apro- priado encarar todos os paises capitalistas desenvolvidos como Welfare Slales avangados, que se distinguiriam de supostos Welfare States atrasa- dos situaclos na periferia do capitalismo; b) é mais apropriado falar de diferentes espécies de Welfare States, que funcionam de acordo com o POLITICA SOCIAL regime politico que os orientam e com as combinagées qualita’ particulares que efetuam entre Estado, mercado e familia. Estas di ¢as, entretanto, nao sao linearmente distribufdas entre grandes e peque nos gastadores em politica social e entre modelos residuais e institueld= nais (Pierson, 1991: 186). Tendo em mente essas premissas, Esping-Andersen (1990) conce» beu uma classificagaio que se tornou influente no debate conceitual ¢ metodolégico contemporaneo, mesmo considerando que “os Estados de Bem-Estar se caracterizam por uma constelagao de encaixes institu- cionais de caréter econémico, politico e social” (Moreno, 2000: 68); e que, na relagéo do Estado com a economia, um complexo de aspectos, dentre os quais os legais e organizativos, apresentam-se sistematica- mente entrelagados. Baseando-se em elementos determinantes, comuns a varios paises, Esping-Andersen construiu uma tipologia em que analisa trés grandes eixos: as relacdes entre Estado e mercado; o Welfare State como um siste- ma de estratificaciio; e os direitos sociais versus a desmercadorizacao da politica social. Num primeiro momento, como informa Moreno, ele néo considerou, nos regimes de bem-estar especificados na sua tipologia, as relagées entre Estado e familia, o que, mais tarde, procurou resgatar” Na composicao de sua tipologia, trés mundos de bem-estar capita- lista, ou regimes de bem-estar, sao considerados, nos quais a politica social assume papel ativo (isto é, nao apenas é reflexo do sistema econé- mico): 0 liberal; 0 conservador e o social-democrata. No regime liberal prevalece o Welfare State liberal dominado, natu- ralmente, pela légica do mercado. Neste modelo, os beneficios sociais sao modestos, voltados para grupos de baixa renda e geralmente condi- cionados a comprovacées constrangedoras de pobreza, que estigmatizam 7. Aesse respeito Esping-Andersen faz.a seguinte autocritica em nota de rodapé no capitulo 4 de seu livro intitulado Fundamentos sociales de las economias postindustriales (2000): “a falta de aten- go sistematica as familias resulta dolorosamente evidente em minha prdpria obra Three worlis of ‘welfare capitalism. Esta comega por definir os regimes de bem-estar como a interconexio do Estado, lo mercado e da familia, para depois nao prestar atengio apenas a esta tiltima” (p. 69). 190 POTVARA PEREIRA ‘08 beneficiarios. Como mecanismo de controle da proliferagao de assis- tidos é valorizado o principio da menor elegibilidade, usado pela Poor Law do século XIX, o qual procura impedir que os pobres fiquem desestimulados de trabalhar. O Estado, por sua vez, cede ao mercado 0 papel de provedor de bem-estar, uma vez que se responsabiliza apenas pelo minimo de protecao social piiblica, e “subsidia esquemas privados de previdéncia” (Esping-Andersen, p. 26-7). Como nao poderia deixar de ser, neste regime a politica social nao esté a servigo da desmercadori- zagio e nem da concretizagao dos direitos sociais, além de gerar um dualismo politico de classe entre os que s40 mais bem atendidos pelo mercado e os que sao pior atendidos pelo Estado. Sao exemplos desse modelo os Estados Unidos, o Canada e a Australia. No regime conservador-corportivo, o forte nao é propriamente a légi- ea do mercado e a mercadorizacao da politica social, mas a subordina- go dos direitos de cidadania ao status quo que preserva tradicionais di- ferencas de classe e de status. “Tais Welfare States geralmente tém a sua origem em regimes autoritarios ou pré-democraticos os quais usam as politicas sociais como um