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ensaios 94 PESCADORES, CAMPONESES E TRABALHADORES DO MAR AGRADECIMENTOS Em abril de 1978 eu chegava a Dikhil, mintsculo odsis pré- imo as fronteiras da Somélia e Etiépia. Dali para a frente era 0 deserto atravessado somente pelas caravanas dos pastores noma- des que conduziam seus rebanhos para a imensidéo de areia e pedras. Ao anoitecer, na magia do siléncio, os camelos carregados de mercadorias se erguiam para a grande viagem, e os somalis com as longas e antigas carabinas comecavam a marchar lenta- mente deixando para trds as poucas luzes e a miisica melancolica da branca aldeia as bordas do deserto. Tudo era tao diferente e, ‘40 mesmo tempo, tdo parecido a saida das jangadas no Ceard ou 4 dos botes a vela de Itaipava. . . Na natureza, a mesma imensidao, @ mesmo siléncio, o mesmo perfume. Nos homens, a mesma altivez, a mesma sabedoria, 0 mesmo respeito pelo mar e pela areia, 0 ‘mesmo contentamento pela chegada ao porto e a jonte de dgua. A esses poucos e tiltimos homens livres que me ensinaram as coisas simples, 0 meu respeito e amizade. Aos amigos que viveram ‘comigo esse encontro, 0 meu agradecimento ¢ 0 meu carinho. A ambos dedico 0 que escrevi. LISTA DE FIGURAS E TABELAS FIGURAS 1 — Mapa da diibugio geogriin do ftoplineton, se gundo a sua abundancia 26 2 Mapa da expansio da frota japonesa de atuneiros 42 3. — Mapa dos recursos da Costa Oeste da Aftica 60 4 — Mapa do Litoral Sudeste 106 5 — Mapa da distibuigdo geogrtica das Princpis emp cies de pescado 110 6 — Mapa da produsto de pescado por repo ¢ ie: rentes tipos de pesca 2 7 — Diagrama — Retagées entre as formas de organiza- do da produgdo existente no Brasil us 8 — Mapa do litoral do Estado de Sao Paulo... 118 9 — Gréfico 1: construgdo de camarociros 137 10 — Gréfico 2: construgdo de traineiras 137 11 — Mapa dos princpnis praise de petcadoes — Ubs- tuba : -. 158 TABELAS 1 — Numero, tipo de propulsio ¢ tonelagem dos barcos no Japao 4a 2 — Frota dos barcos acima de 100 nos principais paises 48 3 — rota de navi dries e nviow mes em alguns pa ses mais importantes 48 4 — Formas de propriedade ¢ coped de bareos na Bélgica . 2 10 — nue R- 1B 14 — Tipos de barcos em Santos Embarcagdes acima de 20+ bruas, segundo forma de propriedade Incentivos fiscais da Sudepe, por regido, até 1974 Produ ¢ valor do pescado expturado por regices brasileiras Barcos acima de 90", segnndo 2 rego © 5 forma de propriedade Peseadores por unidades da federagio Nimero © proporgio das embarcagSes motorizadas Relagdo entre producdo e valor da pesca maritima artesanal e industrial no Brasil Formas de organizacao da produgéo na pesca. Caractere das formas de produsdo pesquira em Uatuba, pion 133, 133 134 134 136 144 145 146 150 162 SUMARIO AGRADECIMENTOS LISTA DE FIGURAS E TABELAS INTRODUGAO Primeira Parte © DESENVOLVIMENTO DA PESCA E SUAS CONTRA- DIGOES ceeeees 10-A CAP. I — DA COLETA A CAPTURA DO PESCADO EM LARGA ESCALA ‘A pesca como atividade anterior & agricultura 2 A pesca na Idade Média 3. 0 declinio das corporagdes medievais de pecs eo inicio das pescarias transocednicas .. 4A Revolugfo Industrial na pesca e 0 surgimento da pro- dugio capitalista CAP. I — A ACUMULAGAO DE CAPITAL NA PESCA EUROPEIA DO ATLANTICO NORTE .. 1 As condigdes naturais da produgéo pesqueira 2A produsdo dos trabalhadores do mar na Inglaterra... 3A pequena pesca ¢ producdo empresarial-capitalista na Escandinavia cetttteeeeees u 1B 13 14 7 20 24 21 34 CAP. III — DOIS MODELOS DE EXPANSAO DAS ATIVIDADES PESQUEIRAS: JAPAO E UNIAO SOVIETICA 39 1 © modelo japonés cee eee) 2 © modelo soviético 43 CAP. IV — A EXPANSAO DO CAPITAL E A DEPRE- DACAO DOS RECURSOS PESQUEIROS EM. PAISES DE ECONOMIA DEPENDENTE 47 1 © desenvolvimento das forgas produtivas histéricas na pesca dos paises industrializados ceseeteeee 47 2A depredagdo dos recursos pesqueiros nos pafses de eco- nomia dependente Sodon 37 CAP. V — DA EXPLORACAO DA FORCA DE TRA- BALHO A DESTRUICAO DAS FORCAS PRODUTIVAS DA NATUREZA 7 1 Tendtoc inlendons dx proetroeto de fren. de trabalho ...... : n 2 As relagdes entre o homem e a natureza no ecossistema marinho 81 Segunda Parte © DESENVOLVIMENTO DA PESCA NO BRASIL E SUAS CONTRADIGOES ......0026.6.66., 109A 103 CAP. VI — A ATIVIDADE PESQUEIRA NO LITO- RAL SUDESTE DO BRASIL ....... 105 1 A confgaagio pica! da scumulagéo do capil no setor pesqueiro .. ~ 105 2 O surgimento da produgdo dos atmadores de pesca ¢ dos embarcados no Litoral Sudeste e a liberacdo da forga de trabalho nas companhas catarinenses .. 119 CAP. VII — A CONCENTRAGAO DE CAPITAL E A QRGANIZAGAO "DAS EMPRESAS DE PESCA . 131 CAP. VIII — ENSAIO DE TIPOLOGIA DAS FORMAS DE ORGANIZACAO DA PRODUCAO DA PESCA 148, CAP. IX — AS FORMAS DISTINTAS DE ORGANI- ZAGAO SOCIAL DA PRODUGAO PES- QUEIRA EXISTENTES NO ‘LITORAL NORTE DE SAO PAULO 157 1A produgdo dos pescadores-lavradores sees 161 2. A produgio dos pescadores artesanais sees 166; 3. A produgdo dos armadores e embarcados 168 CAP. X — SURGIMENTO E ARTICULAGAO DAS DI- FERENTES FORMAS DE ORGANIZACAO DA PRODUCAO PESQUEIRA NO LITO- RAL NORTE DE SAO PAULO 173, 1A pequena producdo mercantil simples dos pescadores- -lavradores 173 2A desestruturago da pequena produto mereanti singles dos pescadores-lavradores... : 184 CAP. XI — A PRODUGAO E REPRODUCAO SOCIAL DOS PESCADORES ARTESANAIS 193, CAP. XII — IMPLICACOES TEORICAS NO USO DO CONCEITO DE PEQUENA PRODUCAO MERCANTIL NA PESCA 203 CAP. XIII — © PARTICULARISMO DOS PESCADO- RES B SUA INTEGRACAO NO MUNDO URBANO... 20 1 © pescador ¢ a vida nas cidades cee 220 2 0 beco sem saida dos pescadores artesanais 231 CAP. XIV — A DIVISAO DE TRABALHO NA PESCA DOS EMBARCADOS EA PRODUCAO DO SOBRETRABALHO .. 242 CAP. XV — AS RELACOES SOCIAIS DE FRODUCAO NA PESCA CAPITALISTA 252 252 1 As relagdes de trabalho 2. © sentido da remuneragéo da forgn de trabalho pelo sis: tema de partes... 