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A GRANDE EPOPEIA DOS CELTAS

Primeira época

OS CONQUISTADORES DA ILHA VERDE

A PUBLICAR:

Segunda época

OS COMPANHEIROS DO RAMO VERMELHO

Terceira época

0 HERÓIS DOS CEM COMBATES

Quarta época

Os TRIUNFOS DO REI ERRANTE

Quinta época

OS SENHORES DA BRUMA

INDICE

PREFÁCIO –
Nas fronteiras do real
7 PRELUDIO –
0 homem dos tempos antigos
I - NAS BRUMAS DA AURORA
II - AS TRIBOS DE DANA
III - LUG Do BRAÇO LONGO
IV - A GRANDE BATALHA DE MAG-TURED
V - A VINGANÇA DE LUG
VI - Os FILHOS DE MILÉ
VII - 0 ESTRANHO DESTINO DOS FILHOS DE UR
VIII - AS ATRIBULAÇÕES DO JOVEM ANGUS
IX - DEMÔNIOS E MARAVILHAS
X - POR AMOR A FINNABAIR
XI - A TERRA DAS FADAS ..............
XII - ETAINE E o REI DAS SOMBRAS

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Deste modo, impelidos para novos horizontes, Na noite eterna embalados sem
retorno, não seremos capazes, no oceano das idades, De lançar âncora ao menos
por um dia?

LAMARTINE, 0 Lago

A identidade e a especificidade de uma civilização, seja ela antiga ou moderna, só


se tomam reconhecíveis no caso de nela se encontrar uma tradição transmitida de
geração em geração e que lhe sirva de testemunha essencial. Esta tradição
agrega a memória de um povo ou de um grupo de povos que vivem em condições
equivalentes ou, no mínimo, semelhantes, e pode manifestar-se de modos muito
diversos, desde os simples costumes até especulações filosóficas muito
complexas. Mas, na história da humanidade, sempre se privilegiou a escrita, por
esta ser o meio mais seguro e mais fiel de conservar a memória do passado.
Assim se explica que a Grécia seja o país de Hesíodo, Homero, Ésquilo, Heródoto
e Platão, apesar de termos aprendido na escola que a escultura ocupa um lugar
privilegiado na civilização que, segundo se diz repetidamente, constitui um milagre
sem o qual nada teria sido possível.
Assim, no caso dos gregos, não se coloca a questão de a sua identidade cultural
ser reconhecida, pois eles deixaram um número suficiente de obras escritas para
que possam integrar-se entre os chamados Povos «civilizados». Mas o que dizer
dos outros povos que, por uma qualquer razão, não conheceram a escrita ou
nunca a utilizaram? Antigamente, devido à crença ria «mentalidade pré-lógica»,
tão cara à escola sociológica francesa do início do século XX, rejeitava-se uma
cultura, que não tivesse escrita, por ser considerada incerta, incoerente e
Primitiva. Esta ideologia (palavra que se aplica, sem dúvida, a essa crença), foi a
concretização de um sistema construído sobre a universalidade de uma Razão
única que justificava qualquer ato de colonização, cultural ou outra, e de missão,
fossem quais fossem as intenções; ela privou a humanidade durante muito tempo
de uma importante parte de si mesma, pois rejeitava, sem apelo nem agravo, tudo
o que não pertencesse às normas em uso num sistema imutável e incontestável.
Não interessa se tratava de ignorância ou de desprezo pela diferença, pois a
verdade é que já se ultrapassou essa fase, Já ninguém hoje duvida que Os
construtores dos megalíticos, que viveram do V ao 11 milênio antes da nossa era,
e de quem não se conhece nem o nome nem a língua, foram extraordinários
artesãos de uma civilização brilhante que ocupou uma grande parte da Europa,
tendo nela deixado marcas indeléveis. Em termos de obras escritas, apesar disso,
nada deles chegou até nós. Deles ficaram apenas monumentos, assim como
misteriosos símbolos gravados na pedra, os quais, por terem um conteúdo mais
mágico do que escrito, testemunham sem dúvida não apenas um sentido de arte
apurado, mas também um pensamento muito organizado e quase científico.
Acontece entretanto que o estudo destes símbolos e da arquitectura
extraordinariamente complexa destes monumentos, a análise e a comparação dos
diversos objetos arqueológicos contemporâneos, permitem que se reconstitua a
partir de agora, mesmo que de forma incompleta e conjuntural, uma certa tradição
característica da civilização dita megalítica.

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No que respeita à tradição celta, está-se perante um caso muito semelhante.
Nunca se pensou negar a existência dos celtas que, bem Pelo contrário, foram
considerados os únicos predecessores dos Romanos, sido-lhes atribuídos
indiscriminadamente todos os vestígios que eram anteriores a estes últimos. Mas
é sempre com um desprezo indisfarçado que se faz referência aos povos cujo
único defeito parece ser o de não se terem deixado seduzir pelos encantos da
escrita. Há uma realidade incontestável: os celtas não escreveram nada antes de
serem cristianizados, ou seja, antes de monges eruditos e pacientes terem
recolhido em manuscritos preciosos Os seus testemunhos orais que estavam em
risco de desaparecer e que foram salvos do esquecimento. Deste modo, dispomos
de testemunhos que, apesar de incompletos e deformados, nos transmitem os
vestígios da alma dos povos celtas. Mas, na verdade, quem foram realmente os
celtas?
A verdade obriga a que se diga que sobre eles muito pouco se sabe.
0 certo é que não os podemos considerar um grupo racial ou étnico delimitado, tão
vasto e impreciso é o seu campo de ação, e tão confusa e contraditória é a
morfologia daqueles a quem se chamou celtas, os quais tanto incluem morenos
troncudos e baixos como louros altos e de olhos azuis. Será mais prudente falar-
se deles enquanto um povo que fala a língua céltica. Também é preciso fazer
algumas distinções. Os cimbros e os teutões, que foram exterminados por Marius
e os romanos, eram sem dúvida de origem germânica, embora tivessem nomes
celtas: Cimbros é o combroges gaulês, querendo dizer «do mesmo país» (e que
deu o galês C-vmri); os teutões provêm de uma raça celta de onde saiu o irlandês
tuath, «tribo», e que se reconhece no nome do deus gaulês Teutatès (ou Toutatis),
literalmente «pai do povo», e no termo genérico atual deutsch, «alemão», o que
não deixa de ser algo paradoxal. Quanto aos celtas da mesma época, existe outra
dificuldade: a maior parte deles já não fala uma língua céltica, como o comprovam
certos bretões armoricanos (da Alta Bretanha), nove em cada dez irlandeses, para
além dos gauleses e de outros povos europeus outrora classificados como celtas
ou que estiveram sob o domínio celta. Além disso, os autores da Antiguidade
clássica não estavam mais elucidados do que nós a este respeito, confundindo
com facilidade celtas e germânicos, ou então fazendo dos primeiros uns vagos
«Hiperbóreos», ou mesmo «Cimérios» que viviam num universo sombrio nas
fronteiras de Outro Mundo. A verdade é que os celtas, cuja existência não se pode
contextar, constituem uns povos quase míticos, ou pelo menos mitológico Esse
fato também se explica largamente pela propensão dos celt, para confundirem
intimamente o real e o imaginário e, assim y começaram a fixar a sua história,
para a inventarem deliberadamente em função dos seus mitos fundadores.
0 certo é que os gauleses da Alésia ficariam muito surpreendid se lhes
chamassem celtas. Naturalmente, o termo Keltoi existia há m to tempo, mas era
grego e fora utilizado pelos historiadores gregos 1 necessidade de classificação,
Ora, os gauleses já não se sentiam à v tade ao serem considerados gauleses,
como o provam as dificulda

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de Vércingétorix e as acrobacias oratórias a que teve de recorrer no seu discurso
de Bibracte (monte Beuvray), em 52 antes da nossa era, para tentar assegurar
uma coesão «patriótica» ou «nacional» na coligação de povos que tinham pegado
em armas contra os romanos. Um gaulês era antes de mais membro dum «povo»,
duma «tribo», portanto duma tuath, e nada mais lhe interessava para além disso.
E foi sempre assim: «Nem os irlandeses, nem os galeses, nem os baixo-bretões
da Idade Z:

Média se auto-denomin aram «celtas». Esta denominação comum, na qual se


incluem actualmente os antigos escoceses, os irlandeses, os galeses, os
habitantes da Cornualha e os bretões, tem por base a semelhança das línguas
primitivas faladas por estes povos e um vago parentesco étnico.»”’ Esta
constatação continua válida e mostra bem as dificuldades que se podem encontrar
quando se tenta definir os celtas, a sua tradição e a sua civilização.

Os celtas, segundo os autores gregos, apareceram na História por volta do ano


500 antes da nossa era. Isso não significa que eles não constituíssem já nessa
altura grupos sociais fortemente enraizados em certas regiões da Europa. Neste
caso a arqueologia vem colmatar as lacunas da História e põe em evidência o
aparecimento de uma nova forma de civilização na qual o ferro desertipenha um
papel fundamental. Chamou-se a este período Primeira Idade do Ferro, ou
Civilização de Hallstatt, nome de uma estação arqueológica austríaca. É
realmente verosímil que o domínio primitivo dos ceitas, dividido em principados
independentes, fabulosamente ricos e requintados como no-lo provam os móveis
funerários dos tumulí, se estendia ao norte dos Alpes, entre os montes da Boémia
e o Harz, prolongando-se até ao sul do Danúbio. Actualmente existe um consenso
quanto ao facto de ter sido a partir desta região que os denominados povos celtas
começaram as suas migrações, dirigindo-se sobretudo para ocidente, em vagas
sucessivas, talvez desde o fini da Idade do Bronze, ou seja, entre 900 e 700 a.
C.

1. Dom Lotris Gougaud, Les Chrétieniés celtiques, Paris, 1911, p. i (prefácio). o


autor vai-se acentuando

acrescenta numa nota na rnesma página: «0 cepticismo dos sábios dos bretões
cada vez mais, no que respeita ao valor do conceito de raça. Tácito, falando

(insulares), atribuía já uma grande importância ao ambiente, à adaptação, ao


meio, em detrimento da ideia de ruça.» Esta reflexão perfeitamente lúcida foi feita
no mornento em que o auto-intitulado «iniciado» Edouard Schuré, digno discípulo
de Gobineau e precursor de alguns teóricos de má me va os valores da
«raça» celta moria, preconiza

como sendo de origem nórdica e ariana.

Deve reter-se deste facto que os celtas, ou os assim chamados (há quem lhes
chame proto-celtas), são principalmente campesinos, criadores de gado,

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agricultores e artesãos. Se mais tarde os vamos encontrar junto ao Atlântico,
isso não se deve ao facto de eles terem procurado aproximar-se do mar, mas por
terem sido obrigados, por razões ainda desconhecidas, a refugiar-se nos confins
do velho mundo.

Crê-se que este nó primitivo dos celtas resultou de migrações anteriores de povos
indo-europeus. Aqui, mais uma vez, é necessario precisar este termo, que só pode
designar agrupamentos humanos que falavam uma língua comum - ao menos na
origem - e que possuíam técnicas e estruturas sociais idênticas. É esta a única
acepção possível do termo, com excepção de todas as outras que incluem uma
noção de raça. Assim que se instalaram no triângulo BoémIa-Áustria-Harz, os
celtas primitivos, ou por causa da superpopulação, ou porque estavam ameaçados
por outros emigrantes vindos de leste, ter-se-lam dirigido para ocidente a fim de
descobrirem novos territórios onde se pudessem estabelecer. Este facto nada tem
de extraordinário e é comum a muitos outros povos ao longo da História,
explicando que todos os celtas, hoje tão bem enraizados na Europa ocidental e no
extremo do Ocidente, atravessaram o Reno antes de se instalarem nos países
cuja História os reconheceu.

Graças ao estudo da distribuição das estações arqueológicas e da sua datação e


tendo em consideração marcas toponímicas e raros vestígios epígráficos, é
possível afirmar-se que o fluxo migratório dos celtas para a Europa ocidental
ocorreu em dois períodos bem distintos. 0 primeiro, cronologicamente, situa-se na
chaineira das Idades do Bronze e do Ferro e engloba um grupo de povos que
falavam uma língua céltica ainda próxima do indo-europeu comum, a qual, através
de diversos arcaísmos, chegou aos nossos dias encontrando-se no gaélico da
Irlanda, da ilha de Man e da Escócia. Deu-se a este ramo o nome de goidélico ou
gaélico, ou então de celtas com Q pois eles conservaram, tal como o latim, o uso
do som Q indo-europeu primitivo (por exemplo, «cmco» do lati. quinque, diz-se
coic em gaélico). 0 segundo fluxo migratório ocorreu

1 1 ima depois do ano 500 a. C., através de vagas sucessivas, tendo


sido a últi

a dos belgas, no século 1 antes da nossa era. Este ramo é chamado, com i
inclui, além dos gauleses e dos belgas, alguma liberdade, britónico, pois ’
aleses, o% os antigos bretões insulares cujos actuais descendentes são os 9

habitantes da Cornualha e os bretões armoricanos. No plano linguístico,


classificam-se estes povos como celtas com P, porque os seus diversos

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componentes transformaram, tal como os gregos, o Q primitivo indo~europeu em
som P, como o mostra o mesmo exemplo de «cinco» que se diz pemp em galês e
bretão, e pente em grego.

Foram estes povos, formados provavelmente por pequenas tribos independentes


umas das outras, que, no decorrer do primeiro milénio antes da nossa era,
invadiram a Europa ocidental, incluindo a planície do Pó (Gália Cisalpina) e o
noroeste da Península Ibérica. havendo tam~ bém que referir as expedições que,
durante o século 11, chegaram a formar nos Balcãs o reino da Galateia.
Entretanto, na Ásia Menor, estas migrações devem ser entendidas nas suas
devidas proporções.

Estes famosos celtas, fossem quem fossem, não eram numerosos, constituindo
apenas uma elite guerreira, técnica e intelectual. Ora, os países onde eles se
fixaram eram habitados por populações de que nada se conhece, mas que, com
certeza, não foram inteiramente aniquiladas pelos seus dominadores. Bem pelo
contrário, os celtas tinham necessidade de mão de obra, ou seja, de escravos.
Fizeram por isso um esforço no sentido de dominar as populações autóctones,
celtizando-as, ou seja, ensinando-lhes a língua e transmitindo-lhes os costumes, a
técnica e a religião, o druidismo que era comum ao conjunto dos grupos ditos
celtas. Além disso, os celtas impuseram-lhes as suas estruturas sociais indo-
europeias, o seu modo de vida e o seu modo de pensar. A partir daí o próprio
tempo se encarregou de fazer a sua obra inelutável de assimilação, tomando-se
os autóctones os novos celtas ao mesmo tempo que os primeiros celtas não
deixavam de ser modificados pelas populações indígenas. Este processo de
interacção - extremamente vulgar - contribuiu para a formação do que hoje se
chama civilização celta.

Contudo, estas vagas sucessivas de migrações e de misturas nunca deixaram de


provocar deslocamentos internos das populações. Os primeiros invasores de
língua céltica - chamemos-lhes por comodidade gaélicos - foram empurrados
ainda mais para ocidente, o que explica a especificidade da Irlanda, isolada nos
limites extremos do mundo antigo, e tendo conservado, mais do que qualquer
outro país de dominação celta, as tradições mais arcaicas e reveladoras. «As
descobertas arqueológicas sugerem que os celtas chegaram à Irlanda vindo da
Grã-Bretanha, podendo ser traçada a sua rota através de Cumberland C de
Wigtownshire até se chegar ao nordeste do Ulster».”) É esta a opinião

1 . Myles Dillon, Early Irish literaiure, 1994, p. XI.

do ceitólogo irlandês Myles Dillon, que diverge da de um seu compatriota,


O’Rahilly, que aponta um itinerário directo dos celtas a partir da Gália. No fundo,
as duas teses não são contraditórias, pois pode ter havido diversas migrações
como, de resto, os irlandeses da Idade Média deferidiam quando procuravam
reconstitu,r as idades mais recuadas da sua história. 0 Importante é saber que os
dois ramos, o gaélico e o brflonico, coexistiram durante multo tempo até se
diluírem separadamente na História moderna, depois de terem tido uma origem

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comum.

.Ora, uma árvore não pode viver se os seus ramos e até a sua folha mais
insignificante não forem alimentados pela seiva. A grande aventura dos celtas
sóifoi possível porque uma mesma seiva animou desde a origem o ser social que
lhe serviu de ponto de partida. Esta selva pode ser identificada com o que se
chama a Tradição, ou seja, com o que é transmitido de geração em geração para
que cada unia destas possa conservar o sentido de uma certa identidade e os
meios de a exprimir através das sucessivas etapas da história.

Em primeiro lugar, esta tradição consiste num corpus de informações herdadas de


um passado sempre apresentado como se remontasse à aurora da humanidade,
ao que se chama a noite dos tempos. Assim sendo, a questão da tradição celta
obriga-nos a pensar como pôde ela ser transmitida se a sua primeira transcrição
data apenas dos primeiros séculos do cristianismo, sendo este responsável pelo
seu enquadramento. Naturalmente, pode-se lamentar que a falta de escrita seja
responsável por não haver testemunhos essenciais para o conhecimento da antiga
cultura celta; mas esta não-utilização da escrita, longe de atestar uma qualquer
espécie de incapacidade, resultou duma escolha deliberada das elites celtas, dos
chamados druidas, que eram simultaneamente sacerdotes, filósofos, historiadores,
poetas e mágicos. Júlio César foi muito claro a este respeito: «Os druidas, diz ele,
acreditam que a religião não lhes permite escrever a matéria dos seus
ensinamentos ( ...) pois não querem que a sua doutrina seja divulgada nem
que, por outro lado, os seus alunos, fiando-se na escrita, negligenciem a
memória». (De bello gallico, VI, 14). Eis a razão pela qual os discípulos dos
druidas aprenderam, durante uma vintena de anos, milhares de versos que
resumiam, de forma irmernotécnica, o conjunto da tradição celta.

A existência de uma tal tradição oral está largamente comprovada.


0 grego Estrabão (IV, 4), afirma que os poetas dos celtas são «bardos, ou seja,
cantores sagrados». Outro grego, Diodoro de Sicilia, transmite

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detalhes preciosos (V, 29 e 31): «Antes de cada batalha, eles cantam os feitos dos
seus antepassados e exaltam as suas próprias virtudes, enquanto insultam os
adversários Eles exprimem-se por enigmas ( ... ) e usam bastante
a hipérbole.» 0 latino Pomponius Mela observa que «estes povos possuem uma
eloquência muito própria» (111, 2); quanto ao poeta Lucano, este apostrofa os
poetas gauleses nestes termos, na Pharsale (1, v, 50 sqq.): «Vós cujos cantos de
glória lembram, ao futuro longínquo, a memória dos fortes antepassados
desaparecidos em combate, bardos, vós dais largas sem medo à vossa veia
fecunda!» Enfim, se fosse necessário um reconhecimento quase oficial,
poderíamos encontrá-lo no historiador grego Poliffio, apesar de tudo, muito
prudente nos factos a que se refere. Depois de ter pintado um quadro dos povos
gauleses da Cisalpíria, afirma convictamente (11, 17) que «os autores de histórias
dramáticas contam a seu respeito lendas maravilhosas».

Foram os conflitos que opuseram os romanos aos gauleses da Cisalpina, cerca do


ano 387 antes da nossa era, que suscitaram mais comentários a propósito de uma
tradição epica que os celtas transmitiram de geração em geração. Quanto aos
acontecimentos referidos por Tito Lívio, historiador latino, apesar de natural da
Gália Cisalpíria, estão muito mais próximos da lenda do que da história e parecem
inspirar-se directamente num fundo tradicional veiculado pelos próprios gauleses,
fundo esse que ele conhecia muito bem. «A história das guerras gaulesas, diz
Henri Hubert é extremamente singular, fabulosa e épica.»1’1 E, a este respeito,
Camille Jullian, faz notar precisamente que «a derrota dos romanos, diz
claramente Tito Lívio, deveu-se ao pavor mágico (miraculum) que lhes inspirou o
grito de guerra dos celtas. As narrações de Tito Lívio, de Apio e de Plutarco,
cheias de cor e de pormenor, precisas, com um extraordinário humor religioso e
muito favoráveis aos celtas ( ... ), sempre me pareceram inspiradas em
parte em alguma epopeia gaulesa».`I

Trata-se realmente de uma epopeia. A definição clássica do termo, «narrativa


poética de feitos heróicos», não nos impede de acrescentar que o gênero se
refere sempre a factos de um passado longínquo, que na sua maioria não podem
ser confirmados, mas que fazem parte da memória colectiva de um povo ou de
qualquer grupo social. A epopeia gaulesa assinalada por Camille Jullian e
conservada por Tito Lívio na

1. Henri Hubert, Les Celtes, Paris, 1932, 11, p.37.

2. Camille Jullian, Histoire de ta Gaule, Paris, 1920, reimpresso 1993, 1, p.294.

língua latina não pertence obviamente à história, sendo antes do âmbito da


tradição. Quererá então isto dizer que a tradição celta, por estar inscrita no quadro
de uma civilização que rejeitava a escrita, só pode ser conhecida através de
outras civilizações? Assim parece ser, pois a epopeia gaulesa em questão só
chegou até nós graças aos documentos escritos - pretensamente históricos - que
os gregos e os latinos consagraram às guerras travadas por Roma contra os
habitantes da Cisalpina e às expedições celtas nos BalcãsY1 0 mesmo acontece

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com a epopeia bretã (ou seja, da Bretanha insular) à volta do fabuloso rei Artur: as
supostas aventuras deste e dos seus cavaleiros, as peripécias da conquista do
Graal, todas as matérias que actualmente se consideram de origem celta, só
chegaram ao nosso conhecimento, com a excepção de alguns textos gauleses,
graças a versões redígidas em línguas não célticas - nomeadamente o francês
(dialecto anglo-normando), o inglês e o alemão. Daqui resulta uma situação no
mínimo paradoxal.”)

Como é óbvio, existem várias versões de epopeias redigidas ou transcritas em


línguas célticas, mas são tardias, remontando ao que se designa por Alta Idade
Média. A primeira questão que se coloca é sobre a sua autenticidade, ou seja,
ígnora-se se elas dão conta duma realidade cultural celta incontestável, 0 facto de
terem sido escritas numa conjuntura cristã, com todos os equívocos e todas as
censuras que isso implica, pode suscitar algumas dúvidas e, no mínimo, legitimar
alguma reserva.

Seria útil, entretanto, que se esclarecesse em definitivo a noção de autenticidade


associada à tradição. Na verdade, o que é autêntico na Tradição senão a própria
tradição? Por quem foi escrita o Génesis da Bíblia? Com toda a certeza não a
escreveram os que viveram nos primeiros tempos da humanidade, Por quem
foram escritos os Evangelhos? Corri certeza não os escreveram os supostos
evangelistas. De resto, a Igreja romana, muito prudente a este respeito, utiliza um
termo

1. Estudei em pormenor as circunstâncias destas epopeias meio-históricas, meio-


lendárias, e a sua difusão em dois capítulos Rome et Uepopéc celtique, Delphes
el raventure celtique, do meu livro de síntese sobre Les Celtes et Ia civilisalion
celtique, Paris, Pay01, 1969. reimpresso em 1992.

2. Poderiam encontrar-se pormenores complementares acerca deste assunto nos


meus estudos sobre 0 rei Artur e a sociedade célíica, Paris, Payot, 1976,
reimpresso em 1994, e Merlin L’Enchanteur, Paris, Rctz, 198 1, reimpresso Albm
Michei, 1992. A questão é iam-

bém abordada em oito volumes provenientes da reescrita dos meus romances da


Távola Redonda, 0 Ciclo do Graal, Paris, Pygmalion, 1992-1995, e é muito
comentada na minha Pequena Enciclopédia do Graal, Paris, Pymalion, 1997.

9
latino que expressa bem a ideia que quer transmitir, secundum Johannen (ou
Marcuni, ou Lucam, ou Mattheum). A palavra secundum. nunca quis dizer «por», C
a tradução francesa oficial, «selon» [segun-

não passa de um substituto de «segundo a tradição». do, em português],


1

E, sem querer entrar em exegeses sábias, é preciso contextualIzar os supostos


poemas homéricos: Homero nunca existiu historicamente, não passando de um
nome emprestado a numerosos rapsodos (literalmente «cosedores de cantos»),
que tentavam inserir num plano de conjunto inúmeras lendas e narrativas
herdadas de uma tradição oral com origem na noite dos tempos. Ninguém hoje em
dia acredita que A Il(ada e A Odisseia são obras do mesmo autor e que este,
Homero Do caso, foi testemunha dos acontecimentos que relata. Estas duas obras
não pas sam de duas versões tardias de lendas orais que dizem respeito a deuses
e a heróis da Grécia antiga, e é por isso mesmo que elas são apaixo nantes, pois
testemunham irrefutavelmente um passado que, sem elas, teria mergulhado nas
brumas do esquecimento.

É por isso preciso ter em consideração que as narrativas homéricas não são mais
do que a expressão duma tradição arca’

1 ica expressa numa língua Já clássica, e colocada ao dispor de um público


que Já não era contemporâneo do descrito. 0 mesmo se passa com as epopeias
celtas.
0 facto de elas terem sido escritas depois de os factos terem ocorrido (se é que
estes são reais, o que está longe de ser provado), ou de eles terem sido
posteriormente manipulados, não significa de modo nenhum que a tradição que
veiculam Dão seja autêntica. Com efeito, quando se falia de epopeia., o problema
da autenticidade nunca se deveria colocar, pois ela desemboca necessariamente
num não-senso: neste domínio, nada é verdade ou falso e tudo existe na forma
imaginada, simbólica, codificada, testemunhando a realidade profunda de uma
civilização.

«Se se tiver em conta as datas, a saga irlandesa é a que nos dá o tipo mais antigo
da epopeia celta.»(” Esta afirmação de Georges Dottin não pode ser refutada, pois
foram os manuscritos irlandeses, escritos em língua gaélica, que nos transmitiram
a maioria das narrativas epicas cujo estudo interno prova claramente a sua
antiguidade, nomeadamente em relação às que foram reunidas nos manuscritos
do País de Gales. E sabe-se, graças a este mesmo estudo interno dos textos, que
foi a partir

1. Georges Dottin, Les Liitératlíres celiique,, Paris, 1923, p. 52

do século VII da nossa era que os monges irlandeses começaram o seu paciente
trabalho de passar para a escrita a tradição oral gaélica que naquela época ainda
era a deles.

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Como é óbvio, estes Primeiros manuscritos desapareceram, devido à acção do
tempo, como aconteceu também com os manuscritos que remontam à Antiguidade
e à Alta Idade Média. Não é de crer que os manuscritos conservados nos nossos
dias com tanto cuidado - e com

r_ i imtanto zelo! - nas bibliotecas e nos arquivos sejam os orio, nais. São s’
plesmente cópias de manuscritos mais antigos cujo conteúdo se pre~ tendeu
conservar por este

à escrita uma Ilusão de permenciiodàdmeuiNtoemantoess


Idiveraosi,mnpermenosa ter vindo dar s pergaminhos ou os papéis velino estão
imunes à degradação. Quando os monges

as grandes epope as do passado, irlandeses passaram para a escrita c,


1

rtos de que haveria quem mais tarde continuaria 0 seu trabaestavam ce is


1

lho. Não espanta por . so que os documentos de que se dispõe actualmente, e aos
quais as técnicas científicas modernas asseguram uma maior longevidade, não s
am de modo algum anteriores ao século X. Quanto aos riscos que e e

asdsaapstcçóãpoia, sdcotrmapnsoprtoasmiÇ,ãqou,er sejam de erro e de ou


tenham a ver com simplifi.cação como de istem. o
propno conteúdo, que é o mais importante, é óbvio que eles exi

ir Existem três manuscritos principais no que respeita à epopeia’ landesa - ou seja,


por corisequência, a mais antiga epopeia celta: o Livre de Ia Vache Brune
(Leabhar na hUidré), assim chamado por causa da sua encadernação e que,
tendo sido escrito antes de 1106 no célebre recinto monástico de Clonmacnoise,
está actualmente guardado na Royal Irish Academy de Dublin; o Livre de Leinster
(Leabhar Laigen), anterior a 1160, que se encontra no Triníty College de Dublin; e
por fim o manuscrito dito RawIinson B 502, também do século XII, guardado na
BodIeian, Library de Oxford. os três possuem o que existe de mais antigo e
importante na tradição gaélica. Contudo, a Irlanda continuou a recorrer aos
manuscritos não apenas durante a Idade Média, mas também no decurso do que
se chama Tempos Modernos, isto sobretudo com o objectivo de divulgar as obras
em gaélico, que tinham estado proibidas ou, no mínimo, escondidas pelo ocupante
inglês. 0 nosso conhecimento da epopeia irlandesa pode ser assim enriquecido
graças a um grande número de outros preciosos manuscritos. Mencionemos

Z:I ulo XV (Trinity Collenomeadamente o Livre jaune de


Lecan, do séc

ge), o Livre de BaIlymOte, também do século XV, (Royal Irish Acade-

11
my), o Livre de Lismore, do mesmo século, actualmente na posse de
particulares, sem esquecer o Livre de Fermoy, do século X1V, mais especializado
nos textos religiosos cristãos. Outros, menos importantes, revelam-nos
verdadeiras pérolas raras. Ao todo são uma centena, estando a maior parte deles
guardada na Royal Iristi Academy. Só nos podemos maravilhar quando
comparamos esta abundância com a pobreza dos raros manuscritos galeses e à
inexistêncía dos manuscritos bretões anteriores ao século XVI. Se não fosse a
Irlanda, nada conheceríamos da antiga epopeia dos Celtas.

0 que contêm estes manuscritos de valor inestimável? A resposta é simples:


«Colecções muito variadas de narrativas em prosa e em verso, tanto sagradas
como profanas versando lendas, história e a hagiografia, poesia bárdica e lírica,
tratados médicos e jurídicos, tudo em gaélico antigo, médio ou moderno, sem ter
que haver a preocupação da classificação. »(’) 0 que é admirável é a mistura,
numa mesma narrativa, da prosa com a poesia. «Os trechos em prosa, cuja
extensão depende dos manuscritos, parece que foram a princípio simples esboços
sobre os quaís o ímprovisador podia criar à sua vontade; à medida que os poemas
Iam desaparecendo, esses trechos iam tomando o seu lugar.» (2) Estes esboços
são bem demonstrativos de urna época em que a escrita estava proibida pelos
druidas, transmitindo-se a tradição oralmente por meio de versos que os
aprendizes estudavam ao longo de vinte anos, podendo enriquecer as suas
narrativas quando o Julgassem útil. Além disso, na maior parte das vezes, os
trechos em verso das narrativas épicas estão repletos de arcaismos que em
alguns casos as torna incompreensíveis embora estes últimos comprovem a sua
antiguidade. Considera-se que todas estas narrativas são reactuallzações de
contos tradicionais que remontam ao fundo dos tempos. 0 fenómeno é muito
particular na Irlanda, pois, no País de Gales poucos trechos em verso subsistiram
nas narrativas em prosa e, na Bretanha armoricana, apenas algumas canções
dramáticas, os gwerziou, sobreviveram à turbulência da história e lembram de
algum modo as grandes epopeias que deviam ser cantadas pelos bardos de
outros tempos.

Estas grandes epopeias encontram-se nos manuscritos irlandeses, mas, Da maior


parte das vezes, na forma de fragmentos, de episódios

1 . Georges Dottin, Les Liltératures celtiques.


2. Ibidem.

que podem ser auto-sufi cientes embora só se tornem realmente compreensiveis


quando se ligam uns aos outros, Certas epopeias que têm como personagem
principal um herõí bem conhecido apresentam-se nunia forma elaborada e
completa: é o que acontece com a célebre Razzia des Boeufs de CuaIngé,
verdadeiro monumento literário que muitas vezes é comparado à Il(ada e que está
centrada no temível guerreiro Câchulaínn. Este é também o herói de muitas outras
histórias episódicas, o que acontece igualmente com a maioria dos actores, sejam
«deuses», «demónios», humanos ou seres mágicos. DiT-se-ia que as
personagens das epopeias eram sobretudo símbolos pré-existentes a todas as

12
narrativas organizadas, esforçando-se por lhes revelar a sua significação profunda
ao emprestarem-lhes aventuras pretensamente históricas. Esta tendência, que
parece fundamental em todos os celtas, contradiz formalmente a tese de
Evhérnère, segundo a qual os deuses não passam de humanos divinizados. Com
efeito, sobretudo nas narrativas que se podem classificar como mitológicas, os
deuses aparecem nitidamente inseridos na história, devido a esta não estar
assente em nenhum acontecimento real. Aqui se encontra outra característica dos
celtas: quando ignoram a história do seu passado ou a esqueceram, inventam-na.
Pode mesmo chegar-se mais longe. quando eles não estão satisfeitos com a hi
stória vivida, negam-na e criam outra, mais de acordo com a sua mentalidade. Nos
celtas, é extremamente evidente a predon-únâncía do mito sobre a realidade
quotidiana.

Mas o que atrás foi dito não deve ser classificado de acordo com os padrões
habituais. As epopeias irlandesas apresentam uma desordem s mi ológicas
reapaque faz lembrar uma bruma artística. As personagen it

recem constantemente nas narrativas de natureza histórica, e encontram~ -se


certos pormenores realistas em contos cuj a beleza se centra no sobrenatural,
pois na mentalidade celta, irlandesa ou outra, não existem fronteiras entre o
mundo visível e o invisível. 0 sobrenatural, como o próprio nome indica, não é
mais do que o natural visto um pouco mais de cima para que se possam observar
as realidades escondidas. Neste caso, o real, que serve de base a qualquer
narrativa verosímil, aparece como transcendido, como um autêntico surreal, um
mundo do pensamento interior, à imagem do universo do sidh, ou seja, do Outro
Mundo, que, segundo a crença irlandesa, se encontra no interior de grandes
túmulos megalíticos onde vivem deuses e heróis. Estes túmulos abrem-se durante
a festa de Samain (noite de Toussaint), o que permite a interco-

13
municação entre os dois mundos. 0 que há de mais Datural? Não há maravilhoso
na epopeia celta, apenas há fantástico. Com efeito, é o real que, passando por
sucessivas metamorfoses, se torna fantástico.

Comportamentos estranhos, cenários surrealIstas, desordem do conteúdo e da


forina, são algumas características da epopeia primitiva dos celtas, em particular
da que os gaélicos da Irlanda quiseram transmitir a posteridade. Esta desordem
não pode deixar de surpreender quem vive ainda à sombra - e ao abrigo - da
tranquilizante lógica aristotélica bascada no verdadeiro e no falso. Mas os celtas
nunca conheceram Aristóteles nem quiseram alguma vez obedecer aos seus
apelos ao senso comum, tendo preferido permanecer na dialéctica pré-socrátca
anterior ao milagre grego, e defender, como o fez Héraclito, que «os mesmos
caminhos que fazem subir fazem também descer». Não é um paradoxo mas uma
pura verdade lógica demonstrar que qualquer juízo humano depende do seu
sistema de referência, por outras palavras, da polaridade da acção, tudo
dependendo do que se entende por «alto» e por «baIxo». Além disso, os latinos,
apesar de considerados lógicos, empregavam o mesmo termo, altus, para
classificar a altura e a profundidade, o que parece ter caído no esquecimento.
Quanto à desordem surpreendente da epopeia celta, esta não passa de uma
aparência enganadora: os poetas e os contadores irlandeses sabiam muito bem o
que estavam a fazer, pois alguns deles reconstituíram o plano de conjunto a partir
de contos mitológicos desordenados ou em forma de fragmentos, procedendo
assim do mesmo modo que um Chrétien de Troyes e outros autores franceses da
Idade Média que, através de contos arturianos aparentemente desprovidos de
continuidade, escreveram e prolongaram a grande epopeia do Graal e da Távola
Redonda. Com efeito, as epopeias irlandesas formam um ciclo perfeitamente
coerente que, não sendo sempre de fácil discernimento, aparece no entanto como
um esquema de um extraordinário rigor.

Deste modo, foi redigido antes do ano 1168 o célebre Livro das Conquistas
(Leabhar Gabala), que é uma espécie de compilação de contos mitológicos
ligados aos sucessivos povoamentos da Irlanda, desde as origens até ao advento
do cristianismo. Sabe-se actualmente que na origem desse livro está a escrita em
prosa de um cicio de poemas pretensamente históricos atribuídos a um certo Gilla
Caemain, que morreu em
1097 e cuja obra está hoje perdida. Mas, tal como se encontra, representando o
meio intelectual do século XII e tendo a preocupação de provar uma identidade
gaélica face à invasão anglo-Dorrn anda, esta obra é de um

valor imenso pois permite que se tenha uma ideia mais aproximada do
encadeamento das diversas narrativas cujo objectivo era refazer a história da
Irlanda de modo a acentuar~lhe a especificidade e o valor. Assim se explica que
apareçam diversas referências bíblicas, sentindo os irlandeses a necessidade de
se agarrarem a uma filiação honrada e quase divi-

ido com os romanos na fábula de Eneida, filho de na, como tinha acontec
1

14
Vénus, e como ocorreu também na mesma epoca com os bretões insulares que,
pela pena de Geoffroy de Morrinouth, afirmaram que o seu antepassado epónimo
Brutus era um descendente de Eneida, e por isso de essência troiana e divina.
Como é evidente tomavam-se os desejos por realidades, ao mesmo tempo que se
conciliava a tradição druídica pagã com a tradição judaico-cristã passando pelo
Egipto e pela Grécia. 0 mesmo acontecerá alguns séculos mais tarde com a
História da Irlanda de Geoffroy Keating que, escrita cerca de 1640 e retomada em
diversos manuscritos, só foi impressa em 1723 através de uma tradução inglesa.
Tanto o Livro das Conquistas como a História da Irlanda estão repletos de
testemunhos da antiga epopeia celta, que desafia o tempo e o espaço.

Sendo verdade que estes manuscritos não apresentam a realidade histórica, não
deixa de o ser também que contêm numerosos elementos filosóficos e
metafisicos, assim como reflexões sociológicas, que os antropólogos modernos
não desdenhariam. Assim, a enumeração e as características dos diversos povos
que ocuparam a Ilha Verde - Ou seja, a Irlanda - desde o dilúvio são muito
esclarecedoras. os primeiros invasores, a tribo de Partholon, são de um tipo que
se pode classificar como vegetativo, preocupando-se unicamente em sobreviver,
abrigar-se e procriar, imagem esta que corresponde, numa perspectiva simbólica,
ao que existe de mais primário na civilização, Os segundos invasores são
membros da tribo de Nemed: ora, o nome nemed significa «sagrado», o que indica
desde logo, claramente, uma reflexão metafisica ou religiosa numa sociedade que
até então só tinha preocupações materiais. Os terceiros invasores são os Fir Bolg:
também neste caso o nome é significativo, pois fir quer dizer «homens» (vide o
latim vir) e bolg tem uma raiz indo-europela que também deu em latim.fulgur,
«trovão».”’ Como é óbvio, os Fir Bolg são sobretudo ferreiros, mestres do fogo e
inventores de técni-

1. Para este nome propuseram-se significados extravagantes, em particular


«homens-sacos», o que não quer dizer abSOILItaniente nada. 0 mesmo
aconteceu com o povo dos Belgas, também considerados como «homens-sacos».

15
cas artesanais novas, destinadas à guerra ou a trabalhos agrícolas.

Os quartos invasores da Irlanda são os famosos Tuatha Dê Danann, as «Tribos da


deusa Dana», deusa-mãe cujo nome está associado a numerosos termos vizinhos
do Médio Oriente, em particular Tana:it, ou também Anáta, assim como a rios
como o Don e o Dantibio (Tanaüs). Segundo a tradição, essas tribos vieram «das
ilhas do norte do mundo», tendo introduzido na Irlanda a ciência, a magia e o
druidismo. Elas são por isso detentoras de uma sociedade fortemente
hierarquizada à maneira indo-europeia, baseada em princípios mais ou menos
teocráticos e onde predomina uma organização sacerdotal. Além disso, os heróis
dos Tuatha Dê Danann são as antigas divindades do druidismo celta triunfante.

Os quintos conquistadores da lha Verde são chamados, nas narrativas, «Os filhos
de Milé», ou os «milesianos», surgindo do Oriente e passando por Espanha.
Correspondem precisamente aos Gaélicos e representam a sociedade irlandesa
tradicional, tal como a descobriram os primeiros missionários cristãos, e tal como
ela era ainda quando da chegada dos Anglo~Normandos de Henrique 11
Plantageneta, apesar de uma cristianização que tentara substituir os druidas pelos
padres, os abades e os bispos junto dos chefes dos clãs e das tribos. Esta invasão
dos milesianos corresponde ao nascimento duma sociedade baseada no equilíbrio
entre as duas forças que a compõem, a política (os gaélicos) e a religiosa (os
druidas, portanto os Tuatha Dê Danann). Esse equilíbrio deriva de, após o triunfo
dos Filhos de Milé sobre os Tuatha, estes não se terem deixado eliminar e,
segundo um acordo solene, terem ficado na posse dos ttimulos e das ilhas
maravilhosas que rodeiam - miticamente - a Irlanda, enquanto os gaéllcos
ocuparam a superfície da ilha. Graças à Incontornável colaboração entre o druida
e o rei, absolutamente indispensável para que qualquer grupo possa subsistir, a
estrutura da sociedade celta é um verdadeiro modelo de harmonia entre o mundo
visível e o invisível.

Além disso, a sociedade descrita na epopeia é compósita: por muito que os Tuattia
sejam tanto criaturas feéricas(” como divinas, misturam-se com os seres humanos
intervindo nos seus assuntos. Acontece também que os elementos originários da
tribo de Nemed e dos Fir Bolg estão sempre presentes. E toda esta gente se vê
constantemente confrontada com um misterioso povo, o dos Fomore, seres
gigantes que,

N. T.: Féeriques no original; o mundo feérico é o mundo das fadas (fèes), o mundo
mágico.

habitando em ilhas longínquas, têm numerosos pontos em comum com os


ciclopes da tradição helénica e os gigantes da mitologia germano-escandinava. Tal
como eles, provocam frequentes distúrbios e atacam sempre que há uma vaga de
conquistadores da Ilha Verde, simbolizando, como é evidente, as forças obscuras
do inconsciente, os poderes da destruição e do caos que devem ser
constantemente combatidas para assegurar não apenas o equilíbrio mas também
a sobrevivência de uma sociedade dita civilizada.