meio de desmobilizar a classe trabalhadora” (Pierson, 1991: 187). Seu principal exemplo é o da Alemanha de Bismarck, do século XIX, sendo que, em muitos casos, esse modelo recebe forte influéncia da Igreja que procura zelar pela preservacio da familia tradi- ¢ional, na qual a mulher é considerada dependente do homem. Assim, enquanto no modelo liberal o Estado subsidia 0 mercado, no modelo onservador o Estado subsidia outras instituicdes intermedidrias, nota- damente a Igreja, as organizac6es voluntarias, para que, mediante o prin- viplo da subsidiaridade® entre atores sociais mais proximos, o bem-estar B, Segundo Peter Abrahamson (1995: 123), a subsidiaridade é um conceito, de origem crista, fecentemente tem recebido vida nova nos esquemas de protegao social. Refere-se a prética de iiegllo em que a instincia mais proxima do necessitado é que deve procurar auxilié-lo. Assim, 0 Ho Individuo que padece do problema é a instancia mais préxima. Se ele fracassar, a familia ‘em cena, Se esta também falhar, a insténcia seguinte é a comunidade, incluindo as Tgrejas e ages civis e redes informais de vizinhos, $6 em tltimo caso, quando as instancias anterio- ‘0 rexolVerem o problema, o Estado seré acionado. Portanto, o principio da subsidiaridade opera ‘um sintema hierdrquico de instincias em que o Estado s6 comparece em ultimo caso, POLITICA SOCIAL seja atingido. Os paises que podem ser agrupados: Austria, Franga, Alemanha e Itélia. Finalmente no regime social-democrata, do qual o melhor Suécia, prepondera um padrao de Welfare State em que o Estade principal agente da provisao social, desenvolvendo servigos socials versais e zelando pelo pleno emprego. Embora nao exista nesse regi um igualitarismo absoluto, hé um inegdvel propésito de assegurar, por meio da politica social, apoio universal aos cidadaos, bem como a parti- cipacdo de todos no sistema de seguridade social. Neste modelo, o bem- estar como direito de cidadania social é desmercadorizado’ e, por conse guinte, independente da logica do lucro e da rentabilidade privada, pre- ponderando, assim, 0 bem-estar social sobre o bem-estar ocupacional tipico do modelo liberal. De posse do conhecimento desses modelos que, desde os anos 1940, vém funcionando — isolados ou associados — em diferentes partes do mundo capitalista, cabe, neste ponto, indagar qual deles vem ganhando expresso e tendendo, face aos problemas causados pela globalizagio da economia e pela desregulacao do mercado, a predominar. E 0 que sera visto a seguir. 3. Tendéncias ¢ perspectivas da politica social Para varios estudiosos da politica social a real perspectiva desta politica, ¢ até mesmo do Welfare State, ndo contempla o seu desapareci- 9. Por desmercadorizagao Esping-Andersen entende a possibilidade de a politica social permi- tir aos cidadaos o atendimento de suas necessidades por uma questéo de direito social e nao de mérito individual vinculado ao trabalho. Esse entendimento, segundo Adelantadb et al. (2000), inau- gurou uma nova perspectiva de anélise da politica social que ampliou 0 escopo das relagdes dessa politica com a estrutura social. Nao é a toa que, de par com o conceito de desmercadorizagio, Esping- ‘Andersen relacione diferentes tipos de Estado de Bem-Estar a diferentes sistemas de estratificagao social, que, por sua vez, vo engendrar variadas aliangas de classes. Entretanto, como jé assinalado, ¢ admitido pelo proprio autor, a novidade por ele inaugurada ndo incorporou outros atores socials importantes como a familia, dando assim a impressao de que privilegiava o mercado como patti: otro de seu esquema analitico apoiado na disjuntiva entre mercadorizagio/desmercaclorizagho, 1 POTYARA PEREIRA tmento, mas a sua reestruturacéo ou mudanca de seus contetidos funda- mentais. Segundo Cabrero (2002, p. 507), a tens&o histérica que ocorreu en- tre os