258 CONCLUSOES ANEXO : BIBLIOGRAFIA 267 273 276 INTRODUGAO Uma velha cacao dos pescadores ingleses diz: “Nés, pescadores, somos livres, fazemos nossa colheita. nor imensos campos do ‘oceano, endo estamos sujeltos nem a corvéia nem a) meagao". Essa liberdade cantada pelos pequenos pescadores, donos de seus instrumentos de produgao ¢ de uma bagagem consideravel de conhecimentos empiricos sobre as condigdes fisicas e biol6gicas da reprodugio dos cardumes de peixe, contrasta com as condigdes desumanas de existéncia dos tripulantes dos barcos pesqueiros vapor, na fase inicial da revolucéo industrial da pesca, em meados do século XIX, na Inglaterra. Os pequenos pescadores tinham-se transformado em verdadeiros proletirios de convés, trabalhando mais de 16 horas por dia, durante os meses em que permaneciam no Mar do Norte, em condigdes durissimas, revezando-se entre 0 quebrar do gelo e o puxar das grandes redes de arenque baca- Thau. Esses trabalhadores do mar, que permaneciam quase 0 ano todo em longas viagens de pesca, longe de suas familias, quando voltavam 20 porto passavam 0 resto do seu tempo nos cabarés & nos bares aguardando serem escolhidos para um novo embarque. ‘A vida desses homens j4 era consideravelmente distinta da dos pequenos pescadores, donos de suas embarcagdes, em que tra- balhavam com suas familias e viviam em comunidades pequenas, espalhadas a0 longo das costas inglesas. Era, no entanto, daf que provinha grande parte da forca de trabalho dos grandes barcos, que no fim do século passado jA pertenciam as empresas de pesca. Se, na Inglaterra, a introdugdo do barco a vapor, a crescente divisio do trabalho nas embarcagdes sempre maiores € © aumento da escala da producdo se fizeram, no setor pesqueiro, com decénios de atraso em relagao aos outros setores da produgio social, como a indiistria téxtil, nem por isso 0 proceso de acumulagdo que 2 introvugio colocou a forga de trabalho do pequeno produtor a disposigéo do capital se fez de maneira mais suave e menos desumana, ‘A exploragio da forca de trabalho dos pescadores embarcados nos portos ingleses, por volta de 1880, nao se diferenciava em nada daquela a que cram submetidos os operérios de fabrica do ‘comego do século XIX: o trabalho estafante dos menores, as lougas horas de trabalho em condigdes de total insalubridade, a brutalidade dos castigos fisicos, ete. ‘A Inglaterra, que no século XIX era 0 carro-chefe da Revolu- ¢20 Industrial na Europa, foi também 0 primeiro pais onde se rocessou a introdugdo do maquinismo nos barcos de pesca. Foi também ai onde mais se agugaram os conflitos entre os proprieté- rios dos meios de produgio, os armadores e donos de empresas de pesca, de um lado, ¢ os trabalhadores da pesca, de outro. Enguanto, na Inglaterra, a acumulago do capital se realizou com a desorganizacio da pequena pesca, cujos pescadores acaba- am se concentrando em torno dos grandes portos, em outros paises do Mar do Norte (como na Escandindvia), a pequena produgio pesqueira ndo desapareceu. Ao contrério, os mestres de pesca que conheciam perfeitamente as condigoes fisicas dos fiordes conse- guiram se adaptar as novas condigées técnicas da captura. Utili- zando a forca de trabalho familiar, esses pescadores experimentados conseguiram integrar, ao nivel de sua unidade de trabalho, iniimeras inovagées técnicas ¢ aumentar consideravelmente a produtividade do trabalho sem se proletarizar. O resultado é que, nesses paises, a pe- {quena produgio € a produg4o empresarial-capitalista coexistem, sem que esta tenha destruido aquela. ‘© aumento constante da capacidade das embarcagdes ¢ dos instrumentos de pesca, 0 aumento do consumo do pescado na Europa e o escasseamento dos cardumes levaram os armadores ¢ empresas de pesca européias a vasculhar os mares em outros con- tinentes. Assim, 0 litoral africano foi invadido por grandes barcos- rébricas ¢ gigantes arrastdes europeus e de outras nagdes indus- trializadas, especialmente a partir da Primeira Guerra. Em outros ‘casos, como 0 peruano, a enorme riqueza biol6gica criada pelo fendmeno da ressurgéncia naquela parte do Pacifico serviu de base a uma indistria de farinha de pescado, controlada pelo capital estrangeiro. No caso brasileiro, até a década de 30 a atividade pesqueira era realizada dentro dos quadros da pequena produgao mercantil Com excecio dos grandes centros urbanos, os pescadores espa- Ihados pelas intimeras comunidades a0 longo do litoral combinavam a agricultura e @ pesca. Enquanto aquela thes fornecia os. meios wtrovugio 3 de subsisténcia, esta Ihes garantia 0 dinheiro incerto e ocasional com que compravam 0 que néo produziam. A introdugdo da captura da sardinha pelas traineiras, cuja producdo em parte era destinada ao enlatamenio, provocou mudan- ‘gas considerdveis na organizagdo da pesca, sobretudo nas Regides Leste ¢ Sul. Apesar de a pesca da sardinha exigir um aporte significativo de capital € usar a forca de trabalho dos pescadores embarcados, tratava-se ainda de um empreendimento. pequeno, desde que a’ maioria dos proprietérios dispunha de uma s6 traineira © participava diretamente do processo de captura. Em_ 1967, pelo Decreto-lei n.° 221, do Governo brasileiro, a Superintendéncia do Desenvolvimento’ da Pesca decidiu fazer da atividade pesqueira uma indéstria de base, carreando para 0 setor um volume considerével de recursos, através da aplicacao dos incentivos fiscais. O objetivo era ambicioso: criar uma pesca em- presarial-capitalista no Brasil. Depois de 12 anos de aplicagio dessa politica, 0s resultados nao foram animadores, ¢ os pequenos pesca~ dores que somente receberam migalhas dos polpudos recursos des- tinados a empresas, muitas vezes fantasmas, continuaram sendo responsaveis por uma grande parte da produgio pesqueira no Brasil. Nesses dltimos anos, a pesca passou por intimeras transfor- ‘mages no Brasil. Surgiram empresas de pesca, e praias antes céle- bres pelos seus pescadores se esvaziaram, sendo ocupadas por resi- déncias secundérias. Essas mudangas ocorridas no setor constituem a preocupacao bésica deste trabalho. objetivo do presente trabalho é estudar as transformacdes ocorridas num setor esquecido da divisio social da produgdo: a pesca enquanto captura de recursos marinhos. Interessa-nos analisar, em