16
Com efeito, os confrontos são constantes. Nada é definitivo, e o retomar dos
problemas gerais processa-se ao ritmo das estações e dos dias. Durante largos
períodos de adormecimento, a tensao vai-se acumulando, cresce. exacerba-se e
acaba por se manifestar, ocorrendo então as guerras, as aventuras
expedicionárias, os acontecimentos imprevistos. Ora, estas crises não são fruto do
acaso nas narrativas epicas, podendo constatar~se que elas coincidem sempre
com uma data essencial do calendário celta, o que demonstra que de certo modo
se trata de rituais realizados segundo um plano bem determinado e com um
significado profundo. As invasões, por exemplo, encontram-se sempre datadas à
volta do P de Maio, e as guerras, no decurso das quais morre um rei, ocorrem à
volta do 1’ de Novembro. 0 conjunto obedece a um esquema superior que os
múltiplos autores das narrativas epicas conheciam perfeitamente, o que faz supor
que o corpus da epopeia celta da Irlanda exprimia a tradição mais antiga e mais
específica dos povos celtas originais que sobreviveram a todas as migraçoes e a
todas as vicissitudes.”’

Sabe-se com efeito que o calendário dos celtas estava ordenado segundo um eixo
fundamental que Ia da festa de Samain (I’ de Novem-

Segundo tudo leva a crer, a epopeia irlandesa, que conservou unia grande parte
de arcaísmos, testemunha, mais do que qualquer outra tradição europeia, a
existência de uma epopeia primitiva indo-europeia, ou indo-ariana, pois a
comparação que se pode fazer com as narrativas dos ossetes, povos do norte do
Cáucaso que descendem dos citas e dos sarmatas, é particularmente
esclarecedora: em arribas as tradições se encontram, apesar de estarem muito
distantes no tempo e no espaço, os mesmos episódios e as mesmas
personagens, embora evidentemente com outros nomes. Podem ler-se a este
propósito, dispersos em várias revistas, diversos artigos de Joêl Grisward, e
sobretudo duas obras de Geoges Dumézil, Romans de Scythie e d’alentour, Paris,
Payot, 1978, e Le Livre des Héros, Paris, Gallimard, 1965-1989, contendo esta
última traduções completas de narrativas ossetas que apresentam extraordinárias
semelhanças com as narrativas irlandesas. É por isso verosímil a existência desta
epopeia primitiva, o que justifica a procura de um esquema narrativo original.

17
bro) à da Beltaine (10 de Maio)”’, ou seja, guiava-se em função da entrada e saída
do Inverno. A datação das invasões no fim do Inverno e no começo da estação
estival corresponde portanto a uma realidade simbólica, tratando-se de um novo
princípio, de um novo nascimento, de um novo ciclo. Quanto à morte de um rei no
início do Inverno, não há aqui senão a constatação de um certo adormecimento,
de uma interrupção das actividades da função real, guerreira e pastoral, sendo
esta última particularmente importante no caso da Irlanda, pois a Ilha Verde foi
sempre e continua a ser o país por excelência da criação de gado, o que explica
que a estrutura social dos gaélicos estivesse profundamente dependente da
criação de gado, a única verdadeira riqueza destes povos ainda marcados pelo
nomadismo e cujas fronteiras jamais ultrapassavam os territórios do rei, ou, dito de
outro modo, a sua prosperidade dependia de poderem contar com a protecção do
rei na sua actividade pastoril. Este é um dado muito importante a ter conta se se
quer compreender, na sua expressão irlandesa, o sentido profundo da epopeia
celta.

Há por conseguinte nesta grande quantidade de narrativas aparentemente


independentes uma coerência que deixa supor um conjunto de situações regidas
pelos costumes e as crenças dos antigos celtas. Uma comparação se impõe
desde logo, mesmo que pareça paradoxal: as diversas narrativas recolhidas nos
manuscritos irlandeses formam uma verdadeira saga (termo que costuma estar
reservado às homóIogas escandinavas), análoga à que Hortoré de BaIzac tentou
fazer ao compor os múltiplos episódios autónomos da Comédia Humana. Com
efeito, nestes últimos encontra-se de tudo um pouco: fragmentos da vida
quotidiana, lutas intermináveis pelo poder, a voracidade de tubarões de dentes
afiados, o sacrifício de inocentes, histórias de amor de partir corações,
assassínios, barbáries, proezas heróicas, delírios poéticos ou proféticos, e ainda
muitos outros elementos que são comuns à antiga epopeia celta, assim como ao
gemo romanesco muitas vezes inspirado pelas vozes do invisível.

É um facto inegável que a saga romanesca de BaIzac se alimenta


inconscientemente de mitos existentes na sociedade da primeira metade

1. Sendo um facto que o ano celta possuía doze meses lunares, mais um mês
intercalar para alcançar o ciclo solar, e que cada mês começava com a lua cheia,
as festas de Samain e de Beltaine não calhavam em datas fixas: será mais
correcto dizer «na lua cheia mais próxima do 1’ de Novembro ou do 1’ de Maio».

do século XIX. As personagens que encontramos na Comédia Humana e que vão


aparecendo, aparentemente em desordem, nos diversos trechos narrativos, são
absolutamente indispensáveis para a coerência do plano de conjunto que foi
idealizado pelo seu autor. Todas elas representam arquétipos, e facilmente
poderíamos identificá-los com certos heróis, não só da epopeia celta da Irlanda
mas também da epopeia humana em geral. 0 ingénuo mas poderoso Rastignac
tem o seu correspondente irlandês em Lug do Braço Longo e no seu
prolongamento humanizado Cúchulainn; o tímido Rubempré encontra-se na
tocante personagem de Dermot (Diarmaid), e a pobre Esther Gobseck na de

18
Déirdré, tão exaltada por John Millington Syngee é a imagem perfeita da Irlanda
oprimida e martirizada. Quanto a Vautrin, ser proteiforme, é o Thersite grego, o
Lõki germano-escandinavo e o Bricriu irlandês, ou seja, uma das imagens
fundadoras do Diabo medieval, o próprio símbolo do Tentador que, para melhor
semear a discórdia, se mascara com as feições benevolentes do deus Ogina da
palavra dourada, ou então com as feições dum estranho Côroi mac Dacré que
muda de forma e de aspecto sempre que quer enganar um rival. Honoré de
BaIzac não conhecia rigorosamente nada das lendas irlandesas, mas o gênio de
um artista de qualquer época traduz-se em encontrar através da sua criação
própria os grandes mitos fundadores da humanidade, os mitos impereciveis que
moldam a estrutura de um pensamento humano e que se manifestam através de
imagens e de símbolos que remontam à noite dos tempos. Além do seu exemplo,
outros poderiam ser aqui referidos.

Passando adiante, refira-se que do conjunto de episódios preciosamente


recolhidos pelos transcritores irlandeses, saíram várias personagens com
características bem vincadas, com um profundo valor simbólico, e com o seu lugar
na sociedade irlandesa e na estrutura mental dos celtas. 0 mínimo que se pode
dizer é que elas são «cheias de cor» e inesquecíveis, tão forte é o poder de
evocação que exercem sobre o imaginário. Apeteceria chamar-lhes «divinas», se
este epíteto tivesse um verdadeiro significado no espírito dos contadores: na
verdade tudo leva a crer que os druidas professavam a existência de um deus
único, incomunicável e inominável, ao qual por vezes era dada uma aparencia
humana para que pudesse ser inteligível. Com efeito, as personagens «divinas»
que deambulam pelas epopeias celtas não passam de funções divinas
materializadas, concretizadas e encarnadas por seres que, apesar de terem
características perfeitamente humanas, são dotadas de

19
poderes sobrenaturais ou mágicos, trata~se de homens e mulheres que, por
natureza ou graças a uma paciente iniciação, atingiram um grau muito elevado de
sabedoria e de poder assimilando funções divinas de que são agentes e donos.

Quer isto dizer que essas personagens diferem profundamente dos «actores» da
epopeia grega, deuses ou semi-deuses, que, classificados a título definitivo como
imortais, se sobrepõem à acção humana, domínando-a, ou mesmo contrariando-a
sempre que ela desafia os limites impostos pelo Destino. Os deuses gregos são
polícias e censores encarregados de manter a ordem numa sociedade ideal onde
cada pessoa tem um lugar definitivo. Os pretensos deuses celtas são treinadores
que mostram ao conjunto dos seres humanos como se trarisfonua um mundo que
ainda mal saiu do caos e se o leva a um estado de perfeição. Esta atitude
metafisica encontra-se nos mais pequenos pormenores da epopeia e, graças a
eles, respira-se uma esperança e uma serenidade que fazem com que cada
pessoa encontre o caminho para o pedaço de infinito que lhe coube.

Acontece na verdade que os heróis, em algumas peripécias em que se enredam,


estão constantemente nas fronteiras do real e prontos a crivolverem-se com um
além, sendo a atmosfera esseiicialmeDte sagrada, embora permeada aqui e ali
por alguns elementos realistas. É absolutamente verosímil que estas narrativas,
independentemente da forma em que chegaram até Dós, sejam a expressão
narrativa, de algum modo romanesca, de antigos rituais religiosos, de velhos
dramas litúrgicos que entretanto se perderam e nos quais cada personagem era
um sacerdote, um druida e portanto um deus, ou então aspirava a sê-lo; os actos
são às vezes orações mais eficazes que as palavras, sobretudo quando estas são
pronunciadas de tal maneira que mal se compreende o seu sentido. A regra
absoluta é por isso a superação pois, na perspectiva celta que encontramos nos
textos, Deus não é, mas transforma -se, participando todos o seres nesta
transformação.

Estes seres comportam por isso diversas facetas, não sendo bons nem maus: eles
serão. Os seus nomes pouco importam, pois trocam-se entre si; também pouco
importam as suas acções aparentemente vis, pois pertencem à sua massa bruta.
Eles serão heróis com o seu lugar na subtil e complexa liturgia que decorre no
mundo desde que apareceu o primeiro ser vivo. 0 jogo começa.

Assim se encontram as personagens na abertura da cena, ou melhor, nos


primeiros degraus do santuário. Na tragédia antiga era o coro

que, apresentando os heróis, abria o ritual. Neste caso, uma testemunha vem
contar o que viu, pois qualquer narrativa histórica deve ser Justificada por uma
tradição autêntica ou tida como tal. Aqui a testemunha é uni homem estranho,
Tuân mac Cairill, acerca do qual se diz ter vivido várias vidas desde a época do
dilúvio tomando diversas aparencias. Em narrativas análogas, substitui-o um certo
Fintan, filho de Boclira e descendente de Noé. Pouco importa: era necessaria uma
testemunha fidedigna e encontrou-se uma. Além disso, como estas histórias foram
redigidas na era cristã, impunha-se a caução da nova religião: esta caução

20
encarna no monge São Firmen a quem Tuân vai contar o que sabe ou, noutra
versão, no célebre santo Colum-Cill (Colomba). Além disso, mais tarde, quando se
tratou de transcrever a grande epopeia dos Fiana à volta de Finn e de Oisin
(Ossían), foi o próprio São Patrícío, o grande evangelizador da Irlanda, que veio a
evocar a grande sombra do herói Caílté, um dos companheiros de Finn, para lhe
contar as aventuras de que ele foi ao mesmo tempo testemunha e actor. Acontece,
porém, que Cailté tem uma dimensão humana normal e viveu apenas uma vida.
Uan mac Cairill tem um aspecto mais mágico, roçando as fronteiras do
sobrenatural, fazendo lembrar o bardo galês Taliesin que, ao nascer uma segunda
vez, adquiriu um conhecimento supremo, e lembrando também Merlim, o
Encantador, da lenda arturiana, filho de um diabo, mestre da magia e da profecia,
que, segundo os próprios textos, confia ao eremita Blaise a missão de passar para
a escrita as aventuras do Santo Graal, de forma a chegarem à posteridade.

Este procedimento permite recuar no tempo e tirar da sombra grandes figuras que
vão cumprir o ritual, «recuperando-se» os antepassados míticos, como Partholon,
o primeiro invasor de uma Irlanda completamente deserta a seguir ao dilúvio,
como Nemed, o primeiro sacralizador da terra da Ilha Verde, ou como os invasores
sucessivos, até ao famoso Tuhatha Dê Danann, que são verdadeiramente heróis
civilizadores e os pilares da sociedade celta teórica, Na verdade, estas figuras
míticas estão organizadas e hierarquizadas segundo o modelo sociocultural índo-
europeu, servindo de fio condutor a tudo o que foi edificado na Irlanda e desejando
conservar, apesar da ocupação anglo-normanda, a memória dos velhos gaélicos,
depositários de toda uma tradição de sabedoria e de concepção do mundo.

É assim que surge a figura hierática de Nuada, rei das tribos da deusa Dana,
ponto de equilíbrio desta sociedade ideal, e que num certo

21
sentido se poderia comparar ao Zeus grego e ao Júpiter romano. Nuada evoca
também o Tyrr germano-escandinavo (e a personagem pseudo-histórica latina
Mucius Scaevola), pois perde um braço durante uma batalha. Na tradição
germano-escandinava (como na tradição latina), a «mutilação» deriva de um
juramento simulado pronunciado com plena consciência para proteger o mundo
divino, mas na tradição celta trata-se antes de uma ferida heróica. 0 problema, no
caso dos celtas, consiste em que a integridade física do rei anda a par da sua
integridade moral: um rei doente ou mutilado não pode reinar, pois se o fizesse o
seu próprio reino estaria doente ou mutilado, devido a ambos constituírem uma
unidade. Contudo, como entre os celtas as fronteiras do real não são claras, há
sempre uma maneira de inverter uma situação catastrófica, bastando um braço de
prata para que Nuada readquira a plenitude das suas funções reais. Assim, ele
poderá nominalmente levar à vitória as tribos da deusa Dana contra as forças
obscuras - e obscuran.tístas - representadas pelos Fomore, os demónios de um
olho único e maléfico que têm por chefe o gigante Balor, o trovejador.

Entretanto, a sociedade representada pelos Tuatha Dê Danam está constituída de


forina a reflectir a sociedade humana, agrupando, por vezes de forma elitista e
aristocrática, um certo número de indivíduos que tanto representam arquétipos de
funções sociais, como são de alguma forma especialistas duma arte (podendo
esta palavra significar também técnica). 0 rei Nuada acaba por ser o eixo de um
mecanismo complexo que só pode funcionar se cada peça estiver no seu lugar.
Um rei que não esteja acompanhado de guerreiros, de artesãos, de «sábios», de
sacerdotes, de mágicos e de poetas, não possui nenhuma relevância.’Que seria
do fabuloso rei Artur sem os seus cavaleiros e sem o seu adivinho? 0 mesmo
acontece com Nuada. À sua volta encontramos personagens como Ogrua, o
mestre da palavra - aquele Ogrulos que o filósofo grego c pti-

é co Luciano de Samosata descreveu com correntes que, saindo da língua,


chegavam às orelhas dos humanos - o artífice do bronze Credne, o ferreiro
Goibniu, o médico Diancecht e muitos outros artistas que participam numa espécie
de conferência onde cada um tem voto na matéria. De entre eles destaca-se a
grande figura de Dagda, cujo nome significa literalmente «bom deus», e que tem
como apelido Ollathair, isto é, «pai de todos».

Este apelido é precisamente o epíteto de Odin-Wotan, Affiadir, mas Dagda, ao que


parece, apenas tem em comum com o deus germano-escandinavo uma certa
ambiguidade do carácter. Do mesmo modo que

Odin-Wotan é o deus dos contratos e não pára de troçar deles, Dagda, enquanto
«bom deus», possui uma moca muito estranha que mata com uma das suas
extremidades e ressuscita com a outra. Não será ele o equivalente do deus gaulês
Sucellos, que estava sempre armado com um martelo e cujo nome significa
«aquele que bate»? Ou tratar-se-á de Teutates, ou Toutatis, o «pai do povo»? Seja
como for, à medida que, com os séculos, ele se foi «folclorizando», transformou-se
no Gargantua da tradição francesa, que Rabelais tão bem soube recuperar e
revalorizar. Trata-se com efeito de um gigante dotado de uma potência sexual fora

22
do comum e de um apetite voraz. Além disso, possui um caldeirão maravilhoso,
um dos arquétipos do Graal, no qual verte um alimento inesgotável. Mas ele é
também um artista no sentido que actualmente se dá à palavra, pois consegue
extrair da sua harpa sons que fazem chorar e mesmo morrer, que provocam
alegria e riso, ou que adormecem quem quer que os ouça.

E, como Dagda é o «pai de todos», possui diversos filhos, com quem tem um
relacionamento de contornos muito pouco claros. Da sua irmã - ou filha - Boann,
epónimo do rio Boyne, ele tem, após manobras perfeitamente delatórias, um filho
que se chamará Oengus (Angus) e cujo apelido será Mac Oc, ou seja, «jovem
filho». Oengus é uma das personagens mais célebres da tradição gaélica e uma
das que mais se enraizou na memória popular. Rei feérico, ele é o senhor do
cairn(” megalítico mais famoso do mundo, o de Newgrange (em gaélico, Sidh-na-
Brug ou Brug-na-Boyne), que serviu de inspiração às grandes lendas da tradição
épica irlandesa. E se Oengus tem uma essência divina, não deixa por isso de se
vir misturar com os humanos, intrometendo-se nos seus jogos, nos seus assuntos
e nas suas batalhas. Alguns contos populares descrevem-no como estando
sempre escondido no meio do arvoredo, pronto a intervir no caso de a ordem do
mundo ser alterada. Este «jovem filho» é, em suma, uma espécie de consciência
universal, sempre latente no espírito humano e capaz de se manifestar tanto para
operar grandes milagres como para infligir os piores castigos.

Todos estes extraordinários membros das tribos da deusa Dana formam uma
espécie de sociedade ideal onde predominam as estruturas ceitas. Cada um deles
é «rei» nos seus domínios, «reina» sobre um

I. N. T.: Montículo de forma redonda, feito de pedras e de terra; túmulo celta ou


pré-históri-

co. As antas ou dólmenes estavam normalmente inscridas num cairn. Estes


montículos ou outeiros artificiais tão são designados por tumulus.

23
palácio maravilhoso, ou sobre um outeiro megalítico; entre eles existem laços que
tanto podem ser de aliança pura e simples, como familiares ou meramente
contratuais. Após a batalha de Tailtiu e a partilha da Irlanda com os milesianos, foi
Dagda que, na hierarquia, ocupou o lugar cimeiro, como se fosse o rei supremo
possuidor de uma autoridade moral incontestável e de poderes para exercer a
justiça. Esta proeminência encontramo-la também na personagem de ManaDann,
filho de Lir, epónimo da Ilha de Man: este reina sobre a misteriosa «Terra da
promessa», que também se chama Tir-na-nOg ou «País da Eterna Juventude»,
que é na verdade uma espécie de paraíso situado algures em ilhas longínquas, a
ocidente, evidentemente, ilhas estranhas com uma vegetação maravilhosa e com
grandes espaços conhecidos pelo nome de Mag Mell ou «Planície das Fadas».
Acontece entretanto que estes domínios estão situados sob um lago, e às vezes
mesmo sob o mar: o Outro Mundo, para os celtas, está sempre muito próximo do
mundo dos vivos, que nele podem penetrar. No que respeita às «boas gentes»,
termo popular que se refere aos seres feéricos, deambulam pelo mundo humano
sem quaisquer problemas, possuindo o dom da invisibilidade e podendo assumir
um aspecto humano sempre que o desejem; podem também tomar a forma de
aves, o que acontece sobretudo quando se trata de mulheres.

Entre todas estas personagens, Dagda, Mider, Oengus, Mananann e muitos


outras, há uma que é muito particular e que escapa a qualquer hierarquia: Lug, ao
qual estão associados dois epítetos, Lanifada, isto é, «braço longo», e
Samildanach, «artesão múltiplo». Lug constitui a figura da divindade celta mais
difundida, não apenas na Irlanda mas em todo o continente europeu, devendo-se
a ele o nome de várias cidades, como Lyon, Laon, Loudun, Leyde e Leipzig, que
derivam da antiga designação lugudunum, «fortaleza de Lug». É a ele que se
refere Júlio César, nos seus Comentários, quando menciona um Mercúrio gaulês,
fazendo notar que se trata do deus mais venerado de toda a Gália. A sua origem é
dupla: ele pertence ao ramo dos Tuatha Dê Danann pelo lado do pai, e ao dos
Fomore pelo lado materno, o que faz com que só ele seja capaz, na segunda
batalha de Mag-Tured (Moytura), de enfrentar o avô, Balor, de olho malévolo, e de
o matar. Além disso, sem que ocupe nenhum lugar na hierarquia, ele é o
organizador por excelência e o artesão da vitória final nesta batalha. Isto deve-se
ao facto de ele ser um deus para além de todas as funções, reunindo o conjunto
das qualidades que se encontram nos outros deuses; ele é na verdade o «Múltiplo

artesão», tal como o será mais tarde, na lenda arturiana, Lancelote do Lago, que e
a sua imagem heroicizada e tomada romanesca.(”

Na epopeia celta encontram-se personagens femininas que nada ficam a dever


aos homens. Segundo a tradição, a Irlanda era habitada, antes do dilúvio, por uma
mulher primordial de nome Cessair; e a própria Irlanda se tornou uma entidade
divina ou feérica, Bariba, a qual, segundo algumas versões da lenda, teria
sobrevivido ao dilúvio, assegurando assim a perenidade da terra situada nos
confins do real. Foi também uma mulher, a filha do deus-médico Dianceclit, que,
graças à sua ciência e magia, devolveu o poder real ao Nuada vencido,
fabricando-lhe um braço de prata tão eficaz e vivo como o seu braço de carne, e

24
fazendo-lhe um «implante» graças a uma extraordinaria «operaçao» cirúrgica.
Acontece com efeito que, na perspectiva celta, as mulheres são dotadas de
poderes ignorados pelos homens. A mulher é sempre a imagem simbólica da
Soberania, pois encarna o conjunto da comunidade da qual o rei - acessoriamente
o niarido - é a trave mestra teórica, um pouco como acontece no jogo de xadrez
em que a rainha é a peça de maior mobilidade, mas onde o rei é uma peça
fundamental sem a qual se perde a partida. Nas narrativas epicas aparecem
também mulheres mágicas, e frequentemente feiticeiras, como Funinach, primeira
esposa de Mider, inimiga jurada da bela Etame, e mais tarde mulheres-guerreiras
iniciadoras dos jovens e temíveis sacerdotisas especialistas em manipular os
sortilégios. Estas mulheres nunca deixam de viver em plenitude, arcando com as
consequências dos seus actos. Por muito conscientes que estejam do seu poder,
não esquecem que podem morrer de amor, estando sujeitas às circunstâncias que
lhes alimentou a paixão voraz e ilimitada e aos caprichos 1do fado, ou seja, à
força de um Destino desconhecido mas imanente. E preciso não esquecer que a
origem da história trágica de amor de Tristão e Isolda, tão célebre no mundo
ocidental e chegando a ser considerada o símbolo do amor humano, está
claramente inscrita na epopeia celta da Irlanda.

A característica mais saliente destas heroínas femininas epicas e apresentarem


múltiplas aparências, múltiplos rostos, múltiplos semblantes, geralmente três,
tendo em consideração o número simbólico sagrado dos Celtas, o qual tanto se
apresenta com a forma de tríade

1 . A este propósito, ver J. Markale, Lancelot et la Chevalerie arthurienne, Paris,


Imago, 1985.

25
como de triskell, a tripla espiral que, girando à volta de um ponto central, simboliza
por excelência o universo em expansão. As heroínas aparecem por isso com
inúmeras aparencias e nomes, em diferentes épocas e em encamaçoes
sucessivas. Refira-se em primeiro lugar a tripla Brigit, que se diz filha de Dagda (a
não ser que ela não seja sua irmã), e que vem a ser nem mais nem menos que a
Minerva gaulesa de quem fala César, deusa das técnicas, das ciências e das
artes, que os cristãos recuperaram com o vocábulo «santa» Brígida atribuindo-lhe
a fundação do célebre mosteiro de Kildare, antigo lugar de extrema importância do
culto druídico. Ora, esta Brigit é também, com o nome de Boann, a mãe de
Oengus, o Mac Oc que concebeu e deu à luz durante o espaço temporal da noite
de Samain, ou seja, simbolicamente, durante a abolição do tempo, a eternidade.
Brigit encama a vida eterna, e o seu nome, derivado de Bo Vinda, «vaca branca»,
mostra bem até que ponto se encontra associada a um alimento inesgotável, o
leite, elemento indispensável aos povos exclusivamente nómadas e pastores,
como era o caso dos celtas. A simbologia do seu nome dará os seus frutos, e
Boann toma-se o rio Boyne (grafia moderna) que fecunda com as suas águas
doces um vale verdejante ao redor do qual se situam os grandes outeiros feéricos,
que são domínio dos deuses. E se o nome Brigit (que significa «poderosa», «alta»,
«luminosa») é extremamente significativo, Boann, representando a riqueza
avaliada em cabeças de gado entre os celtas, constitui a alma duma sociedade
onde predominam claramente as tendências ginecocráticas.

0 terceiro rosto de Brigit-Boann, o de Morrígane (genítívo de Morrigu), filha de


Ernirias, uma das personagens mais marcantes das tribos da deusa Dana, é de
difícil apreensão devido aos seus contornos pouco claros. 0 que nela melhor se
evidencia, em particular na narrativa da batalha de mag-Tured, é o facto de se
tratar de uma divindade guerreira temível para os seus inimigos durante os
conflitos enquanto exortava os guerreiros a combaterem com encamiçamento. 0
furor guerreiro de que ela dá provas abundantemente desdobra-se num furor
sexual desabrido que a transforma senão numa divindade do amor, ao menos
numa espécie de deusa do erotismo. A fúria guerreira e a sexual andam assim a
par, e nos prolongamentos da epopeia celta encontram-se numerosas mulheres
guerreiras que têm poderes mágicos e são especialistas na arte militar, ao mesmo
tempo que são iniciadoras dos futuros heróis, como é o caso, por exemplo, de
CGchulainn ou de Finn mae Cool.

o nome de Morrigane (Morrigu) que significa «grande rainha», evoca o da «fada»


Morgana das novelas arturianas e do ciclo do Graal, tratando-se, em qualquer dos
casos, do mesmo arquétipo, ao mesmo tempo guerreiro, sexual e mágico. A
Morrigane da epopeia irlandesa toma muitas vezes o aspecto duma gralha,
chamando-se então Bobdh. A analogia com Morgana é evidente, pois ela e as
suas companheiras da Ilha de Avalon possuem precisamente o mesmo dom de se
metamorfosearem. Além disso, é de crer que a mulher feérica que leva um ramo
de macieira de Emain ao herói Bran, filho de Fébal, antes de o levar a empreender
uma estranha navegação, seja a própria Morrigane, embora o seu nome não seja
pronunciado neste episódio. Porque não havia de reinar a «grande rainha» nesta
terra bem aventurada de frutos maduros durante todo o ano e onde não existem a

26
doença, a velhice e a morte? Seja como for, a ilha misteriosa de Emam Ablach é o
equivalente, quer linguístico quer mitológico, da ilha de Avalon, a fabulosa Insula
Pornorum para a qual convergem todos os fantasmas da humanidade sofredora.

Morrigane é bem o tipo de mulher celta vista pelos autores das epopeias
mitológicas; e, muitas vezes, vamos encontrar este tipo nas personagens
femininas que, na fronteira entre o humano e o feérico, possuem dons mais ou
menos sobrenaturais e o poderoso geis, ou seja, o poder do encantamento mágico
que tem o valor de obrigação absoluta para aquele ou aquela que dela é objecto. 0
belo Dermot, filho de O’Duibhné, um dos companheiros de Finn mac Cool,
conhecerá bem esse fenômeno, pois subjuga o geis da bela Grairiné (Grania),
perdidamente apaixonada por ele. Os filtros do amor pouco podem fazer face ao
encantamento mágico e religioso que faz intervir o mundo invisível e faz depender
os actos humanos das divindades invisíveis. A jovem Etaine, profundamente
amada pelo sombrio deus Mider (que tem numerosos pontos em comum com
Méléagant de Chrétien de Troyes), não escapa também ao geís lançado pela sua
rival Furimach, e nada neste mundo a consegue poupar ao longo período de
turbulências e depois de metamorfoses que a afectarão profundamente. Apesar
disso a aventura de Etaine e de Mider é uma história de amor «normal», na mais
bela tradição romântica. Na epopeia celta, no entanto, o amor não é um
sentimento isolado, fazendo parte das grandes mutações que se operam no
universo, tudo se dirige, por entre as diversas peripecias psicológícas, para uma
dimensão cósmica à qual ninguém consegue escapar. 0 que é posto em relevo é
muito menos a natureza fatal da pai-

27
xão amorosa do que a sua necessidade metafíslca. Acima de tudo, procura
transmitir~se a ideia de que, a existir um deus. ele só pode ser o amor, pois este
constrói o mundo, e a mulher, que é iniciadora por essência, é capaz de dar, com
o seu amor, um segundo nascimento, o nascimento na eternidade, àquele que
escolheu amar.

Existe muito a ideia, formada ao longo dos tempos, de que a epopeia não deixa
nenhum espaço para a vida afectiva, para o estudo do comportamento psicológico
dos heróis, cuja descrição permanece demasíadas vezes ao nível do exterior,
estereotipada segundo as normas do gênero. Naturalmente, as personagens das
epopeias são arquétipos carregados de significação simbólica, mas não deixam
por isso de ser dotadas de reacções humanas e por isso de vida interior.
Naturalmente, há um aumento do que se chama qualidades, aumento que é
indíspensável para se pôr em destaque as acções fora do comum. E verdade que
existe também uma simplificação destinada a inserir as personagens e as acções
num determinado quadro acessível a um público que não compreende a
profundidade e as subtilezas da psicologia, Apesar disso, não se deve esquecer
que os heróis são humanos, mesmo quando são apresentados como sobre-
hinnanos. E tanto nas narrativas épicas da antiga Irlanda como nas da antiga
Bretanha, são seres humanos que descrevem outros seres humanos que, ao
atravessarem a vida, tanto passam por situações de incerteza, de angústia e de
grande sofrimento como, por outro lado, também são capazes de viver grandes
alegrias e de desfrutar de momentos de grande felicidade. 0 amor de Mider por c

Etam comove-nos porque se trata de um amor que qualquer homem pode ter por
uma mulher. 0 furor guerreiro com que Lug vinga a morte do pai, não poupando os
descendentes do seu assassino, é bem demons~ trativo do sofrimento que lhe
provoca a injustiça de que o seu pai foi vítima. A estranha paixão de Oengus pela
mulher que entrevê através da neblina e o encantamento de Bran, filho de Fébal,
quando ouve a voz da rainha das fadas louvar-lhe os encantos da ilha bem
aventurada, são sentimentos perfeitamente humanos que qualquer pessoa
poderia sentir,

É nessa universalidade dos sentimentos que se encontra a extraordinária riqueza


destas epopeias fragmentárias dispersas nos varios manuscritos da Idade Média,
cujas linhas directrizes são agora fáceis de reconstituir. Para além de nos fazerem
reflectir, num plano metafisico, sobre o mundo e sobre as relações entre o visível e
o invisível, essas epopeias testemunham uma sensibilidade que em nada é inferior
àquela

1 que o romantismo pretendeu inventar. Estas diversas narrativas que nos chegam
do passado têm um valor que vai muito para além de serem um testemunho de
um mundo imerso em sombras, pois nelas palpita a beleza de histórias que devem
ser transmitidas de geração em geração com a plena certeza de que nelas o belo,
a bondade e o salutar andam de mãos dadas. A árvore do conhecimento não
poderá apontar as suas ramagens frondosas para o céu se as suas raízes não
estiverem ricamente alimentadas pelas sombras que deambulam pela terra, como

28
é o caso das dos fantasmas que esperam desesperadamente pelo momento de
encamarem. E só a poesia pode permitir que se cumpra esta subtil operação
alquímica.

Para que o objectivo se realize, toma~se necessário que se viaje para as


estranhas fronteiras do real, aí onde o sonho e a realidade formam duas vertentes
duma mesma e única montanha.

Poul Fetan, 1997

29
ADVERT E NCIA

A narrativa que se segue não é uma tradução nem uma adaptação de textos
originais, ainda menos uma ficção romanesca inspirada por temas épicos. Trata-
se da reescrita da grande epopeia dos celtas tal como épossível reconstitu-la com
o auxilio de múltiplas histórias contidas nos manuscritos irlandeses da Idade
Média, histórias que aparecem como sendo as mais antigas conservadas da
tradição celta. Esta reescrita obedece a dois imperativos: contar com a máxima
simplicidade possível, numa linguagem acessível ao maior número de pessoas, e
respeitar integralmente o esquema dramático original. E esse o motivo por que se
fará, em cada episódio, uma referência precisa ao texto que lhe serviu de base. As
obras do passado pertencem ao património da humanidade, mas torna-se
necessário às vezes relembrá-las a um Público novo. Era já essa a tarefa dos
transcritores da Idade Média, que aqui volta a ser proposta.

30
Naquele tempo, o abade Finnen”’, na companhia de seis dos seus discípulos,
percorria a terra da Irlanda para ai pregar o Evangelho e baptizar aqueles que
ainda não tinham recebido o baptismo. Um dia acercou-se ele de uma fortaleza
que se erguia numa margem, ao fundo de uma baía, numa região muito isolada
do UIster.l’1 Como ele e os seus companheiros estavam cansados devido à longa
viagem, pediram ao chefe da fortaleza que os acolhesse. Mas este respondeu que
de modo algum daria acolhimento a vagabundos que incitavam os homens da
Irlanda a abandonarem os seus antigos costumes.

Perante esta resposta, Finnen ficou furioso e, avançando para a porta da


fortaleza, gritou: «Já que é assim, já que te referes aos nossos antigos costumes,
eu vou lançar uma maldição sobre o dono deste edifício, assim como sobre todos
os que nele habitam e toda a população deste país! Por Deus Todo-poderoso,
enquanto não me for feita justiça,

1 . Firmen, ou Fíman (às vezes conhecido por «São Finian, o Leproso», é um dos
inumeráveis «santos» irlandeses que, sem serem reconhecidos por Roma, são
geralmente considerados os Primeiros evangelizadores da ilha Verde. Firmen
passa por ter fundado o mosteiro de

Mag Bile no Ulster e o de Innisfalien na ilha do grande lago de Killarney, no Kerry,


estando este último a ilustrar os seus Anais, de valor inestimável para a história da
alta Idade Média.

2. Trata-se da baía de Sheephaven, no condado de Donegal. No lugar da antiga


fortaleza, encontram-se ainda vestígios do castelo de Doe, construído no sCCulo
XVI pela família dos Mae Sweeney.

31
nada farei para evitar que a desgraça se abata sobre este país! Nem eu nem os
meus companheiros comeremos qualquer alimento enquanto não for satisfeito o
nosso pedido de hospitalidade. Se morremos, a culpa será de quem nos recusou
alojamento e de todos aqueles que o seguiram na sua detestável atitude. A
vergonha abater-se-á sobre todos e terão de expiar as culpas, estendendo-se o
castigo pelos descendentes até à nona geração. É esse o costume deste pais e
eu juro que o farei cumprir até às últimas consequências!1’1

Após ter pronunciado estas palavras, Finnen voltou para perto dos seus
companheiros e os sete encaminharam-se para o prado existente em frente à
fortaleza. Era um sábado de noite. Os homens ficaram deitados sobre a erva
durante a noite e uma boa parte da manhã seguinte até que assomou sobre as
suas cabeças um sujeito de compleição imponente, de cabelos brancos e barba
abundante, que, depois de os ter observado, se dirigiu a Finnen e se ajoelhou
diante dele. «Saúdo-te, homem de Deus! » disse ele. «Permite-me que faça frente
ao desafio que lançaste às gentes deste país e que, desse modo, não se possa
dizer que o costume da hospitalidade foi traído, recaindo a culpa sobre cada um
de nós. Eu não moro longe, e pedi aos meus criados que acendessem o lume
para cozer os alimentos no meu caldeirão. Vem, homem de Deus; tu e os teus
companheiros terão uma acolhimento digno daquele que vos envia a pregar a sua
mensagem aos povos desta ilha.» Finnert ergueu-se e cumprimentou o velho.
«Quem és tu que me chamas homem de Deus? És tu também um homem de
Deus ou vens aqui só para me provocar em nome do Inimigo? - Eu recebi o
baptismo em nome do Senhor, o Deus Todo-poderoso, e foi Patrício que derramou
sobre a minha cabeça a água da vida eterna», respondeu o velho. «Peço-te que
renuncies à maldição que lançaste às gentes deste país e que venhas a minha
casa descansar e procurar conforto». «Mas quem és tu?», insistiu Finnen. «Um
homem dos tempos antigos. Já há muito tempo que vim a este mundo, e é por
vontade de Deus que cheguei ao dia de hoje para estar diante de ti. Acho que isto
te deve bastar. Acompanha-me a minha casa.»

«Por Deus Todo-poderoso! », exclamou Finnen, «nem eu nem os

1. Trata-se do famosojejum legal, praticado frequentemente pelos celtas e que


consistia, para o queixoso, em jejuar diante da parte adversária, revelando
solenemente os motivos do conflito. Se o que faz jejum morre, a responsabilidade
recai sobre aquele que não reparou os seus erros e que, por isso, é excluído da
comunidade. Encontra-se aqui o mesmo princípio da greve da fome.

ineus companheiros te acompanharemos se não nos disseres quem és.» «Nesse


caso ouve bem o que te digo. Nunca ninguém tinha desembarcado nesta ilha
antes do dilúvio. Conta-se no entanto que, quarenta dias antes de as águas
subirem, três mulheres aqui estiveram, tendo o nome de Banba, FothIa e Eriu”), e
diz-se também que elas sobreviveram à inundação. Mas o que é certo é que esta
ilha peri-naneceu deserta trezentos e doze anos depois do dilúvio. Só nessa altura
é que aqui chegou Partholon, filho de Sera, acompanhado de vinte e quatro
homens e das suas respectivas mulheres. E eu próprio estava entre esses vinte e

32
quatro homens.

«Partholon e o seu clã estabeleceram-se assim na Irlanda e aqui viveram muito


tempo. A terra era bela e fértil, com grandes prados onde os gados podiam pastar.
E o país agradava-lhes, porque nele podiam (2)

prosperar tranquilamente e sem o receio de animais venenosos. Mas um dia, entre


dois Domingos, uma epidemia abateu-se sobre a ilha e morreram todos os seus
habitantes. Entretanto, como nunca se ouviu falar de um desastre que não tivesse
deixado ficar ao menos um único sobrevivente para o contar, fiquei eu, a única
testemunha dos dias antigos.

«Eu senti-me extremamente só e passei a deambular de colina em colina e de


falésia em falésia evitando os lobos que percorriam as planícies e as florestas.
Errei assim ao acaso durante trinta e dois anos sem encontrar vivalma. Por fim a
velhice abateu-se sobre mim e os membros começaram a pesar-me, ficando eu
fraco e desamparado. Já não conseguia subir as colinas e a certa altura, já não
me conseguindo mexer, refugiei-me numa gruta à espera da morte.

«Lembro-me como se fosse hoje. Eu estava à entrada da gruta, meio deitado,


quando vi chegar Nemed, filho de Agnoman, seguido por vários homens e
mulheres. Vi-os tomarem posse da ilha e, quando chegaram à entrada da gruta,
não me quis mostrar. Eu tinha deixado crescer os cabelos, as minhas unhas
estavam enormes, estava todo grisalho, decrépito e nu, tolhido pela miséria e pelo
sofrimento. Certa vez, depois de uma noite de sono, ao acordar numa manhã de
sol, apercebi-me de que tomara a forma de um veado, facto com que

I- São os três nomes tradicionais (e mitológicos) da Irlanda personificada. 0 último


tornou-se o nome gaélico oficial da República da Irlanda, Eriu no nominativo e Erin
no genitivo.

2. Não há serpentes na Irlanda. Este fenómeno deriva do facto geológico de a ilha


se ter separado do continente europeu e das Ilhas Britânicas antes da chegada
dos animais dos países temperados e quentes ao norte, no período pós-glaciar.
Mas segundo uma lenda tradicional irlandesa, São Patrício em pessoa terá caçado
serpentes na ilha lançando-lhes uma maldição.

33
o meu espírito se alegrou pois eu voltava a ser jovem.

«Revestido da minha forma animal, passei a tomar conta dos gados da Irlanda,
vendo passar a meu lado grupos de veados arruivados que corriam através de
planícies e vales, e através de montanhas até chegarem aos estuários dos rios.
Foi essa a minha vida no tempo de Nemed. Os do seu clã tomaram-se numerosos
e chegaram a formar quatro mil e trinta casais. Mas as gentes de Nemed tiveram
de combater gigantes que vinham das ilhas imersas em nevoeiro e aqueles que
não se exilaram foram sucumbindo sucessivamente. Assim fiquei só, nesta ilha, a
tomar conta do numeroso gado, e tendo de me refugiar do vento que vinha do
largo e da chuva que me encharcava e me obrigava muitas vezes a esconder~me
debaixo dos carvalhos da floresta.

«E mais uma vez fiquei velho, com os membros entorpecidos. Eu sabia no entanto
que o meu destino ainda não se cumprira, pois faltava-me voltar ao UIster já que
fora nessa região que eu mudara de aspecto. Resolvi por isso refugiar-me numa
gruta, não longe daqui, e ficar à espera do que poderia acontecer de seguida. Foi
nessa altura que assisti ao desembarque nesta terra da Irlanda daqueles a quem
se chama os Homens-Trovão. Eles eram muito numerosos e ocuparam esta terra
depois de terem feito frente aos gigantes das ilhas que queriam impedi-los de aqui
viver em paz. Assisti a terríveis perseguiçoes nos vales e ao longo dos estuários,
assim como a combates mortais e a caçadas ao homem na floresta. Mas, por fim,
os Homens-Trovão acabaram por dominar este país. Em dada altura estava eu à
entrada da minha caverna, lembro-me disso como se fosse hoje, e o meu corpo
voltou a mudar de aspecto, passando a ter a forma de um javali. Consigo mesmo
lembrar-me que entoei uma canção inspirado pela maravilha que comigo ocorrera:

«Hoje, sou um javali,

Sou um reijorte e vitorioso.

0 meu canto e as minhas Palavras eram agradáveis, outrora, nas assembleias,

encantando os jovens e belas mulheres.

