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Esta comunicação integra a mesa coordenada proposta sob o título “A Anatomia do Macaco: Marxismo
e Pré-Capitalismo”.
1
Paul Cartledge, Sparta and Lakonia, A Regional History 1300 to 362 B.C. London, Henley & Boston, p.
357.
Fundada no mito imemorial de Licurgo, Esparta foi, a um só tempo, senhora e
serva de suas determinações tanto econômicas, quanto políticas e culturais.
Demonstraremos aqui, na medida do possível, as intrínsecas relações entre as três
esferas, insustentáveis em sua solidão, mas sólidas em sua sustentabilidade conjunta,
amalgamadas pelo viés religioso, bem à maneira dos gregos.
A presente análise abarcará a Idade das Trevas, que vai de cerca de 1200 a.C a
800 a.C. até o momento imediatamente anterior a Primeira Guerra da Messênia (743
a.C. a 724 a.C.), pois acreditamos que, se incluíssemos esse evento enquanto parte do
objeto de estudo, estaríamos aproximando dois momentos que compõe etapas distintas
da história lacedemônia. A primeira parte, da qual nos ocuparemos aqui, é onde se aloca
a miscigenação inicial dos grupos heterogêneos e a catalisação dos processos
socializantes, seja através de trocas, comunicação e conflitos, todos inerentes à
formação da identidade lacedemônia, origem de esparciatas e periecos, unidade que
veio a constituir o arcabouço para a Esparta do período Clássico. A segunda, com a
direta interação dos habitantes da Mêssenia, que até então interagiam com os
lacedemônios como qualquer outro conjunto populacional da região, tais como os
argólidas, coríntios ou arcádios; agora enquanto contingente escravizado por uma força
guerreira devidamente aparelhada, representando então uma especialização flagrante,
um dos frutos do processo que pretendemos descrever aqui. É importante
esclarecermos, expressamente, o motivo de nos referirmos, nesse momento específico, a
essa sociedade como lacedemônios e não em termos de espartanos, esparciatas ou
periecos, pois como Massimo Nafissi define:
Tradition thus spotlights the Heraclid kings at the centre of Dorian
ethnogenesis in Laconia. They resided in Sparta, a group of villages which
probably arose in the tenth century on a site of apparently scant importance in
the late Bronze Age. The myth of a Dorian ancestral homeland possibly
retained the memory of a provenance beyond the Peloponnese, but a Dorian
identity first crystallized in the Spartan community in Laconia and was then
assumed by other groups as well. Between the tenth and eighth centuries, this
process accompanied the development of a homogeneous regional material
culture and culminated in the formation of a Lacedaemonian identity2.
Devemos atentar ainda para as razões que nos levaram a eleger os vestígios
arqueológicos, principalmente os encontrados no santuário de Artemis Orthia, como
fonte principal de pistas sobre traços da organização social lacedemônia da Idade das
2
Massimo Nafissi, “Sparta”. In: Kurt A. Raaflaub and Hans van Wees (org.), A Companion to Archaic
Greece, 2009, p. 118.
Trevas. Nunca houve um consenso seguro sobre a confiabilidade das fontes escritas,
sejam elas diretas, como no caso da obra Licurgo de Plutarco, ou meramente
comparativas, como em Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, nem mesmo a poesia de
Tirteu permanece como ponto fixo no horizonte nublado que é o período pré-arcaico.
Para que evitemos definitivamente a spartiate mirage, ou seja, a idealização dos valores
dessa sociedade; compartilhamos com o ponto de vista de Nigel Kennell e Nino
Luraghi, quando enunciam que:
A recent paper shows the pitfalls of using Roman era texts to elucidate
archaic and classical material evidence. By focusing on the archaeology of
Laconia, we can expect an internally consistent picture to emerge, which will
prompt further investigation in the field as well as renewed interpretation of
the artifacts already recovered3.