paises diferentes, mas principal- ‘mente no Brasil, os processos pelos quais 0 produtor direto foi sendo gradativamente separado das condigoes naturais da producao, tomnando-se um proletério do mar. Hé indicagdes, no entanto, de {que essa proletarizacdo nao seja um processo unilinear e inevitavel. Em muitos casos, dé-se de uma convivéncia ou articulagio de formas diferenciadas de’ produgao. Essa articulago ganha caracteristicas especificas distintas das que ocorrem em outros setores da divisio social da produgdo. Efetivamente, mais do que em qualquer outra atividade econdmica, a pesca é influenciada pelas forcas da natu- reza, com reflexos imediatos na regularidade da captura, na forma: ‘so do excedente, no relacionamento dos grupos e classes sociais envolvidos no processo de produgao. Dai o interesse em se com- parar as formas de produgio ¢ sua articulagio em paises que se encontram em graus distintos de acumulagdo do capital no setor 4 wrnoougio pesqueiro € em que 0s processos de dominincia e subordinago ‘entre as formas de organizacdo se colocam de maneira diferenciad Escolhemos a Inglaterra porque ai o processo de acumulagéo de capital no setor pesqueiro era o mais intenso de toda a Europa, em fins do século passado ¢ inicio deste, trazendo em seu bojo contradigdes marcantes entre 0s proprietérios dos meios de pro- dugdo e 05 pescadores embarcados. Analisamos, a seguir, a pesca na Escandindvia, porque, ao contrério da Inglaterra, verificou-se ai uma rearticulagao da pesca artesanal, realizada em bases fami- liares, frente & pesca empresarial-capitalista, 0 que possibilitou sua sobrevivéncia. Apresentamos, rapidamente, 0 desenvolvimento das atividades pesqueiras no Japao € na Unido Sovitica por repre- sentarem modelos distintos de forma de organizacio social da produgo mas com efeitos similares sobre os recursos naturais, dadas as técnicas de alto poder de predagao que ambos os paises utilizam em sua expansdo pelos mares distantes, considerados como propriedade comum. Entre as regides de economia dependente, analisamos 0 Litoral Noroeste da Africa, érea privilegiada de ex- panséo da frota pesqueira dos paises industrializados, ¢ também 0 Peru, por representar um modelo exportador e totalmente depen- primeira parte deste trabalho. Os processos veri- ficados nesses paises e regides sio complexos ¢ fundamentais para se entender 0 que se passou na pesca brasileira. Por outro lado, no existem trabalhos, no Brasil, que analisem 0 processo de acumulacdo de capital na pesca desses paises. O desconhecimento que em geral se tem desse setor forca-nos a tecer consideragves especificas sobre a atividade pesqueira que de forma alguma pode ser analisada como outros setores da divisio social da producéo, tais como a agricultura ou a inddstria. Essa primeira etapa, ainda que constitufda em grande parte de dados secundérios, é 0 resultado de observagies realizadas num espago de mais de quatro anos, vividos seja na Europa seja outros paises da Africa e Asia. ‘A segunda parte do trabalho concentra a anélise do desenvol- viento da pesca no Brasil © mais especificamente no Litoral Sudeste (Espirito Santo, Rio de Janeiro ¢ Sao Paulo), porque foi nessa regido que a atividade pesqueira propicion uma acumulagao de capital mais intensa, evidenciando contradigies mais agudas que em outras éreas. 0 objeto central ¢ a explicacio do surgimento, da constituicio também das limitagoes hist6ricas do modelo capitalista de orga- intRopucio 5 nizacao das atividades pesqueiras em relagéo a outras formas de produgdo ndo-capitalista, nessa parte do litoral brasileiro. Partimos da constatagdo de que até as primeiras décadas do século atual a pesca, em geral, cra ai realizada em moldes da pequena produgio mercantil, isto & realizada dentro das unidades familiares ou de vizinhanca nas inimeras comunidades de pequenos pescadores alhadas pelo litoral. Se em muitas dessas comunidades 0 pescado j se transformara em mercadoria, em todas elas a produgio dos meios de subsisténcia constituia 0’ objetivo fundamental das ativi- dades pesqueiras. Por volta de 1920/1930, comeca a surgir uma outra forma de se organizar a produgao que tem como base a pesca da sardinha plas traineiras © secundariamente pela pesca dos barcos linheiros que, deixando 0 Rio de Janeiro, iam até os Abrolhos (BA). A armagio dessas embarcagdes néo 6 exigia um volume de capital considerdvel, uma divisdo técnica de trabalho mais intensa no terior das embarcagdes maiores © jé motorizadas, como também implicava © surgimento de um nao-pescador, 0 armador. Além disso, essa captura se destinava, toda ela, ao mercado urbano em expansio. Em oposicdo & pequena pesca, & pesca dos camaradas © companheiros, a producdo dos armadores e embarcados implicou uma separacio gradativa entre o capital e a forca de trabalho, Essa separagio tomnou-se ainda mais visivel com a constituigao das primeiras empresas de pesca na Regio Sudeste onde, a0 con- trario de outras regiGes brasileiras, existem cardumes de pescado que permitem uma exploragdo desses recursos de maneira mais continua regular. Uma linha de pesquisa procura investigar quais foram as con- igdes, quer historicas, quer naturais, que favoreceram o avanco € acumulacao do capital no setor pesqueiro dessa regio estudada, bem como'o surgimento € as relagdes sociais entre os agentes de Producao. Uma outra preocupagao deste trabalho foi analisar a expansio do capital ¢ suas relagées com outras formas de organizacio da Produgio preexistentes, como a pequena producdo mercantil até entdo predominante na area. Desse contato de formas diferenciadas, de organiza¢io da produgio surgiram modalidades especificas de articulagio, que parecem influenciar os mecanismos de reprodu¢ao social de cada um desses modelos. © desenvolvimento da pesca © suas contradigdes nos paises festudados forneceram elementos valiosos para a andlise dos pro- cessos sociais que ocorreram no caso brasileiro, 6 wrnopugio Partimos do pressuposto de que toda atividade transformadora dda natureza se processa por uma combinacdo