0 meu carro de combate era belo e majestoso, a minha vo: emitia sons graves e
doces,

eu era hábil nos combates, tinha um rosto encantador

Mas, hoje, sou wnjavali negro... »

«Ora, os Homens-Trovão foram vencidos por outras gentes que desembarcaram


nesta terra na noite anterior às calendas de Maio. Eu vi essas gentes Incendiarem
os navios nas margens e penetrarem nos vales; e vi-as combaterem os Homens-
Trovão nas planícies. Pertenciam às tribos da deusa Dana cuja origem, segundo
se diz, é desconhecida. Mas é provável que eles viessem do céu, pois tinham uma

34
inteligência rara e os seus conhecimentos ultrapassavam largamente os dos
outros povos do universo.

«Mais uma vez fiquei velho, apoderando-se de mim a tristeza e a melancolia. Eu já


não era capaz de fazer o que fizera antes. Não me queria misturar com os outros
e habitava em cavernas sombrias e em covas que existiam entre os grandes
rochedos. Eu fugia de tudo o que mexia, fossem homens ou animais. Lembro-me
agora perfeitamente de que me deitei ao comprido no chão e de que passaram à
minha frente as formas que já possuíra até então, o que fez com que a minha
tristeza aumentasse. Jejuei então durante três dias, ao fim dos quais senti que já
não tinha forças. Mas, sem disso me aperceber, tornei-me um pássaro, uma
grande águia do mar. Fiquei de novo alegre, por perceber que poderia percorrer
incansavelmente os céus desta ilha voando mesmo rente às nuvens. Foi assim
que levantei voo e que pude testemunhar tudo o que se passava na Irlanda. E eu
cantarolava estes versos:

«Águia do mar hoje,

jáfui noutros tempos umjavali.

Vivi antes entre varas de porcos selvagens, e eis-me agora entre bandos de
pássaros ... »

«Que história estranha me contas! », disse Finnen. «E como é possível que agora
sejas um homem como qualquer outro?» - «Os desígnios de Deus são
insondáveis», respondeu o velho, «pois o futuro a Ele pertence. Fica contudo a
saber que foi na forma de animais que conse~ gui sobreviver a todos os povos
que invadiram esta ilha. Também assisti à chegada dos Filhos de Milé e à sua luta
contra as tribos da deusa Dana. Nessa altura tinha eu a forma de pássaro e
estava no buraco de uma árvore, junto ao rio.»

«Estive adormecido durante nove dias, ao fim dos quais acordei com o aspecto de
um salmão. Atirei-me então à água e comecei a nadar. Sentia-me bem, com muita
energia, e saltei de rocha em rocha em di-

35
recção à nascente. Graças à minha habilidade, escapei durante muito tempo a
variados perigos, às redes de pesca dos pescadores, às garras das aves de
rapina que tentavam agarrar-me, aos dardos que os caçadores me atiravam, às
lontras que me perseguiam através da corrente.

«Mas, um dia, lembro-me muito bem, fui apanhado por um pescador, que me
ofereceu como presente à mulher de CarilI, o rei deste país. 0 cozinheiro meteu-
me numa grelha, para me cozer num fogo de ramos secos. A mulher do rei, ao
passar perto, ficou cheia de vontade de comer-me e devorou-me, passando eu a
habitar no seu estômago. Lembro-me como se fosse hoje, do tempo em que estive
no estômago da mulher de Carifi. Lembro-me também de ter nascido outra vez
sob uma forma humana, graças à mulher de Carifi. Comecei então a falar como os
homens falam, e fui capaz de revelar tudo o que se tinha passado na Irlanda
desde a época do dilúvio. E foi depois do meu novo nascimento que me
chamaram Tuân, filho de Carlll.»

«Muito bem», disse Finnen. «Agora podemos seguir-te até à tua casa, já que nos
ofereces hospitalidade para nos compensares da má conduta e da perversidade
dos habitantes deste país.»

Tuân, filho de CarilI, conduziu então Finnen e os seus discípulos à sua casa que
se erguia sobre uma colina de onde se avistava o estuário. Era uma casa real,
cercada por um muro e por uma paliçada, e guardada por alguns guerreiros
armados. Tuân fez entrar os seus hóspedes, mas quando quis dar-lhes de comer
na sala dos festins, Finnen disse-lhe:

«Hoje é Domingo e ainda não prestámos homenagem ao Senhor. Não comeremos


nem beberemos absolutamente nada enquanto não tivermos cumprido o nosso
dever.» «Não há problema», respondeu Tuân, «há aqui um local para oração. Vem
com os teus companheiros e cumpram o vosso dever.»

Quando Firmen e os seus companheiros acabaram de celebrar o ofício de


Domingo, seguiram Tuân até à sala de festins. Tuân pedira aos seus criados para
cozerem os alimentos num grande caldeirão, no fogo que se encontrava ateado a
meio da sala. A volta havia juncos e palha fresca. Finnen, os seus companheiros e
Tuân, filho de CarilI, sentaram-se ao redor do fogo.

«Tomai e saciai-vos», disse Tuân. «Por Deus Todo-poderoso! », gritou Finnen,


«Nós não comemos nenhum alimento nem tomamos nenhuma bebida enquanto tu
não começares a contar-nos o que aconteceu nesta ilha a seguir ao dilúvio. Sê um
bom anfitrião e diz-nos o que

sabes, para que possamos apreciar a tua generosidade ao mesmo tempo


Ilharemos contigo o que tu 1

que part sabes acerca da história do mundo.» «Com todo o


prazer», respondeu Tuân.

36
0 anfitriao começou então a narrar as cinco invasões que a Irlanda sofrera desde
os tempos distantes do dilúvio. E, enquanto os seus hóspedes comiam e bebiam,
o homem dos tempos antigos falava. Os discípulos de Firmen ouviam o que ele
dizia. Foram estes que, mais tarde, contaram tudo o que ouviram aos seus
proprios discípulos, os quais transmitiram a mensagem a novos discípulos e assim
por diante. E é assim que, graças a Tuân, filho de CarilI, e também ao abade
Firmen, nós conhecemos a grande epopeia dos celtas.(’)

1Segundo a narrativa do Rawlinson B. 512, publicada com tradução inglesa de


Kuno Nleyer, The Voyage of Bran, Londres, 1987. Outra versão, a do Leabhar na
hUidré, foi traduzida Para francês por Ch.-J. Guyonvarc’h, Textos mitológicos
irlandeses, Rennes, 1980.

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C a p í t LI 1 0

epois de terem sido expulsos do Jardim do Éden, Adão e a sua companheira


Havali, ou seja, Eva, erraram por muito tempo pela terra em busca de um lugar
que os pudesse proteger do calor ardente e do frio cortante. Com eles levavam
uma pedra verde caída do céu”’ e um ramo da Árvore da Vida. Assim que
encontraram um lugar propício, aí construíram uma cabana com pedras e pedaços
de argila, e Havah cravou no solo o ramo da Árvore da Vida. Passaram a viver na
cabana, criaram gado, cultivaram trigo, plantaram vinhas. E tiveram uma
numerosa descendência que se espalhou por toda a terra, chegando às regiões
mais longínquas e às margens do grande oceano que rodeia o mundo.

Ora, entre os filhos dos filhos de Adão e da sua companheira Havali, contavam-se
diversas filhas. E estas filhas ocuparam as planícies e os vales da terra e
chegaram às margens do grande oceano. Ora, estas filhas eram muito belas, e os
filhos de Deus que, descendo da profundeza dos céus, vinham contemplar a terra,
observaram-nas e ficaram seduzidos por elas. Aproximaram-se então e uniram-se
a elas, fazendo com que, em breve, das filhas de Adão nascessem crianças de
grande estatura. Estes gigantes, por seu turno, uniram-se a outras filhas de Adão
e engendraraM novos gigantes. E, assim sucessivamente, sucederam-se diversas
gerações de gigantes que se espalharam por toda a terra.

I- Isto faz lembrar a esmeralda de Lucifer que se transformará no Santo Graal


numa versão gnóstica da lenda.

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Nessa altura, Deus compreendeu que o mal provocado por Adão ia arruinar toda a
sua criação. Triste com esse facto e arrependido por ter dado vida a Adão e à sua
companheira Havali, resolveu então acabar com as criaturas que o ultrajavam,
poupando a vida apenas a um homem com quem simpatizava: Noé, um homem
justo que venerava o Eterno. Deus preveniu-o de que iria fazer chover sobre a
terra durante quarenta dias e quarenta noites para destruir o que havia de mal na
criação. E ordenou-lhe que construísse uma arca, que nela embarcasse um casal
de cada espécie animal que habitava na terra, nos ares e nos oceanos, e que
depois nela se refugiasse com toda a sua família, pois graças a ele sobreviveria o
que havia de melhor na criação.

Então, Noé construiu um barco e reuniu tudo o que deveria ficar a salvo da cólera
de Deus. Os Livros dizem que Noé tinha três filhos, Sem, Cham e Japliet. Mas os
Livros não dizem que ele tinha um quarto filho, de nome Bith, e que este filho tinha
uma filha chamada Cessair. Ora, esta Cessair, quando foi avisada de que as
águas iriam inundar a superfície da terra e engolir tudo o que fosse vivo, à
excepção do que estivesse dentro da Arca, tentou escapar ao Destino pelos seus
próprios meios. Segundo ela pensava, devia haver no mundo um lugar onde
nenhum homem tivesse chegado e que por isso deveria desconhecer qualquer
tipo de crime ou de mal; além disso, esse lugar, que deveria ser poupado pelo
Dilúvio, jamais deveria ter sido habitado por serpentes ou por monstros. A pensar
nesse país, chamou os druidas e perguntou-lhes onde ele se poderia encontrar.
Os druidas111 reflectiram longamente, e disseram-lhe que só um país poderia ser
poupado, a Irlanda, pois esta ilha estava situada no lado ocidental do mundo, para
norte, do mesmo modo que o Jardim do Éden estava situado a oriente, e para sul.

«Com efeito, acrescentaram eles, estas duas regiões têm muitas semelhanças
tanto no que respeita à sua natureza como à sua situação sobre a superfície da
terra. Assim como o Paraiso não pode dar abrigo a animais perigosos, é do
conhecimento geral que a ilha da Irlanda não tem serpentes, nem dragões, nem
leões, nem sapos, nem ratos, nem

escorpiões, nem quaisquer outros animais capazes de fazer o mal, se


exceptuarmos o lobo. À Irlanda chama-se ilha do Ocidente. Mais tarde, os Gregos
chamar-lhe-ão Hyberocl’) e os Romanos, que dominarão o inundo, charnar~lhe-ão
Occasimi.(21 A Irlanda está próxima da Ilha da Bretanha mas, no que respeita à
sua dimensão, é mais estreita, sendo no entanto mais fértil. Estende~se desde o
norte de África, fica na vizinhança da Ibéria e do oceano Cantábrico, e é este o
motivo por que lhe chamarão um dia Hibérnia. Mas também lhe chamarão Scotia
porque será povoada pela nação dos escotosl’1.» «É então para ai que temos de
ir», disse Cessair após ouvir aquelas palavras.

Ela mandou construir navios e preveniu os que lhe eram próximos de que iriam
partir por mar na direcção do sol poente. Era uma terça-feira quando ela deixou a
ilha Meroe, que ficava ao largo do Nilo. Demorou-se sete anos em escalas no
Egipto e levou oito dias a navegar no mar Cáspio. Depois, levou mais vinte dias
para ir do mar Cáspio ao mar Negro.(” Permaneceu um dia na Ásia Menor, entre a

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Síria e o mar Tirreno, depois partiu com a intenção de se dirigir aos Alpes, durando
vinte dias a sua navegação. Aí chegada, o trajecto entre os Alpes e a Espanha
levou-lhe dezoito dias. Foi a partir daí que ela partiu por mar em direcção à
Irlanda, onde só chegou passados nove dias, desembarcando na ilha num dia de
Sábado.

Cessair e as suas gentes chegaram à Irlanda quarenta dias antes do Dilúvio. Mas,
dos três navios que tinham partido, dois naufragaram, tendo sobrevivido apenas
Cessair e os que seguiam no mesmo navio que ela, a saber, cinquenta donzelas e
três homens. Eram estes Bith, filho de Noé, Ladra, o piloto, que, segundo se diz,
foi o primeiro homem a morrer na Irlanda, dizendo alguns que morreu de excesso
de

1 .Pode surpreender encontrar-se a presença de «druidas» numa época pré-


diluviana, mas o termo, típico de uma sociedade celta, designa antes de mais uma
classe sacerdotal. Forarti os celtas que compuseram o transmitiram esta
gigantesca epopeia dos antigos dias, e fizeram-no com os meios de que
dispunham, de acordo com os critérios socioculturais que eram os seus, mesmo
sendo tardia a redacção desta epopeia (século X1 ou XII) que procura
deliberadamente aliar a história mítica da Irlanda à tradição bíblica.

I. Nome fantasioso que e provavelmente uma forma corrompida do grego


uperokhê, «saída extrema», subentendendo- se para ocidente. Os redactores do
Leabhar Gabala (que aqui seguimos) queriam por força chegar ao termo
tradicional Ibernia, para designar a Irlanda (tendo ainda como justificação a quase
homofonia Iberia-Ibernia que justifica a passagem
- imaginária - dos sucessivos invasores da Irlanda pela Península Ibérica).

2. Literalmente «queda», subentendendo- se do sol, ao «poente» (Occidentem).

3. [Scots no original - N. T.] Nome genérico dos gaélicos, que depois o


transmitiram aos escoceses.
4. A rota é obviamente fantasiosa, tanto do ponto de vista espacial como
cronológico, mas a Passagem pela Península Ibérica aparece como uma
necessidade mitológica, representando esta Península, como aliás a Escócia, uma
espécie de Outro Mundo que pode estar em toda a parte e em lado nenhum. Há
também uma certa ambiguidade entro os Alpes e o antigo nome da Escócia, Alba,
e entre o nome dos escotos e o dos citas.

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mulheres e outros que foi vítima de um remo que lhe atravessou o corpo, e Fintan,
filho de Boclira, o qual, segundo uma certa versão, não terá morrido e vive ainda
entre os povos naturais da Irlanda. 0 certo e que Cessair, as suas cinquenta
donzelas e os três homens, desembarcaram nesta ilha quarenta dias antes do
Dilúvio, ou seja, mil seiscentos e cinquenta e seis anos depois do princípio do
mundo.

Assim que desembarcaram no solo da Irlanda, disse-lhes Cessair: «Chegámos a


um país que não sofrerá a fúria das águas, pois encontra-se na extremidade do
mundo. Estabeleçamo-nos no cume das montanhas e construamos casas para
nos abrigarmos. Contudo é meu desejo que, daqui em diante, vocês me chamem
diferentes nomes consoante o que eu fizer. Durante o dia, quando o sol brilhar, eu
chamar-me-ei Banha. Quando cair a noite, serei FothIa. E quando estiver a dormir,
quero que me chamem Eriu.»

Assim foi. Foram construídas casas no cume das montanhas e a floresta começou
a ser desbravada. Mas uma doença alastrou, e ao fim de uma semana estavam
todos mortos, à excepção de Cessair que permaneceu adormecida. Entretanto, as
águas do céu abateram-se sobre a terra, caindo incessantemente durante
quarenta dias e quarenta noites. Cobriram as montanhas mais altas, e mataram
tudo o que era vivo. Só ficou à superfície das águas a Arca em que Noé e os seus
tinham embarcado, com um casal de cada espécie animal. Mas o que os Livros
não dizem é que a Irlanda não foi coberta pelo Dilúvio. A ilha estava desabitada,
tendo sobrevivido a mulher que dormia e se chamava Eriu. Os Livros também não
dizem que, na vastidão do oceano, no meio do nevoeiro, algumas ilhas também
não foram submersas pelas águas. Ora, nestas ilhas viviam gigantes que foram
poupados pelo Dilúvio. Foram eles que depois foram chamados Fomore, os quais
nunca deixaram em paz os povos que se vieram a estabelecer na Irlanda.

Entretanto, logo que as águas deixaram de cobrir a terra e esta secou, Noé e
todos os seus saíram da Arca e procuraram lugares onde se estabelecer. Noé
tinha consigo três filhos na Arca, os quais ocuparam as três regiões da terra, a
Europa, a África e a Ásia. Sem, filho de Noé, instalou-se no que actualmente é a
Ásia, tendo saído dele vinte e quatro raças. Cham foi para África, descendendo
dele quinze raças. Quanto a Japliet, o terceiro filho de Noé, apoderou-se da
Europa e do norte da
1

Asia, sendo o patriarca de quinze raças.

E pois de Japhet, filho de Noé, que descendem, no nordeste do mun-

do, os citas, os armén’Os e Os Povos da Ásia Menor, assim como todos os povos
que ocupam, a norte e a oeste do mundo, a Europa e as ilhas que ela tern em
frente, no grande oceano. Japliet teve oito filhos, e o oitavo chamava-se Magog.
Este teve dois filhos que se chamavam Baath e
1bath. Foi deste último, a saber Ibath, que descenderam os reis que governaram

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Roma. Baath teve um filho a quem chamou Fenius Farsaid: dele descendem os
citas, dos quais provêm os gaéllcos.”’ Mas foi de Magog, filho de Japliet, que
saíram os povos que se vieram a estabelecer na Irlanda antes dos gaélicos, a
saber, a tribo de Partholon, filho de Sera, e a tribo de Nemed, filho de Agnoman,
assim como todos os da tribo de Neined que, após terem sido expulsos da Irlanda,
aí regressaram mais tarde.

Depois do Dilúvio, a ilha da Irlanda permaneceu deserta durante um período de


trezentos e doze anos. Foi então que aí chegou Partholon, filho de Sera, que vinha
de um país chamado Mygdonie, ou seja, Pequena Grécia. Partholon fora obrigado
a deixar a sua Pátria porque cometera um crime: matara o pai e a mae para
permitir que o seu irmão reinasse, mas, ao fazê-lo, provocara grandes desgraças,
sendo assassinados nove núI homens numa semana, o que forçou Partholon a
fugir o mais depressa possível na companhia de dez pessoas, entre as quais os
seus três filhos e quatro mulheres. Ele deambulou durante um mês na Adalácia,
depois levou nove dias para Ir da Adalácia ao país dos Goths. Voltou a partir deste
país e viajou durante um mês até chegar a Espanha, demorando mais nove dias
até atingir as costas da Irlanda. Estava-se numa terça-feira, o décimo sétimo dia
da lua, nas calendas de Maio.”’

«Esta terra sem dúvida é a que mais nos iiiteressa», disse Partholon. «As árvores
aqui são belas e verdejantes, e a caça deve ser abundante. Procuremos um lugar
onde nos possamos estabelecer.»

Deram a volta à ilha e decidiram fixar-se no lugar que lhes pareceu mais fértil.
Conta-se que é aquele que hoje se chama Mag InIs, a Planície da Ilha. Naquela
altura não havia fazendas, nem casas, nem campos cultivados à disposição dos
homens, que só podiam sobreviver colhendo

1. Estas genealogias são i~inárias. Entretanto, a comunidade de origem ceito-cita


parece certa. Georges Durnézil pos em evidência as analogias entre as narrativas
mitológicas dos gaélicos da Irlanda e as dos nartes, os descendentes actuais dos
antigos citas e sarmatas. Por outro lado, existe um evidente parentesco entre a
arte celta de la Tène e a arte dos steppes, de influência cita, como o mostra o
célebre «Caldeirão de Gundestrup», que, conservado no museu de Aarhus, na
Dinamarca, ilustra perfeitamente a mitologia dos celtas.

2. Ou seja, durante a grande festa celta da Beltame.

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rp””

frutos selvagens ou então caçando e pescando no estuário dos rios.

As casas foram construídas na Planície da Ilha. Quando Partholon partia para a


pesca ou para a caça, deixava a mulher, Elgnat, filha de Lochtach, a tomar conta
da casa. E pedia ao seu criado Topa para proteger EIgnat, para que ela não fosse
atacada pelos lobos. Na verdade, havia lobos na Irlanda, embora não houvesse na
ilha outros animais perigosos. Tão pouco havia abelhas, pois elas aí não podiam
viver. Era tal a incompatibilidade entre as abelhas e a Irlanda que, se alguém
espalhasse areia ou cascalho da Irlanda num qualquer lugar da terra onde
houvesse colmeias, as abelhas abandonavam-nas imediatamente.

Entretanto, sempre que Partholon se ausentava, EIgnat deitava um olhar ardente,


cheio de desejo, ao criado. E quanto mais o olhava, mais desejava tê-lo nos seus
braços. Um dia, não podendo aguentar mais, convidou-o para o seu leito. 0 criado
recusou termiDarnemente e disse que jamais trairia a confiança do seu senhor.

1 «Es um grande covarde», disse a mulher. «Tens medo de que Partholon te mate
se souber que te deitaste comigo!» «Eu não tenho medo, senhora, mas não quero
trair o meu senhor.»

No dia seguinte, Elgnat voltou a provocar Topa, e ele voltou a recusar deitar-se
com ela. «Já percebi», disse a mulher, «Tu não és viril, e por isso não queres
deitar-te comigo. Devias ter vergonha!»

Ao ouvir este insulto, o criado não encontrou outra solução senão ir provar à
mulher de Partholon, na sua cama, que era viril. Findo o acto, o homem e a mulher
tiveram sede e beberam pelo recipiente que Partholon tinha preparado para
quando chegasse.

Ao fim da tarde, quando voltou da caça, Partholon teve sede e bebeu pelo
recipiente que tinha preparado. Mas, ao levá-lo à boca, sentiu o gosto da boca de
Elgnat e de Topa, e compreendeu o que se tinha passado. Não se contendo de
fúria, matou o pequeno cão da sua mulher, Saímer, tendo sido esta a primeira
crise de ciúmes da história da Irlanda.

«Parece impossível», disse ElgDat indignada, «tu acabas de cometer uma grande
injustiça, belo Partholon, pois este cãozinho não te tinha feito mal nenhum». «Eu
sei», respondeu Partholon, «mas eu precisava de descarregar a cólera devido à
afronta que tu me infligiste. Desde que Eva cometeu o pecado da maçã, por causa
do qual a raça humana foi condenada à escravidão e foi expulsa do Jardim do
Éden, jamais houve neste mundo um crime tão grande e tão hediondo como
aquele que vós acabais de praticar, tu e o meu criado.»

«Bom Partholon», disse a mulher, «quando o desejo é muito, é dífícil resistir à


tentação. Olha à tua volta: as vacas parecem-te calmas e tranquilas quando

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pastam no prado, mas assim que aparece o touro ficam cheias de desejo. E as
ovelhas, quando querem saciar o instinto, não hesitam em seguir o primeiro
carneiro que lhes apareça à frente. Experimenta pôr um copo de leite à frente de
um gatinho: verás como ele não resiste ao desejo de tomar o leite».

Desenrolou-se pouco tempo depois a primeira batalha da Irlanda. os Fomore, que


vinham em barcos do país do nevoeiro, vieram atacar Partholon e os que
moravam com ele. Eram gigantes com forma huniana, monstros que tinham uma
força descomunal apesar de terem apenas uma perna e um braço. Comandados
pelo seu chefe que se chamava Cichol da perna curva, combateram Partholon e
os seus filhos. A batalha durou uma semana inteira, mas nela ninguém morreu,
pois tratava-se de uma batalha mágica. Entretanto, Cichol da perna curva feriu
Partholon num braço, ferida de que este nunca se recompos.

Quando Partholon chegara à Irlanda, esta ilha só possuía três lagos e nove rios.
Mas durante o tempo em que ele e os seus descendentes habitaram no país, sete
novos lagos irromperam da terra. E foi quatro anos depois da irrupção do sétimo,
que se chama Lough Cuan, que Partholon morreu na velha planície de Elta Edair.
Esta planície foi assim chamada porque nenhum braço, nenhum ramo, dela
alguma vez saiu. E Partholon morreu por causa de um veneno que lhe penetrou
no corpo através do ferimento que lhe fora infligido por Cichol da perna curva, na
batalha contra os Fomore. Tinham-se passado trinta anos desde que Partholon
chegara à Irlanda, e o princípio do mundo tinha sido há dois mil seiscentos e vinte
e oito anos.

Depois da morte de Partholon, a ilha foi dividida pelos seus filhos, tendo sido esta
a primeira partilha da Irlanda. 0 país permaneceu assim enquanto nele viveram os
descendentes de Partholon, ou seja, durante quinhentos e vinte anos. Mas
abateu-se sobre eles uma doença nas calendas de Maio, na segunda-feira da
festa da Beltame. Esta peste fez sucumbir nove mil homens até à segunda-feira
seguinte, e ainda mais cinco mil homens e quatro mil mulheres após essa
segunda-feira. Morreram todos, à excepção de um único homem, Tuân, que era
filho de Sdam, filho de Sera, filho do irmão do pai de Partholon. Deus permitíu-lhe
que sobrevivesse, assumindo as mais diversas aparencias, desde o tempo de
Partholon até aos tempos de Colum-Cill e de Finnen. Foi

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ele que revelou aos gaélicos o conhecimento da história, as conquistas que
tiveram lugar na Irlanda, as batalhas provocadas pelos Fomore, desde a chegada
de Cessair a esta ilha até à época de São Finnen, o Leproso. Foi com esta
intenção que Deus o manteve vivo até ao tempo dos santos, até ao tempo em que
o chamaram Tuân, filho de Caffil.

A Ilha Verde permaneceu deserta durante trinta anos. Então desembarcou nela
Nemed, filho de Agnoman, que vinha do país dos citas de onde partira com
quarenta navios. Navegaram ao acaso durante um ano e meio no mar Cáspio,
mas só um navio conseguiu chegar à Irlanda, com Nerned e os seus quatro filhos,
que chefiavam as hostes. Estabeleceram-se num lugar fértil e aí construíram duas
fortalezas reais, tendo sido depois atacados pelos Fomore contra os quais
travaram uma batalha onde no decurso da qual foram assassinados os dois
chefes dos Fomore.

Nemed desbravou doze planícies nesta ilha e nelas fez prosperar a criação de
gado. Assim que morreu um dos seus filhos, que se chamava Annind, enterraram-
no numa das planícies. Mas, ao ser cavada a terra para se fazer a sepultura,
jorrou um lago que inundou todo o país. Em consequência disso, três outros lagos
surgiram na terra. Nemed não demorou a sucumbir a uma doença que vitimou
também dois mil dos seus.

Quando os Fomore souberam que Nemed, filho de Agnoman, tinha morrido,


aparelharam as suas frotas e foram combater os filhos de Nemed. Os chefes dos
Fomore eram nessa altura More, filho de Déla, e Conan, filho de Fébar. Este
último construíra uma grande torre numa pequena ilha, a meio do mar, e era aí
que se reuniam os navios dos Fomore. Esta torre chamava-se Torre de Conan,
mas também se lhe chamava Tormis, ou seja, Torre da Ilha. E como os Fomore
eram mais numerosos que os filhos de Nemed, venceram-nos em combate e
impuseram pesados encargos aos homens da Irlanda: estes deviam entregar-lhes
anualmente dois terços do trigo e do leite que eram produzidos na ilha e dar-lhes
como escravos dois terços dos recém-nascidos.

Furiosos e sentindo-se ultrajados, os homens da Irlanda não sabiam como haviam


de suportar o peso de tais encargos. Reuniram-se por isso em segredo e
decidiram atacar os Fomore de surpresa. Na costa havia três mil homens, mas
outros três mil embarcaram sob a chefia do filho de Nemed, Fergus da face
vermelha. Não tardaram a chegar a Torinis e, após uma batalha encarniçada,
acabaram por tomar de assalto a torre, onde o próprio Fergus da face vermelha
matou Conan. Depois, voltaram para a Irlanda para comemorar a vitória.

More, filho de Dela, ficou furioso quando lhe anunciaram o desastre da Torre de
Conan e resolveu vingar-se dos homens da Irlanda que tinham vencido os Fomore
e agora recusavam pagar-lhes os tributos.

1 1

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Reunindo sessenta nav os, aproximou-se então das costas da Irlanda. os filhos de
Nemed, por seu lado, voltaram a reunir as suas hostes e fizeram-se ao mar para
irem ao encontro dos Fomore. Travou-se então urna batalha encarniçada e
sangrenta, e uma tempestade afundou os navios dos homens da Irlanda,
escapando apenas um, que tinha a bordo trinta homens, entre os quais Semeon,
filho de Sdarn, ele próprio filho de Nemed, Bethach, filho do adivinho larbonel,
igualmente filho de Nemed, com o seu filho Ibath, assim como Fergus da face
vermelha, que era o filho mais jovem de Nemed.1’1

Os sobreviventes reconquistaram a Irlanda e foram encontrar-se com Fintan, filho


de Boclira, que vivia na encosta de uma montanha. Fintan tinha a reputação de
ser um sábio e um vidente, e dizia-se que estava perfeitamente a par do
nascimento do mundo e do seu futuro. Quando os filhos de Nemed foram ao seu
encontro, Fintam disse-lhes:

«Sede bem vindos, homens poderosos e corajosos sobre quem se derramou o


Espírito.”’ 0 que vos traz à minha presença? É a guerra que aqui vos traz ou o
facto de não saberdes qual o rumo a dar à vossa vida?» «0 que nos traz aqui,
sábio e prudente Fintan, é a decisão que temos de tomar por causa dos Fomore.
Eles oprimem-nos desde que nos mataram um grande número de bravos
guerreiros, e obrigam-nos a pagar-lhes um pesa-

1. Esta primeira parte do capítulo foi redigida de acordo com o Leabhar Gabala, o
«Livro das Conquistas», narrativa que data muito possivelmente do século XI,
publicado, comentado e traduzido por R.A.S. Macalister, Lebor Gabaia Erenti, the
Book qf the Taking of Ireland, 5 Vol., Dublin, 1938-1956. Tradução francesa parcial
no Ch.-J. Guyon-varc’h, Textes mytholOgiques iriandais, Rermes, 1980. Este
«Livro das Conquistas» é uma compilação de inforMações muito antigas
apresentadas às vezes de forma anacrónica, com lacunas, incoerências e
contradições flagrantes. É muito difícil reconstituir o fio condutor desta epopeia
mitológica que diz respeito não só à Irlanda como a todo o mundo ceita, sem que
se recorTa a todas as outras fontes irlandesas, e sem que se restitua à narrativa
propriamente dita uma certa coerência cronológica, o que não significa de modo
algum que a coerência tenha de ter uma natureza histórica ou científica. A
reconstituição será assim meramente conjectural.

2. É Preciso não esquecer que Nemed significa «sagrado» em gaélico. É uma


palavra que Provém duma raiz indo-europeia que deu em latim nemus, «bosque
sagrado», em gaélico Moderno niamh, em gaulês nef e em bretão neni,
designando estes três termos o «céu» de um ponto de vista religioso, e daí o
antigo nome nemeton, «santuário», «clareira sagrada», «Proje,çã, simbólica do
céu sobre a teiTa», que se reconhece no nome actual de Néant-sur-yvel
(Morbihan) e da floresta de Nevet, perto de Locronan (Finisterra).

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do tributo que não conseguimos aguentar por muito mais tempo.» «0 melhor
conselho que vos posso dar, brilhantes filhos de Nemed, é o seguinte: deveis pôr
um fim ao vosso sofrimento e à opressão dos Fomore. Por isso deixal esta ilha e
ide instalar-vos noutro lugar deste vasto mundo.»

«É esse o conselho que nos dás, Fintan?», perguntaram os filhos de Nemed.


«Devemos deixar este país que é nosso’?» «Na verdade», retomou Fintan, «é o
único conselho que vos posso dar. Mas há outra coisa que vos tenho de dizer: não
deveis ir todos na mesma direcção ou por um único caminho, pois é bem sabido
que um grande ajuntamento de homens é susceptível de provocar conflitos. E
impossível que se junte uma multidão sem que daí não resulte uma querela por
uma razão ou outra. Além disso, sempre que há um agrupamento de homens
armados com lanças e dardos, logo se pensa que o que eles querem é fazer
guerra. Jamais a paz é possível, na verdade, enquanto sobre a terra houver povos
que se sentem invadidos por outros que chegam depois. Parti por isso, filhos de
Nemed, deixai esta ilha e espalhai-vos pelo mundo.»

«Mas para onde havemos de ir, sábio Fintan, filho de Bochra? Diz-nos para que
possamos partir de imediato.» «Vós sois, com certeza, muito numerosos»,
respondeu Fintan. Por isso dividi-vos em três grupos. Um deles que parta para o
norte, o outro para oriente e o terceiro que siga a direcção oposta ao curso do sol,
mas para sul, para os lados onde há mais calor.»

Assim falou Fintan, o Sábio, filho de Boctira, aos filhos de Nemed, que dele se
despediram. Mas, antes de partirem, disse-lhes ele ainda: «Ide pois, filhos de
Nemed, deixai este país que já não podeis habitar. Fugi desta ilha onde sois tão
cruelmente oprimidos e escravizados. Não fiqueis aqui por mais tempo e recusai-
vos a pagar aos Fomore uns encargos tão pesados. Mas eu garanto-vos que os
vossos filhos e os vossos netos regressarão a este país de que vós fugis e eles
tomá-lo-ão pela força e com todo o direito. Pois, aconteça o que acontecer, vós
sereis sempre os filhos desta ilha e dela sereis para sempre os senhores.»

Combinaram então a maneira como se haveriam de dividir em três agrupamentos.


Bethach, filho de larbonel, o adivinho que era filho de Nemed, não quis deixar a
Irlanda. Permaneceu nela durante algum tempo, vindo a sucumbir a uma doença
que assolou o país. Entretanto, as suas dez mulheres sobreviveram-lhe vinte e
três anos. Quanto ao seu filho Ibath, deixou a ilha na companhia do seu próprio
filho Baath, e ambos se dirigiram para as ilhas do norte do mundo. Os seus
descen-

dentes são aqueles a quem hoje se chama tribos da deusa Dana. Fergus da face
vermelha, que era o filho mais novo de Nemed, fez-

-se ao mar e foi para leste com o seu próprio filho que se chamava Bretão, o
Príncipe. Desembarcaram na grande ’lha que fica próxima da Irlanda e aí se
estabeleceram. Os seus descendentes, a quem se chamam bretões, por causa do
nome de Bretão, o Príncipe, dominaram a ilha até à chegada de dois novos chefes

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saxoes que ocuparam as suas terras, empurrando-os para a costa e obrigando um
grande número deles a exilarem-se no outro lado do mar, na península a que se
chama Armórica e à qual depois deram o seu nome.

Quanto a Semeon, filho de Sdarn, filho de Nemed, partiu para sul à conquista dos
países onde o sol é mais quente. Uma tempestade desviou-o da rota, e fê-lo
chegar ao mar Tirreno. Aí foi surpreendido por outra tempestade, que o empurrou
pelo meio das Ilhas até às costas da Trácia. Aqui o solo era seco e estéril, nada
nele se podendo cultivar. Apesar disso, Semeon e os seus companheiros
estabeleceram~ se naquela região inóspita e construíram as suas casas com terra
seca. Graças a conversações com as gentes daquele país, que não lhes quiseram
fazer frente, concluíram um tratado de paz. Ao clã de Semeon foram atribuídas as
propriedades e as terras que ficavam junto ao mar e em fronteiras distantes, em
regiões muito frias, em montanhas escarpadas e em vertentes de colinas expostas
ao vento norte. Foram-lhes também concedidas ravinas profundas e cumes
inabitáveis, em regiões inóspitas cujo solo jamais tinha conhecido colheitas de
qualquer tipo. Mas, não querendo desperdiçar a oportunidade que lhes tinha sido
concedida, as gentes do clã de Semeon fizeram grandes sacos com panos e com
as peles de animais e transportaram grandes quantidades de terra arável através
dos rochedos nus e áridos que lhes tinha cabido em sorte no tratado de paz.
Entregaram~se ao trabalho com tanto afinco e com tanta devoção que daí a pouco
tempo aquelas terras estéreis se tinham transformado em planícies aprazíveis e
férteis onde se cultivava o trigo, a vinha prosperava e o gado pastava em
esplêndidas pastagens. Desse modo, não se arrependeram de ter deixado a
Irlanda e de assim se terem furtado aos Pesados tributos que lhes eram impostos
pelos Fomore.

Entretanto, quando os chefes e os guerreiros daquele país viram a obra realizada


pelos recém-chegados, ficaram maravilhados e ao mes-
1110 tempo cheios de inveja de um tal sucesso. Sempre que Iam visitar as terras
do clã de Semeon, ficavam admirados com os campos culti-

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vados e com os prados que regurgitavam de ovelhas e de carneiros.
Convenceram-se então de que aquele país lhes pertencia e que deviam
conquistar aquelas terras tão férteis aos estrangeiros que nenhum direito tinham
sobre elas. Foram então falar com as gentes de Semeon e propuseram-lhes, em
troca do que lhes tinham dado, outras terras, ainda mais para norte, em regiões
inóspitas e frias, em terras duras e cheias de pedras, de solos infestados de
serpentes venenosas. E, para evitarem entrar em guerra, as gentes de Semeon
aceitaram o que lhes era pedido e deixaram as terras que tinham tornado férteis.

Mudando-se mais para norte e sem jamais perderem o ânimo, as gentes de


Semeon trataram tão bem as novas terras que as transforrnaram em campos ricos
e férteis, em tudo idênticos àqueles que tinham deixado. E, havendo comida em
abundância, as gentes do clã de Semeon multiplicaram-se e aumentaram de
número até chegarem aos milhares. Mas, vendo os estrangeiros tornarem-se tão
numerosos, tão ricos e poderosos, os chefes do país intimaram-nos a entregar-
lhes todos os anos metade das suas colheitas e metade dos gados que pastavam
nos prados.

Nessa altura as gentes do clã de Semeon reuniram-se em conselho. Os seus


chefes eram os cinco filhos de Dela, descendente de Nemed, chamando-se
Slaingé o mais velho.

«De nada nos serviu fugir da Irlanda para escapar à tirania e aos tributos dos
Fomore... Encontramo-nos agora num país estrangeiro, expulsos de terras incultas
que tornámos férteis, e estamos sujeitos à mesma tirania e aos mesmos tributos.
Chegou o momento de nos revoltarmos contra a injustiça, pois assim não
podemos continuar» «Tens razão», disse o seu irmão Rudraige. «Não podemos
continuar sem reagir e sem fazer valer os direitos do nosso traballio.» «Os donos
deste país jamais nos darão razão», afirmou por seu lado Slainge. «Só nos resta
voltar para o mar, levando todas as riquezas que pudermos, e regressar à terra da
Irlanda, pois essa é a terra dos nossos antepassados e temos o direito de a
habitar.»

Assim que o conselho terminou, todos estavam de acordo quanto ao que havia a
fazer. Construíram barcos com os grandes sacos que lhes tinham servido para
transportar a terra arável através dos rochedos inóspitos, e é esse o motivo pelo
qual eles foram chamados Fir Bolg1`,

ou seja, os Homens dos sacos.”’ Contudo, há quem diga que o nome deriva do
facto de eles saberem domesticar o trovão e utilizarem o fogo para fundirem o
metal e fabricarem as armas e os instrumentos usados para o cultivo da terra.
Segundo se pensa, eles roubaram também navios às gentes do país e juntaram-
nos todos no porto onde tinham desembarcado quando da sua chegada.

«Chegou a hora de partirmos», disse então Slainge, que era o mais velho do
grupo e aquele que era considerado mais sábio pelos irmãos. «Lembrem-se que
temos sido muito prejudicados pelos habitantes deste país. Temos por isso de nos

49
vingar, sem esquecer que cada um dos nossos homens vale por cem dos deles.»

Carregaram então para os navios todas as mercadorias e toda a comida que


encontraram, matando todos aqueles que os queriam impedir de o fazer, e depois
arrasaram a região circundante e atearam-lhe fogo. Em seguida acumularam o
produto do saque nos navios de proa negra que tinham construído com os seus
sacos e, por fim, levantaram âncora e desfraldaram as velas.

Conta-se que os Fir Bolg, ao deixarem a costa da Grécia, possuíam uma frota de
mil cento e trinta navios. Na sexta-feira seguinte, encontravam~se no mar Tirreno
e, ao fim de um ano e três dias, chegaram a Espanha.

Pediram então aos seus druidas e aos seus adivinhos para os instruírem e os
informarem acerca dos ventos com que teriam de contar na sua viagem à vela
através do grande oceano. Deixaram Espanha com um vento de sudoeste e
navegaram sempre a direito durante treze dias até avistarem as costas da Irlanda.
Mas ergueu-se então uma tempestade repentina e violenta que fez com que a
frota se dividisse em três grupos. 0 primeiro a desembarcar foi o filho mais velho
de Déla, Slaingé, no lugar que se veio a chamar Inber Slaingé. Estava-se num
Sábado, no Primeiro dia do mês de Agosto.”’

1. Muito corrente, esta terminologia popular não resiste à análise. Apesar de uma
certa analogia, a palavra bolg deriva de uma raiz indo-europeia que deu em
latirrifúlgur, «raio», raiz

que se encontra no nome dos belgas e no da espada mágica de Nuada,


Caladbolg, que se transformou em Caledfwlch em galês e Excalibur em francês e
em inglês, sendo a célebre espada do rei Artur, literalmente, «raio duro».
Entretanto é preciso lembrar que esta história dos sacos servirem para construir
barcos se apoia numa certa realidade: a barca irlandesa típica é com efeito o
curragh (coracle em inglês), sendo a armação de madeira revestida de peles e de
panos alcatroados.

Data simbólica: é a festa céltica de Lugnasad («assembleia de Lug»), no decurso


da qual Sc celebra 0 casamento sagrado do rei com a terra que lhe foi confiada.

50
Os outros desembarcaram em diferentes pontos do país. Como não havia
contactos entre os diferentes grupos, foram enviados mensageiros por toda a
Irlanda com a missão de pedir aos Homens-Trovão para se juntarem todos no
mesmo lugar, na fortaleza dos Reis que se encontra em Tara.”’ Os mensageiros
percorreram a ilha em todos os sentidos e cumpriram a sua missão, de tal modo
que daí a pouco tempo todos se reuniram no lugar combinado.

«Agradeçamos aos deuses por nos terem guiado com sucesso até este país que é
o dos nossos antepassados», disseram eles. «Agora devemos partilhar a Irlanda
de tal modo que ninguém seja prejudicado. Chamemos o sábio Fintan, filho de
Boclira, e ele nos dirá como havemos de partilhar esta ilha de forina justa.»

Fintan, filho de Boclira, veio à assembleia de Tara. Após ter ouvido os Fir Bolg,
dividiu a Irlanda em cinco partes”’ que foram confiadas a cada um dos filhos de
Déla. Todos ficaram satisfeitos com a sentença pronunciada pelo sábio Fintan, e
estabeleceram- se nas terras que lhes foram atribuídas.