objetivos universalizantes do Estado de Bem-estar do segundo pos-guerra e os interesses do capitalismo desregulado em ascensao, nos anos 1980, redundou, na segunda metade dos anos 1990, numa articula- (So ambivalente e desigual entre o universalismo protetor, formas cres- centes de particularismo social e crescente mercantilizacéo da politica social. Hoi no contexto dessa nova articulacao politico-institucional que a poli- tica social entrou no século XX1 e trouxe a luz mudangas interna e exter- has ao Estado de Bem-Estar, causadas, respectivamente, pela passagem de um modelo de producao fordista para um outro, pés-fordista, e pelo processo de globalizagao. Disso resultou uma nova fase de reforma so- cial eivada de desafios e de conflitos inevitdveis. A presenca de situa- ges dilematicas decorrentes do envelhecimento populacional, do de- semprego estrutural, da reestruturacéio da familia, da dinamica migra- toria, transcenderam as dimensdes econémicas e fiscais e requereram, no bojo da politica social, novas correlagdes de forcas. Trata-se, como diz Cabrero, de um processo “que afetou a natureza profunda de nossas fiociedades e dos novos modos emergentes de produgao, consumo e in- tegracao sociopolitica” (p. 508). Este € 0 cendrio atual de transformacées complexas em que a pers- pectiva da politica social e do proprio Welfare State deve ser perquirida, fem se incorrer em exercicios reducionistas. Afinal, no se pode perder de vista a j4 mencionada diversidade de modelos de Estados de Bem- FPistar e de politica social existentes, o que recomenda, numa anilise ge- jca, considerar apenas (e com os limites que esta opgao requer) as tivas convergéncias nacionais. _ Com efeito, a partir dos anos. 1980 a politica social e o Estado de Estar sofreram mudangas nfo lineares, cuja dinamica contempla Fontengbes, retrocessos, reorientagées e, principalmente, transformagées. A mudanga mais notéria foi, no dizer de Gough (1982), a guinada de para direita; ou melhor, a sua apropriagao pelo idedrio neolibe- POLITICA SOCIAL ral/conservador que inclusive passou a reger 0 prt cao, denominado por Ianni (2004) de “globalizagao entdo, 0 crescimento econémico aparentemente irrevert mo de massas — tributarios do modelo industrial fordista que, entre os anos 1950-70, transformou parte da produtividat balho “em oferta ptiblica de servigos e em renda adicional para 0 mo privado” (Cabrero, p. 509) — entrou em colapso. Em seu lugat, bojo de um acelerado processo de globalizacao e avanco das forgas pro dutivas, surgiu o chamado modelo pés-fordista, responsdvel pela pie valéncia de duas principais tendéncias: contengio ou retracéo da oferta de servigos piiblicos (afetando sobremaneira o anterior perfil da politica so» cial) e segmentacao do consumo privado, com dispersées na distribuigao de renda, em conformidade com as regras do mercado. Onovo contexto, o da globalizacao [pelo alto] nao é mais que um Ambito geral em que se produzem as novas relac6es de caréter desigual entre politica econémica e politica social mediadas pelos novos papéis do Es- tado (descentralizado internamente e mais frdgil externamente), do mer- cado (em proceso de ampliagéo das relacdes e priticas mereantis no Ambito social e no préprio Estado de Bem-Estar) e da sociedade civil (como renovado espaco de socializacdo de necessidades adaptado aos requerimentos da extensaio mercantil ou economizagao de atividades nio lucrativas) (Cabrero, p. 209). Um resultado nado muito evidente dessas mudancas foi que, em que pesem as reestruturacGes e transformagGes impostas a politica so- cial e ao Estado de Bem-Estar, nem um e nem outro morreram, como a contra-utopia liberal tem divulgado. Como o pés-fordismo e a globali- zacdo pelo alto nao sio deuses ex machine" — e, por isso, nao prescindem do apoio do Estado para existir e se legitimar — a