especifica dos fatores de produgio (objetos, instrumentos ¢ forga de trabalho), organi- zados pelas relagdes de produgao. Essa combinagao de fatores de producao bem como as relagdes sociais se apresentam como formas de organizacao social da produgio. Essas diversas formas nio existem isoladamente, mas historicamente se encontram articuladas, sob a dominancia daquela em que 0 desenvolvimento das forcas produtivas alcangou 0 seu grau mais elevado. Os agentes de pro- ducdo, por sua vez, mantém entre si relagdes sociais que se tradu- zem por oposigdes ¢ antagonismos. ‘Ao contrario de outros setores da produgio, como a inddstria metalirgica, a pesca é em nossos dias, a tinica e iltima atividade humana de caca realizada em grande escala. A mobilidade dos recursos pesqueiros no ecossistema marinho marcado pela comple- xidade dos fendmenos naturais é, em grande parte, responsvel pela imprevisibilidade da captura com reflexos imediatos na propria organizacao da producao e do mercado. As modalidades de rela- bes sociais entre os agentes da producdo parecem ser influenciadas pelas condigées naturais em que se realiza essa atividade. Nesse contexto, ganha importincia a nogdo do espaco lito- rineo, considerado no somente em seus aspectos fisicos, mas tam- bém como um conjunto de condigdes ¢ processos naturais que infiuenciam as relacdes entre o homem e 2 natureza, Realgando a importincia dessas condigdes naturais nfo afir- mamos que sejam elas elementos determinantes na formagéo e transformagdo de formas de se organizar a producio. Somente 2 anélise concreta pode esclarecer como, por exemplo, em deter- minadas condigdes ecol6gicas, nao aparecem, in loco, formas tipica- mente capitalistas de relagdes sociais de produgdo, apesar de a apropriacao final do produto ser realizada por empresas capitalistas (a produgdo é realizada por pequenas unidades familiares em regime de producao mercantil simples, mas a comercializacao do produto € realizada por empresas capitalistas de fora da area), ‘A nosso ver, a expansio do capital, a articulacio de formas diferentes de organizagdo da produc3o, a dominancia de uma sobre as outras, sua realizacdo histérica diferenciada a nivel nacional e/ou regional, sio elementos de base na interpretagio das cha- madas diferencas regionais existentes na pesca. Além disso, a forma de que se reveste essa articulagio, com modos de produgio em idades histéricas diferentes, € um critério nna propria determinagio do conceito regio. Nesse sentido, a regio € um fendmeno histérico resultado do desenvolvimento de dife- intRopugio 7 rentes formas de organizagio da produgdo em graus diferentes de subordinagao ou dominagao (Liptetz. 1977). Vé-se, pois, a ne- cessidade de ultrapassar as explicagies empiricas de desigualdades regionais como fenémeno em si e analisar os graus diversos do desenvolvimento das forcas produtivas nos diversos espagos re- gionais. As desigualdades regionais perdem assim seu carter geo- grafico e ganham significado historico através dos processos. de apropriagao do excedente af produzido, tanto pelas classes sociais regionais como extra-regionais (OLIVEIRA & CaKDoso, 1976) ‘A pesca, enquanto apropriagao material © social de recursos renovéveis e méveis, coloca problemas relevantes na andlise da relagdo entre © homem e a natureza. TeOricos marxistas se referem freqiientemente & natureza como um objeto de trabalho homogéneo ¢ indiferenciado no analisar os fatos naturais da producéo (terra, etc.). Apesar da distingao cléssica feita por Marx (entre objeto de trabalho e instrumento de produgao), a natureza quase sempre ¢ analisada como uma entidade estética. No capitalismo, (5 elementos naturais usados como matéria-prima podem aparecer, para a grande indistria, como um fator de produgdo inerte. No entanto, a situacao é abstrata em formas de organizacéo social de produgio caracterizadas pelo pouco desenvolvimento das forcas produtivas hist6ricas, onde o homem vive quase ao sabor dos ciclos de producio ¢ reproducio natural (como é 0 caso na captura dos cardumes de peixes). Dai a importincia do conceito de Gutelman (1974) de forcas. produtivas.naturais. Diante dos elementos acima assinalados, chamaremos forcas produtivas da natureza 0s processos fisico-quimicos que agem inde- pendentemente da aco humana. £ sobre esses processos, em di- versos niveis de elaboracdo do produto, que o homem interfere através dos outros elementos que formam os meios de producio (nstrumentos de trabalho, etc.). Daf, concluirmos que 0 homem rndo age sobre um objeto de trabalho estético, mas sobre um com- plexo biolégico regido por leis e processos alheios & vontade huma- na, sobre os quais © homem pode interferir, introduzir novas forcas até entao exteriores a0 meio ambiente considerado (cultivo arti- ficial de ostras, por exemplo). Teremos, pois, dois sistemas de produgo que se articulam © social e o natural. A esse tltimo daremos 0 nome de ecossistema natural, entendido como um sistema de elementos, bidticos ¢ abié- ticos, que mantém entre si uma série complexa de relagdes que The permitem reproduzir-se segundo processos naturais (Devts 1974) 8 Irropucio ‘A nosso ver, sio dois sistemas irredutiveis, mas articulados entre si. Assim quando o desenvolvimento das forcas produtivas sociais é reduzido, o homem vive no ritmo das forcas produtivas da natureza. Na medida em que aumenta o nivel de desenvolvi- mento das forgas produtivas, 0 homem consegue um controle maior sobre os recursos naturais, interferindo muitas vezes desas- trosamente sobre os ciclos de reproducdo dos ecossistemas naturais. No aprofundamento da discusso das relacdes entre o homem e a natureza, sobressaem os trabalhos de Moscovici (1972, 1974), Sachs (1974), Bookchin (1976), Galtung (1974), Harvey (1974), Bourgoignie (1972a), Barrau (1975). Decorrente desta postura, coloca-se o debate em termos de ppercepcao que cada grupo ou classe social tem do meio ambiente (GopeLieR, 1974), segundo os objetivos da produsdo, bem como © conceito de taxa de exploragio nao s6 de mio-de-obra, como da natureza dentro