Foi assim que os Fir Bolg, os Homem-Trovão, chegados de tão longe, ocuparam
as terras da Irlanda. E dominaram esta ilha durante trezentos anos . 3)

1. Santuário pré-histórico, depois celta, situado não longe do vale de Boyne, no


condado de Meath. É o centro simbólico da Irlanda, uma espécie de Omphalos,
que foi respeitado e que se continua a considerar como sagrado.

2. Em gaélico, «província» diz-se «coiced», literalmente quinto. Na verdade, nunca


houve mais do que quatro províncias, o UIster, Cormaugiu, o Munster e o Leinster,
sendo a quinta sobretudo moral: trata-se do famoso reino de Meafla (Mide),
literalmente «meio», à volta de Tara, sede do alto-rei (ard-ri) da Irlanda.

3. Segundo a narrativa conhecida com o título A primeira batalha de Mag-Tured,


contido no manuscrito H.2.17 do TrinitY College de Dublin, publicado por J. Fraser
na revista Eriu, Tomo VIII, Dublin, 1915. Tradução francesa quase integral de Ch.
-I Guyon-varc’h, Textes my1hologiques irlandais, Rermes, 1980.

t o

filli de Nemed, que haviam partido por mar sob o s 1 os

comando de Ibath, filho de Bethach, rumaram ao norte. Navegaram ao acaso,


durante muito tempo, até que desembarcaram num pais que se diz ser a Beócia.
Aí foram muito bem recebidos pelos naturais, e, segundo consta, foi aí que eles se
iniciaram nas artes, nas técnicas, na magia e no druidismo. Tomaram-se
especialistas em todas as artes do paganismo ao ponto de superarem, em pouco
tempo, os seus mestres. Foi então que começaram a ser chamados Tribos de
Dana, defendendo certos historiadores que eles assim foram designados por
causa de três homens muito versados na ciência druídica, os três Deuses de
Dana, que eram filhos da mesma mulher-chefe que se chamava Dana. E como

51
eles tinham tantos poderes como os deuses, as gentes do seu clã quiseram
partilhar o seu nome e o seu poder.

Entretanto, um belo dia, uma grande frota vinda da Síria veio atacar os habitantes
da Beócia. Travaram-se batalhas intermináveis, com os homens da Beócia que
tinham sido mortos na véspera a voltarem na manhã seguinte para enfrentarem os
seus inimigos. Na origem desta maravilhosa ressurreição estava a magia que
permitia aos homens de Dana inserir demónios nos corpos que tinham perdido a
vida. Deste modo, as gentes da Síria tinham de lutar todos os dias contra os
mesmos adversários, o que lhes provocava um grande espanto e um enorme
transtorno. Foram Por isso consultar os seus próprios druidas, que os
aconselharam a estar vigilantes no campo de batalha assim que a noite caísse:
nessa altura deveriam trespassar com um ramo de freixo os cadáveres que os
enfren-

52
tassem. Se fossem demónios a reanimar os corpos, estes cairiam logo e
corromper-se-iam rapidamente. As gentes da Síría seguiram este conselho, e
massacraram um grandenúmero de defensores da Boécia.

Quando as tribos de Dana viram que os primeiros iam triunfar sobre os segundos
e se arriscavam a ser perseguidas em seguida, os seus chefes reuniram-se e
decidiram que era necessário deixar o país o mais depressa possível.
Aparelharam os navios, fizeram-se ao alto mar navegando à vela, e, como os
ventos eram favoráveis, chegaram às ilhas do Norte do Mundo. Aí foram muito
bem recebidos, por serem muito conhecedores e muito hábeis nas artes mágicas,
e deram-lhes quatro cidades para que pudessem ensinar os jovens do país. Estas
quatro cidades eram Falias, Gorias, Murias e Findias.1’1

Nestas Ilhas do Norte do mundo, as tribos de Dana multiplicaram-se e tomaram-se


tão célebres que se falava delas por todo o lado. Naquele tempo, o rei das tribos
de Dana chamava-se Nuada e tinha a seu lado diversos chefes que o
aconselhavam com sapiencia: entre eles encontrava-se Ogina, o campeão
possuidor de uma força terrível, Credné, o artíficie do bronze, que cinzelava belos
ornamentos, Goibniu, o ferreiro, que fabricava armas e instrumentos aratórios,
Dianceclit, o hábil médico, Mananann, filho de Lir, especialista em arte de
navegação, Morrigane, filha de Emnias, grande conhecedora de cantos guerreiros,
e sobretudo Eochaid Ollathair, mais conhecido por Dagda, ou seja, o bom deus,
que percebia melhor do que ninguém de assuntos de magia e de druidismo. E, em
cada uma das quatro cidades em que eles se tinham estabelecido, um druida
ensinava os jovens e contava as proezas que outrora tinham sido protagonizadas
pelos filhos de Nemed, na terra da Irlanda e no mundo inteiro.

Um dia, uma certa Eri, uma das mulheres mais nobres das tribos de Dana, estava
em casa a observar a terra e o mar. 0 mar estava calmo e uniforme como uma
tábua de madeira bem polida. Ora, estando a contemplar a paisagem, Eri ficou
muito admirada ao ver um navio brilhante como prata a navegar diante dos seus
olhos. 0 navio pareceu-lhe de grandes dimensões, mas ela não conseguia
dístinguir~lhe a forma. Entretanto, como a corrente o aproximou de terra, ela pôde
examiná-lo melhor.

Notou então que havia um homem a bordo, um homem que lhe

1. Segundo A História da Irlanda, (Foras Feasa ar Eirinn), composta no sécuio xvii


por Geoffroy Keating e editada por David Comyn (Londres, 1902).

pareceu extremamente belo. Uma cabeleira de ouro caía-lhe sobre os ombros, e


um manto com faixas de tecido dourado revestia a túnica, que estava ricamente
adornada com bordados de ouro. Sobre o peito, resplandecia um broche de ouro
onde estavam incrustadas pedras preciosas. 0 homem trazia dardos de prata com
hastes de bronze polido, cinco colares de ouro à volta do pescoço, assim como
uma espada cujo punho de ouro estava adornado com círculos de prata e com
ornamentos em ouro. Maravilhada, a mulher saiu de casa e aproximou-se da

53
beira-mar.

0 homem desceu do barco, pôs os pés em terra e, apercebendo-se de Eri, disse-


lhe: «Mulher, será esta a melhor altura para me unir a ti?» «Estou surpresa com o
que vêem os meus olhos», respondeu ela.

«Pois bem», disse o homem, «não percamos tempo. Peço-te que venhas.» Sem
demora, eles estenderam-se no chão e, quando terminaram, a mulher começou a
chorar. «Porque choras?», perguntou ele. «Eu tenho para isso duas boas razoes»,
respondeu ela. «Vou-me separar de ti e fico desgostosa por isso. Os homens mais
belos das tribos de Dana desejaram-me sem sucesso, e agora que tu me
possuíste, o meu coraçao pertencer-te-á até ao meu último suspiro.» «Não quero
que fiques a sofrer por minha causa», disse-lhe o homem.

Tirando o anel de ouro que tinha no dedo do meio, ele enflou-o na mão da mulher
e recomendou-lhe que jamais o desse ou vendesse, cedendo-o apenas a quem
tivesse um dedo a que o anel se adaptasse.

«Fica certo de que jamais me separarei dele», respondeu a mulher. «Mas tenho
muita pena de não saber quem aqui veio encontrar-se comigo.» «Revelar-te-ei a
minha identidade», disse o homem. «Aquele que veio encontrar-se contigo é
Elattia, filho de Indech, que é um dos chefes de Fomore. Nós vivemos em ilhas
envoltas em nevoeiro e, se me quiseres encontrar, só terás de mostrar este anel a
quem se cruzar no teu caminho. Posso dizer-te também que da nossa relação
terás um filho, que se chamará Eochaid Bress, ou seja, Eochaid, o Belo. Fica a
saber que tudo o que se vê de belo na Irlanda e nas ilhas do norte do mundo,
sejam os prados onde pastam os gados, os campos onde se cultiva o trigo, as
fortalezas edificadas em altos cumes, a cerveja que se bebe nas assembleias, as
velas que iluminam as salas de banquetes, as mulheres cujo encanto entontece os
homens, os cavalos que puxam os carros de combate, tudo isso não terá uma
beleza comparável à do teu filho. E correrá de boca em boca: «Eis o belo
Bress.»1’)

54
Depois, o homem dos Fomore pediu licença para se retirar. Regressou para o seu
navio prateado e desapareceu no mar alto de onde tinha saído. Eri, por seu lado,
voltou para sua casa. Não tardou a perceber que estava grávida e dela nasceu
Eochaid Bress, tal como tinha predito Elatlia dos Fomore. Oito dias depois do
parto, o rapaz parecia ter quinze dias e continuou a crescer mais rapidamente que
as crianças da sua idade, de tal modo que, com sete anos, tinha a estatura de um
rapaz de catorze anos. Assim era Bress, filho de Elatha dos (2)

Fomore e de Eri das tribos de Dana.

Quando as tribos de Dana tiveram conhecimento dos seus feitos, os seus chefes
reuniram-se e foram aconselhados a concluir um tratado de amizade com os
Fomore. Enviaram então embaixadores à presença dos Fomore, e selou-se assim
uma aliança entre eles. Foi assim que Cian, filho de Dianceclit, desposou Ethné,
filha de Balor, o campeão dos Fomore. Da sua união nasceu Lug do Braço Longo,
que mais tarde se tornou o herói de todos os homens que se reclamavam das
tribos de Dana. Mas Lug não foi criado pela mãe pois, logo que as tribos de Dana
chegaram à Irlanda, ele foi confiado a uma mulher dos Fir Bolg que se chamava
Tailtiu, a qual foi a sua ama de leite, e de quem ele perpetuou a memória graças
aos jogos fúnebres realizados no mesmo lugar onde ela foi enterrada, ou seja, em
Tailtiu, nome dado mais tarde a este sítio.’1

1 .Em todas as narratívas deste gênero, as etimologias são necessariamente


metafóricas. Com efeito, «Bress» significa literalmente «sopro violento», «golpe
guerreiro», podendo designar, por extensão, «herói». Entretanto, na perspectiva
épica, um herói só pode ser «belo» - afortiori, se se imagina que Bress será
investido da função real à qual está associada a noção de beleza, deve-se
mostrar, por consequência, indigno de a assumir plenamente.

2. Segundo a narrativa da «Segunda batalha de Mag-Tured», contida no


manuscrito Harleian
5280, editada e traduzida por W. Stokes na «Revista Céltica», XIII. Tradução
francesa de Henri d’Arbois de Jubainville, na «Epopée celtique en Irlande», Paris,
tomo V do «Curso de Literatura céltica», Paris, 1892. Tradução francesa parcial de
Georges Dottin na «Epopée irlandaise», nova edição, Paris, 1980. Tradução
francesa quase integral em Ch.- J. Guyonvarch’h, «Textes mythologiques
irlandais», Rennes, 1980. Para reconstituir deforma coerente o fio condutor desta
epopeia dos antigos celtas, é impossível seguir a ordem cronológica aparente de
múltiplas narrativas. Assim, é preciso recorrer às vezes a certos textos de
diferentes épocas e de assuntos diversos, regressando-se depois a textos
anteriores ou tidos como tal.

Houve um tempo em que as gentes das tribos de Dana eram tão nurnerosas que
viveram com dificuldades nas quatro cidades onde
1

residiam. Nuada, que era o seu chefe, reumu-as à sua volta e, após longas

55
discussões, tomaram a resolução de partir por mar e de voltar à Irlanda que era o
país dos seus antepassados. Aparelharam cerca de trezentos barcos e
prepararam-se para uma longa viagem. Levaram consigo objectos maravilhosos,
com os quais pensavam poder dominar os outros povos da terra. Da vila de Falias
levaram a Pedra de Fail, que foi depois colocada sobre a colina de Tara, tendo
havido quem lhe chamasse Pedra do Destino: o seu grito indicava o nome de cada
rei que devia governar a Irlanda.”’ De Gorias foi levada a lança que mais tarde
pertenceu a Lug, e a que também se chamava Lança de Assal: era

1. Tailtiu é hoje Teitown, no condado de Meath, lugar onde decorrem


comemorações folclóricas - e pagãs - em honra de Lug, no início do mês de
Agosto, o que corresponde à festa de Lugnasad. Nas antigas narrativas, Tailtiu é
referida como «filha de Mag Mor (=grande planície), rei de Espanha», e esposa de
Eochaid, o último rei dos Fir Bolg. 0 nome Tailtiu refere-se a uma raiz talamh (do
latim teIlus), que significa «terra». Todas estas narrativas mitológicas insistem na
união indispensável entre deus, ou o rei, e a terra, em particular a terra da Irlanda.
0 nome da mãe de Bress, Eri, é uma variante de Eriu, uma das denominações da
mulher primordial Cessair, que se tomou o nome oficial da Irlanda, Do mesmo
modo, o nome da mãe de Lug, Ethné, encontra-se com inúmeras variantes, como
Etaine, a heroína de outra narrativa, que é a não menos célebre Boann (a Boyne),
mãe do herói Angus, ou ainda a tripla Brigit, aliás Dana, deusa dos Começos. Esta
última tem origens muito remotas, pois encontramo-la no Médio Oriente (Anaitis,
Anu, etc,), na índia (Anna Pourna), em Roma (Anna Parerma), no nome dos rios
Don e Dantibio (Tanaüs) ou no de certos povos gregos (os Danaoi), assim como
no da célebre <santa» Ana dos Bretões. NO folclore irlandês, dá o nome a dois
cumes do Kerry, «The Paps of Anu», também chamados os «mamilos de Anna».
Na mitologia galesa, tornou-se Dôn, a mãe de uma série de deuses análogos às
personagens das tribos de Dana. A complexidade das narrativas irlandesas, onde
os nomes mudam constantemente, não deve fazer esquecer que, na maior Parte
das vezes, se trata de uma entidade inapreensível e que, como tal, assume
diversos aspectos e nomes. Naturalmente, isso aumenta a dificuldade de
compreensão das narrativas mitológicas mas, assim que se simplifica a
nomenclatura, as personagens ganham destaque e voltam a adquirir todo o seu
valor simbólico. Além disso, é preciso ter em conta que os irlandeses sempre
tentaram explicar o nome dos lugares através de factos mitológicos ou
maravilhosos, sendo capazes para isso de recorrer a etimologias metafóricas ou a
homofonias flagrantes.

2. A Pedra de Fail, que se encontra em Tara, servia para a entronização do alto-rei


da Irlanda. Outros textos contam que, quando da eleição deste, os candidatos
deviam tocar na pedra: se ela «gritasse», era porque os deuses tinham escolhido
o mais apto para governar a Ilha Verde. Na sua História da Irlanda, Geoffroy
Keating conta que, depois da conquista da Fscócia pelos escotos, ou seja, os
irlandeses, a Pedra de Fail foi emprestada para a entronização do primeiro rei
gaélico da Escócia, tendo ficado depois na posse da abadia de Scone.

56
impossível vencer quem quer que a brandisse.,” De Findías foi levada a espada de
Nuada, a que também se chamava Caladbolg, ou seja, «Raio Violento»: a ela
ninguém escapava, tal era o seu ímpeto furioso quando saía da bainha .(21 De
Murias foi transportado o caldo irão de Dagda, que continha um alimento
inesgotável, e ninguém que elele se servisse deixava de ficar saciado.”’

As tribos de Dana partiram então das Ilhas do nor-te do mundo e navegaram para
a Irlanda. Ao cabo de três dias, três noites e três anos, na segunda-feira da
semana do início do mês de Maio”’, estavam diante da costa de Muga no UIster.
Há quem defenda que as gentes de Dana, que eram da raça de larbonel, o
Adivinho, chegaram nas asas de nuvens sombrias e não em barcos ou navios. 0
mais certo, no entanto, é que, ao desembarcarem, elas incendiaram os seus
navios para que não caissem na tentação de voltar ou de quererem fugir se algum
perigo as ameaçasse. As grandes nuvens de fumaça que, a certa altura,
obscureceram os céus da Irlanda, fizeram crer que elas teriam sido trazidas por
um nevoeiro mágico. Mas a verdade é que a fumaça ocultou a chegada das tribos
de Dana, que se foram refugiar no país de Corcu Belgatan, que é agora
Cormernara, na província de Coiinaught.1’1

Naquele tempo, o rei da Irlanda era Eochaid, filho de Erc, da raça dos Fir Bolg.
Ora, na mesma noite em que as tribos de Dana desembarcaram, ele teve uma
visão durante o sono. Levantou-se incomodado e mandou chamar o seu druida
que se chamava Cesard. Logo que este

Foi esta pedra, posteriormente conhecida pelo nome de «Pedra de Scone», que o
rei de Inglaterra Eduardo 1 fez transportar para a sua própria coroação e q Lle se
encontra actualmente no trono que serve para a entronização dos soberanos
ingleses em westminster. Em vão os escoceses reclamam a sua restituição desde
há séculos. Não ’se pode deixar de estabelecer uma relação entre esta
maravilhosa Pedra de Fail e o misterioso «Assento Perigoso» da Távola Redonda,
assento reservado àquele que levasse a born termo a aventura da conquista do
Graal, portanto ao «Reí do Graal».

1. Noutro texto, é referido que o poder desta lança era tal que, para a acalmar, era
preciso mergulhar a sua ponta num caldeirão cheio de sangue humano. Não deixa
de ser interessante compará-la com a «Lança que sangra» apresentada no
decurso do célebre cortejo do Graal.

2. Ela é o protótipo de CaledfivIch, por-tanto Excalibur, a célebre espada cheia de


poder que só pode ser confiada ao rei Artur.

3. Sem dúvida, trata-se de um dos protótipos do «santo» Graal cristão cuja


aparição diante dos cavaleiros da Távola Redonda lhes fornece o alimento e a
bebida que desejam.

4. Isto é, durante a festa céltica de Beltaine, festa essencialmente sacerdotal que


assinala 0 fim do Inverno e o início da estação do Verão.

57
5. Síntese entre o Livro das Conquistas, a narrativa da Primeira batalha de Mag-
Tured e a narrativa da Segunda batalha de Mag-Tured, primeira versão.

chegou à sua presença, o rei disse-lhe que um sonho que tivera durante a noite o
tinha deixado cheio de angústia e de perplexidade.

«Que haveis visto vós, ó rei da Irlanda?», perguntou Cesard. «Na verdade»,
respondeu Eochaid, «vi grandes bandos de pássaros negros surgireiri das
profundezas do mar e virem na minha direcção. Num abrir e fechar de olhos, eles
chegaram a terra e misturaram-se connosco, trazendo a confusão e a hostilidade
aos homens da Irlanda. Então, um dos nossos desembainhou a espada e cortou
uma asa ao passaro que, de entre todos, me parecia o mais nobre. Agora, ó
diruida, levanta-te e usa a tua ciência e a tua magia para nos dizeres que
significado tem este sonho.»

Cesard ergueu-se diante do rei da Irlanda e, graças ao conhecimento que tinha


das coisas ocultas, falou nestes termos: «Não tenho notícias agradáveis a dar-te a
ti e a todos os homens desta ilha: vêm ao nosso encontro por mar guerreiros
nobres e corajosos que nenhuma força consegue deter. Com eles vêm a morte e a
destruição, pois são gentes hábeis nas artes da magia e do encantamento. Eles
lançarão sobre vós nuvens druídicas que vos alucinarão e, em cada combate que
travardes com eles, serels a parte mais fraca. Fica pois a saber, rei da Irlanda, que
chegou a hora de os Homens-Trovão deixarem de ser os donos desta ilha.»

Ao ouvirem aquelas palavras do druida Cesard, os Fir Bolg enviaram espiões para
vigiarem as gentes que chegavam por mar. Cumprida a missão, os espiões
informaram que o grupo dos recém-chegados era constituída por gente tão bela
que Jamais no mundo se vira igual, e que, além de muito bela, possuía armas
muito poderosas e ape-

Ji

trechos bélicos temíveis, tendo para mais, dotes extraordinarios para a música e
um comportamento exemplar. Segundo os espiões, jamais se vira gente tão
temível, pois todos os guerreiros pareciam ter uma ciên-

1 cia apurada das artes e das técnicas do druidismo e da magia.

Os Fir Bolg reuniram-se em conselho no palácio real de Tara, «É terrível que não
saibamos de onde vem essa gente e o que pretende de nós. Enviemos Sreng,
filho de Sengann, ao encontro dos recém-chegados, pois trata-se de um homem
rude e de alta estatura que conhece Inuitobem as artes e as ciências. Ele irá
perguntar aos forasteiros quem são e o que pretendem.»

Streng, filho de Sengann, levantou-se e aprontou-se para a partida, Oquípando-


se com o poderoso escudo vermelho-acastanhado, as duas lanças de madeira

58
muito espessa, a espada que cintilava, o capacete Com quatro chifres e a pesada
moca de ferro. Assim equipado, dos-

59
pediu-se da assembleia real e dirigiu-se para o sítio onde se tinham entrincheirado
as gentes das tribos de Dana, no território de Coimaught.

As gentes de Dana vieram recebê-lo na planície, e ficaram muito admiradas com a


sua estatura e com o seu péssimo aspecto. «Olhai: um homem vem ao nosso
encontro», disseram elas. «Só pode ser um mensageiro que nos vem perguntar
quem somos e o que desejamos. Mas nós desconhecemos de que raça ele é,
talvez seja da raça dos Fomoi-e.» Dirigindo-se a Bress, filho de Elattia, disse-lhe:
«Val recebê-lo, pois, embora sejas de sangue real, tens um pai que é um Fomore,
e por isso poderás com certeza compreendê-lo e dizer-nos em seguida quem ele
é.»

Bress, filho de Elattia, pegou no escudo, na espada e nas duas grandes lanças,
deixou o campo das tribos de Dana e avançou para a planície ao encontro de
Sreng, filho de Sengann. Aproximaram-se um do outro até o intervalo que os
separava ser suficiente para que pudessem comunicar entre si. Ficaram a olhar
um para o outro com atenção e curiosidade, admirando-se ambos com o
armamento e o equipamento do que estava em frente. Achando estranhas as duas
grandes lanças de Bress, Sreng cravou o escudo na terra de modo a proteger o
corpo e o rosto. Bress fez o mesmo com o seu escudo e saudou Sreng. Este
correspondeu à saudação e ambos compreenderam que falavam a mesma língua
e que por isso tinham antepassados comuns. «Fico satisfeito por ouvir palavras
tão gentis como as tuas», disse Bress. «Já percebi que os teus antepassados são
da raça de Nemed, que o céu lhe seja leve.» «Eu também fico satisfeito por
constatar que somos da mesma raça e do mesmo sangue», respondeu Sreng.
«Fica no entanto a saber que nós somos homens muito poderosos e que jamais
recuámos diante de qualquer inimigo, por muito poderoso que ele fosse.» «0
mesmo acontece connosco», respondeu Bress. «Fica a saber que nada nos
detém e que nunca ninguém levou a melhor sobre nós.» «Não duvido», disse
Sreng, «que o teu povo é corajoso. Se os nossos exércitos se chegarem a
enfrentar, haverá muitas mortes em ambos os lados, por muitas artes mágicas que
sejam usadas para evitar o derramamento de sangue.»

Ficaram a olhar-se por um momento, e depois Bress disse: «Afasta o escudo da


frente do teu corpo e do teu rosto para que eu possa fazer uma descrição do teu
aspecto às tribos de Dana.» «Assim farei», respondeu Sreng. «0 meu corpo e o
meu rosto estavam escondidos por eu desconfiar das lanças aguçadas que ambos
trazemos connosco».

Sreng afastou o escudo deixando-o cair no chão. Bress fez o mes~

mo, e encaram-se um ao outro longaniente. «Mostra-me as tuas armas», pediu


Bress. «Fá-lo-ei de boa vontade», respondeu Sreng, atirando para o chão as suas
lanças. Bress deixou cair também as suas. «Pelo que vejo», exclamou Bress,
«são armas de pontas largas, pesadas e fortes, poderosas e cortantes! Pobre
daquele que por elas for ferido, pois não conseguirá sobreviver! Como lhes
chamas?» » «São lanças de batalha», disse Sreng. «Com elas não há inimigo que

60
nos faça frente, pois provocam ferimentos e danos i rreparaveis nos adversários
abrindo o caminho à vitória.» «Acredito bem que sim», disse Bress. «Mas as
minhas armas não são menos eficazes, vais ver. Com elas, posso espalhar a
morte e a destruição entre aqueles que quiser atingir, envenenando-lhes o sangue
e fazendo-os desaparecer da superfície da terra.»

Calaram-se por um bom tempo e continuaram a observar se. «Pois sendo assim»,
retomou Bress, «e para evitar que os nossos parentes tenham a tentação de se
destruir, o melhor será que estabeleçamos um tratado de aliança e de amizade.»
«De boa vontade», respondeu Sreng. Bress, filho de Elattia, das tribos de Dana, e
Sreng, filho de Sengann, da tribo dos Fir Bolg, juraram então aliança e amizade.

«Onde estavas na noite passada?», perguntou Bress. «Estava na for~ taleza real
de Tara», respondeu Sreng. «É lá que estão os nobres e os guerreiros dos Fir
Bolg, à volta do rei supremo da Irlanda, Eochald, filho de Erc. E tu, de onde
vens?» «Eu desci daquela montanha», disse Bress, «onde estão as tribos de
Dana e o seu rei supremo, Nuada, filho de Eclitach. As tribos de Dana vieram das
ilhas do norte do mundo num manto de nevoeiro e chegaram à Irlanda graças a
uma tempestade descricadeada pelos druidas. É sua pretensão vir habitar nesta
’lha, e por isso seria justo que os Fir Bolg lhes dessem metade dela, para que
pudéssemos viver em paz.» «Tenho de voltar para Tara», respondeu Sreng, «e de
transmitir as tuas palavras ao rei supremo da Irlanda. Até se chegar a Tara o
caminho é longo, portanto tenho mesmo de partIr.» «Val», disse Bress, «mas
antes toma uma das lanças que eu trouxe comigo. Os Fir Bolg saberão assim que
tipo de armas possuem as tribos de Daria.»

Sreng apoderou-se da arma que lhe estendeu Bress, e por seu lado, deu-lhe uma
das que tinha trazido. «DIz aos Fu- Bolg», disse Bress, «que só se derem metade
da ilha ao meu povo poderão evitar a guerra de que sairão derrotados pela certa.»
«Transmitir-lhes-ei o teu recado», respondeu Sreng.

Nessa altura separaram-se, depois de mais uma vez terem prometi-

61
do amizade entre si, e cada um seguiu o seu caminho. Quando Sreng chegou a
Tara, fizeram-lhe perguntas sobre as gentes com quem se tinha ido encontrar.

«São grandes guerreiros», respondeu Sreng. «São viris e hábeis, e têm heróis
cruéis e experientes em combate. Usam escudos largos e sólidos, e lanças com
pontas afiadas e fustes de madeira muito sólida. As lâminas das suas espadas são
flamejantes e ameaçadoras. É melhor que selemos com eles a paz e que lhes
cedamos metade da Irlanda, pois será muito difícil vencê-los.»

Os Homens-Trovão reuniram-se à volta do rei Eochaid e estiveram a analisar


durante muito tempo a proposta de Sreng. «Nós não daremos metade da Irlanda
aos estrangeiros», disseram por fim, «pois se o fizéssemos eles a seguir
apoderar-se-iam de toda a ilha e escravizar-nos-Iam, a nós, aos nossos filhos e
aos nossos descendentes.»

Bress, por seu lado, voltou para o campo das tribos de Dana. Perguntaram-lhe
como era o homem que tinha ido ao seu encontro na planície, e como eram as
suas armas. Mostrando a lança que lhe dera Sreng, ele respondeu: «É um homem
rude, poderoso, e vi-o na posse de armas muito poderosas. É grande e corajoso, e
nada o atemoriza. Duvido muito que o seu povo nos ceda sem luta metade da
Irlanda.» «Devemos então preparar-nos para uma dura batalha», disseram as
gentes das tribos de Dana. Fabriquemos lanças e espadas e construamos
fortalezas onde nos possamos refugiar em caso de necessidade.»

As três magas das tribos de Dana, Bobdh, Macha e Morrigane, foram enviadas a
Tara, chegando pouco tempo depois ao monte dos Reféns. Daí elas lançaram
enxurradas de magia druídica, nuvens densas de nevoeiro e violentas chuvas de
fogo, com gotas de sangue, que caíram na cabeça dos guerreiros. Assim, durante
três dias e três noites, os Fir Bolg não conseguiram ter um segundo de
tranquilidade e de paz, ficando cheios de angústia.

«Os nossos druidas são incapazes de nos proteger da magia das tribos de Dana»,
lamentaram-se eles por fim. «Nós proteger-vos-emos», responderam os druidas
dos Fir Bolg.

E fizeram então encantamentos à volta da colina de Tara e detiveram a magia das


tribos de Dana. Nessa altura, os Fir Bolg reuniram-se em conselho e decidiram
preparar-se para o combate. Reuniram as suas hostes num lugar determinado,
com todos os seus chefes, todos os seus nobres e todos os seus reis, e aquele
lugar passou a ser chama-

do Planície de Lia.

Quando viram os Fir Bolg reunidos, as gentes das tribos de Dana reuniram todas
as suas hostes e, dirigindo-se para a planície, tomaram aí posição. Três dos seus
druidas foram enviados ao encontro dos Honiens-TrovãO para lhes propor a
partilha da Irlanda em nome da sua origem comum, visto que os Fir Bolg e as

62
gentes das tribos de Dana eram todos descendentes de Nemed.

os três druidas não tardaram a chegar à tenda de Eochaid, filho de Ere, rei
supremo da Irlanda. Foram-lhes oferecidos tesouros e presentes e perguntaram-
lhes o que pretendiam. Eles disseram que tinham vindo propor ao rei supremo a
partilha da Irlanda. Os Fir Bolg responderam-lhes que Jamais aceitariam fazer
uma tal partilha e que jamais dariam nietade da ilha a quem se apresentava
daquele modo.

«Pois bem», disseram os três diruidas de Dana, «Ficai então a saber que tereis de
vos haver connosco em combate. Quando quereis iniciar a batalha?»
«PrecIsamos de um tempo», responderam os Fir Bolg. «Temos de preparar as
nossas lanças e as nossas espadas, e temos de fabricar escudos fortes para nos
defendermos.»

Os três druidas voltaram para perto das gentes de Dana e anunciaram-lhes que os
Fir Bolg não estavam na disposição de dar metade da Irlanda, compreendendo
então as gentes de Dana que teriam de travar lutas sangrentas, pois as tribos
adversárias eram tão bravas e corajosas como elas. A batalha na Planície de Lia
foi marcada para quinze dias e um mês depois do início do Verão, ao meio do dia.
As hostes puseram-se em marcha aos primeiros ralos de sol, e ficaram frente a
frente exibindo escudos ornamentados com pinturas, lanças majestosas e reais,
dardos e espadas flamejantes. Fatach, o poeta dos Fir Bolg, destacou-se dos
demais para exteriorizar a fúria que sentia cantando as glórias dos seus
antepassados. Tendo posto um pilar de pedra no meio da planície, apoiou-se nele,
enquanto Cairpré, o poeta das tribos de Dana, enterrou o seu propno pilar na outra
extremidade da planície e apoiou-se nele para cantar a coragem dos guerreiros do
seu povo. Foi a partir daqui que a Planície de Lia passou a ser chamada Mag-
Tured, ou seja, «Planície dos Pilares»Y1

0 combate começou então, violento e Implacável, sucedendo-se

Actualmente, «Moytura», planície situada entre o lago Arrow e o lago Kcy, na


fronteira dos condados de Sligo e de Roscommon, não longe da cidade de Boyle.

63
golpes mortais entre os guerreiros que ficaram com os escudos partidos, as lanças
tortas e as espadas despedaçadas. 0 clamor tomou-se medonho, e o furor posto
na luta pelos guerreiros, na vasta planície, parecia aumentar de momento para
momento. Ao fim do dia, contudo os homens das tribos de Daria, vencidos,
tiveram de começar a recuar. Em vez de os perseguirem ao longo do campo de
batalha,

de’ os Fir Bolg ixaram-se ficar no seu próprio


te

1Teno e cada um dos Combatentes levou à presença de Eochaid, filho de Ere, re

,i supremo de toda a Irlanda, uma pedra da Planície e a cabeça cortada de um


inimigo, com que fizeram um enorme montículo.

Quanto aos homens das tribos de Dana, ergueram pilares

em honra das suas gentes mortas em combate. 0 médico, que se chamava


Dianeccht, fez o que pôde para tratar dos feridos. Por se

,u lado,

os médicos de Fir Bolg, tendo consigo ervas curativas, esmagaram-nas e


dispersaram-nas tão bern nas águas duma fonte que estas se tomaram verdes e
espessas. E todos os homens feridos que mergulhavam na fonte recuperavam
logo a saúde e ficavam curados, prontos para voltarem para o combate.

Na manhã seguinte, Eochaid, filho de Ere, rei supreino dos Fir Bolg, foi-se lavar
àquela fonte. Ora, estando ele só, entretido a fazer abluções, viu Por cima de si
três homens belos mas terríveis que, protc91(los por escudos, o ameaçavam.
«Deixem-me ao menos ir buscar as minhas armas», disse o rei Eochaid, <”Pois
não é justo que venhaís ameaçar um homem só e desarmado.»

Mas os três hornens recusaram o seu pedido e quiseram enfrentã-lo


1090 ali, sem que ele tivesse tempo para se armar. Apareceu então Sreng, filho de
Sengann, um homem grande e forte, de compleição temível, que se interpôs entre
eles. «Não admito que um dia se diga», exclamou ele, «q.ue o meu rei indefeso foi
atacado por três jovens presunÇOsOs. É comigo que deveis lutar e não com el,!»

Os três atacaram-no e sucumbiram imediatamente aos golpes furiosOs que ele


lhes infligiu. Com a luta já terminada, apareceram os Homen,s-Trovão. Viram OS
três homens caídos por terra, e o rei contou-lhes como Sreng lutara em seu lugar.
Então, pegaram em pedras com que encobriram Os três corpos de modo a formar
um caim, que desde então passou aser chamado TumUlus de Champion. Depois
disso, o rei seguiu-os, e Prosseguiram os combates contra os homens das tribos
de Dana.

64
Ora, eram tão densas as hostes ali concentradas que, Por todo o
1 ado,

faiscavam cores resplandecentes como as do nascer e as do pôr-

os campeões dos dois campos, sobre os quais incidia o sol do-s0I-


tinham um aspecto aterrador, indescriinuito fogoso e resplandecente,

ções; ao mestível, agitando as suas espadas nos ares em todas as direc

nio terflpO, enterravam as suas lanças no corpo dos adversários e deles faziam
jorrar rios de sangue que se derramavam pela erva verde da planície,
Defendendo-se atrás de filas serradas, os homens das tribos de

, furioso, brandindo as armas enDana lançaram um ataque impetuoso e

contra os Fir Bolg. Formaram uma

venenadas, linha de batalha impe-


1 netrável e sangrenta, escondendo-se atrás dos seus escudos coriáceos

ados de vermelho e pintados com as cores mais varíadas, reque, bord das as
investidas. Os guerreiros mais jovens i

sistiam a to estavam na liflancos das hosnba da


frente, pois os mais velhos foram colocados nos

tes para ajudarem e aconselharem os que combatiam com tanta valentia. os


poetas, os adivinhos e os sábios colocaram-se ao lado dos pilares que erigira , e
puseram em práti a toda a magia para tentarem encFanar

rfl 1c Z1

os seus inimigos com feitiços e encantamentos. As fúrias, os monstros e os


feiticeiros berravam tão alto e com tanta fúria que as suas vozes ecoavam pelos
rochedos e pelas cascatas, chegando às cavernas mais profundas da terra. E a
própria terra tremia ao ouvir os gritos horríveIs que, naquele dia, se soltaram por
toda a planícíe de Mag-Tured.

Eocha’d, filho de Ere, o rei supremo dos Fir Bolg e de toda a Irlanda, enleontrava-
se mesmo no coração da batalha, assim como Nuada, o rei de todas as tribos de
Dana. Ambos distribuíam socos violentíssimos à esquerda e à direita, socos que
fustigavam os corpos, despedaÇavam os escudos e as lanças, e cortavam as
cabeças, mais parecendo lenhadores a derrubarem à machadada as árvores da
floresta. Os heróis andavam de um lado e do outro e, no meio da confusão,
lançavam murros impetuosos a tudo o que estivesse ao seu alcance, enquanto
iam brandindo as lanças cortantes e faiscantes.

65
Estavam também presentes três mulheres, as três magas das tribos de Dana,
Bobdh, Macha e Morrigane, a filha de Ernmas.”) No meio do tumulto, elas
lançavam feitiços para ajudar os seus e imprecaçoes para

I- Ernnias significa «estranho». Na realidade, as três magas são três aspectos da


mesma per-
50”agem: Bobdh é a Gralha, Macha, a Amazona, o Morrigane a Grande Rainha.
Esta triPlicação encontra-se na tradição britónica, em particular na lenda arturianu
em que a fada Morgane aparece às vezes com a forma da Amazona Rhiannon e
às vezes com a forma de uma gralha, pois possui o poder de se metamorfoscar.

66
enfraquecer os adversários. As espadas embatiam nas extremidades dos escudos
redondos, e lâminas incandescentes provocavam poças de sangue que
chapinhavam debaixo dos pés dos homens. Bress, filho de Elatha, veio combater
contra os Fir Bolg. Cento e cinquenta guerreiros sucumbiram às suas mãos, tendo
ele aplicado nove golpes no escudo do rei Eochaid enquanto este lhe infligia nove
ferimentos. Sreng, filho de Sengann, veio combater as tribos de Dana. Morreram
às suas mãos cento e cinquenta guerreiros, tendo ele aplicado nove golpes no
escudo do rei Nuada que, por seu lado, lhe infligiu nove ferimentos.

A certa altura, os homens das tribos de Dana começaram a repelir os Homens-


Trovão, enquanto na planície se iam acumulando os cadáveres. As hostes
tremiam como a água de um caldeirão que transborda por todos os lados, ou
como um rio cujas águas engrossam quando um exército abre caminho por entre
elas para os seus guerreiros poderem passar. E, como os próprios reis queriam
combater, foi-lhes dado um grande espaço. Os guerreiros afastaram-se e os
servos, atemorizados com aquele espectáculo, puseram-se em fuga. A terra foi
calcada pelos heróis e com o ardor da luta endureceram as turfas sob os seus
pés. Sreng e Nuada infligiram-se mutuamente trinta ferimentos, e o primeiro infligiu
um golpe terrível ao rei das tribos de Dana atravessando com a espada a borda do
seu escudo e indo cortar-lhe o braço direito até ao ombro. Nessa altura, Nuada
lançou um grito tremendo de dor.

Ao ouvi-lo, Dagda dirigiu-se para ele e tentou protegê-lo dos inimigos que o
cercavam. Depois aconselhou-se com os companheiros, e mandaram chamar
cinquenta heróis para proteger o rei, encontrando-se entre eles o médico
Diancecht. Nuada foi levado para fora do campo de batalha, e tiraram-lhe o braço
para o colocarem num círculo de pedras. E o sangue de Nuada escorreu sobre as
pedras.

Entretanto, apesar de Nuada se ter retirado, o combate continuou aceso. Bress, o


filho de Elattia, queria vingar o seu rei. PrecipitOu-se para o lugar de onde Eochald
dirigia a batalha, exortando os heróis e dando ânimo aos campeões. Bress atacou-
o furiosamente e ambos, escudo contra escudo, feriram-se nas partes do corpo a
descoberto, enquanto os restantes combatentes se mantinham no meio de um
cenário caótico, enraivecidos e tendo de suportar o peso das suas armaduras e
dos seus corpos.

Assim que os campeões de Dana vieram em seu socorro, tendo à cabeça Dagda,
Ogina, Bobdh Derg, filho de Dagda, Cian, filho de

1)iancecht, assim como Goibniu, o ferreiro, os Fir Bolg foram obrigados a deixar o
terreno. Quando chegaram a um outeiro que dominava a planície de Tured,
Eochaid, filho de Erc, o rei supremo dos Fir Bolg da
1 - -se 1 1

rlanda, sentiu muito fraco. Pediu então a Sreng, filho de Sengann, para lhe vir
falar- «Prossegui o combate, fazei com que todos os nossos guerreiros continuem

67
a combater com bravura e tenacidade, até que eu encontre água que possa beber
e com que possa lavar a cara», disse Eochaid, «pois tenho a garganta seca e
estou a morrer de sede.» «Nós somos pouco numerosos, agora», respondeu
Sreng, «mas asseguro-vos que o combate prosseguirá, aconteça o que
acontecer.»

Sreng reuniu uma centena de homens e preparou-se para enfrentar as gentes das
tribos de Dana. Mas, assim que os druidas daquelas souberam que o rei da
Irlanda estava morto de sede, lançaram um feitiço de forma a esconder das suas
vistas os nos e os regatos da Irlanda. E ele, por muito que procurasse o país à
procura de uma fonte onde matar a sede, não encontrou nada. Ora, estando ele a
ser perseguido pelos guerreiros das tribos de Dana, aproximou-se de uma
margem, num lugar que hoje se chama o Areal de Eochaid. Aí foi atacado por três
guerreiros, mas defendeu-se energicamente, apesar da sede que o atonnentava, e
matou-os aos três. Tendo recebido diversos ferimentos e estando enfraquecido por
todos os golpes que sofrera, ele próprio também acabou por sucumbir. E ali
mesmo foi enterrado, naquele mesmo areal, debaixo de um montículo que os Fir
Bolg fizeram com pedras para ali levadas.

Naquela noite, devido ao cansaço e às grandes perdas que sofreram, os Homens-


Trovão estavam consternados e completamente desanimados. Censuravam-se
por não terem lutado com suficiente ardor e deram sepultura às suas gentes,
aos pais, aos amigos e aos familiares. Para os nobres foram feitos montículos,
erigiram-se pilares em memória dos herois, e os restantes combatentes foram
enterrados em campas. Depois disso, Sreng, filho de Sengann, convocou a
assembleia dos Fir Bolg para se aconselhar e decidir o que fazer. Disse aos Fir
Bolg que só tinham duas possibilidades: ou deixavam a Irlanda para sempre e
partiarn para outro país, ou aceitavam partilhar a ilha entre si e as tribos de Dana.
«A não ser assim», acrescentou ele, «teremos de combater até à última gota de
sangue. E ficai a saber que, com os poucos homens que nos restam, não nos será
fácil alcançar a vitória.»

Os Firbolg decidiram não abandonar a Irlanda e combater as tribos de Dana


até ao último homem em condições de pegar em armas.