A Idade das Trevas pode ter sido um período iletrado e com o seu devido
retrocesso das forças produtivas, encerrando uma profunda instabilidade dos
assentamentos e redução populacional, principalmente pronunciada na região da
Lacônia4. Porém, de maneira alguma, foi vazia de vida cultural, sendo uma das provas o
desenvolvimento da cerâmica final com desenhos geométricos5. Ao contrário do que se
pode pensar, esse tipo de cerâmica, mesmo ainda em seus primeiros estágios de
desenvolvimento, já demandava um alto grau de destreza e conhecimento dos desenhos
a serem empregados na superfície cerâmica, além do julgamento para a sua composição,
como nos atesta Michael Shanks6, em sua obra Art and the Early Greek State: An
Interpretative Archeology.
J. N. Coldstream, ao comentar os primórdios da cerâmica lacedemônia, relaciona
um primeiro impulso produtivo na porção sul do Peloponeso à produção da cidade de
Argos e Coríntio, baseadas na parte norte da península. Porém, já no início do Lacônio
Geométrico, anterior ao sétimo século com exemplares encontrados no sítio de Artemis
Orthia7, o autor afirma a originalidade do estilo, inovando em diversas formas e
3
Nigel Kennel & Nino Luraghi, “Lakonia and Messenia”. In: Kurt A. Raaflaub and Hans van Wees
(org.), A Companion to Archaic Greece, West Sussex, Blackwell Publishing, 2009, p. 240.
4
Massimo Nafissi, op. cit. p. 117.
5
Moses Finley, Os Gregos Antigos. Lisboa, Edições 70, 1963, p. 17.
6
SHANKS, Michael. Art and the Early Greek State: An Interpretative Archeology. California: Standford
University.
7
John Nicolas Coldstream, Geometric Greece. 2a Edição, Londres, Methuen, 1977, p. 160.
temáticas e na autenticidade das olarias lacedemônias e suas figuras negras com
contornos brancos8, apresentando técnicas cada vez mais especificas, a produção
cerâmica requer, cada vez mais, artesãos inteiramente dedicados a sua confecção.
Shanks ainda é mais enfático quanto à identificação de trabalhadores especializados no
processo produtivo relativo à cerâmica, insinuando até a presença de ajudantes, que
desempenhariam funções mais simples, por exemplo, adornando os vasos com os traços
mais comuns e repetitivos, necessários a formação de um mestre cerâmico. Sendo
assim, o autor nos diz:
I suggest instead that polychromy was another mark of technical mastery;
adding a secondary colour of slip complicates an already difficult process.
(…) it is something else which risks spoiling the vase (…) Much of the
decoration, like the pot shapes, is repetitive. The areas of freehand and
incised figured work are set off in linear friezes by border lines and areas of
repeat geometric and floral devices. These all require much less skill,
dexterity and risk, and could be undertaken by someone of less experience
than the frieze painter, an apprentice perhaps. (…) The workmanship of
risked hand and brush is new, but occurs within a frame (literally) of
dependable technological and technical practice and knowledge9.
8
Ibdem. p. 159.
9
Michael Shanks, op. cit. pp. 39-40.
10
“Not the least interesting of the finds at the sanctuary of Orthia was the artistic reputation of early
Spartans, which had been buried beneath the militarism of their descendants”. R. M. Dawkins, The
Sanctuary of Artemis Orthia at Sparta. Londres, Mc Millian & CO, 1929, p. 52.
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O relatório da escavação encontra-se completo e disponível na internet através do site:
http://www1.lib.uchicago.edu/cgi-bin/eos/eos_title.pl?callnum=DF261.S68D3
e segmentação social engendrado no seio da sociedade lacedemônia, mais precisamente
entre os segmentos que viriam a se chamar esparciatas e periecos. Sobre a localização e
fundação do santuário de Artemis Orthia, Nigel Kennell e Nino Luraghi caracterizam-
no como mais importante relicário da divindade em solo grego, localizado na margem
oeste do Rio Eurotas no limite leste da aldeia espartana de Limnae. Fundado entre o fim
do nono e o começo do oitavo século, já dotado de um local específico, completamente
pavimentado, para a realização dos rituais e libações12. O arqueólogo J.P Droop enfatiza
a singularidade daquele sítio através da enorme quantidade de amostras fornecidas em
suas escavações:
The local nature of the ware at Sparta is proved not only by the unbroken
development of the series, and the vast quantity found of it compared with
the very minute amount of other known wares, but also by the identity of its
fabric which of that two other series of objects, the clay masks and the
figurines13.