da forma capitalista de producdo (SKIBBERG, 1974). Determinar a identidade das diversas formas pelas quais se organiza a producdo pesqueira é também reconhecer que elas pas- sam a existir a partir de condigoes naturais especificas, marcadas por processos que denominamos, anteriormente, de foreas produ- tivas da natureza, A regiao escolhida para a anélise das diversas formas de orga- nizagao da producdo na pesca foi o litoral paulista, de modo particular o Litoral Norte. Nas proximidades se localiza 0 pesqueiro da Ilha Grande, o Mar Novo, rico em sardinhas ¢ outras espécies, de pescado. Pode-se encontrar ai o lavrador-pescador de Ubatu- mirim, 0 pescador artesanal do Portinho, na cidade de Ubatuba, © pescador embarcado nas traineiras de Picinguaba e os pescadores embarcados de uma moderna indistria de pesca, em Sio Se- bastiao. ‘A pesquisa de campo foi utilizada em 1971 € 1973, com o levantamento de 24 nticleos de pesca, abrangendo 470 familias de pescadores. Destes selecionamos uma amostra de 90 pescadores, estratificados em donos de aparelhos de pesca e camaradas para @ equena pesca, os mestres, tripulantes ¢ armadores para a pesca em¥arcada, Entre 1976 e 1977, voltamos a érea por varios meses, refazendo algumas entrevistas, sobretudo com 0s pescadores que apés a construgao da rodovia litoranea (BR-101) haviam deixado as suas praias ¢ migrado para a cidade de Ubatuba. O contato diario com os pescadores na rampa do porto, refigio dos pequenos pescadores, acuados pelos turistas, nas baleeiras do Portinho e nas traineiras do entreposto, propiciou-nos um conhecimento maior do wntRopugio 9 homem do mar, conhecimento esse iniciado nos anos de trabalho em Cananéia e Tguape (1969-1971). A convivéncia com os caiga- ras do Litoral Sul, com os quais nos identificamos por termos vivido em Iguape durante muitos anos, permitiu-nos melhor conhe~ cer alguns tracos bésicos dos homens do mar daquela regido, bem como compard-los com outros pescadores do Brasil. Em 1976 realizamos uma viagem de estudo a algumas vilas de pescadores € portos do litoral nordestino. Entre elas citamos Prainha no Ceara; Pitangui no Rio Grande do Norte; Munda em Alagoas e Itaipava no Espirito Santo. A partir dessas pesquisas, claboramos uma série de trabalhos que juntamos sob o titulo: “A pesca artesanal € a pesca empresarial no litoral nordestino” (1978). ‘Na Europa, estudamos diversos portos pesqueiros. Habitando cerca do porto holandés de Scheveningen, observamos os pescado- res de arenque que safam, logo no fim do inverno, para 0 temido Mar do Norte. As senhoras idosas, vestidas tradicionalmente de preto, que andavam no quarteirao do porto, lembravam os intéme- tos pescadores que haviam perdido a vida no mar. A tristeza das vitivas contrastava com a alegria dos moradores da cidade que aguardavam, com impaciéncia, 0 descarregamento dos primeiros arenques jovens em maio/junho, literalmente engolidos, como man- da a tradigao holandesa. A visita a0s portos ingleses do Oeste da Inglaterra colocou-nos em contato com a grande pesca realizada em moldes empresariais-capitalistas, com seus conflitos © contra- digdes (1978). 'Em trabalho nas Nagdes Unidas ¢ na FAO conhecemos pesca- dores de outras partes da Africa, desde a Tha de Luanda até Zanzibar, onde constatamos intimeros pontos comuns com os pes- cadores do Nordeste brasileiro TTivemos também a oportunidade de conhecer as comunas populares de pesca de Beihai, no Golfo de Tonkin, China, os pes- cadores artesanais indonesianos da Ilha de Bali, Indonésia, © os de Sabah, na Malésia. Esses trabalhos nos permitiram avaliar a importincia da pesca no continente asistico que produz quase 50% do pescado produzido no mundo e onde o peixe é a fonte de pro- teina mais importante. PRIMEIRA PARTE O Desenvolvimento da Pesca e suas Contradicoes Cariruto I DA COLETA A CAPTURA DO PESCADO EM LARGA ESCALA 1 A pesea como atividade antefior & agricultura Pouco se sabe sobre a pesca nas sociedades primitivas, ainda ‘que, segundo indicagdes arqueol6gicas e etnol6gicas, ela’ tenha representado uma importante fonte de alimento em periodos ante- riores ao aparecimento da agricultura. Sem duivida, anteriormente & captura do pescado, 0 homem primitivo era um coletor de moluscos. Os restos de cerdmica, cascas de ostras e mexilhdes encontrados na Escandindvia, atestam a importancia dos moluscos na alimen- taco humana no periodo anterior ao Neolitico. Segundo Herubel (1928), nas grutas de Madeleine (Franca) existem gravuras de peixes ao lado de bisontes. O arpao encontrado em Oban e nas ilhas de Seeland junto a restos de peixes e bisontes seria usado indistin- tamente para matar peixes e animais terrestres. Segundo o mesmo autor, somente no final do Paleolitico foi inventado o anzol, cujo uso representou um grande avango na pesca. J4 no Neolitico, a tece- lagem primitiva permitiu 0 aparecimento das primeiras redes de pesca, ‘Ao que parece, nesse periodo a pesca era principalmente lacustre ¢ fluvial. Ainda segundo Herubel (1928), apesar de a embarcacdo egipcia ser mais antiga, a tipica embarcagio neolitica empregada na pesca € a piroga cavada em um tronco $6. Quanto a0 método de conservagio do pescado, o baixo-relevo do timulo de Mera, em Saqquarah, datando da sexta dinastia do ‘Les premiers cordages et les premiers filets apparaissent dans les palafites suisses du lac Pfoeffikon.. Leur substance este Te lin, le lin sauvage, Linum ‘agrestfolivm, qui croit encore dans les régions méditerranéennes. Les mailles fn sont grandes et carrées; des cailoux faisaient office de plombs, les flotteurs consistaient de fragments «écorce de pin” (HER! 14 CAP. 1 — DA COLETA A CAPTURA DO PESCADO. .