68
Então, voltaram a pegar nos grandes escudos quadrados, nas lanças
envenenadas, nas espadas cortantes de metal azul, e partiram ao encontro das
tribos de Dana, sabendo que no combate terrível e desesperado que se
avizinhava o mais certo era encontrarem a morte. Uma vez chegados ao lugar
onde se encontravam as tribos de Dana, Sreng, filho de Sengann, desafiou Nuada
para o combate como vingança pela luta que ambos já tinham travado. Nuada,
como se não tivesse ficado sem braço, enfrentou-o cheio de coragem. Com a mão
esquerda agarrou nas armas e avançou para Sreng, dizendo-lhe: «Se o que
desejas é uma luta como deve ser, amarra o braço direito, pois eu perdi o meu, e
assim estaremos em igualdade de condições. Se queres que a luta seja justa, é
isso o que deves fazer.» «Nada a isso me obriga», retorquiu Sreng.
1 1

«Nós estávamos em igualdade de condições na primeira luta que travámos, e esta


é a continuação dessa primeira luta. É verdade que eu te cortei um braço, mas os
teus guerreiros mataram o meu rei, Eochaid, filho de Erc, e eu tenho sangue real.
Cabe-me a mim vingar a morte do rei supremo da Irlanda, vencendo o rei das
tribos de Dana.» Nessa altura interveio Bress, filho de Elatha:

«Sreng, valoroso guerreiro, lembra-te que nós fizemos um juramento de paz e de


amizade. Eu também tenho sangue real e poderia combater no lugar do meu rei.
Mas como estamos unidos por este j uramento de amizade, não podemos voltar a
encontrar-nos frente a frente. Paremos com isto e façamos a paz.» «Farei como
dizes, e respeitarei desse modo o juramento feito perante ti, ó valoroso Bress».
respondeu Sreng. «Espero as tuas propostas.»

i Bress foi-se reunir com os chefes das tribos de Dana e analisou a situação com
eles. «Que perdas sofremos?», perguntou Nuada. «Nobre Nuada», respondeu
Dagda, «juro-te que perdemos muitos guerreiros e muitos campeões nesta
batalha. Uma grande parte de nós, muitos dos nossos irmãos e dos nossos filhos,
morreram às mãos dos Fir Bolg, e são tão grandes as nossas baixas que tão
pouco podemos saber quantas foram. Nós pedimos aos Fir Bolg para partilharem
a Irlanda connosco porque temos origem no mesmo clã, o do glorioso Nemed que
é uni nosso antepassado. Era uma questão de justiça, e nós tínhamos o mesmo
direito que eles de habitar este país. Eles não nos quiseram deixar 0 lugar que por
herança nos pertencia, e tivemos de o conquistar pelas armas, pagando um alto
preço com o sangue dos nossos heróis e dos nossos guerreiros. Penso que
chegou o momento de celebrar um acor-

do com os Firbolg, pois eles já não estão em condições de lutar comiosco e seria
cometer uma injustiça matá-los até ao último hoiiiern». «E a voz da sabedoria que
fala pela tua boca, ó Dagda», disse Nuada. «E, apesar da dor que me provoca a
minha enfermidade, apesar da raiva que sinto, prefiro que se firme a paz entre nós
e os Homens-Trovão. Que Bress vá ao encontro de Sreng, filho de Sengann, e
que lhe proponha o fim das hostilidades e a escolha, pela sua parte, de uma
província da Irlanda para habitar com as gentes do seu povo.»

69
Bress foi falar com Sreng e transmitiu-lhe a proposta dos chefes das tribos de
Dana. Sreng escolheu a província de Connaught. Então juraram paz e amizade,
para eles e os seus descendentes. E Sreng, filho de Sengann, reuniu-se com os
Fir Bolg que tinham escapado

1 1 ao massacre de Mag-Tured, e partiu para Connaught, de que


tomou posse.”’ Quanto aos homens das tribos de Dana, reuniram-se mais uma vez

para decidir o que haviam de fazer na Irlanda, tendo-se tornado donos de quase
todas as terras da Ilha Verde. Chegaram a acordo unanimemente que era preciso
fixarem-se nas planícies e nos vales tirando proveito do solo cultivando o trigo e
fazendo a criação de gado nos grandes prados situados junto aos rios. Quanto a
Nuada, o rei supremo das tribos de Dana, o médico Diancecht, com a ajuda do
artesão Credné, fez-lhe um braço de prata dotado de todos os movimentos da
mão em cada dedo e em cada articulação. E Miach, filho de Dlancecht, enxertou-
lhe o braço, articulação a articulação, nervo a nervo e vela a veia, por três vezes,
ficando ele curado ao fim de nove dias. Entretanto, I)lancecht ficou despeitado
com aquela cura e, furioso, brandindo a espada sobre a cabeça do filho, provocou-
lhe um golpe profundo no pescoço. 0 rapaz, contudo, curou-se pondo em prática a
sua arte. Então, Diancecht voltou a feri-lo e chegou ao osso. 0 rapaz mais uma
vez curou-se voltando a usar a sua arte. Ainda mais furioso, Diancecht feriu-o uma
terceira vez na cabeça e atingiu-lhe o cérebro, tendo sido assi

1 im que

A tradição popular local de Connaught, sobretudo no condado de GaIway,


conserva a marca da lembrança dos Fir Bolg. Deste modo, os habitantes das ilhas
de Aran são considerados os descendentes dos Homens-Trovão, e as fortalezas
pré-históricas que se encontram nas três ilhas de inismore, Inisman e Inislicer,
passam por ser obras destes longínquos antepassados, na verdade mais míticos
que reais, mas capazes de vencer as barreiras do tempo graças ao poder do
imaginário,

70
Miach morreu às mãos do próprio pai. E este disse que ninguém dali em diante o
poderia devolver à vida.

Depois, Diancecht dirigiu-se aos homens das tribos de Dana: «Mesmo no caso de
Nuada se apresentar diante de vós com um braço, ficai a saber todos que este é
de prata. Por esse motivo ele passará a ser chamado Nuada do Braço de Prata.
Sabei também que qualquer rei que perde uma parte do corpo se toma incapaz de
reinar, pois a integridade do rei é o que garante a integridade do reino.”) Devemos
por isso escolher entre nós qual é o mais digno de ser nosso rei, pois Nuada do
Braço de Prata, por muito mérito que tenha, já não é digno de exercer uma tal
função.»

Os chefes das tribos de Dana reuniram-se em conselho. «Diancecht tem razão»,


disse Nuada. «Eu ja não posso ser o vosso rei, pois lamentavelmente perdi o meu
braço. Escolhei pois entre vós aquele que vos parecer mais digno de ser o vosso
rei.»

Então, após acesa discussão, acabaram por escolher Bress, filho de Elattia, pois
ele tinha sangue real, sendo filho de um principe dos Fomore. E assim Bress
tomou-se rei da Irlanda durante sete anos, após a batalha de Mag-Tured em que
as tribos de Dana combateram e venceram os Fir Bolg.1’1

1. Definição da realeza de tipo celta: um rei só é capaz de governar o seu reino se


tiver o «POder do dom», ou, dito de outro modo, o poder de distribuir as riquezas
de acordo com os méritos de cada um. Mesmo com uma prótese, Nuada é um rei
amputado, e não se pode

servir do braço direito para cumprir simbolicamente a sua missão, que é


«distribuir». Na lenda arturiana encontra-se precisamente o mesmo conceito,
quando o rei Artur perde devido à doença - o poder de dar. Isto também acontece
no caso do Rei Pescador que, vítima de um ferimento mágico, não é capaz de
assumir em plenitude a função de Rei do Graal. Desse modo o seu reino torna-se
estéril e assim permanecerá enquanto ele não se curar ou enquanto um jovem rei,
de uma incontestável integridade física, como Perceval, não lhe suceder no trono.
Costuma dizer-se que um reino se estende até ao alcance do olhar do rei, o que
faz supor da parte deste uma perfeição física indissociável da perfeição moral.

2. Segundo a narrativa da «Primeira batalha de Mag-Tured», com alguns


pormenores extraídos (10 «Livro das Conquistas» e da narrativa da «Segunda
batalha de Mag-Tured», primeira versão.

tL1

o saberem que Bress, filho de Elatha, se tomara rei das tribos de Dana, os Fomore
ficaram muito satisfeitos, pois viam nele um dos seus e, por seu intermédio, tudo

71
fariam para impor aos habitantes da Irlanda encargos tão pesados como aos seus
antepassados noutros tempos. Assim, enviaram mensageiros a Bress para lhe
lembrar que, se a sua mãe era originária das tribos de Dana, já o seu pai era
Elatha, um dos grandes chefes dos Fomore, gigantes que habitavam em ilhas no
meio do nevoeiro.

Desse modo, os Fomore fizeram recair pesados encargos sobre as tribos de


Dana. Os homens da Irlanda deviam-lhes pagar um imposto sobre o trigo, um
Imposto sobre o leite e a manteiga, e um imposto por cada pedra que servisse
para construir uma casa. Além disso, deviam pagar uma onça em ouro por
pessoa, homem ou mulher, adulto ou criança, ou arriscavam-se a que lhes
cortassem impiedosamente o nariz. Para cúmulo, o rei Bress, desde que soubera
que podia contar com os Fomore, abusava em benefício próprio das suas
prerrogativas. Atribuiu terras a si mesmo, e obrigou os nobres das tribos de Dana
a executarem trabalhos muito duros em seu proveito. Assim, Ogma, o campeão”’,
devia levar diariamente um feixe de lenha para a lareira da casa de Bress; I- Ognia
é o deus Oginios que o filósofo grego Luciano de Samosata, no seu tratado sobre
He-

rá”es, apresenta com os traços de um «Hércules» já idoso cujas correntes saídas


da língua chegavam às orelhas dos humanos. 0 nome Oginios-Ogina não é celta
mas grego, e evoca a «estrad^ o <caminho», tratando-se de qualquer modo de
uma divindade da comunicaçk Segundo a tradição irlandesa, terá inventado o
«ogham», ou seja, a escrita ogântica vertical que se encontra nas colunas de
pedra da alta Idade Média na Irlanda e no oeste da Gr Bretanha. Obviamente, há
pontos em comum entre o nome Ogina e o de Ogliam,

72
e Dagda, que já lhe havia construído a casa, foi obrigado a construir-lhe fortalezas,
Com o passar do tempo, cada vez mais os nobres das tribos de Dana viam com
maus olhos os impostos que lhes eram infligidos pelos Fomore, assim como as
injustiças que eram praticadas pelo seu próprio rei Bress, filho de Elatha.

Certo dia, um cego de nome Cridenbel foi .encontrar-se com Dagda na sua
casa real. Era um preguiçoso, um parasita, mas costumava dizer sátiras e toda a
gente o receava.’1 Ora, Cridenbel pensava que a parte de comida que lhe cabia
era muito inferior à de Dagda.

«0 Dagda!», exclamou ele em alta voz, «por tua honra, quero que uma terça parte
substancial da tua ração de comida me seja dada!» Foi assim que, a partir de
então, Dagda passou a dar uma grande parte da sua comida ao sátiro. Apesar
disso, a ração daquele era abundante, sendo cada bocado de comida do tamanho
de um grande porco. E como Dagda, apesar de privado de um terço da sua ração,
continuava a fazer os seus trabalhos muito duros, ia ficando cada vez mais fraco.

Um dia, estando a cavar uma fossa, o seu filho Bobdh Derg veio vê-lo e ficou
espantado ao vê-lo tão magro e sem forças. «Que se passa contigo, ó Dagda?»,
perguntou Bobdh Derg. «Porque é que estás com tão mau aspecto?» «Ora»,
respondeu Dagda, «Crideribel, o sátiro, exige de n-úm que lhe dê todas as noites
uma terça parte substancial da minha ração». «Vou-te dar um conselho», disse
Bobdh Derg. Tirou a bolsa da túnica e, pegando em três peças de ouro, pô-las na
mão de Dagda. «Ouve bem o que te digo», continuou ele. «Vais meter estas três
peças de ouro em três bocados de comida que lhe deres, tendo a preocupação de
que sejam os mais belos e mais apetitosos. Cridenbel engoli-los-ã vorazmente,
com as peças de ouro dentro, de tal modo que o ouro, ao entrar-lhe no corpo, o
fará morrer. Irão então dizer a Bress que o sátiro morreu por lhe teres dado uma
erva envenenada. 0 rei, furioso, dará ordens para que tu sejas castigado com a
morte, mas tu defender-te-ás. Dirás que Cridenbel te pediu os três melhores
bocados da tua comida e que, para o satisfazeres, lhe deste três peças de ouro,
ou seja, os três melhores bocados. acrescentarás que foi por ter engolido o ouro
que Cridenbel morreu.»

n
1. Membro da classe sacerdotal druídica, o sátiro desempenha um papel muito
partícula, as

sociedades de tipo celta: quando ele lança uma «sátira», ou seja, um feitiço
mágico, c011tra alguém, aquela adquire um carácter incontornável e o seu
destinatário não lhe pode fugir, pois se o fizer arrisca-se a perder a honra, a saúde
e a própria vida.

Dagda pôs em prática o conselho de Bobdh Derg. Naquela mesma noite, meteu
as três peças de ouro nos três melhores bocados da sua comida e deu-os a
Cridenbel. 0 sátiro devorou vorazmente os três bocados e de manhã foi
encontrado morto. Então, as gentes da casa foram dizer ao rei que o sátiro tinha

73
morrido porque Dagda lhe dera a comer urna erva envenenada. Bress chamou
Dagda à sua presença e censurou~ -lhe veementemente a sua malvadez,
ameaçando-o com a morte no caso de se vir a saber que ele era culpado. «Eu não
sou culpado», respondeu Dagda. «Crideribel pediu-me as três melhores partes
que me cabiam, e o que eu tinha de melhor eram as três peças de ouro. Dei-as
por isso a Cridenbel, e não tenho culpa de ele ter morrido pelo facto de o seu
corpo não ter suportado o ouro.» «Se assim é», disse o rei, «mandarei abrir o
corpo de Cridenbel para ver se existe ouro lá dentro. Se não houver, tu morres, e
se houver, ser-te-á poupada a vida.»

Abriram a barriga ao sátiro e encontraram três peças de ouro no estômago, o que


serviu para desculpar Dagda, que não tardou a recuperar força e energias, pois já
não tinha de dar uma parte substancial da sua comida. 0 perdão dado a Dagda
não impediu no entanto que este e todos os chefes das tribos de Dana se
continuassem a queixar das injustiças de Bress. Queixavam-se amargamente que
ele não os deixava dar uso às facas e que nunca lhes oferecia festins onde
corressem a cerveja e o hidromel. Nunca havia grandes festas em que os poetas,
os músicos e todos os tipos de artistas se exibissem para gáudio de toda a gente.
Também não se assistia nunca a grandes competições onde os campeões
pudessem mostrar as suas habilidades. E todos se interrogavam como se havia
de ultrapassar esta situação constrangedora.”)

Nuada, pela sua parte, lamentava-se por ter perdido a coroa e o poder real devido
à falta do braço, apesar de um braço de prata lhe ter sido enxertado, permitindo-
lhe mover as articulações com uma extrema suavidade e destreza. Vivia em Tara,
com a maior parte das tribos de Dana, e
0 Porteiro que lhe vigiava a entrada da fortaleza só tinha um olho.

Um dia, andando o porteiro no prado em frente da fortaleza, viu ao Pé das


muralhas dois jovens belos e de estatura nobre. Um era homem o ’ outro mulher,
tendo-o ambos cumprimentado após se aproximarem dele. Ele correspondeu ao
cumprimento e perguntou-lhes o que os trazia à fortaleza real de Tara. «Nós
somos dois bons médicos», respondeSegundo a narrativa da «Segunda batalha
de Mag-Tured», primeira versão.

74
ram eles, o filho e a filha de Dianceclit. Ele chamava-se Oirmiach e ela Airmed.
«Se são tão bons médicos», disse o porteiro, «têm de n---10 provar. Não vêem
que sou zarolho? Pois bem, fazei com que eu tenha um olho no lugar daquele que
me falta.» «E para já», disse o jovem, «Eu vou imediatamente pôr um olho de gato
no lugar do olho que te falta». «Ficarei muito satisfeito com isso», respondeu o
porteiro, «e elogiarei os teus méritos em todas as assembleias desta ilha.»

Com efeito, este jovem, que se chamava Oirmiach, e a jovem, que se chamava
Airmed, meteram o olho do gato no lugar do que estava em falta no porteiro. Mas,
mais tarde, o porteiro só ficou meio satisfeito, pois quando queria dormir ou
descansar, o olho abria-se ao mais pequeno chiar de um rato, ao mais leve bater
de asas de um pássaro, ou mesmo ao mais ligeiro sopro de vento nos ramos das
árvores. Pelo contrário, quando tinha necessidade de observar um grupo de
guerreiros ou uma assembleia de nobres à volta do caldeirão, o olho fechava-se-
lhe e ficava com vontade de dormir e de repousar.

Maravilhado, entretanto, com a arte dos dois jovens, entrou no palácio e foi falar
com Nuada do Braço de Prata. Comunicou-lhe que havia dois bons médicos à
porta e que eles tinham acabado de lhe pôr um olho no lugar daquele que lhe
faltava. Nuada mandou então que eles entrassem.

Quando os jovens entraram na grande sala onde estava Nuada do Braço de Prata,
ouviram uma espécie de gemido de lamento e de dor. «0 que há aqui?»,
perguntou Oirmiach. «Pareceu-me ouvir o gemido de um guerreiro que padece de
um mal terrível.» «Na verdade, é um grito de dor e de desespero», disse Airmed.
«Vejamos se não se trata de um suspiro de um guerreiro que sofre por um
escaravelho lhe estar a roer o braço sem que ele disso se dê conta.»

Estenderam Nuada do Braço de Prata numa liteira e examinaram-no com atenção.


Airmed acabou por lhe tirar o braço de prata, e de dentro dele saiu um
escaravelho que se pôs a correr por toda a fortaleza. Os homens da casa real
vieram então ver o que se passava e mataram o bicho.

«0 braço de prata estava bem articulado», disse Oirmiach, «mas não serve ao rei
Nuada. Se encontrássemos um braço com igual comprimento e largura, metê-lo-
íamos no lugar desse.»

Os nobres das tribos de Dana que se encontravam ao redor de Nuada ordenaram


então aos criados que procurassem entre eles uni braço adequado. Os criados
observaram os braços de todos aqueles que ali se encontravam e pediram aos
dois jovens para darem um parecer.

Mas estes, fazendo uma ronda por braços sucessivos, não encontravam nenhurn
que conviesse. Referindo-se ao braço de Moffian, o chefe POrqueiro das tribos
de Dana, os criados perguntaram aos médicos: «Este braço serve-vos?» «Esse
parece-nos com efeito o mais conveniente», responderam eles. Era necessário
ainda que o homem aceitasse de boa vontade dar o seu braço ao rei Nuada. «Fá-

75
lo~ei com todo o gosto», disse o porqueiro, «desde que isso nos ajude a livrarmo-
nos da opressão dos Fomore e das injustiças de Bress.» Oirmiach disse então à
sua irina: «0 que preferes? Enxertar o braço nos ombros do rei Ou ir procurar
ervas para permitir que ele se adapte à natureza da sua carne?» «Prefiro enxertar
o braço», respondeu Airmed.

E, enquanto Oirmiach foi procurar ervas, Airmed pacientemente meteu mãos à


obra. Com todo o cuidado, enxertou o braço do porqueiro no ombro do rei e, assim
que o Irmão voltou com as ervas, ela aplicou-as com tantas cautelas que o braço
se ajustou perfeitamente a Nuada. Qualquer pessoa que desconhecesse que ele
perdera um braço em combate não poderia suspeitar que aquele braço não era o
seu. Mas, apesar disso, não se deixou de se lhe chamar rei Nuada do Braço de
Prata.”’

Entrementes, os nobres das tribos de Dana puseram-se a debater quem havia de


ser o rei da Irlanda. Alguns observaram que, tendo-lhe sido restituídas uma mão e
um braço, Nuada poderia reinar de novo sobre o seu povo. Mas outros alvitraram
que, tendo sido atribuído poder real a Bress, filho de Elaffia, este não lhe poderia
ser retirado sem seu consentimento. Ora, era sabido de todos que Bress se
apegara ao poder e que não o abandonaria sob nenhum pretexto. «Eu sei o que
há a fazer», disse então Dagda. «Peçamos a Cairpré, que é poeta e sátiro, para ir
a casa de Bress e para lhe fazer provocações pondo a nu as suas fraquezas e a
sua sovinice.»

Cairpré, filho de Etaine, que era o poeta das tribos de Dana, deslocou-se então à
casa real que Dagda construíra para Bress. Apresentou-se e pediu hospedagem,
que lhe foi dada de boa vontade. Mas Cairpré achou a casa de Bress sombria,
muito pequena e desconfortável. Nela

I- Segundo a narrativa do «Sort des enfants de Tuirenn» (Oidhech Chloinne


Tuireann), contida em diversos manuscritos do século XVIII, publicada e traduzida
por O’Curry em 1863, por P-W. Joyce em 1874 (old Celtic Romances) e por
Richard J. O’Duffy em Dublin em 1901.

TraduÇão francesa fragmentária em R. Chauviré, Contes ossianiques, Paris, 1947.


TraduÇão francesa integral em Ch.-J. Guyonvarc’h, Textes mythologiques
irlandais, Rennes, 1980.

76
não havia lareira para se poderem aquecer, nem leito para dormir, nem comida em
quantidade suficiente para matar a fome. Trouxeram-lhe três pequenos pães, que
estavam secos e duros. Além disso, em vez de cerveia e de hidromel, deram-lhe
água. Comeu os pequenos pães, bebeu a água, mas dormiu tão mal na casa real
de Bress que acordou na manhã seguinte de muito mau humor. Saiu de casa,
atravessou o pátio e ia pronunciando as seguintes palavras: «Que horrível é a
casa de Bress, filho de Elatha, pois nela a comida não é servida em pratos de
ouro, o leite de vaca não é generosamente distribuído, a cerv ’a deliciosa não
corre a rodos, e os poetas, os contadores de histórias e os músicos nela não têm
lugar! Que rei é este que não sabe distribuir as suas riquezas? Daqui em diante,
enquanto Bress, filho de Elattia, for o rei supremo, não haverá colheitas, as vacas
não darão leite, não se fará cerveja, riem se fará a distribuição de pedras
preciosas e de ouro na terra da Irlanda.»

E, pronunciadas aquelas palavras, Cairpré deixou a fortaleza. Bress ouviu a


maldição lançada por Cairpré e, muito assustado, foi a Tara encontrar-se com os
nobres das tribos de Dana na casa real.

«Porque é que me obrigaram a ouvir a sátira de Cairpré?», perguntou ele. «Um rei
deve estar imune a qualquer maldição, seja de que tipo for.» «A razão é que tu
não te comportas como um rei», respondeu Dagda. Para além de não seres
generoso connosco, fizeste de nos escravos e obrigas-nos a pagar elevados
impostos em benefício dos Fomore. «A verdade», acrescentou Cian, filho de
Diancecht, «é que nós nunca deveríamos ter firmado uma aliança com os Fomore.
Eles só nos deixaram conquistar esta ilha aos Fir Bolg para poderem depois
dominar-nos e tirarem dividendos da nossa vitória, e tu nada fizeste para evitar
que eles nos prejudiquem.» «Nós fizemos de ti rei», retomou Dagda, «porque, o
nosso rei tinha perdido um braço em combate. Tu tinhas dois braços, mas eles de
nada nos valeram pois não serviram para criar riqueza e prospe ’dade.» «0 que é
que eu podia ter fc’to», perguntou Bress. «Eu digori 1.

-vos qual é a minha opinião», disse Dagda, «Agora que o braço que faltava foi
restituído a Nuada, ele deve ser o nosso rei. Pedimos-te que abdiques do trono,
pois, devido à sátira que sobre ti foi lançada, o teu reino está condenado a não dar
frutos: faltarão as ervas nos prados para

se-ão os animais pastarem, as vacas não darão leite, os campos tornar-

estéreis. Se insistires em ser rei, nada de bom poderemos esperar para o nosso
reino.» «Nesse caso abdicarei do trono», disse Bress. «Concedei-me algumas
garantias, e reconhecerei Nuada como nosso rei.»

os nobres das tribos deram algumas garantias a Bress, tilho de Elatha,


prometendo-lhe que seria sempre bem vindo à casa real e que
1

jarriais deixaria de ser convidado para os festins. Então, ele pediu um prazo de

77
sete dias, que lhe foi dado, deixando depois a casa real de Tara. Mas o pedido de
um prazo deveu-se a um desejo de vingança, tendo

ele ficado furioso por ter sido privado do trono que lhe dava o poder de reinar
sobre a Irlanda. Foi encontrar-se com a mãe, Eri, e perguntou-lhe corno é que
havia de encontrar o pai, Elatha, filho do rei dos Fomore.

«Vem comigo, que não terás dificuldade em achá-lo», dIsse-lhe a mãe. Ela
encaminhou~se para a praia e mandou aparelhar barcos para navegarem para o
país dos Fomore. Depois, tirando o anel de ouro que lhe tinha sido dado por
Elattia quando viera ao seu encontro, estendeu-o para Bress. Bress pô-lo no dedo
do meio, ao qual ele se adaptou per~ feitamente. Até àquela altura, Eri Únha-o
guardado religiosamente, não o tendo vendido ou dado a nenhum homem. Apesar
disso, muitos guerreiros tinham tentado enfiá-lo no dedo, sem êxito, pois aquele
anel não se adaptava a nenhum dedo dos guerreiros.

Mãe e filho partiram então para o país dos Fomore, situado numa ilha envolta em
nevoeiro. Desembarcaram e avistaram uma grande planície onde havia varias
assembléias. Dirigiram-se para aquela que lhes pareceu mais bela, e as pessoas
que aí se encontravam perguntaram-lhes por novidades, respondendo eles que
tinham vindo da Irlarida. Perguntaram-lhes então se tinham cães, pois naquele
tempo era costume, sempre que pessoas de fora chegavam a uma assembléia,
realizarem-se competições e Jogos. «Sim, temos», respondeu Bress, «e temos
todo o gosto em que eles participem em ,

1 jogos com os vossos.» Soltaram então os cães, e estes fizeram corridas


contra os dos Foinore, destacando-se graças à sua imensa velocidade.
Perguntaram critão aos recém~chegados se tinham cavalos e se permitiam que
eles Competissem com os dos Fomore «Temos», respondeu Bress, «e é para
1168 uma grande prazer que compitam com os vossos.»

E os cavalos das tribos de Dana foram mais rápidos do que os dos FOIriore.
Perguntaram então aos recém-chegados se tinham trazido com eles alguém perito
em desembainhar a espada. Mas os companheiros de Br
1 rapi-

(’ss, apesar de muito se esforçarem, não conseguiram ser mais ’ i dos que os
Fomore. Então Bress tentou a sua sorte, mas assim que pôs a mão na espada o
pai reconheceu o anel de ouro que tinha na mão e PergurItou-lhe quem era ele. A
mãe respondeu por ele, dizendo a Elatha

78
que Bress era um dos seus filhos, e em seguida contou-lhe toda a história desde
que o guerreiro estrangeiro se fora encontrar com ela.

0 pai compreendeu que o filho estava ali devido a uma situação grave, e
perguntou-lhe: «0 que é que te fez deixar o país de que és rei?» «0 motivo é
simplesmente a injustiça e a arrogância com que tratei os meus súbditos. Eu
privei-os dos seus bens e dos seus alimentos, fazendo-os passar por uma terrível
humilhação e por uma situação extremamente injusta.» «Isso é mau», disse o pai.
«Teria sido preferível que o teu reino fosse prospero, pois um reino rico faz do seu
rei um homem rico. Além disso, é muito mau ter de ouvir maldições.» «Revoltados
comigo» continuou Bress, «os meus súbditos enviaram ao meu encontro um poeta
que lançou um feitiço sobre o reino que durará enquanto eu for rei.» «Estás a dar-
me pessimas notícias», disse o pai, «pois se o teu povo ficar na penúria, não
poderá pagar-nos os impostos que lhes impusemos. E porque é que vieste até
aqui, tendo deixado a longínqua Irlanda?» «Vim pedir campeões para me
ajudarem», respondeu Bress, «pois é minha pretensão reconquistar o país pela
força.» «Se em tempo de paz não conquistaste o teu país, não será pela força que
conseguirás conquistá-lo. Temos de ter uma conversa.»

Então, ele levou Bress à presença do pai, Indech, rei dos Fomore.
0 rei convocou os nobres e os campeões entre os quais se destacava Balor, filho
de Net, que tinha um olho maléfico. Estudaram a situação e concluíram que, a
menos que o trono da Irlanda fosse devolvido a Bress, filho de Elattia, eles
perderiam todos os privilégios que lhes advinham de tributarem impostos às tribos
de Dana. Os Fomore reuniram por isso uma multidão de homens de todas as ilhas
e decidiram partir para a Irlanda. Aí chegados, os cobradores de impostos
reclamariain o tributo devido e, se os homens de Dana se recusassem a pagar,
iniciar-se-ia uma guerra contra eles. E foi assim que a Irlanda viu aproximar-se um
exército poderosíssimo e temível, como jamais se vira.

Entretanto, os nobres e os campeões das tribos de Dana tinham-se reunido à volta


do seu rei Nuada do Braço de Prata, no palácio real de Tara. Sabendo que Bress
os trairia e que iria pedir auxilio aos Fomore, tinham decidido preparar-se para
combater aqueles inimigos cruéis C impiedosos. A reunião decorria na casa real,
enquanto o porteiro se mantinha vigilante no exterior da fortaleza.”’

Ora, ao perscrutar o horizonte, ele viu um exército que, avançando pela planície,
vinha direito para a fortaleza. Um jovem destacava-se à

frente do exército, parecendo exercer um ascendente sobre os seus


companheiros. 0 rosto brilhava-lhe como a luz do sol, e as suas feições muito
amplas resplandeciam como ouro. Vinha montado num cavalo cuja crina era tão
bela como as ondas do mar e que avançava tão rapidamente conio a nortada fria
e cortante da Primavera. Envergava uma armadura cintilante e na cabeça tinha
um capacete belo e sumptuoso que brilhava, estando ornado com uma rica pedra
preciosa atrás e outras duas à frente. Trazia também uma espada maravilhosa,
que matava quem quer que por ela fosse ferido, e que tomava fraco como uma

79
mulher em trabalho de parto quem quer que a visse reluzir no ardor da luta.”,

Destacando-se dos companheiros de armas, o jovem avançou para o porteiro.


«Quem és tu?», perguntou-lhe este. «Chamam-me Lug do Braço Longo. Sou filho
de Cian, filho de Diancecht, e de EtImé, filha de Balor das ilhas que ficam para lá
do nevoeiro. Fui criado por Tailtiu, filha de Maginor, dos Fir Bolg.»

«Muito bem», disse o porteiro, «e que desejas tu, filho de Cian?» «Quero dirigir-
me à assembleia dos nobres e dos campeões das tribos de Dana», respondeu
Lug. «Isso era bom», disse o porteiro, «mas fica a saber que ninguém é admitido
na assembleia da casa real de Tara se não possuir o dom de uma arte, seja ela
qual for. 0 que é que tu sabes fazer?» «Muitas coisas... Sei construir vigas para o
tecto das casas e edificar paliçadas ao redor das fortalezas.» «Não duvido da tua
arte, mas nós já temos um carpinteiro. Chama~se Luchté, é filho de Luachaid, e
serve-nos perfeitamente sempre que queremos edificar entrincheiramentos ou
construir vigas no tecto das casas.» «Eu também sou capaz de forjar relhas do
arado e armas com pontas bem afiadas», replicou Lug. «Sei bater o metal quando
ele sai da forja e talhar os objectos à minha maneira.» «Não duvido das tuas
capacidades», retorquiu o Porteiro, «mas já temos um ferreiro que se chama
Goibmu, que é inigualável nas artes do metal.» «Eu também sou um campeão
imbatível no campo de batalha», disse Lug. «Pois que isso te faça bom proveito! »,
exclamou o porteiro, «mas nós já temos um campeão que se chama Ogiria.
Sozinho ele é capaz de vencer em combate uma centena

l’ Segundo a narrativa de A segunda batalha de Mag-Tured, primeira versão.

2, Trata-se de Lug do Braço Longo, o Artesão-Múltiplo. Esta descrição muito


«solar» e feérica da Personagem foi tirada da narrativa Sort des enfants de
Tuirenn.

80
de homens armados.» «Eu também sou tocador de harpa», insistiu Lug, «e sei
provocar alegria, tristeza e sortolência.» «Quanto a isso», objectou o porteiro,
«ternos também quem nos satisfaz. Craffine e o nosso tocador de harpa e, além
disso, o nosso protector Dagda possui uma harpa mágica com a qual é capaz de
provocar todos os estados de espírito. A harpa sai por ela própria da parede a que
está encostada e, espontaneamente, vem parar às mãos de Dagda. Como vês,
não precisamos de ti nesta assembleia real.» «Além disso sou poeta e contador
de histórias», disse Lug. «Conheço as histórias de tempos passados, e sou capaz
de as contar a quem quer que peça para as ouvir. Sou a memória viva das tribos
de Dana e de todos os povos do mundo.» «Nós já temos um poeta, Cairpré, filho
de Etame. Ele conhece tudo o que aconteceu no mundo desde a sua criação, e
tem o dom de contar os

1 1

acontecimentos. Se queres que te diga, não sei o que poderias fazer por Z:I

nós.» «Mas também sou feiticeiro», insistiu Lug. «Conheço os feitiços que são
necessários para congelar as fontes, impedindo a água de fluir, e para evitar que
os homens ouçam o tumulto do combate. Conheço os sortilégios que
desencadeiam as tempestades e que fazem com que as brumas avancem para os
inimigos.» «Também nesse particular», replicou o porteiro, «nós estamos melhor
servidos do que qualquer outro povo. Temos entre nós diversos sábios e feiticeiros
que conseguem dominar o vento, a chuva, o mar e a terra. Temos também três
magas, Bobdh, Macha e Morrigane, que são as filhas de Errimas. As três têm o
dom de lançar feitiços durante os combates e de fazer com que caia chuva de
sangue sobre os inimigos.» «Está bem ... », insistiu Lug, «mas eu sou médico e
possuo a arte de sarar as feridas sofridas em combate.» «Tu de nada nos
servirias», respondeu o porteiro, «pois temos o mais dotado médico do mundo.
Chama-se Diancecht, e tanto o seu filho como a sua filha são capazes de fazer
prodígios.» «Sou também copeiro real», disse Lug. «Num festim sou capaz de
distribuir a cerveja e o hidromel por todos os assistentes e de acordo com a
categoria e o valor de cada pessoa.» «Nós não precisamos de ti para nada»,
ripostou 0 porteiro, «pois entre nós existe um copeiro real que não tem ninguéti,
igual no mundo. Ele serve a cerveja e o hidromel com sabedoria, e sem melindrar
seja quem for. Podes ver, portanto, que há entre nós homens de arte e de ciência,
homens e mulheres que conhecem todos os segredos do mundo.» «Pois bem! »,
disse Lug, «vai falar com o teu rei e pergunta-lhe se conhece alguém que reuna
numa só pessoa todas as qua-

lidades que eu acabo de te enunciar. Se a sua resposta for afirmativa, eu renuncio


a entrar na casa real de Tara.»

Então 0 porteiro entrou na fortaleza e dirigiu-se à casa onde à volta do rei Nuada
do Braço de Prata estava reunida a assembleia de nobres e de campeões das
tribos de Dana. «Rei supremo», disse ele, «já fora, à entrada da fortaleza, está um
jovem guerreiro que diz chaniar-se Lug, filho de Cian, e que se diz perito em todas

81
as artes que se praticam nesta casa. Nunca vi nada parecido: é um homem que
sabe fazer tudo e que é um Artesão-Múltlplo.’)

Então, Nuada pediu ao porteiro para ir buscar o iogo de xadrez de Tara


e para fazer uma partida com o jovem guerreiro. 0 porteiro disputou um jogo de
xadrez com Lug, e este ganhou a partida. Sem perda de tempo, o porteiro foi
informar Nuada e os chefes das tribos de Da’do.

na sobre o ocorri

«Fá-lo pois entrar na casa real», disse Nuada, «pois i amais ouvi falar
em alguém que seja capaz de tantos prodígios.»

0 porteiro foi então chamar Lug e fê-lo entrar na fortaleza, elicami~ nhando-o
depois para a casa onde estava reunida a assembleia. Aí chegado, Lug tomou
lugar no assento reservado aos sábios”), pois, como era evidente, ele era a
pessoa mais sábia que alguma vez estivera na presença dos nobres e dos
campeões das tribos de Dana.

Entrementes, Ogina foi buscar a grande pedra que se encontrava no exterior da


casa, e que só podia ser levantada com o esforço de vinte e quatro homens;
arrastando-a através da casa, depositou-a aos pés de Lug, sendo lançado um
desafio a este. Ora, o jovem guerreiro, sem pronunciar uma palavra, ergueu~se,
agarrou a pedra, e com um único movimento levantou-a na vertical, fazendo-a
depois retomar o lugar onde estivera.

«0 jovem guerreiro que toque harpa!», disse então Dagda. «Precisamos de música
para ficarmos em boa forma.»

Lug segurou a harpa de Dagda que estava encostada à parede e,

1. Em gaélico, «Samildanach, um dos numerosos epítetos de Lug. Esta


personagem divina, cornum ao conjunto do mundo celta, está com efeito «para
além das funções», ou seja, reúne em si todas as funções atribuídas à divindade
única que parece ter sido a dos celtas. Trata-se do «Mercúrio» gaulês de que fala
César nos seus comentários, deus que, segundo o Procônsul, era o mais
venerado e aquele a quem foram consagrados mais simulacrum,
2. OU, dito por outras palavras, pilares de madeira ou de pedra.

Trata-se de um protótipo do célebre «Assento Perigoso», que, na Távola


Redonda, está reservado apenas a predestinados.

82
dirigindo-se à assembleia, tocou com tal perfeição uma música sonolenta que
todos dormiram um dia inteiro, desde aquela hora até mesma hora do dia
seguinte. Depois tocou uma música que fazia rir, e todos ficaram alegres e bem
dispostos durante muito tempo. Por fim, tocou uma música triste, e todos
mergulharam numa profunda angústia durante a noite e até à mesma hora do dia
seguinte, lamentando-se e choramingando.

Quando Nuada do Braço de Prata chegou à conclusão de que o jovem guerreiro


possuía poderes que ninguém mais tinha, ponderou um momento e pensou que
talvez Lug pudesse libertá-los do jugo dos Fomore que oprimia as tribos de Dana.
Consultou os nobres destas tribos e, a seu conselho, levantou-se do seu assento
e pediu ao jovem guerreiro para nele se sentar. Lug do Braço Longo sentou-se
então no assento real, embora não fosse rei, e Nuada ficou de pé diante dele treze
dias e treze noites. Depois disso, o rei foi encontrar-se com Dagda e Ogiria para
lhes dizer em segredo que era aconselhável confiar a Lug, filho de Cian, a chefia
da guerra que iam travar contra os Fomore. Ogina e Dagda aprovaram a ideia e
foram da opinião de que Lug deveria ter a última palavra sobre o modo como o
combate devia ser travado. Foram então reunir-se com ele para o consultarem.

Após reflectir durante alguns instantes, Lug perguntou ao ferreiro Goilmiu que
contributo ele lhes poderia dar. «Não te preocupes», respondeu Goibrtiu. «Podem
os homens da Irlanda estar em guerra durante sete anos, e por cada ferro do
dardo que saia da haste, ou por cada espada que se parta, eu substituirei a peça
em falta. Qualquer ponta de armamento que saia da minha for a será de tal modo
eficaz que o corpo em i

que penetrar perderá todo o vigor. Nem o ferreiro dos Fomore será capaz de tal
artifício. Pela minha parte, estou pronto para a batalha, e darei todo o apoio a
todos os que estiverem em apuros.» «E tu, Diancecht», retomou Lug, «que podes
fazer por nós?» «Não te preocupes: saberei cuidar de todos os feridos e de os
recuperar para as batalhas seguintes, a menos que os matem ou lhes cortem as
goelas.» «E tu, Credné», perguntou Lug ao artíficie do bronze, «que grande
contributo nos poderás dar na batalha?» «Não te preocupes: fornecerei rebites de
dardos, punhos de espadas, bocetes e guarnições de escudos.» «E tu?», dirigiu-
se Lug ao carpinteiro, «que grande contributo nos poderás dar, frente aos
Fomore?» «Não te preocupes: fornecerei a todos os escudos e as lanças de
madeira de que precisarem, e substituirei instantaneamente as armas que ficarem
danificadas no ardor do combate.» «E tu,

Ogiria?», interrogou então Lug o campeão, «o que farás na batalha contra os


Fornore?» «Não te preocupes: fazendo recuar o rei dos Fomore e três novenas
dos seus guerreiros, farei com que os homens da Irlanda fiquem desde logo com
um terço da vitória ganha. Nenhum inimigo conseguirá resistir aos golpes que eu
infligir.» «E tu, Morrigane» dirigiu-se Lug à maga, «que grande
contributo será o teu nesta batalha?» «Não te preocupes: tudo o que eu quiser
alcançarei, graças ao poder dos ineus feitiços. A minha arte aterrorizará de tal
modo os Fomore que a planta dos seus pés ficará branca, e os seus campeões

83
morTerão uns a seguir aos outros devido à retenção da urina. Quanto aos outros
guerreiros, fá-los-ei ter tanta sede que ficarão enfraquecidos, e farei com que
todas as fontes fujam deles de modo a não poderem matar a sede. E enfeitiçarei
as árvores, as pedras e as elevações de terra de tal modo que, confundindo-as
com contingentes de homens armados,(” os inimigos nelas se perderão cheios de
terror e de pânico. «E tu, Cairpré, tu que nos encantas os ouvidos com os teus
cantos melodiosos», interrogou Lug o poeta, «que surpresa agradável nos
reservas nesta batalha?» «Não te preocupes: frente às hostes dos Fomore
cantarei a glória dos nossos pais, os filhos de Nemed. Depois enfeitiçá-los-ei e
lançar-lhes-ei o glam dicin”1 mais poderoso que alguma vez existiu na Irlanda.
Desse modo a honra dos Fomore cairá por terra e eles não resistirão à investida
dos nossos, o que, podes crer, Lug, filho de Cian, sem dúvida se deverá à magia
da minha arte».