Devemos ainda citar outras localidades para que sejam estabelecidos traços
paralelísticos entre os sítios arqueológicos. O templo de Apollo em Amyklaion, o santuário de
Atenas Chalkoikos e o de Zeus Massapeus, por exemplo, fornecem ótimos exemplos de
depósitos de cerâmica, tanto do tipo Geométrico quanto Lacônio, demonstrando, através do
número de fragmentos encontrados, serem importantes centros de culto na sociedade
lacedemônia. Nigel Kennel e Nino Luraghi, referindo-se ao santuário de Artemis Orthia,
estabelecem semelhanças entre as peças encontradas nessas localidades, mais especificamente
oferendas, na forma de estatuetas, máscaras e vasos:
The sanctuary is characterized by finds of terracotta masks representing a
variety of types, from handsome youths to wrinkled old women and
grotesque monsters, and by a staggering quantity of small lead votives. These
lead votives are typical of shrines elsewhere in Laconia; they have been
found in significant numbers not only here, but also at several other sites
including the Menelaion and the perioecic shrine at Aigies. A few came to
light during the excavations at the sanctuary of Zeus Messapeus, north-east of
the city, and several hundred appeared on the acropolis near the temple of
Athena Chalkioikos. However, these numbers pale into insignificance
compared with the 100,773 lead votives dedicated to Artemis Orthia14.
12
Nigel Kennel & Nino Luraghi, op. cit. p. 241.
13
“The local nature of the ware at Sparta is proved not only by the unbroken development of the series,
and the vast quantity found of it compared with the very minute amount of other known wares, but also
by the identity of its fabric which of that two other series of objects, the clay masks and the figurines .” R.
M. Dawkins, op. cit. p. 53.
14
Nigel Kennel & Nino Luraghi, op. cit. p. 241.
Entender essa expressiva estatística é, ademais, compreender os pressupostos
que, sorrateiramente, transpassavam o seio da sociedade lacedemônia. É incomum, para
não dizer singular, encontrar uma quantidade tão extraordinária de artefatos
manufaturados em um único sítio arqueológico. Devemos pensar, mais precisamente,
em como essas pequenas comunidades e seus habitantes, na ordem dos milhares15,
produziram tão significativo montante de objetos, utilizando para a sua confecção
complexos processos técnicos e variadas matérias-primas (cerâmica, marfim, ferro e
bronze, por exemplo).
É necessário, no entanto, que articulemos alguns setores de nossa referida
hipótese para que avivemos, enquanto válidas nossas indicações sobre essa peculiar
disposição da sociedade lacedemônia. No presente estágio das escavações do
Peloponeso, possuímos evidências, para esse período, nas aldeias de Aegiae e,
posteriormente, Geronthrae, ambas destinadas à habitação dos perioikoi, que
demonstram, também nessa precoce aglomeração populacional, uma pioneira
especialização, por exemplo, enquanto a aristocracia esparciata tendia-se a se encerrar
em suas propriedades rurais ou nas cidades de maior porte16. Esse processo de
associação acometerá irreversivelmente a sociedade lacedemônia, possibilitando, em
menos de dois séculos, o aparecimento de mais centros habitacionais na Lacônia, como
nos atestam Kennel e Luraghi que:
Nonetheless, outside the few areas of habitation, seventh-century Laconia
was essentially an empty land, with later perioecic towns such as Gytheum,
Asopus, and Epidaurus Limera not yet in existence. The dam finally burst in
the sixth century, when, within the astonishingly short space of only about
fifty years, this wilderness was transformed into a landscape of farms,
villages, and small towns17.
15
Moses Finley, op. cit. p. 29.
16
Oswyn Murray, “The End of the Dark Age: The Aristocracy.” In: Early Greece. Glasgow: Fontana
Paperback, 1980.
17
Nigel Kennel & Nino Luraghi, op. cit. p. 247.
em uma correlação direta ao aparecimento, em um momento imediatamente posterior,
das comunidades perioikoi é entender a sedimentação de oposições de classe,
anteriormente inexistentes, e agora em curso, já em meados do século VIII a.C.