- Império Menfita, € um dos antigos testemunhos da atividade pes- queira. Ele representa escravos egipcios secando peixes, e Herédoto afirma que no Egito Antigo 0 consumo de pescado era consideravel, © mesmo acontecendo com o atum seco na Grécia Antiga. Jé no Império Romano, ¢ sobretudo a partir da aparigio do cristianismo, 0 consumo de peixe era considerdvel. A Lei Licfnia, por exemplo, prescrevia os dias em que somente se devia comer pescado, Embarcagées ligeiras faziam o trajeto entre a Sicilia ¢ Ostia carregadas de pescados, que ja eram conservados em azeite. Também dessa época jé existem indicagdes de cultivo de ostra sobre telhas, na Provenca. A pesca mais comum no Mediterrineo era a do alum, mas pescava-se também a satdinha, a lagosta, a baleia, etc Guanto & organizagio da producdo existem poucas informa- bes; @ pesca era uma atividade de escravos, sendo 0 comércio, porém, controlado por negociantes especiatizados. 2 A pesca na Idade Média A atividade pesqueira conheceu um grande avango na Tdade Média, quando podemos identificar dois momentos. No primeiro ‘momento, a pesca se realizava no interior das propriedades feudais, constituindo-se em uma atividade ligada a agricultura e praticada sobretudo nos lagos, Iagunas © zonas costeiras. Assim, era comum na Inglaterra e Franca que a renda da terra fosse paga, pelo servo- camponés a0 senhor, em peixe, como a enguia (HERUBEL, 1928). Na Inglaterra, jé em perfodos anteriores & Revolucio Industrial, sobretudo em’ areas periféricas como nas Ilhas Shettland (mesmo nos séculos XVII-XVII), © proprietério das terras contiguas & costa aceitava peixe e éleo de peixe como pagamento da renda da terra (SMITH, 1971), ‘A pesca ea fabricacio de rede também foram atividades econémicas incentivadas pelos monges, possivelmente para atender © consumo crescente dos cristios. Em Bolonha, onde a pesca era uma das atividades dos saxdes, vindos do Norte no século IV, fabricavam-se redes nos mosteiros. Do século VIT ao X, 0 peixe entrou definitivamente na alitnentagio popular, mesmo nas zonas rurais, onde se consumiam 0 arenque, 0 atum salgado e a carne de baleia. A aristocracia feudal consumia salmo, lagostas e outros pescados finos. O arenque tornou-se o peixe mais popular da Idade Média e foi o fundador de todas as cidades € portos de pesca do Mar do Norte e da Mancha (Boyer, 1967. p. 7). A PESCA NA DADE MéDIA 15 No segundo momento, a pesca passou a ser uma atividade exercida sobretudo pelas cidades medievais. Assim, por exemplo, em 685, as 72 pequenas cidades de pescadores e marinheiros do Adriético reuniram-se para formar a Reptiblica de Veneza. E inte- ressante salientar que ja nos séculos X e XI gra comum, tanto no Adridtico quanto na Francs, a utilizacdo de piscariae, como cultivo extensivo de pescado. Entradas de estudrios © pequenas baias eram cercadas formando acudes, cujos peixes af retidos eram alimentados naturalmente pelas ricas Aguas estuarinas, ao fluxo da maré#, A pesca da Alta Idade Média era praticada intensamente, nio so- mente na Escandindvia, mas também no Mediterrineo, na Bre- tanha, Normandia, no Cantabrico © na Inglaterra. Aj, j4 no século IX, estabeleceu-se uma legislacdo especial para a ‘protecio dos alevinos de salmao. Por essa época tornou-se célebre a pesca da baleia pelos bascos no Golfo da Gasconha. A carne desse ceticeo era salgada e largamente utilizada como alimento dos exércitos € das equipagens dos navios, a0 passo que 0 azeite servia como combustivel para iluminagdo. Com o periodo das invasdes dos normandos, hiingaros ¢ sarra- cenos, 0 comércio do pescado foi desorganizado, mas ao final dos séculos X e XT foi restabelecido com grande prosperidade. A partir dessa época comegaram a aparecer as corporacées ou confrarias de comerciantes, como a Confrérie des Marchands de I'Eau, a dos Freres Pontfies, empenhados também no comércio de pescado. Em Paris e nas grandes cidades da Franga existiam corporagées, distintas para os mercadores de peixe de agua doce e de mar. Estas tiltimas compreendiam diferentes tipos de comerciantes, como 05 ambulantes, os varejistas, os atacadistas, etc. ® Herubel (1928) descreve-nos o funcionamento das atividades Pesqueiras em Boulogne, em fins do século XI e no século XI, quando o arenque tinha se tornado um meio de troca. A pesca do arenque se realizava através do sistema da hdtage ou contrato 2 Essas tapagens existem até hoje no Adriético © so chamadas valli de Pesce ou valicullura, sobretudo para o cultivo extensivo de espécies estuarinas como a tainhs. Procedimento idéntico pode ser observado no litoral nordes- tino (Pernambuco © Rio Grande do Norte), sob 0 nome de viveito. ‘Na Franga, foram os normandos que incentivaram a pesca do arenque na Mancha © no Mar do Norte. Desde’ século XI, os portos de Boulogne ¢ Calais se dedicavam a pesca e comércio do arengue. No século XIII, no ‘sino do rei So Luis, apareceram 0s jurés vendeurs, fiscais que controlavam 2 qualidade do arenque vendido e a quantidade deste peite que cada pessoa era autorizada a comprar. Por volta de 1400, o rei Carlos VI estabelecia © primeiros regulamentos de controle do tamanho das. mathas ‘das redes para a protesio dos carduines, 16 ca. 1 — 0d COLETA A cAPTURA DO PESCADO. . entre um burgués da cidade ¢ um mestre de barco, pelo qual o primeiro adiantava o capital necessério @ construgao e a0 arma- mento da embarcagio. A embarcacdo tipica usada na_pesca do arengue tinha de 10 a 15 toneladas, com uma tripulagéo de sete a oito pescadores. O mestre da embarcacdo, ou hdte-marinier, apis a venda entregava a0 hdte-bourgeois um sole por quilo de arenque pescado. Na repartigao da produsdo, 0 bareo eo mestre tinham Gireito @ uma parte, € 0s pescadores a outra. A venda era feita por leilao, frente a um magistrado local que anunciava os pregos de cada lote de pescado. ‘A preparacéo do arenque em salmoura, que comecou prova- velmente no século XIV, na Holanda ou Bélgica, incentivou ainda ‘mais a pesca, pois esse pescado podia ser mais facilmente transpor- tado para as cidades do interior. A conversio dos povos escandinavos e eslavos ao cristianismo, por volta do século XI, provocou um aumento do consumo e da captura do pescado, principalmente do arenque, no Mar Baltico fe no Mar do Norte. No século XII, os holandeses se lancaram na pesca do arengue, a partir de Rotterdam, Amsterdam e de Middelburg, onde, em 1271, se formou uma corporagdo de comer- ciantes que vendiam o pescado em Bruges e outras