tendéncia, na visio de Gough (2003), tem sido a seguinte: transformar 0 Estado de Bem-Estar em uma instituicdo competitiva, que combine politicas distributivas clas- 10, Um deus trazido & cena, por mecanismos, nos featros greco-romanos, como solugao artifi- cial aos problemas vivenciados, 104 POTYARA PEREIRA sieas com politicas ativas de trabalho, educagiio e formagio profissional, ‘visando ao aumento da produtividade e 4 diminuig&o de custos em eco- nomias abertas (apud Cabrero, ibid.). E esta estratégia que, segundo Gough, vem presidindo a contradi- {ria relagao entre Estados de Bem-Estar, ainda relativamente estaveis, com sistemas de produgao capitalista, altamente competitivos e produ- livistas. Trata-se, entretanto, de uma relac4o assimétrica que nao autori- #4 prever até quando valores universalizantes e compromissos com as necessidades sociais irao perdurar. A légica competitiva que domina essa telagao tem subordinado mais fortemente a politica social a politica eco- nOmica, seja transferindo a carga fiscal do capital para o trabalho, seja diminuindo gastos sociais com programas universais e flexibilizando o trabalho. Em decorréncia, tanto a politica social como o Estado de Bem- lstar tiveram de reestruturar seus objetivos e contetidos basicos, bem como as suas formas de gestao. Quanto aos objetivos e contetidos basicos verificou-se crescente desmonte do universalismo protetor — referenciado no trabalho como © fundamento da cidadania social — para dar vez. ao particularismo Social e 4 mercantilizagao da politica social, j4 mencionados. Hoje quando se fala de universalismo est se falando de um uni- yersalismo contido ou segmentado, para usar as expressGes de Cabrero, yoltado para grupos determinados (e nao para o conjunto da popula- go), ou caracterizado como uma extensa cobertura de programas com- pensatdrios ou de alivio da pobreza. Efetivamente, os governos nao tém Fedluzido a oferta de programas de carater emergencial e de atendimen- to de caréncias biolégicas de cidadaos. Pelo contrario, os tém estendido, ‘Mas como alternativa precdria ao desmonte de uma protegao intensiva seguranga social. Segundo Cabrero, é este tipo de universalidade ie tem prevalecido e exercido efeitos disciplinadores sobre as deman- tay sociais. Sua legitimidade tem tido o poder de fazer com que as no- ‘M8 geragdes de trabalhadores vejam como natural a precariedade e a instabilidade do emprego, assim como a “decrescente intensidade pro- felora e a crenga de que a incorporagéo no mercado de trabalho exige longos periodos de espera” (p. 512). POLITICA SOCIAL Isso nao significa que o universalismo protetor pelo menos no plano das idéias e das teses defendidas. ao desmonte das politicas sociais universais e a prevaléncla salismo segmentado, surgiu e permanece em pauta 0 enfoq! politico do universalismo cidadao, defendido por autores que politica social como um elo entre cidadania social e satisfagao de sidades humanas basicas. Nesse caso, a politica social e o Estado Bem-Estar devem ter como fundamento o principio da desmercadorizay 40, postulado por Esping-Andersen (1991), e, por isso, nao devem ser subjugadas aos imperatives do mercado e do trabalho assalariado, ge~ adores de valor de troca. Este enfoque, que, segundo Little (1998), é tributario das reivindi- cagdes do emergente socialismo pés-industrial"' e da ala socialista dos movimentos ecolégico, feminista e anti-racista, bem como dos libertarios de esquerda, dos democratas radicais e dos comunitaristas, tem sido objeto de polémica e de contestagées. Mas, ainda assim, as solugdes que oferecem contra o progressivo desmonte do universalismo protetor, tém marcado presenca num cendrio que lhes é adverso (Pereira, 2003). Trata- se, 0 referido enfoque, da defesa da implantacdo simultanea de duas medidas potencialmente compativeis: a