Então, Lug do Braço Longo virou-se para os diruidas que se encontravam na


assembleia e perguntou-lhes: «E vós, druidas das tribos de

1. 0 tema das «árvores que combatem» encontra-se em toda a tradição celta,


inclusivamente na recolha feita por Tito Lívio na sua História Roinana, embora ele
a apresente sob uma forma racionalizada. Ver J. Markale, Le Druidisme, nova
edição, Paris, Payot, 1994 (capítulo sobre «o visco e o ritual vegetal»).

2. 0 glam dicin é a maldição suprema utilizada pelos druidas. É um feitiço mágico


acessível a todos os membros da classe sacerdotal, e portanto também aos
poetas e a fortiori aos druidas propriamente ditos, adivinhos e mágicos de toda a
espécie, assim como aos heróis ou heroínas que mais se destacam. Tem algo de
comum com o não menos poderoso geis, às vezes traduzido incorrectamente por
tabou, e que é uma obrigação mágica - e social itriposta a um indivíduo. Aquele
que, por um motivo qualquer, recuse um geis é rejeitado pela comunidade; mas
aquele que seja atingido por um glam dicin não tem outra saída senão sofrer
passivamente o feitiço. Parece que, após a cristianização da Irlanda - ao menos a
crer na tradição hagiográfica - um certo número de padres e de monges
praticaram uma forma atenuada do glam dicin contra não cristãos ou contra
indivíduos culPados de um grande mal, em geral de natureza religiosa.

84
Dana, que proezas fareis durante a batalha?» «Não te preocupes:
desencadearemos tantas tempestades e tantas chuvas de fogo sobre os Fomore
que eles nem serão capazes de levantar a cabeça e sucumbirão às mãos dos
vigorosos guerreiros que investirão contra eles. E se isso não for suficiente,
faremos desaparecer as fontes, os rios e os lagos da Irlanda para que os Fomore
não possam saciar a sede que lhes secará as gargantas durante a batalha. Essas
são as proezas que faremos, ó sábio Lug do Braço Longo, filho de Cian.» «E tu,
Craftiné», continuou LuzeD, dirigindo-se ao harpista, «que feito porás em prática
nesta batalha?» «Não te preocupes: tocarei músicas e melodias tão doces aos
nossos guerreiros que eles mergulharão num repousante sono até à manhã
seguinte. Depois disso, irei combater e matarei o maior número de inimigos
possível.» «E tu, Bobdh Derg, filho do valente Dagda». prosseguiu Lug, «que
podemos esperar de ti?» «Não te preocupes: ire’ combater e logo na minha
primeira investida farei com que caiam a meus pés, vítimas dos meus golpes, mais
de uma centena de guerreiros Fomore. E não deixarei de os perseguir para os
eliminar e para Os matar até ao último dos seus homens.» «E tu, Dagda, o mais
sábio de nós todos», continuou Lug, «que proezas nos reservas durante a batalha
contra os Fomore?» «Não te preocupes: tomarei a dianteira dos homens da
Irlanda e serei o primeiro a avançar contra os guerreiros que nos vêm fazer frente.
Bater-me-ei contra eles com tal vigor que arrasarei, corri sortilégios e com armas,
todos aqueles que tentarem resistir. Os ossos dos meus adversários transformar-
se- ão em migalhas de tanto eu lhes bater com a minha moca1`, e as migalhas
serão dispersas parecendo saraiva pisada pelo casco dos cavalos depois de uma
tempestade. No auge da batalha, mesmo se estiver cheio de chagas e de feridas,
eu não vos
1 1

faltarei com a minha assistência e a minha protecção.» «E tu. Marianann, filho de


Uir. senhor das ilhas distantes», perguntou Lug, «que grande C,

feito realizarás na luta contra os Foniore?» «Não te preocupes: agitarei

1. A moca de Dagda é célebre na tradição irlandesa. Outro texto explica que, ao


bater noutro homem com uma ponta da moca, Da-da matava-o, e se lhe batesse
com a outra ponta da Z

moca, ressuscitava-o. Isto tinha que ver com a ambiguidade deste «Bom Deus»,
como ele se chamava. Parece que Dagda poderá ser identificado com o «Deus do
Maço» frequentemente representado na estatuária galo-romana e que, com o
epíteto frequente de Sucellos, ou seja, «Soco Duro», é provavelmente um outro
aspecto do Taranis gaulês, que personifica o trovão. A imagem de Dagdu com a
moca é muito frequente no misterios0 «Homem Selvagern», rústico a quem
obedeciam os animais selvagens e que se encontra em diversos contos
populares, assim como em romances do ciclo arturiano.

tão habilmente o meu manto entre os Fomore e os nossos herois que os ForrIore
nem se lembrarão da razão que os levou até à planície.»01

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por fim, Lug virou~se para Nuada do Braço de Prata. «E tu, Nuada», dirigiu-se-lhe
ele, «rei supremo da Irlanda, que proeza irás protagonizar na batalha contra os
Fomore?» «Não te preocupes», respondeu Nuada. «Na qualidade de vosso rei
estarei entre vós, mas não combaterei. Estarei no entanto em condições de dar de
comer a todos os guerreiros que estarão sob a tua chefia, e não deixarei que a
fome ou a sede se instalem entre eles enquanto durar a batalha.»

Foi assim que. lia casa real de Tara, no meio de uma assemblela de nobres e de
chefes das tribos de Dana, Lug do Braço Longo, filho de Cian, falou com todos
eles na intenção de preparar a grande batalha que tinha de ser travada para
acabar com a escravidão imposta pelos Fomore. E o discurso que ele fez perante
todos foi de tal modo convincente, que o seu espírito mais parecia o de um rei ou
de um príncipe. Passou-se isto uma semana antes da festa de Samain.
(2)

Findo isto, Lug separou-se daqueles nobres e chefes das tribos de Dana e
marcaram um encontro para a véspera de Samain. Mas, antes de deixar a
assembleia, Lug, pediu a Dagda para que estivessem atentos a chegada dos
Fomore, que deveria ser retardada o mais possível de modo a que o combate
pudesse ser preparado com todas as cautelas. E Dagda prometeu a Lug satisfazer
o seu pedido, pois ele era o protector das tribos de Daria e devia, acontecesse o
que acontecesse, velar pela protecção do seu povo.(”

1. 0 manto mágico de Mananann também é célebre na tradição celta: é um objecto


mágico que faz com que se esqueçam alguns dos acontecimentos mais recentes.
A personagem de Mananann, pouco referenciada nas narrativas que dizem
respeito ao estabelecimento das tribos de Dana na Irlanda, anha destaque
depois da partilha da ilha entre as tribos de Dana e os filhos de Milé, ou seja, os
GaéIs [Gaélicos em português - N. T.], pois ele tornar-se-á o rei supremo do «povo
feérico», dito de outro modo, as gentes das tribos de Dana que residem nos
«sidhs», os grandes Tumulms megalíticos.

2. A grande festa ceita do início de Novembro. Note-se que todas as batalhas


épicas se travam sempre por ocasião das festas celtas, mormente a «Beltaiiie», no
início de Maio (chegada das tribos de Dana), ou a «Lugnasad», no princípio de
Agosto. Significa isto que as batalhas grandiosas são sobretudo simbólicas e
referem-se a rituais religiosos muito anti-
90s, assinalados pela mudança de tendências ou pela substituição de soberanos.

3. Segundo a narrativa de A segunda batalha de Mag-Tured, primeira versão, com


alguns Pormenores retirados da versão posterior. Esta, diferente da primeira,
encontra-se no matruscrito 24 P 9 da Academia Real Irlandesa de Dublin e foi
publicada por Brian O’Cuiv em Dublin, em 1945. A única tradução actualmente
existente é a francesa, de Ch.-J. Guyonvare’h, Textes mythologiques irlandais,
Rennes, 1980.

86
C a p í t LI 1 0 1 V

agda mandara construir uma casa no norte, no vale de Etin. E como ele combinara
encontrar-se aí com uma mulher, não se demorou em Tara, partindo apressado
para norte de forma a estar em casa no dia e à hora que havia combinado.

Perto de casa, à entrada do vale, corriam dois ribeiros, um para oeste, na direcção
de Connaught, e o outro para norte, em direcção ao UIster. À chegada, Dagda viu
a mulher a lavar-se, banhando delicadamente o pé direito no ribeiro que corria
para Connaught e o pé esquerdo no que corria para o Ulster. Esta mulher era nem
mais nem menos do que Morrigane, filha de Eminas, a maga das tribos de Dana.

Ora, ao observar o espanto de Dagda por vê-Ia lavar os pés em dois ribeiros
diferentes, ela disse: «Não te admires. Assim eu envio os meus sortilégios para
Connaught e para o UIster, pois será na confluência destas duas províncias que
se travará a batalha contra os Fomore.» «Podes vir falar comigo por um
momento?» perguntou Dagda. «Não é altura para Isso», disse MorrIgane.
«Parece-me que temos outra coisa a fazer, como ficou combinado.» «Está bem»,
disse Dagda, «Mas foi a teu pedido que marquei o encontro aqui. Porque é que
temos sempre de nos encontrar em segredo, às escondidas de todos, sem o
conhecimento dos homens das tribos de Dana?» «Tu sabes perfeitamente que
eles ”0 suportariam saber que estou em tua companhia. Se o soubessem, teriam
um ciúme mortal que se abateria sobre ti.» «No entanto», disse ]1agda, «eu não
sou o único homem que tem a honra de se poder encontrar cOntigo.» «É verdade,
Dagda, mas ninguém o deve saber. Pois, aos

87
olhos dos homens das tribos de Dana, eu sou livre, e todos esperam ser
desejados por mim. Haveria muitos corações destroçados e inconso, láveis se os
meus encontros fossem conhecidos.»

Saindo então do ribeiro que corria para o Ulster, Morrigane avançou para Dagda.
Trazia consigo um vestido vermelho cor de sangue, C nove tranças saiam da sua
cabeleira. «Desata os meus cabelos», disse ela. Dagda pegou nas tranças,
desatou-as uma a uma, e a cabeleira de Morrigane, que era negra como as penas
do corvo, caiu sobre os ombros e escorreu ao longo do corpo até roçar ao de leve
na cintura. Estendendo-se na relva, chamou-o: «Agora vem.»

Dadga deitou-se a seu lado e ela apertou-o contra as suas coxas. Aquele lugar
onde eles se uniram chama-se agora Leito do Casal. Terminado o acto, Dagda
levantou-se e disse: «Vou deixar-te, pois tenho a missão de identificar o lugar
onde estão estabelecidos os Fomore, devendo depois retardá-los o mais possivel
para que as tribos de Dana se possam preparar para a batalha.» «Eu posso
ajudar-te», disse Morrigane. «Estás a ver o bando de pássaros negros que voam
por cima das nossas cabeças? Eles vêm de leste, e se voam na direcção do sol
poente, é porque um terrível exército os assusta. Não é difícil perceber de onde
eles vêm, tão desnorteados: vêm da planície de Scene, Junto ao Woral. Foi aí que
os Fomore desembarcaram em massa e é aí que estão as suas hostes.» «Nesse
caso, vou à planície de Scene», disse Dagda. «Observarei os seus movimentos e
verei o que posso fazer para lhes retardar a expedição. E tu, o que vais agora
fazer?» «Em primeiro lugar, vou esperar por um momento propício», respondeu
Morrigane, «depois intrometer-me-ei entre os Fomore e pedirei para ver o rei.
Deixar-me-ão passar porque sou uma mulher bela e atraente, e entrarei na tenda
do rei Indech. Quando ele quiser saciar os seus desejos cornigo, farei com que o
seu coraçao se Parta e os seus rins se diluam em sangue. Nessa altura, irei
mostrar os restos do rei às tribos de Dana e, tomando conhecimento de que os
Fomoré perde~ ram o rei, elas partirão para a batalha com uma coragem
acrescida.»(1)

Nisto, Dagda separou-se de Morrigane e dirigiu-se directamentepara a planície de


Scene. Chegado aí, ficou a observar demoradamente

1. Morrigane, filha de Étrange (Ernmas), é uma personagem extremamente


misteriosa. É a imagem arcaizante de uma deusa da guerra, da sexualidade e da
magia, estando estes três domínios indubitavelmente associados à tradição celta
em que os guerreiros recebeu, du ma mulher a iniciação sexual, mágica e
guerreira (por exemplo, Perceval, com as feiticeiras de Kaerloyw no ciclo do
Graal). Mas Morrigane apresenta aqui o seu aspecto mais ter-

a actividade dos Fomore, e depois decidiu ir ao encontro dos guardas pedindo-


lhes para falar aos Fomore sobre as convençoes que deveriam ser respeitadas na
batalha.

Conduziram-no então à presença de Indech, rei dos Fomore que o recebeu com

88
deferência, pois sabia que Dagda era um sábio entre os honiens de Dana.
Falaram sobre o lugar onde deveria decorrer a batalha e do dia em que ela se
deveria iniciar. Depois, o rei, querendo tratar o hóspede com todas as honras,
ordenou aos criados e aos cozinheiros que lhe dessem de comer.

Os Fomore começaram por lhe dar a beber grandes quantidades de cerveja e de


hidromel, podendo ele saciar-se à sua vontade. Depois prepararam-lhe uma papa
de farinha pois sabiam que era um alimento da sua preferência, mas ao fazê-lo,
tinham em mente troçar dele e pôr a nu a sua gulodice. Para o satisfazerem
encheram então o caldeirão do rei que era muito grande, cabendo nele cinco
homens fortes, com leite fresco, farinha e banha, em idênticas proporções. E como
isso não era suficiente, deitaram para dentro do caldeirão cabras, carneiros e
porcos que cozeram com a papa de farinha. Depois, como era impossível comer
de uma vez toda a comida do caldeirão escaldante, fizeram uma cova no solo e
deitaram para lá tudo o que ele continha.11

Quando Dagda viu a refeição que lhe tinham preparado, começou por se queixar
dizendo que não estava habituado a ser servido de forma tão rude e
altiva. Mas o rei dos Fomore foi ter com ele e ameaçou-o de morte se não
comesse tudo o que estava na fossa. Segundo ele, desse modo Dagda não se iria
queixar de que os Fomore não sabiam tratar bem os seus hóspedes.

rífieO, fazendo lembrar claramente a Judite bíblica, e sobretudo Kali, a Negra, da


tradição indiana, deusa da vida e da morte, que muitas veze 1s é representada
como a castradora por excelência. Além disso, impõe-se uma comparação muito
óbvia entre ela e a fada Morgana das narrativas arturianas, mesmo tendo ela
perdido alguma da sua rudeza primitiva e tendo-se tornado uma espécie de
símbolo sexual.

I. Por trás de uma farsa de mau gosto, o episódio tem por base uma certa
realidade. Achados arqueológico .1 . antropológicas provaram que os
homens da Idade do s e experiencias

]Bronze e depois do Ferro possuíam uma espécie de cozinha ao ar livre. Cavava-


se uma fossa que se cobria com tábuas ou pedras secas e na qual, depois de ela
ter sido enchida com água, se mergulhava a caça envolvida em palha e
temperada com aromas e alho selvagem. Depois j .untavam-se pedras aquecidas
numa fogueira de modo a cozer os aliMernos a uma temperatura moderada,
prática que a todos os níveis está em conformidade com a dietética moderna.

89
Percebendo que não poderia recusar, Dagda pegou na colher, que era de tal
maneira grande que um homem e uma mulher se poderiam deitar ao fundo dela. E
cada colherada que ele tirava da fossa obrigava-o a devorar meio-porco, um pernil
de ovelha ou de cabra.”’

«Que saborosa deve ser a carne, se o cheiro não me engana ... », disse Dagda. E
pôs-se a comer deliciando-se com as papas de farinha e a carne. Os Fomore
observavam-no cheios de curiosidade, e troçavam do modo como ele devorava o
conteúdo da sua colher. Quando repararam que ele rapava o fundo, por não estar
ainda satisfeito com tudo o que havia dentro da fossa, ficaram embasbacados,
pois nunca tinham visto ninguém com tanta gula.

Entretanto, Dagda sentia-se entorpecido, estando a sua barriga tão curva como o
maior caldeirão que alguma vez existira na casa do rei. Deitou-se no chão e não
tardou a adormecer, enquanto os Fomore à sua volta não paravam de se rir e de
se divertir à sua custa. Diziam eles: «Se todos os heróis das tribos de Dana são
como este, como é que nos havemos de espantar que eles não nos queiram dar o
trigo e o gado que, na qualidade de vassalos, nos devem?» E acrescentavam:
«Pelo que estamos a ver, será para nós uma brincadeira vencê-los pelas armas!»
Por fim Dagda acordou, não sabendo onde estava. Ao ver que os Fomore
troçavam dele, ficou furioso. Estava tão entorpecido que preferiu não dar troco à
zombaria deles. Depois de se despedir, começou a caminhar para a assembleia
de Tara para contar o que vira e a experiencia por que passara.

Mas a barriga estava tão grande que lhe era difícil caminhar, tendo de parar várias
vezes. Estava com um aspecto deplorável, pois a saliência das nádegas aparecia
à mostra por baixo da túnica, e o seu membro viril, que era comprido, estava
perfeitamente escancarado. Arrancara um ramo duma árvore e servia-se dele
como se fosse uma bengala, inas era tanta a força com que se apoiava nele que
ia deixando atrás de si uni

1.

risco profundo que daria para traçar a fronteira de uma provincia.

1. Aqui transparece o aspecto gargantuesco de Dagda. É um gigante que carrega


uma rnoca, sexualmente insaciável e incrivelmente glutão. Representa o poder de
absorção atribuído à divindade, traço de personalidade que se encontra bem
evidente nos Gargantua e nos Pantagruel, os quais, antes de serem os heróis de
Rabelais, eram personagens divinas tornadas folclóricas. Gargantua vem a ser o
gigante Gwrgwnt das antigas lendas ceitas, significando o seu nome «da perna
curva». Quanto a Pantagruel, é uma espécie de demónio medieval que enche de
sede os seus inimigos atirando-lhes sal. 0 Dagda irlandês é uni dos aspectos que
toma esta personagem saída da mais remota mitologia.

Quando estava a chegar a um vale, viu uma jovem a lavar-se num ribeiro. Como
ela era muito bela, com tranças na cabeça e formas muito atraentes, encheu-se de

90
desejo por ela. Disso se apercebendo, a rapariga não o rejeitou, e deitaram-se na
erva, perto do ribeiro. Apesar disso, Dagda estava tão pesado que não conseguiu
unir-se à jovem, que se ergueu e fez troça dele.

Furioso e com ímpetos violentos, Dagda quis bater na insolente, rnas ela
furtou~se e começou a correr. Dagda levantou-se com dificuldade e, percebendo
que não poderia apanhá-la, lançou-lhe pedras, mas não a atingiu. Então,
enfurecido, jurou vingar-se massacrando todos os Fomore que apanhasse pela
frente na batalha, pois eram eles os culpados pela sua vergonhosa situação. A
seguir, retomou a marcha em direcção a casa real de Tara.

Enquanto isto acontecia, os Fomore, depois de terem preparado as lanças, as


espadas e os escudos, reuniram-se à volta do rei, Indech, cheios de coragem e de
determinação, prontos para avançarem sobre a planície de Tured onde tinham
combinado com Dagda travar a batalha. «Os homens da Irlanda são uns
convencidos, por se atreverem a querer combater contra nós», disse Indech.
«Tenho a impressão que eles ficarão reduzidos a migalhas e que os seus ossos
serao poeira no dia a seguir à batalha.» «Rei supremo», interveio então Bress,
filho de Elatha, «seria bom que fizéssemos uma última tentativa para evitar a
confrontação.» «És cobarde?», gritou Indech. «Tens medo de medir forças com os
guerreiros das tribos de Dana?» «Claro que não, rei supremo», respondeu Bress.
«Se falo assim, é no interesse de todos. Pelo que me toca, estarei a vosso lado no
combate e, aconteça o que acontecer, portar-me-ei como um rei. Mas se
exterminarmos os homens da Irlanda, esta ilha ficará deserta e não havera mais
ninguém para cultivar os camPos e para criar o gado. Que ganharíamos com isso?
As vossas ,i

proprias terras são ilhas no meio do nevoeiro, e é de todo o interesse para vos
manter os homens da Irlanda sob o vosso domínio para que eles criem riqueza e
comida em abundância. Seria de todo o interesse para vós que Os homens da
Irlanda, temendo o vosso poder, permitissem que eu Voltasse a sentar-me no
trono, pois assim eu poderia dar-vos o que vos Pertence.» «Penso que tens
razão», disse Indech. «Mandemos uma vin~ tcna de homens à Irlanda para lhes
pedir que paguem o que nos devem e que reconheçam Bress como rei supremo.
Se eles aceitarem estas nossas últimas propostas, se nos pagarem o tributo,
abster-nos-emos de os

91
combater e voltaremos para as nossas ilhas. Mas se eles recusarem, terão de
travar um combate mortal e de desaparecer desta terra da qual passaremos a ser
os únicos senhores.»

0 rei dos Fomore deu ordens para que uma vintena dos seus homens mais
corajosos e cruéis se preparassem para partir para Tara com o fim de reclamar o
tributo devido aos Fomore e de obrigar os homens de Dana a reconhecerem
Bress, filho de Elatha, como rei supremo. os emissários agruparam-se sem perda
de tempo e puseram~se a caminho, chegando a Tara pouco tempo depois.”’

Ao ver aquele grupo impertinente e de mau aspecto aproximar-se das muralhas da


fortaleza, o porteiro, aterrado, perguntou o que desejava. Assim que lhe foi dada
uma resposta foi, apressado, ter com Nuada e informou-o das pretensões dos
Fomore, que exigiam a sua parte das colheitas, de gado e de objectos preciosos,
assim como a devolução da coroa a Bress, filho de Elattia.

Furioso, Nuada deu um salto e exclamou: «Vai-lhes dizer que os filhos de Dana
nunca mais voltarão a pagar tributos aos Fomore, e
1

Bress, filho de Elatha, nunca mais será o rei supremo da Irlanda.» Acrescentou:
«Nós combateremos no dia combinado na planície de Tured, e eliminaremos todos
os Fomore, pois eles Dão têm nenhuns direitos sobre esta terra e nós queremos
libertar-nos da escravidão que nos é imposta por estrangeiros. Manda-os voltar
para perto dos seus, e diz-lhes para se prepararem para sofrerem uma derrota
vergonhosa que lhes trará toda a infelicidade do mundo!»

0 porteiro transmitiu a mensagem, e os Fomore, sem insistirem, regressaram para


junto das hostes do rei Indech. Entrementes, apareceu Lug, filho de Cian.
Informado do que acabara de acontecer e, tomando conhecimento das exigências
do adversário, ficou negro de raiva. «Como?», gritou ele. «Vocês sofreram durante
largos anos a opressão dos Fomore, que vos impuseram a escravatura, e
deixaram partir sãos e salvos os mais cruéis e perversos deles?» «Não tínhamos
alternativa», respondeu Nuada. «Eles vieram na qualidade de mensageiros e era
difi~ cil impedi-los de voltar para junto dos seus.» «Mas como me enfurecem os
vossos escrúpulos!», rugiu Lug. «Deviam tê-los tomado como reféns ou tê-los
massacrado para que não pudessem combater-vos na batalha que se avizinha. Eu
vou persegui-los e fá-los-ei pagar um preço

1. Segundo a narrativa da Segunda batalha de Mag-TÚred, primeira versão.

bem alto pela audácia e pelas suas pretensões!» «Não faças isso!», interveio
então Cian, filho de Dianceclit. «Não te compete a ti, meu filho Lug, perseguir
esses malfeitores. 0 teu lugar é aqui, entre os chefes das tribos de Dana, que se
preparam para travar a batalha mais violenta que alguma vez se viu. Serei eu a ir
atrás desse bando execrável!»

92
E, antes de alguém poder reagir, Cian saltou para cima de um cavalo e este
começou a galopar a toda a velocidade no encalço dos Fomore. Dois dos seus
irmãos, chamados Cti e Ceithenn, decidiram acompanhá-lo para o ajudarem, mas
não conseguiram apanhá~lo e dirigiram-se para sul ao passo que ele fora para
norte. Quanto aos Fom ore, tinhani um grande avanço e Cian, desesperado
por chegar perto deles, ia-se consolando a pensar que, ao menos, os teria pela
frente na batalha a travar na planície de Tured, podendo aí vingar-se deles.
Arreplou então caminho com a intenção de entrar em Tara.

Atravessou a planície de Murthemné e logo viu três jovens armados a virem ao


seu encontro. Reconheceu neles, imediatamente, os três filhos de Tuirenn, que se
chamavam Brian, lucharba

e luchar.

Ora, havia Já muito tempo que os membros da família de Diancecht e os da


família de Tuirenti se detestavam, chegando mesmo a odiar-se mortalmente. Eram
sem conta as batalhas em que se tinham confrontado, e onde quer que se
encontrassem, alguns deles tombavam por terra, embora todos eles fizessem
parte das tribos de Dana e descendessem de Nemed. Mas era mais forte a
incompatibilidade entre eles, e os três filhos de Tuirenn tinham todos herdado um
ódio feroz pelos membros da família de Diancecht.

Ora, os filhos de Tuirenn, tendo visto e reconhecido Cian na planície de


Murthemné, logo disseram entre si que tinham ali uma oportunidade há muito
sonhada para se livrarem de um filho de Diancecht, já que ele estava só e
indefeso em frente a três jovens corajosos e determinados. Também disseram
entre si que, se Cian perdesse a vida naquela aventura, fariam recair a
responsabilidade sobre os Fomore. E decidiram então atacá-lo sem piedade.

Cian compreendera muito bem as suas intenções e, percebendo que corria perigo
de vida, murmurou para si mesmo: «Se os meus dois irIlIãos estivessem aqui, nós
lutaríamos rijamente e não teríamos dificuldade em desembaraçar-nos destes três.
Mas eu não os tenho comigo, estou só, por isso o melhor que tenho a fazer é fugir.
Eles que esperem e iltinca mais me poem os olhos em cima.» Ao ver-se depois
cercado por

93
uma vara de porcos, não hesitou e bateu em si mesmo com uma varinha druídica,
adquirindo então o aspecto de um porco e começando a esgaravatar no chão
como faziam os outros porcos. «Que estranho», disse Brian, filho de Tuirenn, aos
in-nãos. «Vocês não viram, como eu, um dos filhos de Diancecht a atravessar a
planície?» «Vimos, na verdade», responderam eles, «e reconhecemo-lo. E
impossível que tenha desaparecido sem motivo. Desde que vejo planícies e vales
aprendi a saber distinguir o que existe do que não existe. Estou bem em crer que
sei como ele desapareceu: bateu em si mesmo com uma varinha druídica de ouro
e transformou-se num porco, misturando-se com os desta vara- E, neste mesmo
momento, nas nossas barbas, ele prepara-se para fugir com os seus
semelhantes.» «Estamos com pouca sorte», disseram os dois irmãos, «pois esta
vara pertence a uma das tribos de Dana e não podemos matar todos os porcos, já
que seríamos censurados por isso. Além disso, mesmo que o fizéssemos, é certo
que o porco druídico nos escaparia.» «Tu não és muito inteligente», respondeu
Brian, «e vejo que de nada te serviu a lição que recebemos nas ilhas do norte do
Mundo. Tu nem sequer és capaz de distinguir um animal druídico de um animal
natural.»

Quando acabou de pronunciar estas palavras, Brian bateu nos seus irmãos com
uma varinha mágica e druídica que trazia sempre consigo, e deu-lhes a forma de
dois cães muito magros, ágeis e rápidos que, soltando latidos fortes, se
precipitaram sobre a vara e a dispersaram. Depois, investiram sobre um dos
porcos, precisamente aquele em que se transformara Cian, e este refugiou-se
junto de uma mata de aveleiras, esperando não ser visto; mas, por efeito de artes
mágicas, Brian, adivinhando a sua intenção, brandiu a sua lança e bateu-lhe no
peito com ela.

«Porque me bateste desta maneira, sabendo quem eu era e que estava


indefeso?», perguntou o porco. «Eis uma voz humana! », gritou Brian. «Não me
enganei e 1os meus dois cães druídicos não derfloraram a reconhecer-te.» «E
verdade», admitiu o porco, «eu era UIII homem antes de adquirir esta forma. Sou
Cian, filho de Dianceclit. Poupa-me a vida, suplico-te, e serei teu criado, ficando ao
teu serviço na batalha contra os Fomore.» «Juro por todos os espíritos do ar»,
gritou Brian, «que se a tua alma voltasse sete vezes para o teu corpo, eu a caçaria
sete vezes!» «Então», disse Cian, «faz-me um favor»«Como queiras», disse
Brian. «Deixa que eu volte a ter a forma liti-
1

mana». «A vontade», disse Brian, filho de Tuirenn, «pois muitas vczes custa~me
mais matar um porco do que um homem.»

Cian adquiriu então a sua forma natural. «Enganei-te», disse ele, «pois se me
tivesses matado na forma de um porco, o meu filho apenas poderia reclamar o
preço de um porco. Mas, ja que me queres matar na minha forma natural, terás de
o recompensar com o preço de um homern, o que te ficará multo caro devido à
minha categoria, as minhas acções e aos meus méritos. E serão as armas com
que me matardes que servirão de testemunho da minha morte ao meu filho.»(’)

94
«Não serás então morto com as nossas espadas», disse Brian, «mas com pedras
que apanharemos do chão.»

E, dito isto, os três irmãos começaram a fiagelã-lo com pedras que arreinessavam
violentamente, sem piedade e compaixão, fazendo do corpo do herói uma
massa informe e repelente. Cavaram depois uma fossa e enterraram-no. Mas a
terra não aceitou este assassínio e atirou o corpo para a superfície. Os filhos de
Tuirenn enterraram-no uma segunda vez, mas a terra voltou a rejeitá-lo. E eles,
enterrando-o seis vezes de seguida, seis vezes de seguida a terra o rejeitou. Só à
sétima vez, enfim, o corpo ficou encerrado dentro da terra. Então, os filhos de
Tuirenn deixaram a planície de Murthemné e dirigiram-se para a planície

(2) onde estava planeado travar-se a grande batalha contra os Fomore.

Entretanto, as tribos de Dana tinham escolhido o seu campo sobre uma colina que
dominava a planície e de onde se podia vigiar os moviinentos e os gestos dos
Fomore. E todos os dias havia lutas entre eles, nãO Participando nelas nem reis
nem nobres, mas apenas guerreiros muito rijos e temerários. Os Fomore estavam
espantados com o infortúnio que sobre eles se abatera. As suas armas, fossem
dardos ou espadas, deterioraram-se sem motivo aparente, e os seus guerreiros
morriam sem que voltassem no dia seguinte. Em contrapartida, era o contrário o
que acontecia com as gentes das tribos de Dana: as suas armas, quando
porventura sofriam danos, logo apareciam intactas e refeitas no dia seguinte, tão
poderosas e mortíferas como antes. 0 grande artífice que tornava aquilo possível
era o ferreiro Goibilu, que não parava de fabricar espadas, lanças e dardos,
bastando-lhe dar três pancadas para

Em diversas narrativas mitológicas ou épicas, as armas podem falar e fornecer


dados sobre asPcctos que envolveram o seu uso. Não se trata de uma
ingenuidade, sabendo-se que a e ’

minologia moderna aplica o princípio segundo o qual a arma do crime pode


fornecer
2. Pistas e Permitir encontrar o assassino.

Segundo a narrativa de Sort (le,y,fils de Tuirenn.

95
fazer o seu serviço. 0 carpinteiro Luclité forjava hastes também con, três
pancadas, sendo a terceira para as polir e as inserir no encaixe da lança ou do
dardo. Quando as armas eram postas ao lado da forja, ele lançava os anéis nas
hastes, e já não era necessário ajustá-las. Quanto ao artífice do bronze Credné,
também fabricava pregos com apenas três pancadas, sem ter depois necessidade
de os ajustar. E os guerreiros que tinham sido feridos ou mortos em combate
voltavam no dia seguinte para o seu posto, o que se devia a Diancecht que, com o
seu filho Oirmiach e a sua filha Airmed, lançara um feitiço na Fonte da Saúde.
Nesta fonte se banhavam os homens, mortos ou feridos, ficando com a saúde
restabelecida logo que dela saíam. Esta fonte chama-se Lusmag, ou seja, Planície
das Ervas, pois Diancecht a ela deitou urna haste de cada erva que crescia na
Irlanda. Há quem sustente, no entanto, que estas plantas, trezentas e sessenta e
cinco ao todo, são as que cresceram no túmulo de Miach, filho de Dianceclit,
assassinado pelo pai devido a ciúmes, por ter enxertado tão perfeitamente o braço
de prata do rei Nuada. Airmed, a filha de Dianceclit, tinha posto estas ervas no seu
manto e tinha-as lançado na Fonte da Saúde. Mas Dianceclit, sempre movido por
ciúmes, tinha misturado tão bem estas ervas que so ele conhecia a virtude
particular de cada uma.

Compreendendo por fim o que se estava a passar, os Fomore encarregaram um


dos seus de ir ver a disposição das hostes das tribos de Dana e de tentar
descobrir como eles eram capazes de fazer tantos prodígios. Coube a Ruadan,
filho de Bress e de Brig, filha de Dagda, e que, por consequência pertencia mais
ao clã de Dana do que ao dos Fomore, ir espiar o campo adverso. No regresso,
ele contou aos Fomore as proezas que vira serem feitas pelo ferreiro, pelo
carpinteiro, pelo artífice do bronze e pelos médicos reunidos à volta da fonte, e
conflarani-lhe então a missão de ir matar o ferreiro.

Ruadan pediu a Goibniu um dardo, ao artífice do bronze pregos e uma haste ao


carpinteiro, sendo satisfeito o seu pedido. E, logo que se viu na posse do dardo,
Ruadan voltou-se e atingiu Goibniu com a arma, ferindo-o gravemente. Goibniu
arrancou a arina da carne e, voltando-se para Ruadan, furou-o dum lado ao outro,
entregando este último a alma ao pai que estava em frente, no exército dos
Fomore. Brig veio então chorar o filho, dando primeiro um grito e lamentando-se
depois. Crê-se que foi nesta altura que, pela primeira vez, se ouviram choros e
lamentações lia Irlanda. Goibniu, por seu lado, foi mergulhar na Fonte das Ervas e,
reCu-

perando rapidamente, reapossou-se da forja e retomou o trabalho.

nt e os Fomore, encontrava-se um jovem guerreiro chamado Er 1.

octriallach, que era um dos filhos do rei Indech. 0 jovem aconselhou os Fomore a
pegarem numa pedra e a atirarem-na à Fonte das Ervas, situada a norte do lago
e a oeste da planície de Tured. Os Fomore dirigirani-se para ai, um apos outro, e
cada um atirou uma pedra para a fonte que ficou assim cheia, de tal forma que
não era possível mergulhar nela. E desde então, neste lugar, ergue-se um outeiro

96
a que se chama Tumulus de Octriallach.

Quando chegou a hora da grande batalha, os chefes reuniram~se de Utn. lado e


do outro. Os Fomore saíram do seu campo e forrnaram batalhões ínvulneráveis e
indestrutíveis. Fosse um chefe ou um simples guerreiro, todos envergavam uma
armadura, e tinham um capacete na cabeça, urna lança aguçada na mão direita,
uma espada bem afiada à cintura, e um escudo largo e sólido aos ombros. Atacar
os Fomore, naquele dia, na planície de Tured, era como bater com a cabeça
contra uma rocha, por a rnão num ninho de vespas, ou ficar exposto a um fogo
ardente.

Os chefes das tribos de Dana ergueram-se e prepararam-se para o confronto.


Mas, como Lug do Braço Longo deixara a casa real, Nuada do Braço de Prata
disse aos que ali estavam: «Não é conveniente deixarinos o nobre Lug do Braço
Longo, filho de Cian, ir combater correndo assim o risco de ser ferido. Penso que
deveríamos impedi-lo de se envolver na carnifícina.» «Tens razão», concordou
Ogina, «mas todos nós sabemos que ele nos poderá conduzir à vitória. Que nos
poderá acontecer, se ele não estiver connosco?» «Nada receemos quanto a isso»,
respondeu Nuada, «os nossos heróis não têm receio algum quando estão diante
das armas dos inimigos, e se’ que eles saberão resistir à fúria desta raça cruel dos
Fomore, mesmo se Lug não estiver presente Para nos dar o exemplo e nos guiar.
Seria mais conveniente que ele fi~ casse resguardado, pois ele é o nosso
estratega e o nosso mestre cheio de sabedoria.»III «Mas», disseram os nobres
das tribos de Dana, «Lug Iluirica aceitará ficar resguardado.» «Eu vou revelar-vos
um plano», continuou Nuada do Braço de Prata, «antes de começarmos a comba-

Na Primeira versão da «segunda batalha de Mag-Tured», não é dada uma


explicação nem urna justificação para o facto de Lug ficar resguardado. Em
contrapartida, na segunda ver~ são, Nuada propõe que ele fique resguardado por
uma questão de ciúme e por querer reclaInar só para si a vitória final.

97
ter, devemos organizar um grande festim com muita cerveja fresca , deliciosa para
os campeões. Faremos este festim em homenagem a Lug e com ele presente.
Ele, cheio de alegria, beberá em excesso até ficar bêbedo. E nós, logo que o
vejamos inconsciente, atá-lo-emos e amarrá-lo-emos firmemente com correntes
de metal azul aos grandes pilares plantados na terra que sustentam a tenda dos
festins. Desse modo, a batalha decorrerá sem a sua presença, e não correrá risco
de vida.» «0 teu plano é sensato e inteligente», disseram os chefes das tribos de
Dana, «e concordamos em pô-lo em prática.»

Assim fizeram. Preparam a tenda dos festins e reuniram-se à volta de Lug e de


Nuada. Lug bebeu tanta cerveja espumante e curativa que não demorou a ficar
ébrio e alegre. Os assistentes tocaram depois harpa e gaitas de foles, assim como
outros instrumentos, embalando o real guerreiro com o excesso de bebida e com a
suave melodia. Depois, Craftiné pegou na sua harpa e, dedilhando as suas nove
cordas, tocou até o jovem guerreiro ficar em repouso absoluto, profundamente
adormecido. Então, os nobres das tribos de Dana apressaram-se a acorrentar o
herói. Amarraram-no com firmeza aos pilares bem presos à terra, sem que ele
disso se pudesse aperceber. As hostes puseram-se logo em seguida em
andamento, prontas para combaterem pelo rei supremo da Irlanda, Nuada do
Braço de Prata, tendo ficado apenas Craftiné, o harpista, para vigiar Lug do Braço
Longo.

Há muito tempo que decorria o combate, e era grande o tumulto quando Lug
despertou. «0 que se passa, meu amigo Craftlné?», perguntou ele. «Como é que
eu estou amarrado a estes pilares e ouço gritos da batalha que se desenrola fora
da tenda?» «Não sei», respondeu Craffiné. «Com efeito, também ouço os gritos
dos Fomore e os feitiços de Morrigane que sobre eles lança, os sortilégios de que
só ela tem o segredo. E, tal como tu, ouço Goibinu que bate com a forja, mas não
sei o que se passa do lado de fora desta tenda.» «Mentes!», replicou Lug do
Braço Longo. «Tu sabes muito bem que é o barulho de uma batalha o que
ouvimos. Peço-te, Crafliné, que me desamarres os laços, para que eu possa ir à
frente de batalha guiar os nossos homens à vitória.» «Eu não tenho a força nem a
coragem suficientes para desatar os laços, ó Lug», respondeu Craffiné, «pois
foram mãos de heróis e a força de guerreiros que te amarraram aos pilares.»

Então, Lug sacudiu o corpo com uma tal força e energia que derrubou os pesados
pilares que estavam presos ao chão, e em seguida, ape~

nas com Os seus braços robustos, ergueu as correntes pesadas e azuis.


1)epois, sem grandes dificuldades, conseguiu desembaraçar-se delas e precipitou-
se para a porta, começando a correr para o lugar onde se defrontavam os
exércitos. 0 alando provocado pela sua corrida foi tal que não houve combatente
que não ficasse a vê-lo aproximar-se com uma mistura de medo e de espanto. A
sua aparência era tão impressionante que ambos os exércitos deram um passo
atrás. Então, Lug foi juntar-se às tribos de Dana e deteve~se diante de Nuada do
Braço de Prata. «Tu cometeste um erro terrível, ó herói real!», gritou ele.
«Pensavas travar a batalha e libertar a Irlanda sem que eu pudesse ter uma

98
palavra a dizer? Foi uma imprudência terdes iniciado esta batalha sem terdes
tempo para a preparar. Regressai pois ao acampamento e esperai pelo sinal que
eu vos enviar no momento que achar mais apropriado para eliminar a raça dos
Fomore e libertar a terra da Irlanda dos seus opressores.»

Então, os chefes e os guerreiros das tribos de Dana voltaram ao acampamento,


passando-se a noite sem que houvesse mais qualquer escaramuça entre os
guerreiros dos Fomore e os das tribos de Dana. Entretanto, Morrigane, filha de
Ertimas, chegara ao campo dos Fomore e entrara na tenda de Indech, o seu rei
supremo. E ao sair, nas mãos manchadas de sangue, trazia os rins do rei, que
exibiu altivamente aos Fomore para lhes mostrar que já não tinham chefe. E, sem
perda de tempo, entrou no acampamento das tribos de Dana.

Na manhã seguinte, Lug do Braço Longo fez sair os guerreiros para o campo e
encheu~os de coragem. Disse aos homens que deveriam lutar com coragem e
que mais valia morrer do que continuar a viver debaixo da escravatura, tendo de
pagar pesados tributos como até ali tinha acontecido. Depois, diante de todos os
chefes, nobres e guerreiros, Lug fechou um olho e, de pé sobre uma perna,
entoou um canto enquanto circulava por entre os guerreiros das tribos de Dana.”’

Os guerreiros de ambos os lados lançaram um imenso clamor ao partirem para o


combate. Encontraram-se no meio da planície de Tured, liunia luta de corpo a
corpo, e um grande número de homens bravos e ------

I. Trata-se de um canto mágico - e druídico - acompanhado de «eircum-


ambulação», de acordo com um ritual muito antigo. 0 facto de fechar um olho e de
se aguentar apenas sobre um pé lembra também uma espécie de ritual xamânico
de êxtase guerreiro que se encontra no tema indo-europeu do deus zarolho
(Odhin-wotan, que deu um dos seus olhos Para desfrutar da «dupla visão») e do
rei coxo guardião dos segredos do Outro Mundo (o Rei Pescador do ciclo do
Graal).