cidades fla- mengas. A pesca do arenque passou a ser to vital para varias cidades do Mar do Norte © do Béltico, que a Liga Hansedtica, criada em 1241, passou a controlar o seu comércio. Financiando 2 pesca, a Liga, que chegou a reunir 90 cidades sob sua guarda, monopolizou 0 comércio do pescado, estocando a producao e fixan- do 0 prego. O monopélio por ela exercido era téo forte que, em 1422, os navios da hansa afundaram os barcos de pesca holandeses ndo-sécios, que haviam mesmo aperfeigoado as redes do arenque *. © aumento de escala da producdo se refletiu também no aumento do poder de captura dos apetrechos de pesca e do tamanho das embarcagées, que j se distanciavam da costa a busca dos cardumes. ‘Assim, os barcos de pesca do arenque tinham atingido 100 tone- Jadas (variando de 10 a 1001), usando grandes redes de cerco ede deriva. Em 1416, os holandeses comecaram a ajuntar varias redes, ¢ em fins do século XV apareceram grandes redes formadas por até 50 panos, com 300 pés de comprimento € nove pés de altura cada uma, ‘culo XV, os holandeses eram os maiores produtores de_arenque, utiizando mais de 1000 barcos de pesca, tripulados por mais de 20000 ppescadores. (© DECLINIO DAS CORPORAGOES MEDIEVAIS DE PESCADORES... 17 J4 no século XIV, estabeleciam-se os primeiros tratados regu- lando (HERUBEL, 1928) a pesca do arenque. Em 1357, realizou-se © primeiro tratado sobre permissio de pesca entre os reis da Ingla- terra, da Dinamarca, os Condados de Flandres e Holanda. Em 1410, as frotas de barco foram classificadas por nacionalidade, e a pesca noturna foi proibida. Em 1468, planejou-se uma confe- réncia entre os ingleses, franceses € holandeses visando uma patru- Tha das zonas de pesca. Por fim, a competicio e a demanda do pescado tomaram-se to intensas que os basces, senhores da pesca a baleia no Mar do Norte, foram expulsos da regio pelos holan- deses, indo aventurar-se j& no Atlantico © Por volta do século XII, surgiram na Peninsula Ibérica as primeiras corporagdes medievais — as confrarias de pescadores. Estas se tormaram to poderosas no século XIV que chegaram a declarar guerra contra a Inglaterra por conta prépria, ganhando © direito de pescar no litoral daquele pais. 3. 0 dectinio das corporagies medievais de pescadores e das pescarias transocednicas cio Essas poderosas corporagdes entraram em choque com 0 poder nacional emergente, ¢ a vit6ria do Estado moderno levou a disso- lugio de grande parte das mesmas, o que ocorreu no fim do reinado de Carlos V, em meados do século XVI‘. Essas corporagées 5A captora da baleia, iniciada pelos bascos no Golfo da Gasconha, foi uma «das principas.pescas' da Idade Média. Por mais de 200 anos, 0s bascos farmavam anualmente de $O a 60 barcos para a. pesca desse cetéceo; mas, ro século XVII, 08 holandeses passaram a dominat essa captura. Em 1696, les conseguiram armar mais de 200 barcos, que iam pescar a baleia rote: 4idos por mais de 10 navios de guerra. A» partir de meados do. século XVII, a pesca cada vez mais intensiva levou a0 desaparecimento gradativo esse cetéceo do Mar do Norte No Mediterrineo, a primeira corporaglo de pescadores, a de Tortose, parece ddatar de 1116 (Onoza, 1966), Essas_guildas reoniam-se em irmandades sendo as primeiras as de Astirias ¢ Galleia (1205), reunindo as cidades da repiio; a segunda, a de Castilha (1296) (Onoza, 1966).. Essas corporagoes fram organizadas para defender os direitos de seus astociadas, eos diversos teis da Espanha reconheceram os seus. privilégios. Assim, Fernando Tl, em. 1237, garantiushes 0 direito de julgar e resolver as disputas entre os pesca ores, sendo o chefe da corporagio © magistrado méximo. no posto de pesca’ (Ono2a, 1966). Os regulamentos da Confreria de Pescadores de Bermeo, fundada em 1353, rho Norte da Espanhs, apresentam muitas similitudes com os existentes para 8 Coldnias de Pescadores no Brasil. Esses regulamentos davam aos mayor: 18 CAP, 1 — DA COLETA A CAPTURA DO PESCADO. dificultavam a livre utilizagao da forga de trabalho pelo capitalismo emergente ¢ a acumulacdo de capital nas maos da burguesia * ‘A medida que a atividade pesqueira se exercia em mares mais distantes, necessitava-se de mais capital para a armacao dos barcos e manutengao das tripulagdes. J4 no século XV, os barcos de pesca bascos e bretées chegavam a Peninsula do Labrador (Canada) & procura de bacalhau que seria 0 peixe mais capturado do século XVI ao XVIII, assim como o arenque foi 0 peixe da Idade Média, ¢ o atum, da Antigiiidade. Essas viagens de pesca ao Labrador exigiam uma verdadeira organizagao empresarial. A primeira Companhia do Canadé, fun- dada pelos moradores de Dieffe ¢ La Rochelle para comércio € colonizacao, tinha barcos de 40 a 150 toneladas para a pesca no Atlantico. Esses navios, protegides por uma escolta, partiam para Portugal, em inicios de abril, onde embarcavam 0 sal. Apés pescarem até fins de agosto na Terra Nova, voltavam com sua carga de bacalhau salgado e seco para a Franca. Os barcos france- ses, no comércio com as Antilhas, traziam de lé café, acacar, tabaco € rum, ao passo que levavam bacalhau seco para alimentar 1s escravos empregados na cultura canavieira, domos de cada porto poderes consideraveis. Os seiiores ou aleaides del mar ‘devidiam quando a temporada de pesea devia comegar, ordenavam a perma néncia da frota no porto quando da imingncia de mau tempo, bem ‘como, através de sinais com fogo, avisavam os barcos no mar da" presenga de pitatas, Os regulamentos estipulavam inimeras contibuigses & Tere, cuida- ‘vam da seguranga dos barcos de seus associados no mar, tratavam do'resgate e seus membros em caso de rapto por piratas, distribuiam os pescadores mais Kdosos entre as diversas tripulagbes, estipukivam @ parte que os pesca: ores doentes recebiam, quando inativos. Essas ordenangas. proibiam mesire de barco de despedir um pescador até que terminasse a temporada de pesca, impunham controle 3s atividades comerciais dos regareros e mula: eros, obrigavam a observincia dos dias de fesas religisas, FA pesca de longo curso, que exisia mais capital, maior flexibiidade na utilizagio dos meios de produgio e da forca de trabalho, nio se enquadrava ‘mais os limites estritos das’ confrerias medievais. Estas limitavam o livre comércio (“ordenamos que cada y cuando algunos regatones tomaren pescado fresco para la provision de la villa que no sea osado de hacer otra reventa a los mulateros"); limitavam livre utlizagSo da forga de wabalho ("que ning maestro sa osado de echar ve su arco marinero gue se de corde sin causa bastante"); Tmitavam também a competigio ("que la. vispera de fiesta que ha de haber procesion vengan los hatcos al puerto antes de Tus lavemarias” ou “que ninguno salga ala pesca antes del albe a la pena de este capitulo”). “Comemoracidn del VI Centenario de la Promulgacion de Tas Ordenanzas de la Contreria de Pescadores San Pedro del Puerto de Bermeo” (1953) (© DECLINIO DAS CORPORAGOES MEDIEVAIS DE PESCADORES... 