reducao das horas de trabalho e a provisdo de renda garantida (Anderson, 1995). ‘A primeira pretende uma redugao da jornada generalizada de trabalho de modo a permitir uma partilha mais eqititativa do emprego. A segunda 11. Corrente de pensamento e agdo que, diferente das concepgies reificadoras da sociedade p6s-industrial e de conhecimento, apresenta-se como uma alternativa ao neoliberalismo, incorpo- rando aspectos defendidos por novos movimentos sociais criticos do produtivismo capitalista. O crescimento desse socialismo respalda-se, segundo Gorz (apud Little), em trabalhos de te6ricos ‘como Conrad Lodriak, precedido de Marcuse, bem como de autores que atualmente advogam a adogao de esquemas de renda minima garantida com o propésito de desvincular renda do trabullio, como 0 proprio Gorz, Van Parijs, Clauss Offe, Bill Jordan, entre outros. Respalda-se também em concepgdes emancipatérias, como as sustentadas por Habermas e Keane, para quem 0 engajamen- to em uma democracia radical, sustentado pelo didlogo democrdtico, propiciaré o desenvolvimento de solidariedades capazes de limitar a racionalidade econ6mica dominante. Para saber mais sobre © soelalismo pos-industrial, ver: Pereira (2003). 196 POTYARA PEREIRA defende a substituicao de sistemas arcaicos de seguro-desemprego e bene- ficios suplementares pelo direito a uma renda minima assegurada a todos os cidadaos, seja qual for sua posigéo no mercado de trabalho (p. 27). Em termos radicais, [diz Cabrero], trata-se de criar uma renda incondi- cional para todos os cidadaos baseada nao sé em critérios morais de li- berdade e justiga, mas também em critérios de eficiéncia tanto em senti- do negativo (eliminar a fraude nas prestagdes), como no sentido positivo (gerar incentivos laborais ao eliminar a armadilha da pobreza). (Cabrero, p. 513). A associacao indispensdvel entre a redugao da jornada de trabalho © a garantia de renda tem importdncia estratégica’ porque, sem ela, res- fialta Little, qualquer das medidas propostas ajudara a reproduzir o ci- clo capitalista da pobreza. Assim, ao mesmo tempo em que a renda as- segurada incentiva o trabalho, o trabalho é garantido a partir da redu- gio de sua jornada. Quanto ao aspecto potencialmente conflituoso do financiamento desse tipo de renda incondicional, varias solugées tém sido apresentadas, seja casando medidas de base contributiva com a universalizagao da renda minima de insergéo em Ambito local, seja tedistribuindo a riqueza acumulada com 0 aumento da produtividade do trabalho formal. Mas, como jé foi dito, esta proposta permanece po- lémica, exigindo, inclusive, a constituig&o de novos pactos sociais nao acatados pelo universalismo segmentado dominante que, paradoxalmen- fe, convive com o particularismo social, ou categorial, diferente do par- ficularismo individualista. Por particularismo social ou categorial entende-se, com Cabrero (idem), © conjunto de estratégias e praticas concebido e programado para aten- ler diferenciadamente demandas e necessidades de grupos que exigem ® reconhecimento puiblico das particularidades que os distinguem de Outros coletivos sociais. Essa modalidade de atendimento tem assumi- do duas principais tendéncias. Uma, que, paralelamente ao respeito a diferenga, propugna a igualdade racial, de género, de etnia, requerendo lim sistema de protegao social descentralizado, especializado e mais pré- ximo do cidadao, Para atender a essa demanda o Estado tem se apoiado POLITICA SOCIAL a na emergente revalorizagaéo das chamadas redes sociais, OU guridade, no dizer de Moreno, que atualmente vém constituind nha dorsal de um modelo de protecio social denominado pili misto, abordado mais adiante. Na construcao desse modelo de protegag, +ém assumido papel politicamente estratégico os seguintes atores! M0" vimentos sociais particularistas, Organizacdes