99
generosos logo caíram no campo de batalha. A carnificina foi enorn,,, dando lugar,
mais tarde, a imensas sepulturas neste lugar. Sentimentos como a vergonha e o
sentido da honra ali se misturaram à pior ferocidade que se possa imaginar.
Correram abundantes rios de sangue na pele branca dos belos guerreiros que,
cortados pelas espadas, lutavam encarniçadamente, aplicando golpes implacáveis
com as suas lanças muito afiladas. 0 fragor da luta foi desmedido, atirando-se os
guerreiros uns contra os outros com um grande alarido de lanças e de espadas.
Por todo o lado ecoava um grande estrondo: o grito dos guerreiros respondia ao
ruído dos escudos que embatiam uns nos outros, as espadas silvavam nos ares
indo ao encontro de carne humana, o estalo das armaduras misturava-se com o
ruído dos dardos. No choque brutal dos corpos os membros superiores
misturavam-se com os inferiores num cenário infernal. Os heróis caíam uns a
seguir aos outros, e o chão estava escorregadio sob os seus pés devido ao
sangue derramado. As cabeças batiam umas nas outras, provocando o estalido
dos ossos do crânio e espalhando os miolos na erva ensanguentada. E o rio
transportava cadáveres que, levados pela corrente para os lagos, aí se
amontoavam.

No meio daquela massa humana, Lug do Braço Longo semeava a morte e a


destruição. Envergava um equipamento maravilhoso, desconhecido, que sem
dúvida provinha do País da Promessa. Tinha uma camisa de linho, bordada com
um fio de ouro sobre pele branca, e a túnica, ampla e confortável, possuía
diversas cores. 0 seu avental muito largo e belo estava revestido de ouro fino e
possuía franjas, colchetes, com bordados em prata, tendo um cinto tão bem
guarnecido que nem a espada mais afiada do mundo o poderia trespassar. Lug
envergava também uma armadura em ouro espesso, com belas maçãs onde
estavam incrustadas pedras preciosas, e para se proteger trazia um largo escudo
de madeira vermelha revestida a ouro. Nas mãos segurava a espada, muito longa
e fina, escura e muito cortante; brandia a lança que tinha ferro envenenado, uma
lança larga, temível, de cinco pontas, da qual ninguém conseguia escapar. Mas,
sobretudo, ele trazia consigo a sua moca usada em batalhas, de ferro muito
sólido, e a sua funda que lhe permitia arremessar poderosas bolas de ferro que
nunca falhavam o alvo.

Era de todo este aparato bélico que se fazia acompanhar o poderoso protector do
país, o valoroso Lug do Braço Longo, sempre pronto a fazer frente a quem quer
que se intrometesse no seu caminho e a inspirar os guerreiros das tribos de Dana
com o seu exemplo de homem forte e

108 C--e-ICI-

poderoso, que nunca vacilava perante os inimigos. Nele se misturavam a fúria do


leão enraivecido, o bramido das vagas do mar no momento das grandes
tempestades, e o ronco do oceano de espumas azuis e verdes quando se abatem
sobre a areia. E os guerreiros de Dana seguiam-no no seu ímpeto feroz, capaz de
fazer estremecer o mundo.

100
Daí a pouco, Lug do Braço Longo encontrou-se diante de Balor, campeão dos
Fomore que era o pai de Ethné, ela própria mãe de Lug. Balor era poderoso e
temível, e nunca ninguém o tinha vencido. Tinha uni olho maléfico, que só se abria
durante os combates. Nessa altura quatro homens eram obrigados a erguer a
pálpebra com um croque bem delicado. Aqueles que fossem atingidos pelo olhar
deste olho não lhe podiam resistir, ficando paralisados pelo medo. 0 sortilégio
deste olho devia-se a um feitiço que Balor recebera quando ainda era jovem. Os
druidas do seu pai tinham posto a ferver um caldeirão onde deitaram ervas
magicas o feitiços, e ele, ao abrir uma janela, recebera no olho o vapor
envenenado que se libertava do caldeirão. A partir de então passou a ser chamado
simplesmente Balor do olho maléfico.

Quando ficou diante de Balor, Lug do Braço Longo pediu-lhe para mandar
suspender a batalha, para que a vida dos Fomore fosse poupada e eles pudessem
voltar sãos e salvos para as suas ilhas rodeadas de nevoeiro. Acrescentou que
não era por medo que falava assim, mas para pôr cobro a uma batalha que já
fizera um grande número de mortos e de feridos. Balor virou-se então para
aqueles que o rodeavam, dizendo: «Companheiros, levantai-me a pálpebra, para
que eu possa ver o palrador que se dirige a mim com tanta impertinência.»

Ergueram-lhe a pálpebra, e Balor começou a contorcer-se à volta de Lug para o


provocar. Um arrepio de medo percorreu o filho de Cian quando viu a sombria
cavidade injectada de sangue negro que, muito aberta, observava as tribos de
Dana. Mas, prudentemente, Lug evitou olhar para o olho de Balor e chamou
Goibniu, pedindo-lhe para lhe trazer uma pedra de funda terrível, arrasadora,
maravilhosa, que conseguisse atingir o olho de Balor e eliminá~lo.

Goibniu imediatamente pediu ajuda aos seus filhos adoptivos que se Puseram em
movimento e o secundaram à volta da forja. Ao pedido do tutor, os filhos
ergueram-se de imediato e puseram mãos à obra, cheios de vontade e de
determinação. Acenderam o fogo da forja e fizeralii a mais terrível e mortífera bala
para funda que alguma vez se viu. Ao sair da forja, a bala era tão pesada e
escaldava tanto que nem con-

101
seguiram pegar nela, sendo necessário o próprio Goibrim para a transportar até à
presença de Lug do Braço Longo.

Ora, naquele momento era grande o desespero de Lug, pois não havia guerreiro
que não tivesse sido ferido pelo olho maléfico de Balor, um olho que soprava
ventos violentos como os de uma tempestade e de onde saíam chuvadas cheias
de veneno. Ainda por cima, o calor que emanava da bala da funda, os fumos, os
vapores que a rodeavam, os feixes de faíscas que a cravejavam, queimando a
pele, impediam quern quer que fosse, mesmo os mais bravos, de se aproximarem
do lugar onde Lug do Braço Longo se encontrava diante do seu avô Balor, o
campeão invencível dos Fomore.

Contudo, Lug, com extrema destreza e rapidez, segurou a bala de ferro ardente e,
tendo~a colocado na funda, fê-la rodar à volta da sua cabeça e arremessou-a com
toda a força na direcção de Balor. Apesar da distância que os separava, o tiro foi
tão certeiro que o projéctil atravessou a pele muito dura de Balor e lhe esvaziou
completamente a órbita do

mpeão olho perverso. Os Fomore, que assistiam à terrível luta do seu ca


contra Lug do Braço Longo, viram o olho maléfico que, depois de ter atravessado
o crânio de Balor, foi cair junto deles, matando logo ali três novenas de homens.
Ertitretanto, aproveitando a confusão Balor fugiu.

Então interveio Morrigane, filha de Ernmas, mostrando aos guerreiros das tribos
de Dana os despojos que arrancara de Indech, rei dos Fomore. Contou-lhes a
proeza que acabara de fazer e encorajou-os a combater os Inimigos até à sua
destruição total. Então, e sem perda de tempo, os heróis das tribos de Dana
lançaram um assalto furioso aos Fomore onde pereceram, além de Elatha, filho de
Indech, diversos campeões vindos das ilhas imersas em nevoeiro.

Logo depois, Bress, filho de Elatha, saiu das fileiras dos Fomore e pôs-se diante
de Lug, com a intenção de vingar o pai. Começarain a combater furiosamente, e
Bress, batendo em Lug com o seu escudo, provocou-lhe três ferimentos, mas Lug
não deixou de responder e corfi o rebordo do seu infligiu~lhe golpes tão violentos
que Bress estava efn grandes apuros quando os Fomore vieram em seu socorro.
Dando três gritos poderosos contra Lug, eles fizeram chover sobre ele um feixe de
lanças e de dardos, mas ele evitou-os e fê-los cair por terra, pisando-os depois até
os transformar em bocados de ferro contorcido. Mas esta manobra de diversão
permitira que Bress escapasse sem ser ferido e depois se confundisse com os
seus, não conseguindo Lug encontrá-lo,

Entretanto, os homens das tribos de Daria investiram de novo contra os Forriore e


não tardaram a encostá~los à parede. Desnorteados, aqueles ficaram
desorganizados e, abandonando a planície de Tured, dirígiram-se para o mar com
a esperança de reembarcar e de fugir o mais depressa possível da ilha da Irlanda.
No meio deles, Balor tentava recompor-se da grave ferÀda que lhe fora inflígida
por Lug do Braço Longo.

102
Lug, entretanto, não desistiu de perseguir ferozmente Balor, massacrando sem dó
nem piedade todos aqueles que, em fuga, se atravessavam a sua frente. Acabou
por apanhar Balorjunto à costa e aí lançou-lhe um grito de desafio. Balor, voltando-
se, tentou defender-se, mas Lug, com 0 seu dardo, perfurou-lhe o peito de lado a
lado. «Lembra-te que sou o teu avô», gritou Balor para Lug, «e que a tua mãe é
Ethné do rosto doce». «Eu também sou filho de Clan, filho de Diancecht, e
pertenço às tribos de Dana!», replicou Lug. «Por favor, não me humilhes!»,
implorou Balor. «As tuas palavras nada valem!», respondeu-lhe Lug. «Já não te
estás a humilhar quando me pedes para te poupar a vída?» «Eu não te peço que
me poupes a vida», replicou Balor, «peço-te apenas que me deixes satisfazer um
desejo.» «0 que desejas, então?» «Pois bem, é o seguinte: se me derrotares e me
matares, quando me cortares a cabeça”’, peço-te que a coloques sobre a tua
propria cabeça. Desse modo, o meu valor guerreiro e as minhas virtudes andarão
contigo(2) , não havendo entre os meus descendentes quem eu estime tanto
como a ti te estimo!» «Segulrel o teu conselho, mas de acordo com a minha
consciência», respondeu Lug.

Cheios de fúria, aproximaram-se um do outro e começaram a lutar com violência,


ferlndo~se mutuamente com as espadas e os dardos que flamejavam diante
deles, até que Balor, sem forças, acabou por ceder, cortando-lhe Lug a cabeça.

A seguir, Lug afastou-se, levando consigo o despojo envolto em cabelos, e foi


depositá-lo no fuste de um pilar de pedra que existia nas

I. No contexto mágico inerente a esta época mitológica, já aqui foi referido, pode
ressuscitar-se s mortos, mas na condição de a coluna vertebral e o cérebro não
estarem afectados nem cortados. isto explica o facto de ser usual cortar a cabeça
do inimigo, mesmo morto, Para impedir que ele ressuscite.

2. Referência ao curioso «ritual das cabeças cortadas», abundantemente


testemunhado pela arqueologia galo-romana, e de que dão testemunho
numerosos autores da Antiguidade clássica: trata-se de se ficar de posse das
qualidades de um herói, inimigo ou amigo. 0 tema encontra-se em diversas
narrativas irlandesas, em particular nas do ciclo do Ulster,

103
proximidades. Mas a cabeça esteve aí Pouco tempo, pois estava tão quente que
fez com que a pedra rachasse e se dividisse em quatro

tos antes de cair por terra. Então, Lug colocou~a num ramo fragmen ae
voltou Par

ramente», disse ele, «o conselho qa Perto do corpo de Balor. «Sincebifurcado de


aveleir ue me deste não era muito amigável. Se eu o tivesse seguido, a
minha cabeça teria sofrido ainda mais do que o pilar de pedra.» E, sem perda de
tempo, ele voltou a partir, levando consigo a cabeça de Balor.

Entre os Fomore, que iam sendo massacrados, apenas subsistiam os que


adquiriram a forma de pedras e de pilares na planície, mas poetas, ixou de
avançar em sua direcção e de os ameaçar, mesmo tenLug não dei
ão a forma humana e Lug do eles mudado de aparência. Eles tOmarani ”t
o exacto de prometeu que lhes faria um favor se lhe revelassem o númer

«Eu não sei o número de escravos e de plebeus perdas entre os Fomorc- mas se,
que entre os senhores, nobres campeões, que caíram em combate,
cinco ”I e Sesos filhos de reis e os grandes reis dos Fomore, morreram
mpanhavam Os senta e três. Quanto aos plebeus e aos escravos que aco

c, nobres e os chefes, pois todos os chefes traziam as suas gentes, só POSSO


revelar o número daqueles que vi tombarem com Os meus próprios olhos,

. Quanto aos outros, aqueles que ou seja, três mil seiscentos e vinte e sete

ter visto só poderão ser enumerados quando se souber pereceram sem Os


céu os grãos de areia na praia, as gotas o número de estrelas que há no

de orvalho nos campos, ou os relâmpagos na tempestade.»

Quando Lug do Braço Longo deixou os poetas e voltou para perto das tribos de
Dana, viu num relance Bress, filho de Elatha, atentaresconder-se atrás de um
rochedo. Avanço” logo para ele e ameaçou-O

1» gritou. «Foi por tua culpa que sofrecom a espada. «Maldito sejas’ , z
travar esta saflmos a opressão dos Fomore e que fomos obrigados a
igrenta batalha!» «É melhor que não me mates e que me poupes a v da!»,
exclamou Bress. «A sérog», respondeu Lug. «0 que se ganharia

ida?» «Se a vida me for poupada, eu farei com que as em poupar-te a v


undância». «Vou consultaT vacas da Irlanda tenham sempre leite em ab

os meus sábios para saber qual é a opinião deles», respondeu Lug. 01


Lug foi à presença de Maffiné para saber a sua opinião e repeti -lhe o que ouvira
da boca de Bress a respeito das vacas da Irlanda. X1,’

104
o», u Lug. «Nã

vemos poupar-lhe a vida por essc MOtiv02», Pergunto a é, «Pois


um poder sobre as vacas d respondeu MailIn , ele não tem nenh
dar.» Lug vOlIrlanda nem sobre a quantidade de leite que elas possam

tou depois ao encontro de Bress, e dIsse-lhe: «Não há motivo para te poupar a


vida, pois tu não tens nenhum poder sobre as vacas e sobre a sua produtividade.»
Bress lançou um feitiÇO e Lug perguntou-lhe critão: «Há algum outro motivo que
Possa justificar que a tua vida seja poupada?» «Sim, evidentemente», disse
Bress. «Se me pouparem a vida, haverá sempre ria Irlanda uma colheita por
estação.»

Lug foi de novo consultar MailIné. «Devemos poupar a vida a Bress», perguntou
ele, «se assegurar aos homens da Irlanda uma colheíta por estação?» «Não»,
respondeu Maffiné, «pois a realidade é bem diferente: nós temos a Primavera para
lavrar e semear, o início do Verão para que o trigo se fortaleça e amadureça, o
começo do Outono para a colheita e o Inverno para comer. Não faz nenhum
sentido essa ideia de uma colheita por estação.»

Lug foi de novo falar corri Bress, «Tu não serás poupado», disse-lhe ele, «pois já
temos o que nos propões.» «Isso não é bem assím», retorquiu Bress, «e se me
deixardes viver, eu diT-vos-ei como se lavra, semeia e faz a colheita, que são três
coisas que vos ignorais.» «Se tu mas revelares», disse Lug, «poupo-te a vida».
«Pois bem», disse Bress,
1

«E preciso lavrar à terça-feira, lançar a semente à terra à terça-feira e fazer a


colheita à terça~feira.»

E por causa desta artimanha é que Bress, filho de Elatha, salvou a vida a seguir à
batalha da planície de Tured.

A seguir, Lug foi juntar-se a Dagda e a Ogiria, o homem forte, que encontrara a
espada do rei dos Fomore. Naquela altura ele tirava-a da baínha e limpava-a.
Então, a espada contou o que vira e testemunhara Pois, naquele tempo, as
espadas tinham o costume, assim que eram desembaiDhadas, de revelar as
proezas que tinham feito ou que tinham testemunhado. E assim que se explica
que haja hoje sortilégios nas espadas. É preciso ter em consideração que naquele
tempo os demónios falavam por meio das armas, sendo essa a razão por que era
frequente os homens adorarem as armas.

Lug, Dagda e Ogrua ergueram pilares aos heróis que tinham caído en1 conibate e
gravaram neles inscrições. Depois Morrigane, a maga, ’veio juntar-se a eles. «0
que vês?», perguntou-lhe Dagda. «Neste moMento veio a vitória e o triunfo»,
respondeu ela, «mas também vejo que

105
0 teMPO futuro traz muitas desgraças. 0 mundo deixará de me interessar, Pois os
Verões não terão flores, as vacas não darão leite, as mulheresnãO terão pudor, os
homens não terão coragem, as árvores não darão

106
frutos e os mares não terão peixes. Nada será como dantes: os velhos prestarão
juramentos falsos, os homens atraiçoar-se-ão uns aos outros, os filhos roubarão
os pais... É esse o mundo de amanhã, mas hoje as tribos de Dana podem cantar
vitória.»

E Morrigane, filha de Errimas, foi por toda a Irlanda para anunciar que as tribos de
Dana tinham vencido os Fomore das ilhas do nevoeiro na grande batalha da
planície de Tured.1’1

1. Segundo a narrativa A Segunda Batalha de Mag-Tured, primeira versão, com


pormenores retirados da segunda versão, nomeadamente o episódio em que Lug
se esconde e aquelc em que Lug e Balor se confrontam.

Capítu1oV

epois da vitória das tribos de Dana sobre os Fomore na planície que passou a
chamar-se Mag-Tured, Lug do Braço Longo encontrou dois irmãos do seu pai, Cu
e Ceithenn, ambos filhos de Dianceclit, e perguntou-lhes se tinham visto Cian na
batalha. «Não, não o vimos», responderam eles. «Fornos no seu encalço
seguindo o rasto dos Fomore que tinham vindo a Tara exigir o pagamento do
tributo, mas não chegámos a encontrá-lo, pois rumámos a sul ao passo que ele se
dirigiu para norte. Por isso, não voltámos a vê-lo.» «Os Fomore tê-lo-ão matado?»,
perguntou Lug. «Pensamos que não», responderam Cu e Ceithenn, «Pois os
Fomore dirigiram-se para sul, e não é provável que se tenham encontrado.»
«Vamos procurá-lo», disse Lug do Braço Longo.

Cavalgaram os três até ao lugar onde os seus caminhos devem ter divergido e,
apontando bem para norte, acabaram por se encontrar na planície de Murthemné.
«Estou convencido de que o meu pai já não está vivo», disse Lug, «e juro que
nunca mais como e bebo nada enquanto não souber de que modo ele morreu.»

Ora, estando eles a chegar a um outeiro que se erguia no meio da Planície, a terra
pÔs-se a falar. Disse ela a Lug que naquele mesmo lugar, Cian, apanhado pelos
filhos de Tuirenn, tinha adquirido a aparência de um porco. Disse também que ele
tinha morrIdo às mãos deles depois de ter retomado a forma natural e que se
encontrava enterrado debaixo do outeiro.

Então, Lug e os dois irmãos de Cian puseram-se a cavar debaixo do outeiro.


Descobriram o corpo e viram os inúmeros ferimentos que lhe ti-

107
nham provocado a morte. «Ele foi morto de forma desleal», disse Lug. «Esses
ferimentos devem-se a pedras arremessadas pelos filhos de Tuiremi, que mataram
o meu querido pai de forma covarde e aborninável.»

Curvando-se, Lug beijou duas vezes o corpo do pai, depois endireitou-se com um
ar cheio de nobreza, e disse aos companheiros: «Tenho o coração destroçado
pelo que aconteceu ao meu pai. Custa-me muito não o ter podido ajudar quando
estava refém dos filhos de Tuirenn, mas juro que tudo farei para que estes
malditos assassinos paguem muito caro a perversidade que cometeram contra um
dos seus, um herói das tribos de Dana.»

Lug entoou então um canto fúnebre sobre o corpo do pai

e depois, escavando a terra com as unhas, recolocou aquele debaixo daquele


tumulus. Em seguida erigliu um pilar no qual foi gravada uma inscrição que tinha o
nome de Cian em ogham e que explicava o modo traiçoeiro como ele fora morto
pelos filhos de Tuirenn. Por fim, continuou Lug: «Juro que o crime abominável aqui
cometido não ficará impune, embora ainda tenhamos de atravessar um longo
período de grande infelicidade. Por muito tempo a Irlanda continuará a ser
dilacerada por lutas fratricidas, não havendo paz para ninguém. No que me toca,
sinto-me profundamente consternado pela morte que os filhos de Tuirenn deram a
meu pai, o valoroso filho de Diaricech1.»

E logo em seguida Lug despediu-se dos dois irmãos de Cian: «Ide c

juntar-vos àqueles que rejubilarri com a vitória das tribos de Dana, mas peço-vos
que não reveleís a ninguém o que aqui se passou enquanto eu próprio o não
fizer.»

Alguns dias mais tarde, Nuada do Braço de Prata, rei supremo da Irlanda,
convocou o conjunto das tribos de Dana para se reunirem na fortaleza de Tara.
Quando chegou, Lug do Braço Longo sentou-se Z2,

cheio de nobreza e com uma auréola de honra ao pé de Nuada, cri’ frente de


todos os chefes e de todos os nobres que ali se encontravam. Olhando em volta,
viu os irmãos de Tuireim. Os três eram famosos pelo seu valor e beleza, pela sua
agilidade e destreza. Todos eles tinham ajudado à vitória sobre os Fomore, e eram
muito considerados por todos. Lug a certa altura pediu a palavra, que lhe foi
concedida, concentrando-se nele todas as atenções.

«Que assunto quereis tratar, ó filhos de Dana?», perguntou ele, «Escolhe tu o


assunto», responderam eles. «Pois bem», começou LU9, «vou colocar-vos uma
questão: que vingança cada um de vós gostaria

que fosse aplicada sobre quem fosse culpado de ter matado o vosso pai?»
Pronunciadas estas palavras fez-se um silêncio e foi o rei da Irlan-

108
da o prímeiro a falar: «A alguém que tivesse matado o meu pai eu não infligiria
uma morte de um único dia, mas uma pena muito mais dura ortar. Se tivesse
poder para isso, todos os dias eu arrancar-lhe-ia de sup ir a meus
pes.»

ni rnernbro até o ver ca 1

Todos os nobres das tribos de Dana foram da mesma opinião, tanto os filhos de
Tuirenn como os outros. «Constato», disse Lug, «que todos são da mesma
opinião, inclusive aqueles que mataram o meu pai. Portanto exijo que me paguem
um desagravo pelo sucedido, já que todos os homens das tribos de Dana
pertencem ao mesmo clã e descendem do mesmo antepassado. Se eles me
derem uma satisfação, não violarei o direito que obriga o rei da Irlanda aproteger
todos os seus hóspedes. Mas não respondo pelos meus actos se eles recusarem
dar uma satisfação pelo assassínio que cometeram, e nesse caso não permitirei
que abandonem a casa real de Tara sem se terem havido comigo.» «Se tivesse
sido eu a matar o teu pai», disse o rei da Irlanda, «vería com muito bons olhos que
.a a pacyar-te.»

aceításseis o desagravo que eu me comprometeri Z=1

Os filhos de Tuirenn puseram-se então de lado a falar entre si. «E a nós que se
refere Lug», disseram luchar e lucharba. «Pelos vistos, ele procurou saber do pai
o veio a saber como cían foi morto na planície de Murthemné. «Reccio bem»,
respondeu Brian, «que ele esteja à

ue nós façamos Lima confissão na presença de todos os nobres espera q


- eitará da das tribos de Dana, e, uma vez que isso aconteça, não ac

nossa parte o desagravo.» «Se ele pedir uma confissão», disseram dois deles,
«nós fá-la~ernos, mas pensamos que te cabe a ti fazê~la em voz alta, pois és o
mais velho.»

Então, Brian, filho de Tuirenn, ergueu-se e, diante de todos os nobres e chefes das
tribos de Daria, interpelou Lug nestes termos: «E a nós que tu acusas, ó Lug, filho
de Cian. Quando falas de assassínio e de desagravo, é a nós que te referes, pois
pensas que nós OS três atacámos o filho de Diancccht. Não confessaremos nada,
mas também não fugiremos às responsabilidades e estamos prontos a
compensar-te pela morte de Cian como se nós próprios tivéssemos cometido o
crime.» «Assim sendo», disse Lug, «vou então dizer-vos a compensação que me
devereis dar» «Diz-nos lá qual é essa compensação, ó LUg.» «E a seguinte»,
Prosseguiu Lug, «Peço-vos três maçãs, uma pele de porco, uma lança, dois
cavalos e um carro, sete porcos, um pequeno cão, um espeto de

109
assar e três brados num monte. É esse o pagamento que vos exijo pela morte do
meu pai. Se ele vos parece excessivo, torná-lo-ei mais leve, mas se vos parece ao
vosso alcance, parti de imediato em sua demanda.» «Na verdade», respondeu
Brian, filho de Tuirenn, «nós não o achamos muito pesado, o que me faz pensar
que poderás estar a preparar uma traição contra nós. Ele seria mais pesado, com
efeito, se exigisse de nós trezentas mil maças, a mesma quantidade de peles de
porco, cem lanças, cem cavalos e cem carros, cem suínos, cem cães, cem
espetos de assar, e cem brados num monte.» «Nesse caso», continuou Lug,
«mantenho o preço que tendes a pagar. Dar-vos-ei a garantia dos chefes das
tribos de Dana, nada mais vos pedirei e não vos trairei. Exijo-vos, no entanto, que
me dêem a mesma garantia.»

Os três filhos de Tuirenn juraram então que pagariam o que lhes era pedido, e
deram como garantia Nuada, rei supremo da Irlanda, assim como Bobdh Derg,
filho de Dagda, e alguns dos chefes que ali se encontravam. «Sendo assim»,
disse Lug, «e tendo eu as vossas garantias, dar-vos-ei agora a conhecer o que me
deveis trazer.» «Nós íamos interrogar-te a esse respeito», disseram os filhos de
Tuirenn. «Pois então ouvi com atenção», disse Lug, «as três maçãs que vos peço
são as três maçãs do Jardim das Hespérides, que se encontra a leste do mundo.
Só essas maçãs me poderão satisfazer, pois são as melhores e as mais belas de
toda a terra. Têm a cor do ouro bem polido, e a cabeça de uma criança de um mês
não é maior do que cada uma delas. Sabem a mel quando as comemos, e não
deixam amargor nem acidez na boca. Além disso, não diminuem de tamanho
quando as comemos, mesmo que o façamos todos os dias. Aquele que conseguir
colher uma destas maçãs terá conseguido cometer a maior proeza do mundo, pois
a maçã pertencer-lhe-á para sempre. E eu sei que, segundo uma profecia desse
longínquo país, serão três jovens corajosos e arrojados idos do oeste da Europa
que delas se apoderarão pela força.»

«A pele de porco que vos peço», continuou Lug, «é a pele de porco que pertence
a Tuis, rei da Grécia. Esta pele é curativa e cura todos os feridos e todos os
doentes que por ela sejam revestidos, por muito grave que seja o seu estado, e
desde que tenham ainda um sopro de vida. Este porco tinha uma excepcional
virtude: se o fizessem atravessar um rio, a água deste transformava-se em vinho
durante nove dias. Qualquer ferida que ela tocasse cicatrizava, mas, a crer nos
druidas da Grécia, só a sua pele, e não ele, possuía esta virtude. Morto o porco e
esfolada a

pele, esta foi conservada desde então. Estou certo de que não vos será fácil
apoderar-vos dela, pois está vigiada e muito bem guardada. E sabeis que lança
vos exijo?» «Não o sabemos», responderam os filhos de Tuirenn. «Tu é que tens
de no-lo dizer.» «Pois bem», prosseguiu Lug, «é a lança envenenada de Pisear,
rei dos Persas. Trata-se de uma arma mágica que é capaz de cometer as proezas
mais extraordinárias do inundo. E de tal modo escaldante que, em tempo de paz,
a sua cabeça fica continuamente mergulhada num caldeirão de água fria. A não
ser assim, a povoação onde se encontra arderia e ficaria destruída. Com efeito,
ser-vos-á muito difícil apoderar-vos dela. Agora, sabeis quais são os dois cavalos

110
e o carro que desejo receber de vós?»

«Não o sabemos, pois cabe-te a ti dizer-nos». «Pois bem, são os dois cavalos
maravilhosos de Cobar, o rei da Sicilia. Tanto a terra como o mar lhes servem para
cavalgar, e é frequente vê-los a galopar sobre as ondas. Não há cavalos mais
rápidos e resistentes do que eles. Também não há nenhum carro tão sólido e tão
belo como aquele a que eles andam atrelados. Além disso, quanto mais se matam
estes cavalos, mais eles renascem, e cada vez mais belos e mais sãos do que
antes, desde que, pelos menos, se juntem todos os seus ossos. É minha
convicção que não vos será fácil obtê-los, pois estão guardados com todo o
cuidado nas cavalariças do rei.

«Agora», continuou Lug, «Sabeis quais são os sete porcos que vos Peço? São os
porcos que estão na posse de Easal, rei das Colunas de Ouro. Eles têm a
particularidade única de, ao serem mortos de noite, serem encontrados vivos de
manhã. E quem comer um pedaço deles, nunca fica doente nem com má saúde.»

«0 pequeno cão que vos peço chama-se Failinis, e pertence ao rei loraidh. Tem a
particularidade de todos os animais que o observam não Poderem continuar de pé
e terem de se deitar no chão. Tal como aos Porcos de Easal, ser-vos-á muito difícil
ficar de posse dele. 0 espeto de assar que vos peço é um dos que servem às
mulheres de Fianchair para preparar a comida. Mas é quase impossível conseguir
ficar em poder dele, tal é o cuidado que as mulheres tem para não o perderem.
Quanto aos três brados no monte que vos peço, são os brados no monte de
Miodchain, nos países do norte. Ora, tanto Miodcham como as suas ’danças
proíbem quem quer que seja de dar brados naquele monte. Foi na casa dele que o
meu pai fez a sua aprendizagem, e se eu tiver a fraqueza de vos perdoar o vosso
crime, é certo que Miodchain não vos perdoa-

111
rã. E essa pois a compensação que vos exijo pela morte de meu pai.» Os filhos de
Tuirenn permaneceram em silêncio, enchendo-se de an-

gústia. Abandonaram a assembleia e foram falar com o pai para lhe contar o que
se passara, e para o pôr a par da compensação exigida por Lug do Braço Longo
pelo assassínio de Cian, filho de Diancecht. «Trazeis-Me más notícias», disse
Tuirenn. «lreis passar por grande perigos se partirdes em busca do que vos pede
Lug. Mas não tendes outra alternativa, e e preciso reconhecer que ele tem razão,
pois haveis cometido o pior crime que se pode cometer. Mas previno-vos: vós não
conseguireIs alcançar tudo isso sem os poderes maravilhosos de Mananann ou do
próprio Lug. Aconselho-vos pois o seguinte: pedi emprestado o cavalo de
Mananann, que actualmente está ao serviço de Lug. Lug não vo-lo poderá
emprestar e recusará o vosso pedido, pois o cavalo não lhe pertence. Então pedir-
lhe-eis a barca que Mananann também lhe emprestou, e como ele não poderá
recusar um segundo pedido de empréstimo, terá de vo-la em~ prestar. E ficai a
saber que a barca vos será mais útil do que o cavalo.»

Os filhos de Tuirenn foram então encontrar-se com Lug do Braço Longo,


saudaram-no e disseram que não poderiam compensá-lo se ele próprio os não
ajudasse. E suplicaram-lhe então que lhes emprestasse o cavalo de Mananann.

«É impossível», respondeu ele, «o cavalo não me pertence.» «Então», disse


Brian, fillho de Tuircim, «empresta-nos a barca de Mananann.» «Desta vez não
posso recusar o vosso pedido. Levem-na», disse Lug. «E onde está ela?» «Em
Brug-na-Boylle.»(’I

Quando ficaram de posse da barca, os filhos de Tuirenn foram despedir-se do pai,


que ficou triste e desolado ao vê-los partir, pois sabia que a empresa estava
condenada ao fracasso, mesmo com a barca de Mananann. Etimé, filha de
Tuirenn, acompanhou os irmãos ao porto e, aí, entoou para eles um canto
lamuriento em que deplorava que os filhos de Tuirenn tivessem cometido um tal
crime contra o pai de Lug e por isso fossem condenados a errar pelo mundo em
busca de coisas impossíveis de obter.

Os três irmãos embarcaram e alcançaram o alto mar. «Que rota vamos tomar?»,
perguntaram os dois irmãos mais novos. «VaMOs procura das maçãs»,
respondeu Brian, «pois foi o primeiro pedido que nos foi feito.»

1. 0 tumulus megalítico de Newgraiige, ao cimo do vale de Boyne, no condado de


meath.

Apontaram então a barca de Mananann na direcção do Jardim das Ilespérides, e a


barca seguiu a sua rota na crista das ondas, cruzando o oceano. Como cortou
caminho, daí a pouco chegou a um porto, na costa das Hespérides.

Assim que chegaram, Brian perguntou aos irmãos: «Como é que nos havernos de
aproximar do Jardim das Hespérides? Suponho que há uns campeões e uns

112
guerreiros annados que não estarão na disposição de nos deixarem lá entrar,
estando acompanhados do próprio rei. Não nos devemos esquecer, apesar disso,
do nosso próprio valor, e de que os venceremos em caso de termos de lutar contra
eles, embora com grandes custos e correndo o risco de perdermos a vida.»
Proponho-vos pois que assaltemos este jardim sob a forma de falcões fortes e
rápidos. Os guardas só dispõem de armas ligeiras e, quando as usarem contra
nós só teremos de usar da máxima prudência e de estar atentos. E, assim que os
nossos inimigos estiverem desarmados, lançar-nos-emos sobre as macieiras,
apoderando-se 1cada um de Dós de uma maçã. Quanto a mim, se puder,
apoderar-me-ei de duas, trazendo uma nas garras e a outra no bico.»

luchar e lucharba aprovaram este plano. Então, Brian bateu neles e em si mesmo
com uma varinha mágica e diruídica e, tomando os três a forma de belos
falcões rápidos e possantes, voaram ao encontro do Jardim. Os guardas viram-
nos e, depois de terem gritado, mas em vão, para tentarem detê-los, dispararam
sobre eles uma chuvada espessa de armas que tinham veneno na ponta. Os filhos
de Tuirenn estavam tão atentos que evitaram todas as setas e, seguindo o plano
de Brian, foi-lhes fácil lançarem-se sobre as macieiras depois de os guardas terem
gasto todas as suas munições. Logo depois levantaram voo, sãos e salvos, e
dirigiram-se para a barca de Mananann.

A notícia daquela grande proeza logo se espalhou pela cidade e por todo o país.
Ora, o rei das Hespérides tinha três filhas extremamente conhecedoras e hábeis
nas artes mágicas. Adquirindo a forma de três grifOs, elas perseguiram os falcões
até ao mar, lançando-lhes raios de fogo llluito ardentes. «Estamos numa situação
multo delicada», disse Brian, «e se não descobrirmos um truque, seremos
calcinados - mas já sei o que temos que fazer.»

Batendo com a varinha mágica e druídica nos irmãos e nele Próprio


metamorfosearam~se imediatamente em cisnes brancos que IlUM salto chegaram
ao mar, de tal forma que os grifos, sobrevoando-os, nem repararam neles. Então,
os filhos de Tuir, im subiram para a

113
barca e retomaram o aspecto humano.

Depois disso, decidiram partir para a Grécia para se apoderarem, a bem ou pela
força, da pele de porco. A barca de Mananann conduziu-os velozmente até à
vizinhança do palácio real. «Que forma tOmaremos quando nos apresentarmos na
corte do rei?», perguntaram os irmãos mais novos ao mais velho. «Na nossa
própria forma», respondeu Brian, «mas far-nos-emos passar por poetas e artistas
da Irlanda, para que sejamos recebidos com todas as honrarias.»

Os três irmãos pentearam os cabelos à maneira de poetas e foram bater à grande


porta da cidade. 0 porteiro perguntou-lhes quem eram e o que queriam. «Sornos
artistas da Irlanda», responderam eles, «e vimos a esta cidade recitar um poema
ao rei.»

0 porteiro foi avisar o rei. «Eles que entrem», respondeu o soberano, «pois e para
nos uma honra receber artistas estrangeiros.»

0 rei deu ordens, também, para que a corte fosse preparada com toda a
magnificência, para que, ao regressarem ao seu pais, os artistas da Irlanda
pudessem transmitir a sua admiração pelos méritos e a opulência do rei da Grécia
e dos nobres que o rodeavam. Os filhos de Tuirenn foram então conduzidos até
um grande salão decorado com belas tapeçarias bordadas. Serviram-lhes bebidas
e estavam maravilhados, pois jamais tinham visto uma casa tão esplendorosa e
nunca tinham sidos recebidos com tanta pompa em nenhum outro lugar.

Pouco depois, os poetas do rei ergueram-se para declamarem os seus poemas


aos forasteiros. Quando acabaram, Brian pediu aos irmãos para fazerem o
mesmo, mas estes recusaram com o pretexto de que só sabiam combater. Por
esse motivo, Brian avançou sozinho ficando diante do rei e da assembleia. Fez-se
um grande silêncio em sua honra, e ele cantou um poema que terminava com este
verso:

«A pele de um porco, riqueza sem igual, é a riqueza que eu peço. »

«0 teu poema é muito bom», disse-lhe então o rei, «mas o que significa esta
alusão à pele de porco? Eu elogiar~te-ia o poema de boa vofltade se não fosse
essa alusão, pois é uma grande impertinência pedir-rile essa pele. Fica a saber
que, por nada deste mundo, a dana aos poetas e aos artistas, ou sequer aos
nobres e aos príncipes, a não ser que fosse obrigado a isso. Mas, para te
recompensar, fica certo de que consinto em

te oferecer uma quantidade de ouro que vale três vezes a pele de porco bein
esticada. «Que sejas recompensado pela tua generosidade, ó rei», respondeu
Brian. «Mas previno-te: sou de tal modo desconfiado que só aceitarei o ouro que
me ofereces se ele for pesado e convenientemente niedido à minha frente, pois
não acredito em ninguém.»

114
0 rei deu ordens aos seus servos e aos seus intendentes para que levassem Brian
e os irmãos à casa do tesouro onde seria pesado e medido o ouro. Mas, quando
estavam a chegar àquela casa, Brian apoderou-se da pele com um movimento
rápido da mão esquerda e dobrou-a cuidadosamente com a intenção de a levar;
em seguida, desembainhando a espada, golpeou com tal violência o homem que o
acompanhava, que o rachou ao meio. Depois, apertando a pele contra si, abriu
carm~ nho por entre os criados e os intendentes, vindo juntar-se a ele os seus
dois irmãos. 0 rei e os seus guerreiros precipitaram-se sobre eles, mas, após um
violento e sangrento combate, o rei morreu às mãos do proprio Brian, enquanto os
dois irmãos massacraram vários adversários à sua volta, de tal modo que ninguém
conseguiu evitar que eles saíssem da cidade e regressassem à barca de
Mananann.

Puseram-se no alto mar em pouco tempo e só pararam de navegar quando


chegaram às costas da Pérsia. Aí, Brian e os seus irmãos voltaram a adquirir a
aparência de poetas vindos da Irlanda, e foi nessa qualidade que eles foram
apresentados na casa do rei. Este recebeu-os muito bem e pediu-lhes para
cantarem. Brian improvisou então um canto em que se fazia referência, de
propósito, à lança de Pisear, rei dos Persas.

«0 teu poema é muito bom», disse o rei, quando Brian acabou de cantar, «mas
não percebo porque é que nele mencionas a lança, ó poeta da Irlanda.» «Eu
explico-te, nesse caso», respondeu Brian, «é porque quero como recompensa a
lança maravilhosa que está em Vosso poder.» «É muito pouco delicado, o teu
pedido», disse o rei. «E tens muita sorte por eu não te matar imediatamente diante
dos nobres e dos príncipes deste país! »

Ouvindo estas palavras, Brian lembrou-se que tinha apanhado duas maçãs no
Jardim das Hespérides. Pegou numa e arremessou-a contra o rei com tanta
violência que ela lhe atravessou o cérebro. Depois, desembainhou a espada e
começou a massacrar todos aqueles que estavam ao seu alcance, fazendo os
seus irmãos o mesmo. Descobriram então a lança, com uma ponta mergulhada no
caldeirão Para evitar que a casa ficasse em brasa. Apoderaram-se dela, assim

115
como do caldeirão, e regressaram à pressa para a barca.

Depois voltaram para o alto mar e não tardaram a avistar em frente a fortaleza do
rei da Sicília. Brian disse aos irmãos que se apresentariam sob a forma de três
mercenários da Irlanda que vinham com a intenção de se pÔr ao serviço do rei.
Assim, sem terem necessidade de combater, saberiam, ao fim de algum tempo,
em que lugar estavam guardados os cavalos e o carro que costumavam ser
usados nos combates. E, entrementes, foram-se aproximando da elevação de
terra atrás da qual se erguia a vila.

0 rei, os príncipes e os nobres da sua casa formaram um cortejo muito bem


organizado para irem ao seu encontro. Os filhos de Tuirenn prestaram
homenagem ao rei da Sicília, e este perguntou-lhes quem eram, de onde vinham e
o que pretendiam. «Nós somos mercenários da Irlanda», respondeu Brian, «e
ganhamos a vida ao serviço de todos os reis da teiTa.» «Quereis ficar ao meu
serviço?», perguntou o rei. «Sim, é esse o nosso desejo.»

Fizeram um contrato e firmaram uma aliança com o rei da Sicília. Mas, ao fim de
quinze dias e um mês na fortaleza, ainda não tinham conseguido obter nenhuma
informação sobre os dois cavalos e o carro. «Este contrato de nada nos está a
servir, pois não fizemos nenhuns avanços até agora», disse Brian. «Que pensas
então que devemos fazer?», perguntaram-lhe os irmãos. «Ouçam bem o que vos
digo», disse Brian. «Peguemos nas nossas armas e no nosso traje de viagem, e
vamos comunicar ao rei que deixaremos de estar ao seu serviço se não nos
mostrar a sua parelha de cavalos.»

Os irmãos aprovaram, e os três, depois de se arrumarem, apresentaram-se


perante o rei da Sicília. Este perguntou-lhes por que motivo estavam em traje de
viagem. «A razão é simples, ó rei», disse Brian. «Nós somos mercenários da
Irlanda, mas não nos basta servir os reis da terra quando há guerras e conflitos.
Também somos seus confidentes e seus conselheiros, especialmente quando eles
possuem tesouros preciosos. Ora, desde que aqui estamos, temos sido tratados
de uma forma bem displicente. Sabemos que tu tens os dois melhores cavalos e o
melhor carro do mundo, mas evitaste falar-nos deles e mostrar-no-los. É esse o
motivo que nos faz querer partlr.» «Fazeis mal em querer partir»l, respondeu o rei,
«pois, de todos os mercenários que tenho ao meu serviço, sois vós quem mais eu
estimo. FIcai a saber que., se logo no primeiro dia mo tivésseis pedido, eu ter-vos-
la mostra-

do os cavalos e o carro. Mas ja que reprovais a minha atitude, vou imedíatamente


satisfazer o vosso pedido.»