19 ‘Com o aparecimento da pesca de longo curso, o tamanho e a tonelagem das embarcacdes de pesca aumentaram consideravel- ‘mente. Nesse particular, os barcos de pesca acompanhavam as inovagdes da engenharia naval desenvolvida pelos navios empre- gados nas grandes viagens de descobrimentos. No século XVI, as caravelas foram adaptadas para pesca, sendo substitufdas no século XVII pelos brigantins. Apés a Revolu- sao Francesa, apareceram os brigues a trés velas. Cada vez mais (5 veleiros de pesca se tornavam maiores € mais pesados & Dentre os diferentes tipos de redes, as de arrasto foram as que ‘mais se desenvolveram, principalmente a rede de trawl (arrastio), qual, mediante um longo processo evolutivo, se transformou, de ‘um simples aparelho de pesca artesanal, no apetrecho industrial de maior poder de captura. Em conseqiiéncia da introducio, ha menos de 100 anos — na década de 1880 — da méquina 2 vapor, e, posteriormente, do motor a combustio intema a bordo dos barcos pesqueiros, 0 beam trawl comecou a ser utilizado cada vez. mais intensamente. Poste- riormente, passou-se para o sistema de parelha (dois barcos arras- tando uma nica rede de maiores dimensoes — 0 bull trawl) e, finalmente, com a inven¢ao das portas (tabuas que servem para manter a boca da rede aberta), 0 apetrecho tomou nome de otter trawl. Dado 0 seu alto poder de capturar, 0 arrastéo ou traw! pode ser considerado 0 aparelho da grande pesca por exceléncia, Posteriormente, 0 barco que arrastava 0 trawi foi chamado de trawler®. 0s bascos que freqllentavam regularmente a Terra Nova chamavamena de ha dos Bacafhaus, 14 no século XVI, frotas de mais de 200 veleiros iam petcar na Terra Nova. No século XVI, os ingleses se langaram também ‘ha pesca do bacalhau, competinéo com os franceses que entio gozavam de um quase monopélio nessa atividade. As diversas guerras entre a Inglaterra e a Franga afastaram esta cltima da pesca na Terra Nova. No ‘comego do século XIX, os franceses recomesaram a freqiientar as éguas do Canadé. De 1836 2 1840, em média 150 barcos, com 26 000 homens, fazia 1 temporada do bacalhau na Terra Nova. O Estado incentivava essa ativi- dade, atrbuindo 50 frances por pescador, 22 francos por quintal de bacalhan seco exportado. Os principais instrumentos de captura eram os anz6is. Por volta de 1875, as pesadas chalupas a vela foram substituidas pelos doris, cembarcagées mais ligeiras. No fim do século XIX, os barcos da pesca ‘cefinica tinkam trés mastros, por volta de 300 a 400 toneladas, e exam Uwipulades por cerca de 30 pescadores. ° Traduziremos trawler por arrastio (batco). 20. CAP. 1 — DA COLETA A CAPTURA DO PESCADO 4 A Revolugio Industrial na pesca ¢ 0 surgimento da producio capitalista Podemos dizer que a pesca do bacalhau, a longa distancia, praticada especialmente na Peninsula do Labrador por armagoes vindas da Europa, constitui um exemplo tipico e mais avangado da empresa mercantilista dos séculos XVII © XVIII. A excecio dos armadores independentes, que pescavam com sua propria em- barcacio, eram os comerciantes europeus que equipavam os barcos bacalhoeiros nas expedigdes & Terra Nova, dividindo os lucros ‘com os mestres e peseadores ao fim da temporada. Desta maneira, assistimos, com a expansdo da pesca a longa distincia, seja nas costas da Africa, seja no Canadé, ao surgimento de ‘um novo tipo de organizacdo da produgio que escapava ao pequeno pes- cador costeiro europeu. O volume de capital necessério supunha uuma organizagio empresarial, que se baseava nas. premissas do ccapitalismo comercial e nao mais na unidade familiar. Em alguns ppaises, como a Franca, 0 aumento da captura na pesca costeira levou a0 empobrecimento dos fundos ¢ a uma diminuicéo da produ- tividade ja na segunda metade do século XIX, incentivando a pesca de longo curso. Um caso tipico ocorreu na’ pesca da lagosta na Bretanha, feita com covos transportados em embarcagoes aber- tas. No fim do século XIX, as pequenas embarcagdes foram subs- tituidas por sloops de 20 toneladas, que podiam levar um nimero maior de covos. Com a sobrepesca das dreas tradicionais, os pesca dores atravessaram a Mancha para pescar nas costas da Inglaterra, «dai se deslocaram para o litoral de Portugal e da Mauritania. ‘Ainda no periodo em que a pesca de longo curso era feita com barcos a vela (primeira metade do século XIX), alguns fatores vieram incentivar 0 aumento da produgio pesqueira: um deles, ressaltado por Kerzoncuf (1917), foi a melhoria dos meios de transporte, através das estradas de ferro que facilitavam a co- mercializagio dos pescados nos centros urbanos. Um segundo fator foi o uso do gelo como meio de conservagao do pescado, intro- duzido por armadores de Hull, em 1860. A utilizagao do gelo permitiu também uma permanéncia maior no mar bem como a oferta do pescado in natura nos mercados urbanos. O uso de redes maiores, o aumento de carga permitida pelo gelo, tornaram os veleiros de pesca pesados € dificeis de ma- nobrar. A invengao do barco a vapor veio resolver 0 grave pro- blema de locomogio dos barcos, que ja atingiam centenas de tone- ladas de carga no fim do século XIX.

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