Nao-Governamentals, grupos voluntérios, familias, empresas com responsabilidade social, 08 quais, segundo Cabrero, “se traduzem em formas de conluio entre @ piblico e 0 privado e de esvaziamento do ptiblico em favor de formas pseudo piblicas ou privadas de gestao das politicas sociais” (p. 514). ‘Ira- ta-se também do que Maria José de Faria Viana (2007) identifica como a substituigéo da concepgio de piiblico pela concepgao de plural ou misto, ou do que Mishra (1995) denomina de mistura assistencial. A outra tendéncia revela-se social e civicamente mais promissora na medida em que se contrapée ao particularismo individualista— aves- so ao privilegiamento das necessidades sociais no marco dos direitos de cidadania — e as praticas voluntaristas propensas ao clientelismo sociopolitico. Este é 0 lado positive do particularismo social que deve ser reconhecido. Entretanto, ndo se deve esquecer o fato de que se, por um lado, esse particularismo “enriquece o campo da igualdade” (Cabrero, p. 514), ao contemplar diferencas legitimas, por outro, contribui para a “segmentagao da politica social’, dada a distinta capacidade de organi- zacio, mobilizacéo, vocalizagao e poder depressao dos grupos particula- res. A segmentagao, portanto, é um dado a ser avaliado no processo contraditorio e, no caso, ambivalente, da politica social, visto que ela pode funcionar como um contrapeso ao universalismo protetor. Por fim, a mercantilizagio da politica social, ou a remercantilizacao dos direitos sociais, como denomina Cabrero — seguindo as pegadas de Esping-Andersen (1991) — diz respeito ao debilitamento dos direitos sociais face aos empecilhos ideolégicos e materiais a sua concretizacao. Com efeito, no bojo da reestruturagao da politica social, sob a égide do neoliberalismo, os direitos sociais (como um ingrediente basico da justi- ¢a distributiva) deixam de ser uma referéncia mestra para darem lugar 0 mérito individual que, no maximo, persegue a igualdade de oporti 18 POTYARA PEREIRA nidades e nunca a de resultados. No cerne dessa inversao, dois princi- pais fatores podem ser arrolados. Um é a disseminacao progressiva da ideologia liberal de que os direitos sociais ndo sao direitos genuinos porque a sua efetivacao depende de condigdes materiais ¢ financeiras dlificeis de serem, hoje em dia, bancadas pelo Estado. Isso explica o in- eentivo a prevaléncia dos direitos individuais que tém por principio a valorizagao do mérito, em detrimento da justica distributiva, e a nega- ilo de toda e qualquer interferéncia do Estado nos assuntos privados. O butro é a efetiva pratica dessa ideologia caracterizada pela abdicagao do Fistado de sua funcao de garantidor de diretos sociais e, Pportanto, da teducao de sua “intensidade protetora” (Cabrero, p. 515). Tal fato pode her demonstrado pelos cortes dos gastos puiblicos na area social; pela expansao de politicas sociais compensatérias e focalizadas na pobreza extrema; pela participacdo mais intensa do setor privado como prove- dor social; pela criaco de restrigdes juridicas ao acesso dos cidadaos a Gertos tipos de direitos, como aposentadoria, tempo de cotizagao para perceber uma prestacio por desemprego, tempo de moradia para fazer jus a um beneficio, dentre outras medidas. Como conseqiiéncia dessa reestruturacao nos objetivos e conteti- tos da politica social e do Estado de Bemestar, as formas de gestao destes também foram reestruturadas. Nesse proceso, em que ressalta a descentralizacdo do protagonismo do Estado e a privacao seletiva de Siias fungées basicas, surge um padrao de protecao social que, segundo Abrahamson (1992), fortalece a dualizacio da pratica do bem-estar, indi- fando o que Titmuss jé mostrara em sua anélise, ou seja, a bifurcacéo ou polarizacdo do sistema de bem-estar em duas frentes: uma, em que o mercado de trabalho ou 0 bem-estar