Indicamos como contribuição central do presente texto ao entendimento das estruturas
sociais presentes ou em formação na sociedade lacedemônia, o aparecimento destas
variantes finamente elaboradas de cerâmica propriamente lacedemônias, dada a sua
ampla incidência, seja concentradamente ou em pontos esparsos no Peloponeso, como
expressão das relações de processual especialização da população das aldeias lacônicas.
Karl Marx, em sua Ideologia Alemã, ressalta o processo de especialização que acomete
todas as sociedades ditas primitivas em seus mais distintos momentos, seja atrás do
aparecimento do excedente agrícola, dos indivíduos que o administram, da necessidade
flagrante de bens e utensílios, cada vez mais especializados, e dado o aprofundamento
gradual da divisão das funções, que acomete uma crescente população. Enunciando, em
uma outra obra sobre a diferenciação entre grupos de um mesmo organismo social, o
autor diz que:
A natureza da estrutura tribal conduz a diferenciação de grupos de parentesco
superiores e inferiores e esta diferenciação social se desenvolve ainda mais
pela mistura das tribos conquistadoras e conquistadas18.
Tudo nos leva a crer, que enxergar a sociedade lacedemônia pós-micênica como
uma sociedade tribal é apostar em uma coerência e assepsia teórico-metológicas mais
acuradas do que traçar paralelos, muitas vezes forçados, com a Esparta Clássica.
Admitir que essa sociedade possui na primeira o seu embrião fundamental é mais do
que tautológico, não obstante, apesar dessa conexão primordial, ela não pode ser
explicada em termos práticos, se não considerarmos as duas Guerras Micênicas, e,
portanto, como foi dito anteriormente, não cabe ao historiador beneficiar-se dos
resultados de processos históricos posteriores de modo a extrair deles as razões que
enunciaram seus desdobramentos anteriores, essa prática teleológica de proceder não
ganha espaço ou respaldo no estudo aqui apresentado. Então, posto este caminho muito
mais sinuoso e extenuante, sugerimos que a presença dessa variedade cerâmica
destinada a esse organizada estrutura templária, somente poderia ter sido alcançada, em
termos de utensílios para o culto e oferendas feitas nos locais ritualísticos, caso o nível
18
Karl Marx, Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Lisboa, Paz e Terra, p. 69.
das forças produtivas da sociedade lacedemônia estivesse sendo gradualmente elevado
por uma progressiva especialização dos seus indivíduos, e vice-versa.
O aparecimento desse indicativo de classe, que irá se constituir alguns séculos
depois, enquanto uma das divisões mais fundamentais da cidade-estado espartana
enuncia que, mesmo antes do que se pensava, os traços da especialização aparecem no
quadro social analisado. A concentração de populações em aldeias distintas e o elevado
grau técnico da produção nesse sentido permitem-nos afirmar que esse segmento,
carentes de identificação plena e acesso a propriedade rural, ainda não constituído
enquanto classe no seu sentido pleno, já contém em si formas de opressão
características, cristaliza-se anteriormente às Guerras Messênias, que irão, em sua
especificidade, dar a essa sociedade, já espartana após o seu advento, o seu caráter
unilateralmente estratificado e rígido. A inerente afirmação dos produtores rurais
enquanto grupo identitário e sua relevante preponderância sobre os demais, política e
militarmente, aprofunda o abismo social de maneira gradual e irreversível.
Por fim, entender a formação da força trabalhadora lacedemônia é, em certa
medida, inquirir sobre o conjunto das relações sociais que originaram a mais famosa
cidade-estado do Peloponeso; onerar-se de sua geração é buscar as razões que
constituíram Esparta enquanto tal.
Bibliografia
SHANKS, Michael. Art and the Early Greek State: An Interpretative Archeology.
California: Standford University. 2004.
SNODGRASS, Anthony M. Archaic Greece. Berkeley: University of California Press,
1980.
WHITLEY, James. The Archaeology of ancient Greece. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003.
YANGUAS, Narciso Santos & PICAZO, Marina. La Colonización Griega: comercio y
colonización de los griegos em la antiguedad. Madrid: Akal Editor, 1980.