ocupacional cuida dos trabalhado- Yes empregados e, outra, em que o Estado (que tende a se retrair) e Hituigdes privadas filantrépicas cuidam dos que sao empurrados para Margem das oportunidades de emprego e do acesso dos beneficios pacionais obtidos no 4mbito do mercado de trabalho. Como a légica ‘esta dualizacao éjustamente fazer com que a politica social reja-se pelo iincipio da menor clegibilidade, de antiga meméria (conceder, conforme idwick, beneficios cujo valor seja menor do que o pior salirio) ¢ da POLITICA SOCIAL seletividade no atendimento, fica claro que a cobertura da tal aos mais pobres seré inferior a do mercado que também @ cao do Estado, Dessa forma, os menos aquinhoados economics ficam A mercé de beneficios e servicos precdrios que, por sua vez, tef0 cam ou aumentam as desigualdades sociais. Acrescente-se a isso 0 fe» mor de que o desemprego estrutural, em decorréncia do qual 1/3 da populacaio mundial em idade de trabalhar esta fora do mercaad de tra- balho, converta a politica social contemporanea em um mecanismo per> verso de diferenciagao ou segregacao social e em armadilha da pobreza. Como expressao maxima dessa tendéncia vem se destacando nos meios intelectuais e politicos a defesa ideolégica do pluralismo no ambi- to da protecao social contemporanea (welfare pluralism). Por bem-estar pluralista ou misto entende-se a acéo compartilhada do Estado, do yer cado (incluindo as empresas) e da sociedade (organizagdes voluntérias, sem fins lucrativos, a familia ou rede de parentesco) na provisao de bens e servigos que atendam necessidades humanas bésicas. Esta concepcao define uma divisao fundamental de responsabilidades no campo do bem- estar e uma redistribuicio de fungées entre os trés “parceiros”: Estado, mercado e sociedade. Segundo Abrahamson estas trés esferas detém recursos especificos que, na viséo dos pluralistas, podem ser integradas com vantagens, a saber: 0 mercado detém o capital; 0 Estado, 0 poder; e a sociedade, a solidariedade. O capital, incluindo o dinheiro, e o Estado o poder, per tencem ao reino do “sistema”, reino este que, nas palavras de Habermas (1981), tem sistematicamente colonizado a sociedade que é o reino RD “vida” ou o espaco onde sao exercidas as relagdes espontaneas de soli- dariedade e auto-ajuda. Esta é a reflexao que vem funcionando, tanto como critica & pratica da politica social do segundo pés-guerra, quanto como proposta de mudanca radical do eixo e dos ramos desta politica, ¢ que apresenta como inovagao o retorno das agées voluntarias. Por tras dessa reflexio, est, portanto, a invocagio de que o Estado deve deixar de ser o agente principal do processo de provisdo direta de bens e ser- vigos socials para ser o encorajador de empresérios, grupos volunta= & 200 POTYARA PEREIRA rios, familiares e outras esferas nao-governamentais nesse processo (Mishra, 1995: 109). Em suma, a proposta de bem-estar pluralista, ou misto, visa subs- tituir o Estado de Bem-Estar ou Welfare State pela “Sociedade de Bem- Estar” ou Welfare Society. O privilegiamento da sociedade como princi- pal agente de bem-estar tem levantado bandeiras que conquistam ade- s6es em todos os redutos ideoldgicos, visto que pleiteiam emancipar os pobres da tutela do Estado; descentralizar 0 poder; incentivar a partici- pacio popular; dividir custos sociais; diluir a fronteira entre o ptiblico e 0 privado; inaugurar uma visao holistica do bem-estar. Estas bandeiras apropriam-se de conceitos criados pelo pensamento socialista, como “sociedade de bem-estar” e “social welfare’, mas dentro de uma pers- pectiva individualista. A esse respeito vale a pena frisar que a idéia de social welfare, defendida por Titmuss, ndo sugere a minimizacao do pa- pel do Estado na area do bem-estar. Pelo contrario, como um forte opositor que era da privatizagao da politica social, nao admitia, por exem- plo, a exploragao da educago e da satide pelo mercado. Da mesma for- ma, quando Marx se referia a uma sociedade de bem-estar, tinha em mente uma sociedade socialmente igualitaria, e nao legitimadora de desigualdades administradas. Em vista dessas inferéncias, convém ir mais longe no conhecimen- to e na critica das implicagdes do chamado pluralismo de bem-estar. Em primeiro lugar faz-se necessario ressaltar que a proposta em voga do welfare pluralism n&o 6 uma simples variacéo ou um “equivalen- te funcional” das nogdes de Welfare State e social welfare do segundo pés- guerra. Como diz Mishra (1995, p. 111), tal proposta esta baseada em fundamentos diferentes e, por isso, é muito mais do que uma simples (uestio de decidir quem pode, comparativamente, ser mais eficiente na promogéio do bem-estar: o Estado, o mercado ou os setores ndo-mercan- tis da sociedade. Na verdade, o welfare pluralism, ao levantar a bandeira da liberagao dos cidadaos da tutela do Estado, esté negando o bem-estar social como tum direito do cidadao e dever do Estado, j4 que somente este é obrigado Universidade de Brasilia BIBLIOTECA POLITICA SOCIAL a proteger os cidadaos e possui a autoridade coativa necessarla estender esse direito de forma desmercadorizada. Isso sugere, nal mente, néo uma simples estratégia administrativa plural, mas uma con” quista democrética da sociedade organizada em séculos de luta pela sua seguranga social. Por conseguinte, 0 propésito que esta por tras do welfare pluralisin 6 o de desmantelar direitos conquistados pela sociedade nas arenas poll: _ ticas, em nome de uma divisao de responsabilidades, que pode ressus- citar desigualdades j4 abominadas pelo avanco civilizatério. Assim, por exemplo, a devolugio & familia de encargos antes assumidos pelo Esta- do, como o cuidado de criangas, idosos debilitados e pessoas com defi- ciéncia, esta exigindo o retorno da mulher trabalhadora para dentro de casa, restaurando, por esse meio, a desigualdade de género. Ademais, tal forma de divisao do trabalho nao implica, necessarias mente, descentralizagio e distribuigdo de poder. Com a restrigao ou des- tituicgdo de direitos, a participagéo da sociedade torna-se questionavel, pois dela se exige, preponderantemente, a colaboragao e a parceria na divisdo de encargos, antes assumidos pelos poderes ptiblicos. Portanto, uma coisa é descentralizar servigos sem restringir ou des- tituir direitos do cidadao e deveres do Estado e, outra coisa é devolver encargos a sociedade, restringindo ou destituindo direitos e desobrigando o Estado de seus deveres. Da mesma forma, uma coisa é a sociedade funcionar como espaco das classes sociais, exercendo papel de agente critico dos rumos e das tendéncias da politica social e outra é funcionar como agente de solidariedade, colaborando, de boa-fé, com a usurpagaio de seus direitos sociais duramente conquistados. Este 6 0 cendrio em que vem se produzindo a reestruturagao instl tucional da politica social e do Estado de Bem-Estar, a qual tem afetado nao tanto os seus objetivos, mas 0 significado e o alcance de sua prote cdo. Concordando com Cabrero, conclui-se que essa reestruturagao . basicamente se traduzido na diminuicao da intensidade protetora do. Estado, no debilitamento do universalismo e no auge do privat trazendo para o centro do processo de gestio do bem-estar cont 202 POTYARA PEREIRA neo arranjos tradicionais travestidos de novos, que elegem a mistura assistencial como grande novidade. Tudo isso conduz ao entendimento de que o Estado de Bem-Estar e a politica social da atualidade tém como principal alvo a coesao social perseguida por meio de pactos corporati- vos (ou plurais) que, no obstante competitivos, pautam-se pelo princt- pio da subsidiaridade de forte pendor voluntarista.

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