0 rei ordenou aos seus criados que fossem buscar os dois cavalos e os
atrelassem ao carro, e a ordem foi cumprida num abrir e fechar de olhos. Briari
ficou então a ver os cavalos com toda a atenção, em seguida deteve o carro,
agarrou o cocheiro e, arremessando-o contra um rochedo próximo, esmagou-lhe o
crânio. Depois, saltando ele proprio para dentro do carro, aplicou um golpe tão

116
violento ao rei que o deixou prostrado e inanimado. Seguiu-se uma luta rija e
impiedosa que envolveu os guardas do rei, as gentes da cidade e os tres irmãos,
que deixaram atrás de si um banho de sangue antes de voltarem para a barca de
Mananann com os dois cavalos e o carro.

Dali se deslocaram velozmente para o país de Easal com a intenção de se


apoderarem dos porcos maravilhosos que lhes era exigido por Lug do Braço
Longo. Ora, o rei Easal estava ao par das proezas feitas pelos filhos de Tuirenn, e
também ele veio em pessoa recebê-los quando se aproximaram da sua fortaleza.
«Porque vindes a este país?», perguntou-lhes ele. «Por causa de uma Injustiça
que cometernos», respondeu Brian, «e porque temos de pagar um desagravo,
faltando-nos agora levar os teus porcos. Se no-los deres de livre vontade,
partiremos pacificamente e muito gratos pela grandeza da tua acção. Mas se te
recusares a no-los dares, não deixaremos por Isso de os levar, custe o que Custar,
após lutas sangrentas em que muitos dos teus perderão a vida.» «Seria uma
péssima ideia entrarmos em luta por causa dos porcos», disse o rei. «Vou-me
aconselhar.»

0 rei foi então consultar os sábios e os adivinhos. Todos foram da Opinião de que
era preferível dar os porcos aos filhos de Tuirenn do que resistir aos seus ímpetos
furiosos, vindo dizer-lhes o rei que permitiria que eles levassem os seus porcos.
Os filhos de Tuirenn ficaram encantados, pois era a primeira vez que lhes era
dada uma parte da compensaçao sem que tivessem de lutar por ela, expondo-se
assim a riscos. 0 rei levou-os à noite a sua propria residência, fazendo com que
eles fossem tratados com toda a deferência e fossem satisfeitos todos seus dese’
1

Jos, providenciando para eles todas as comodidades e dando-lhes de comer e de


beber.

Na manhã seguinte, os porcos foram levados a sua presença, e disse o rei: «Aqui
está o que procuráveis com tanto empenho. A partir de agora estes Porcos são
vossos. Que caminho ides agora tomar? Que mais deveis

117
adquirir para completardes as cláusulas do desagravo?» «Falta-nos ir ao país de
loraidh», respondeu Brian, «e trazer de lá o cão que pertence ao rei. É um cão
diante do qual se deitam todos os animais selvagens.» «Posso pedir-vos um
favor?», perguntou o rei Easal. «Certamente, e nós satisfazê-lo-emos de boa
vontade, Pois estamos-te muito reconhecidos,»
1 rmnh

«Pois bem», disse o rei Easal. «Acontece que a i a filha desposou 0 rei de loraidh,
que por isso é meu genro. Aceitai que vos acompanhe, e eu farei com que fiqueis
de posse do cão sem precisardes de lutaj»

Os filhos de Tuirenn agradeceram ao rei Easal e partiram com ele para o país de
loraldh. 0 país estava bem defendido, pois já era do conhecimento geral que os
filhos de Tuirenn tinham massacrado muita i

gente nos paises por onde tinham passado. Assim, encontravam-se por todo o
lado diversos homens armados prontos para se baterem contra quaisquer
estrangeiros que, sem motivo, por ali aparecessem.

0 rei Easal identificou-se e entrou pacificamente naquela terra, depois foi ao lugar
onde estava o seu genro, o rei de loraidh, e contou-lhe as viagens e as aventuras
dos filhos de Tuirenn. «Por que motivo os trouxeste ao meu país?», perguntou o
genro. «Para te pedir o cão que te Pertence», respondeu o rei Easal. «Por todos
os deuses do céu!», indignou-se o rei de loraidh, «não seria justo que eu
reconhecesse a três guerreiros o direito de se apoderarem do meu cão sem antes
lhes ter dado luta.» «Não deves proceder com tanta intolerância», retomou o rei
Easal. «A tua atitude irá trazer-te muito sofrimento e infelicidade.»

Apesar das advertências do sogro, 0 rei de loraidh recusou voltar atrás na sua
decisão. 0 rei Easal voltou então para perto dos filhos de Tuinenn e contou-lhes o
que se passara. «Sendo assim», disse Briati, «seremos obrigados a lutar.»

Os guerreiros de loraidh avançaram sobre os filhos de Tuirenn e estes foram cada


um para seu lado, aplicando cada um deles golpes ViOlentos a todos os que
apareciam à sua frente. Diante de Brian abriu-sc uma clareira, tal era a violência
com que ele esmurrava os adversários, e estes punham-se em fuga mas ele
perseguia-os e massacrava-os sen, piedade. Os dois irmãos eram também
impiedosos, um de cada lado, e lutavam heroicamente provocando um banho de
sangue. Lutou-sc corpo a corpo, durante várias horas, e não cessavam os murros,
Os 901-

o rei de loraidb pes furiosos e implacáveis. Por fim, Brían dominou

mas, em vez de lhe aplicar um golpe fatal, amarrou-o e exibiu-o preso perante as
suas hostes, antes de o levar à presença do rei Easal. «Aqlll

Easal!», gritou ele. «E ’uro-te, pela minha honra e ,stá o teu genro, rei

118
pelo valor das minhas armas, que me teria sido mais fácil matá-lo do que traze-lo
assim amarrado à tua Presença, Se lhe poupei a vida, foi eni atenção a ti e pela
consideração que me mereces. Toma este homem e faz dele o que te aprouver.»

1
0 rei Easal ordenou que o combate terminasse- e libertou o genro na condição de
que ele daria o cão aos filhos de Tuírenn, condição que ele aceitou. Depois,
chegou-se a uma paz baseada numa amizade infalível. Então, os filhos de Tuírenn
despedIram-se do rei Easal e do rei de loraidh, e muito felizes, voltaram com o cão
paira a barca de Mananann.

Ora, enquanto isto acontecia, Lug do Braço Longo, que possuía o dom de saber o
que se passava muito longe, tomou conhecimento dos feitos extraordinários dos
filhos de Tuirenn. Desse modo, ficou a saber que eles tinham sido bem sucedidos
em todas as provas que ele lhes tinha imposto, ficando por isso muito
amargurado. Recitou então um sortilégio no vento e lançou um feitiço druídico tão
poderoso aos filhos de TuireDn que eles se esqueceram de que deviam ainda
duas partes da compensação a Lug. E este fez com que eles tivessem um desejo
incontido de voltar a ver o mais depressa possível a Irlanda.

Assim, a barca de Mananann levou-os a Brug-na-Boyne. Quando desembarcaram,


informaram-se sobre a asdsemPbrlaetiaasdeaesntcriobnotrsadveaDnuanmaa.
Disseram-lhes que o rei Nuada do Braço

reunião na fortaleza de Tara e, sem perda de tempo, deslocaram-se para aí com


tudo o que tinham conseguido obter para pagar a compensação. Deram-lhes as
boas vindas e o rei perguntou-lhes se tinham obtido o que era reclamado por Lug
do Braço Longo. «Temos tudo», respondeu Brian, «e estamos prontos para lhe
apresentar o que pediu.»

Mas Lug não estava ali, pois soubera do regresso dos filhos de Tuireim à Irlanda e
queria que a vingança fosse completa. Foram por isso enviados mensageiros por
toda a ilha, e estes acabaram por encontrá-lo, vindo ele para a assembleia dos
chefes e dos nobres das tribos de Dana.

Quando ele chegou à pequena saliência de terra em frente à casa real de Tara, os
filhos de Tuirenn apresentaram-lhe o que ele lhes exigia. Depois de ver com todo o
cuidado as maçãs de ouro, a pele de Porco, a lança, os cavalos e o carro, os sete
porcos e o pequeno cãO, Lug exclamou: «Espero que os chefes das tribos de
Dana vos S””’arn de fiadores pois, se assim não fosse, eu matar-vos-ia aqui
imCdiatamente por não terem cumprido as vossas promessas.» «0

119
que dizes?», perguntaram os filhos de Tuirenn.

Lug do Braço Longo mediu-os de alto a baixo com um ar de desprezo e disse com
uma voz forte, de modo a que o ouvissem todos aqueles que estavam presentes
na assembleia: «Onde estão pois o espeto de assar e os três brados que vos
pedi? Parece-me bem que não estão incluídos entre o que me trouxestes ... »

Ao ouvirem aquelas palavras, os filhos de Tuircim ficaram aterrorizados e


lembraram-se de repente que tinham perdido a memória. Deixaram Tara e
dingiram-se a casa do pai em Dun Edair”>. Contaram-lhe as suas aventuras e o
modo como Lug do Braço Longo os tratara diante da assembleia, ficando Tuirenn
muito entristecido e angustiado. Passaram juntos aquela noite e de manhã
dirigiram-se para o porto, mas já não podiam embarcar na barca de Mananann,
pois tinham-na entregue a Lug. Ethné, a irmã deles, estava em sua companhia,
acompanhando-os quando estavam em terra. E, quando chegou a hora do
embarque, entoou um canto de lamento que lamentava a má sorte dos filhos de
Tuirenn.

Depois de terem ouvido o canto da irmã, os filhos de Tuiremi içaram as velas do


barco e partiram para o alto mar. 0 espeto de assar objecto da sua demanda
estava na ilha de Fianchair, mas nenhum deles conhecia a localização desta ilha,
e o barco em que agora viajavam não podia levá-los por si mesmo ao destino que
eles queriam alcançar. A única coisa que eles sabiam era que aquela ilha estava
sob o mar.

Navegaram ao acaso durante um quarto do ano, fazendo perguntas a todos os


que com eles se cruzavam, e acabaram por descobrir que a ilha de Fianchair
estava a pouca distância da embarcação. Fazendo esta avançar sobre a crista das
ondas, tentaram achar o caminho que levava à ilha e, passadas algumas
semanas, souberam que ela estava mesmo debaixo deles, bastando-lhes
mergulhar para a alcançarem. «Eu vou sozinho», disse Brian aos irmãos, «pois na
qualidade de mais velho sou responsável por vocês.»

Deixaram-no então ir, e ele entrou na cidade que se erguia debaixo do mar. Aí
estava um grupo de mulheres a coser e a bordar, podendo ele aperceber-se, entre
os numerosos objectos que elas tinham à volta, de um espeto de assar. Então,
sem fazer barulho, Brian aproximou-Se dos espetos, agarrou num e dirigiu-se para
uma porta, mas de repente todas as mulheres presentes começaram a rir. «Que
acção corajosa

1. Ou seja, na colina de Howth, na extremidade nordeste da baía de Dublin.

acabas de realizar!», disse por fim uma delas a Brian. «Fica a saber que, se
tivesses vindo com os teus irmãos, nenhuma de nós permitiria que levassem o
espeto. Muito pelo contrário, precipitando-nos sobre vós, arrancar-vos-íamos os
olhos e castrar~vos-íamos. Mas, como vieste só, sem defesa e como não nos
agrediste, não nos opomos a que leves o espeto. Admiramos a tua bravura, e por

120
isso te deixamos partir.»

Brian agradeceu-lhes e despediu-se delas. Depois, deixou a cidade e foi ter com
os irmãos a bordo do barco, ficando eles satisfeitos por o verem voltar são e salvo.
Içaram as velas e voltaram para o alto mar em direcção ao norte, dirigindo-se para
o monte de Miodchain, o antigo mestre de Cian, filho de Dianceclit. Nesse monte
deveriam dar três brados, levando-os aos três para Lug, filho de Cian.

Demoraram vários meses até chegarem à ilha onde se erguia o monte de


Miodchain. Quando aí chegaram, Miodchain viu-os e velo ao seu encontro, pois
cabia-lhe a tarefa de impedir que alguém desse três brados naquele monte. Ao
vê-]o, Brian não hesitou em atacá-lo, e lutaram durante muito tempo. Por fim,
Miodchain caiu morto, mas deixou três filhos que, por seu lado, vieram lutar contra
os três filhos de Tuirenn. Depois de uma luta violenta e impiedosa, os filhos de
Miodchain golpearam os corpos dos filhos de Tuirenn com as suas lanças, mas
estes, sem se deixarem atemorizar e desafiando a propria morte, atravessaram de
lado a lado os filhos de Miodchain com as suas armas, fazendo-os cair sem vida
por terra. Então, os três filhos de Tuirenn deram três brados nos montes e, apesar
de terem sofrido graves ferimentos, voltaram para o barco e desfraldaram as
velas. «Não podemos morrer antes de chegarmos à Irlanda», disse Brian aos
irmãos, «pois temos de pagar a Lug do Braço Longo a compensação que nos
pediu.»

Navegaram, assim, durante várias semanas até avistarem a Irlanda, e atracaram o


barco diante da fortaleza de Bem Adair. Tuirenn veio recebê-los à costa, e, vendo-
os num triste estado, ficou desolado e desesperado. «Pai», disse debilmente
Brian, «estão aqui connosco o espeto de assar e os três brados que demos no
monte de Miodchain. Trouxentos o que Lug nos pediu para o recompensar pelo
assassínio do pai. Leva-lhe o que trouxemos e ped e - 1 he emprestada a pele de
porco do rei da Grécia, para que possamos sai,ii- os ferimentos e salvar a vida. Vai
depressa, porque estamos esgotado,, mas não queríamos morrer sem Voltar a ver
a Irlanda e sem pagar o preço do que nos era exigido.»

Tuireim partiu imediatamente à procura de Lug do Braço Longo e

121
encontrou-o em Tara, no meio de uma assembleia dos nobres e dos chefes das
tribos de Dana. Deu-lhe o espeto e os três brados dados no monte de Miodchain
e, diante de toda a assembleia, pediu-lhe emprestada a pele de porco do rei da
Grécia para salvar a vida dos três filhos. «Isso não está estipulado no acordo que
fizemos», respondeu Lug, «Fico muito satisfeito por os teus filhos terem cumprido
a sua obrigação e por terem pago a compensação que me deviam pelo assassínio
do meu pai, mas não me interessa nada o que lhes possa acontecer. De modo
nenhum te emprestarei a pele de porco do rei da Grécia.»

Então, Tuirenn voltou para o lugar onde deixara os filhos, que estavam deitados,
quase sem forças, a bordo do barco, e anunciou-lhes a resposta de Lug. «Leve-
me à presença de Lug, ó meu pai», disse Brian, «e eu suplicar-lhe-ei que me ceda
a pele de porco que faz sarar todas as feridas e cura todas as doenças.»

Tuirenn levou-o então a Tara. Quando chegou à casa real, disse Brian a Lug do
Braço Longo: «Nós cometemos um crime contra o teu pai, e tu exigiste de nós
uma compensação que foi satisfeita. Deixa por isso que curemos as nossas
feridas.» «Isso não faz parte do nosso acordo», disse Lug com firmeza. «Vós
cumpristes a obrigação, tendes salvo a vossa honra, mas nada mais posso fazer
por vós. E nada me obriga a salvar a vida dos assassinos do meu pai,»

Após ouvir a resposta de Lug, Brian pediu ao pai para o levar de volta para o
barco onde os irmãos jaziam, e, subindo para bordo, foi deitar-se ao lado deles. E
logo os três irmãos perderam a vida, deles se libertando a alma. Tuirenn crigiu um
pilar para os filhos e aí gravou os nomes deles em ogham. E Ettiné, filha de
Tuirenn, entoou um cântico fúnebre pelos seus três irmãos.

Assim se vingou Lug do Braço Longo dos filhos de Tuirenn, fazendo-os pagar pelo
assassínio que perpetraram contra a pessoa do seu pai, Cian, filho de
Dianceclit.1’1

1. Segundo a narrativa de Destino dosfilhos de Tuirenn.

Cal) ítt, J(,> VI

m tempos muito distantes, havia um rei muito poderoso que exercia a sua
autoridade sobre um país a que hoje se chama Céltica. E este rei tinha uma filha a
quem dera o nome de CeItmé. Esta sua filha era tão bem dotada fisicamente que
nenhuma outra mulher se lhe corriparava, e a sua beleza fazia Com que tivesse
varios pretendentes. Contudo, o seu aspecto e a admiração que despertava
tinham-na tomado tão orgulhosa que rejeitava todos aqueles que se lhe
declaravam, julgando-os indignos da sua categoria e do seu encanto,

Naquele tempo, o grande Héracles acabara de enfrentar o terrível gigante Geryon,


que tinha três cabeças e três corpos. Depois de uma luta impiedosa, ele matara o
monstro e levara consigo a sua manada de vitelas. Foi então que ele deixou a
Eriteia, levando consigo as vitelas, e errou

122
10119amente através da Céltica, em busca de um lugar onde pudesse construir
uma cidade. Chegou por fim a casa do pai de Celtiné, que o recebeu, lhe deu
belas pastagens e o convidou a estabelecer-se no seu reino.

. Ora, logo que viu Héracles, a bela Celtiné apaixonou-se por ele, POIs, segundo
pensava, um homem com aquele porte e uma presença tão distinta tinha por força
de lhe estar destinado. Por infelicidade,
11éracles não parecia prestar-lhe atenção, estando muito ocupado com as suas
vitelas. Imaginou então uma artimanha e, uma noite, escondeu
08 animais numa caverna cuja entrada só ela conhecia.

Héracles ficou consternado quando soube do desaparecimento da sua ’n~a, e


jurou a si mesmo que a havia de encontrar o mais depressa possível. Ele
calcorreou então os vales mais escondidos e secretos, sem

123
encontrar a mais pequena pista sobre o seu paradeiro; pelo caminho ia
interrogando as pessoas que encontrava, sem nunca receber uma resposta que
lhe pudesse indicar o caminho certo a tomar. Então, a bela Celtirjé veio ao seu
encontro. «Eu sei onde estão as tuas vitelas», disse ela, «Mas se quiseres saber
onde elas estão, terás de aceitar as minhas condições.»

Héracles acedeu, e ela guiou-o até â caverna onde se encontravarn as vitelas.


Louco de alegria, Héracles levou-as para um belo prado mas, chegada a noite,
tinha de se sujeitar às condições impostas pela jovern, que se traduziam em se
unir a ela. E como ele começava a deixar-se seduzir pelos seus encantos, não
teve dificuldade em aceitar unir-se a ela.

Da ligação entre ambos nasceu um filho a quem chamaram Celtos, em


homenagem à mãe. Este filho não tinha igual entre as gentes do país pois era de
uma coragem e de uma robustez invulgares. Chegado à idade adulta e tendo
herdado o reino dos seus antepassados, conquistou uma grande parte dos
territórios vizinhos e destacou-se graças a inúmeros actos heróicos. E, como
forma vincar bem o seu poder, deu o seu nome aos povos que ficaram sob o seu
domínio, estendendo-se depois este nome a todos os países dos celtas.

Os seus descendentes reinaram num clima de paz e de prosperidade, construindo


vastas fortalezas para se defenderem de eventuais invasões. Bravos e generosos,
os soberanos fizeram-se rodear de artistas e de poetas. Um dos soberanos,
chamado Luern, fazia os possiveis para receber benesses do seu povo, e quando
passava de carro pelos campos, atirava ouro e prata para a multidão de homens e
mulheres que o seguiam ou que se chegavam à berma dos caminhos para o ver
passar. Em certas alturas, ele ordenava que para um certo recinto preparado para
o efeito se encaminhassem grandes quantidades de bebidas preciosas e de
provisões, de tal modo que, durante vários dias, se podia entrar livremente no
recinto e ficar regalado com os acepipes que eram servidos ininterruptamente a
quem quer que chegasse.

Um dia - tendo sido a data marcada com grande antecipação - 0 rei Luern
ofereceu um grande festim a todos os poetas e músicos do país. A festa foi de
arromba e durou várias horas. Os convivas começavam a pedir licença para se
retirarem quando chegou um poeta, que se atrasara bastante. Vendo que a festa
estava no fim, o poeta apareceu diante de Luern e entoou um canto em que
prestava homenagem à magnificência do rei, ao mesmo tempo que lamentava que
o atraso o tivesse privado de uma grande alegria. 0 rei, divertido e encantado com
Os seus versos, pediu uma bolsa de ouro a um dos seus criados e atirou-a aos
pés do poeta que corria atrás do seu carro. 0 poeta apanhou a bolsa, mas
continuou a correr enquanto entoava outro canto, dizendo que o rasto deixado na
terra pelo carro do rei eram raios que faziam prenunciar uma grande quantidade
de ouro e de benefícios para os homens.

Entretanto, à medida que cresciam as riquezas, a população ia aumentando, até


que chegou o dia em que as colheitas já não eram suficientes para garantir a

124
alimentação de todos, tornando-se por isso difícil governar tanta gente. Assim, o
rei Ambigat, sucessor de Luern, que se sentia envelhecer e que queria aliviar o
reino do excesso de população, chamou à sua presença dois filhos da sua irmã,
Bellovèse e Ségovèse, Jovens corajosos e empreendedores. Anunciou-lhes a sua
intenção de os enviar para novas terras e pediu-lhes, com este propósito, para
determinarem o número de homens que queriam levar com eles, devendo evitar-
se qualquer revolta entre as populações com as quais iriam entrar em contato.

Bellovèse e Ségovèse escolheram então os homens que os deveriam


acompanhar; depois foram convocados os druidas, os sábios, os adivinhos, e
perguntaram-lhes qual seria o melhor destino a dar a estes dois grupos. Os
druidas, os sábios e os adivinhos, depois de se reunirem, disseram: «Segundo
pensamos, impõem-se duas direções, uma para a floresta herciniana e a outra
para Itália. Isto deve-se a que as regiões mais férteis da Germânia se encontram
perto da floresta herciniana, numa região a que os antigos chamavam Orcinia.
Quanto à Itália, o seu clima e os seus vales muito férteis permitem cultivar a vinha,
o que será uma fonte de grande riqueza. «Muito bem», disse o rei Ambigat, «mas
falta-me saber qual dos meus sobrinhos vai para oriente e qual vai para sul.»
Tiraram à sorte, sendo atribuída a Itália a SégOvèses e a floresta herciniana a
Bellovèse.

Bellovèse partiu então com um grande número de homens, cavaleiros e soldados


de infantaria, com carros de combate e pesadas carroças para transportarem os
víveres e os despojos. No entanto, como não encontraram na floresta herciniana o
que esperavam, os druidas do grupo preconizaram que se seguisse para sul,
seguindo a mesma rota dos pássaros que voavam Ilaquela direcção e passavam
para além de altas montanhas. Foi assim que este grupo de celtas, que a si
mesmos se chamavam gauleses, gente brava, te`nível e audaciosa, consegulu
subi

ir ao cume vertiginoso dos Alpes e chegar a lugares tão frios que se diria serem
inacessiveis.

125
Na etapa seguinte, aquele grupo chegou à llírIa, cujos habitantes levavam uma
vida de ócio e passavam o tempo sentados à mesa em festins intermináveis. Os
gauleses, procurando uma maneira de se desembaraçarem deles com um mínimo
de custos, decidiram então tirar partido da sua intemperança: cada um deles devia
convidar um Iliriano para a sua tenda, e sentando-o a uma mesa muito bem
fornecida de comes e bebes misturaria entre a comida uma certa erva que
desarranja os intestinos. E, graças a este estratagema, os gauleses tornaram-se
donos do país, sendo vários os ilirianos que sucumbiram em estado de fraqueza,
enquanto outros se atiravam para os rios devido a não aguentarem a incontinência
infernal dos intestinos.

Mas há também quem defenda que os ilirianos pereceram por terem sido víturias
da vingança do deus Apolo, o qual terão ofendido com a sua gula e a sua
indolência. Antes de começarem os combates contra os gauleses, sofreram
calamidades naturais, tempestades e chuvas diluvianas. E aqueles que
conseguiram escapar às inundações e à traição dos gauleses,
1

encontraram depois outros tormentos, pois a terra produziu uma enorme


quantidade de rãs, cuja putrefacção e estado de decomposição deterioraram as
águas do país, Pior ainda, devido aos miasmas que saiam da terra, o ar tornou-se
tão infecto que apareceu uma peste de tal modo mortífera que todos foram
obrigados a abandonar o país. E os gauleses não quiseram continuar por muito
tempo nesta região maldita.

A primeira expedição dos gauleses foi comandada por Cambaulès. Tendo


penetrado até à Trácia, os gauleses no entanto não ousaram atacar os povos que
existiam para além desse território. A expedição seguinte, realizada por aqueles
que tinham seguido Catnbaulès, foi composta por um exército poderoso de
soldados de infantaria e de cavaleiros que se dividiram em três corpos, o primeiro
confiado a Cerethrios, o segundo a Breno e Cichorios, o terceiro a Bolgios. Este
últirflO partiu imediatamente para fazer guerra aos macedónios.

Os gauleses possuíam um equipamento bélico que enchia de espailto os povos


por cujas terras passavam. Na verdade, como armas defensivas eles usavam
escudos que lhes desciam da cabeça até aos pés, ornando-os cada um a seu
gosto. Como estes escudos serviam não só para defesa como também para
ornamento, alguns soldados tinham gravado neles figuras de bronze em alto
relevo trabalhados com muito requinte. Os capacetes de bronze possuíam partes
salientes que davam um aspectO fantástico àqueles que os usavam. Alguns
destes capacetes tinham chifr,-’S

134 C__C__IIC

e outros possuíam efigies com pássaros e animais de todas espécies em relevo,


Além disso, os guerreiros sopravam trombetas bárbaras que, graças a um truque
de fabrico, provocavam um ronco descomunal que auinentava ainda mais o

126
grande tumulto existente no decurso das batalhas.

Estes povos tinham uma tal reputação e exibiam um -aparato tão grande que
chegou a haver reis que, sem serem atacados, simplesmente ao ouvirem o seu
nome, lhes compraram a paz a preço de ouro. Só Ptojorneu, rei da Macedónia,
não mostrou me-do ao saber que eles se aproximavam. Revoltado com os seus
crimes atrozes e com os seus parricídios, atreveu-se a marchar ao encontro deles
com um punhado de guerreiros desorganizados, como se pudesse fazer frente a
um tão poderoso exército. Os gauleses, cujo rei era Bolglos, enviaram
inensageiros a Ptolomeu para saber da 1sua disposição e para lhe perguntar se
queria comprar a paz, e este último vangloriou-se perante os seus por ter levado
os gauleses a pedir a paz. E levou a presunção ao ponto de afirmar, diante dos
emissarios, que não poderia haver paz se os gauleses não
1

depusessem as armas e não entregassem os seus chefes, pois só confiava neles


se estivessem desarmados,

Quando os mensageiros voltaram para o seu campo e contaram o que se tinha


passado, os gauleses puseram-se a rir e exclamaram cheios de desprezo que o
rei da Macedónía não tardaria a saber se era por medo ou por piedade que lhe
tinha sido oferecida a paz. E a determiiterem au

nação dos gauleses para comb, mentou consideravelmente. Alguns dias


mais tarde, os dois exércitos enfreritaram-se, e os macedónios foram destroçados.
Ptolomeu, que sofreu graves ferimentos, foi fOft0 Prisioneiro, depois puseram a
cabeça dele na ponta de uma lança e exibiram-na à volta do campo de batalha
para convencer os macedónios de que não tinham salvação possível.

Quando voltou da perseguição feita aos fugitivos, Bolgios juntou ()s Prisioneiros e,
entre eles, escolheu os mais fortes e válidos para selem imolados, manifestando
desse modo o seu agradecimento pela vitória aos deuses. Foram poucos os
macedónios que escaparam, tendo sido quase todos mortos ou capturados.
Quando na Macedónia se soube deste desastre, os habitantes concentraram-se
Das cidades e fecharam as suas entradas. A consternação era geral, mas um dos
principais chefes, que se chamava Sóstenes, decidiu reagir e resistir aos
invasores. Juntou uma grande parte dos Jovens e, cheio de entusiasmo e de
determinação, ellegou a deter o avanço dos gauleses que, muito entretidos a
celebrar

127
entusiasticamente o tritirifo, tinham perdido o espírito ofensivo. Entrementes, o
outro chefe gaulês, que se chamava Breno, dirigira-

-se para a Grécia, que tencionava Ocupar. Quando soube que as hostes
comandadas por Bolgios tinham vencido os Macedónios mas tinham parado de
avançar, ficou indignado por eles negligenciarem de forma tão inglória um despojo
valioso que continha todos os tesouros do Oriente. Juntou então quinze mil
cavaleiros e cento e cinquenta mil soldados de infantaria que, cheios de
determinação, invadiram a Macedónia. Enquanto saqueavam os campos,
Sóstenes veio atacá-los com as suas hostes, mas estas eram pouco numerosas e
a maior parte dos jovens que as compunham receavam a ferocidade e a
reputação dos gauleses. Assim, estes últimos, resolutos e confiantes, facilmente
os fizerem dispersar por todo o país. Os macedóníos voltaram então a fechar-se
no interior das muralhas das suas cidades, e Breno pôde a partir daí entreter-se a
saquear à sua vontade as regiões vizinhas.

Entretanto, o saque acumulado parecia bastar aos gauleses, cuja satisfação lhes
refreou o ímpeto, facto que desagradou a Breno. 0 objectivo deste era ir muito
mais longe e descobrir um país onde ele e os seus pudessem prosperar e viver
num clima de tranquilidade. Por isso, não descansou enquanto não convenceu as
suas gentes a pegarem em armas contra os gregos. Para as convencer fez
discursos muito eloquentes em que mostrava de um lado a Grécia derrotada e
sem forças, e do outro a sua audácia que era responsável pela opulência das
cidades, a riqueza dos templos e grandes quantias de ouro e de dinheiro.

Para convencer os gauleses a seguirem-no, Breno fez desfilar perante as


assembleias do povo prisioneiros gregos de cabeça rapada que ele escolhera
entre os mais enfezados e os mais macilentos e que eram seguidos pelos seus
homens mais corpulentos e robustos - desse modo podia dizer que guerreiros tão
possantes nada tinham a recear de inimigos tão frágeis e indefesos.

Assim, Breno conseguiu formar um extraordinário exército de cento e cinquenta


mil soldados de infantaria e de dois mil e quatrocentos cavaleiros. Cada senhor
possuía dois lacaios que seguiam atrás dele: se perdia um cavalo, um dos lacaios
dava-lhe o seu e, se ele morria, um deles substituía-o no combate. E, se
morressem dois, havia um terceírO para prosseguir a luta. Os gauleses chamaram
a esta espécie de milícia trimarkesia, termo derivado da palavra marka que, na
língua celta da~ quele tempo, significava cavalo. Com este equipamento, Breno
CO-

filandou, muito seguro de si, o seu exército até à Grécia.

Breno era extremamente audaz o experiente, sendo mesmo perito eni. artimanhas
e, em expedientes de todo o gênero para enganar o adversário. Uma DOlte, em
vez de se deixar intimidar pela destruição das pontes do rio Sperchios, teve a ideia
brilhante de enviar dez mil hornens para a foz do rio. Queria ele que os seus
homens atravessassem para a outra margem sem os Gregos saberem. Naquele

128
lugar, com efeito, o rio não tinha uma corrente tão forte, e prolongava-se para o
interior dos campos, formando aí um verdadeiro pântano. Ora, entre estes dez mil
homens, uns sabiam nadar perfeitamente, e outros tinham unia estatura
imponente, tendo Breno apenas o problema da escolha, pois os celtas tinham uma
compleição sem igual entre todos os outros povos. Foi assim que, naquela noite,
uma parte do destacamento conseguiu atravessar o rio a nado, enquanto a outra
pai-te o atravessou sem perder o pe, o que não estava ao alcance de pessoas
mais pequenas.

Entretanto, Breno dera ordens aos habitantes das redondezas do golfo Maliaque
para construírem uma ponte no rio Sperchios, e aqueles tinham-se apressado a
fazê-lo, incitados pelo medo que tinham daqueles guerreiros armados que os
obrigavam a trabalhar dia e noite. Quando a ponte ficou concluída, os gatileses
atravessaram o rio e avançaram para Heraclea, pilhando todas as habitações que
encontravam e matando todos os homens que se lhes atravessavam no caminho,
deixando os seus corpos espalhados pelos campos. Mas o mais importante para
Breno não era conquistar Heraclea. Para ele o objecÚVO principal era expulsar a
guarnição das muralhas que protegiam a cidade, pois se isso não fosse
conseguido, não conseguiria alcançar a passagem das Termópilas.

Após violentos combates, Breno conseguiu pôr a guarnição em fuga. Passando


sem problemas as muralhas de Heraclea, continuou a marcha Para as Termópilas
e resolveu atacar os gregos que estavam preparados Para lhe oferecer
resistência. 0 confronto ficou marcado, por sua vontade, para o dia seguinte, ao
nascer do sol. Os gregos avançaram para o Combate muito bem organizados e
em silêncio absoluto. Cansados pela longa viagem, os gauleses não estavam na
sua melhor forma nem estavam bem armados, bem pelo contrário. Tendo apenas
escudos em seu Poder viram-se na contingência de se atirarem ao inimigo como
uma fOrça bruta, parecendo feras ferozes a atirarem-se as suas presas.

Apesar de duramente atingidos por machados e por espadas cor-

129
tantes, nem por isso se rendiam e não perdiam o ,ir ameaçador e obstinado que
lhes era característico. Lutaram encarniçadamente, até ficarem completamente
sem forças e não houve entre eles quem não fizesse das tripas coração e não
retirasse dos golpes moi-tais infligidos pelos gregos as forças necessárías para
lhes responder da mesma moeda, provocando várias mortes entre eles.

Entretanto, os atenienses cercaram-nos tão bem pelos flancos que os invasores


não conseguiram sair dos desfiladeiros onde se tinham reunido, ficando numa
situação muito delicada. Ao verem que a situação era desesperada, os seus
chefes deram ordens para recuar, mas a fuga foi tão precipitada que numerosos
guerreiros, caindo uns sobre os outros, morreram esmagados. Outros dos fugitivos
meteram-se pelos pântanos que naquele lugar eram vizinhos do mar, e os
gauleses na debandada perderam tantos homens como na batalha.

Mas Breno nem assim desistiu. Passados sete dias, novas hostes gaulesas
puseram-se em marcha para desta vez tentarem passar o monte Oeta, Breno
pretendia que elas seguissem por um pequeno atalho que levava a Trachine,
cidade que Daquela época estava em ruínas mas sob a .qual existia um templo
devotado a Palas, que os habitantes da região tinham enriquecido com numerosas
oferendas. 0 objectivo dos gauleses consistia em, seguindo através daquele atalho
escondido, chegar ao cimo da montanha e aproveitar para saquear o templo.

0 objectivo, no entanto, não era fácil de alcançar, pois os Etólios guardavam as


passagens e sem que nada o fizesse prever surpreenderam os gualeses,
destroçando-os. Estes entraram em panico e uma grande parte deles quis pôr-se
em fuga, sendo Breno o único a não perder a coragem. Pensou ele que, se
conseguisse obrigar os Etólios a voltarem para trás, o caminho ficaria aberto para
chegar ao desejado objectivo. Assim, formou um destacamento de quarenta mil
homens a

é e de oitocentos cavaleiros, entreo ando o comando a um chefe muito

p L

corajoso chamado Milé e ao seu lugar-tenente Orestorios. Ordenou-lhes que


atravessassem o rio Sperchios e a Tessába, e que fossem pôr o país dos Etólios a
ferro e fogo.

Foram estas tropas que devastaram a cidade de Callion e aí perpetraram um


massacre pavoroso. Os sexos viris foram todos mutilados, Os velhos foram
passados pelo fio da espada, as crianças de tenra idade arrancadas ao seio das
mães e decapitadas; e àquelas que pareciam rnelhor amamentadas os gauleses
bebiam-lhes o sangue e saciavam-se com

a sua carne,”’ As mulheres e as jovens que tinham o senso da honra entregaram-


se voluntariamente à morte para evitarem a fúria dos vencedores, Outras,
obrigadas a sentir na pele todas as indignidades que se possam imaginar, foram

130
depois alvo de chacota por parte dos seus carrascos, que eram completamente
insensíveis à piedade e ao amor.

Quando os Etólios que defendiam as Termópllas souberam o que se passava no


seu país, partiram imediatamente em socorro dos seus compatriotas e deixaram
que os gauleses ficassem livres para fazerem o que muito bem lhes apetecia.

Passando as Térinópilas podia alcançar-se o cume do monte OEta por dois


atalhos distintos: um, muito estreito e difícil, levava ao cimo de Trachine; o outro,
mais acessível à passagem de um exército, atravessava as terras de Emanes.
Breno escolheu este último para a sua expedição,

Os gregos não demoraram a saber que os gauleses seguiam este caminho,


conduzidos pelos habitantes de Heracica e pelos Eníanes. Breno deixara o seu
lugar-tenente Kikorios no acampamento e, acompanhado de quarenta mil homens,
seguia os guias.

Quis o acaso que, naquele dia, um nevoeiro espesso cobrísse o monte OEta de tal
forma que nem se conseguia ver o sol. Por isso os Fócios que estavam na região
só se aperceberam do inimigo quando este lhes infligiu o primeiro ataque. Gerou-
se então uma enorme confusão, com as vidas a correrem um grande perigo, e
enquanto uns procuravam desesperadamente tapar a passagem aos gauleses,
outros tentavam fazer manobras de diversão, mas, no fim, cercados por todos os
lados, abandonaram as suas posições e espalharam-se em todas as direcções,
deixando o adversário dono do terreno,

Breno não perdeu tempo. Ordenou que se marchasse imediatamente sobre


Delfos, dizendo repetidamente para aqueles que o acom~ panhavam que era uma
tarefa dos deuses fazer tesouros para os oferecerem aos humanos. Um dia, aliás,
estando no interior de um temPIO, nem sequer deu atenção às oferendas em ouro
e prata que aí estavam depositadas, apoderando-se simplesmente das imagens
de Pedra e de madeira, o que provocou uma enorme rísota: como era possível
que os Gregos pudessem dar às divindades formas humanas que

Estes Pormenores de fonte grega são extractos de Pausânias (X,22), o qual, é


preciso notar, ”’ é mu’t0 tiável historicamente, pois a narrativa que ele faz do
ataque a Delfos pelos gauleses (ver mais adiante) é uma colagem integral da que
Heródoto consagrou à pilhagCm do santuário pelos persas,

131
eram fabricadas com materiais perecíveis?

Sem esperar que Kikorios se lhe juntasse, Breno, acompanhado de Milé,


precipitou-se então para o santuário de Delfos. Sabendo da notícia, todas as
cidades da Fócida enviaram auxílio: Anfísia deu quatrocentos homens de
infantaria; os Etólios, apesar de já terem alguma experiência, apenas forneceram
um pequeno número de guerreiros; e as outras cidades enviaram para Delfos o
número máximo de guerreiros que conseguiram reunir para tentarem evitar a
pilhagem que Breno pretendia levar a cabo.

Breno hesitou ao ver o santuário: deveria ordenar o ataque imediatamente ou,


pelo contrário, deveria conceder aos seus homens uma noite de descanso, já que
estavam esgotados pela viagem? Dois dos chefes gauleses que se lhe tinham
juntado na expectativa de um saque

1 inimigo muito proveitoso queriam que se atacasse imediatamente o

que, recolhido na defensiva, dava sinais de fraqueza. Mas os guerreiros gauleses,


fartos de privações e maravilhados por este país repleto de alimentos e de vinhos,
tinham posto de lado os seus estandartes e estavam eufóricos pelo sucesso
alcançado e por terem encontrado urna inesperada abundância. Espalhados pelos
campos, os gauleses colhiam os mais diversos frutos e saciavam o estômago e os
sentidos com o que havia para comer e beber.

Breno esforçou-se por reagrupá-los e por lhes fazer ver o magnífico saque que se
lhes oferecia. improvisou discursos inflam ,ados, exaltando o ouro maciço das
estátuas, os carros que se distinguiam ao longe, e garantia a pés juntos que o
valor destes objectos ultrapassava tudo o que se poderia imaginar. Excitados pela
sua eloquência e embriagados pelas orgias a que se tinham entregue, os gauleses
acabaran, por aceitar partir para o combate.

Pressentindo o perigo iminente, os habitantes de Delfos perguntaram ao deus se


era necessário retirar dos templos 01, tesouros que ai se encontravam, e se era
preciso mandar as mulheres e as crianças para cidades vizinhas, melhor
fortificadas, onde pudessem estar em segurança. Pela voz da Pítia, o deus
ordenou que as oferendas e os ornamentos dos santuários ficassem nos seus
lugares, pois ele mesmo, cOm as Virgens Brancas suas companheiras, se
encarregaria de as ter sob a sua guarda. No templo do deus encontravam-se, com
efeito, duas capelas bem antigas, uma consagrada a Palas Pronaos e a outra a
Artémis, e estas duas deusas, de acordo com o oráculo, secundavam Apolo.

A fúria dos deuses não tardou a manifestar-se contra os gauleses. para começar,
o terreno ocupado pelas suas tropas sofreu um abalo que durou uma grande parte
do dia. A seguir, ribombaram trovões, acompanhados de clarões contínuos que
aterrorizaram os assaltantes e impedirarin que eles ouvissem as ordens dadas
pelos seus chefes. Os raios, que frequentemente caíam sobre eles, não se
limitavam a matar aqueles que atingiam mas igualmente reduziam a cinzas os que

132
estavam perto deles, assim como as suas armas. Para completar o quadro, no céu
apareceram heróis de tempos antigos que costumavam devolver a coragem aos
Gregos e lhes mostrava como combater os inimigos. Mesmo os sacerdotes do
santuário se envolveram na batalha e se colocaram na frente de combate, gritando
que deus os tinha vindo defender e que tinha sido visto a atravessar as espessas
nuvens que envolviam as montanhas.

Parecia que todo o universo estava em fúria. Os gauleses, depois de terem


passado por tantos reveses e por tantas angústias durante o dia da batalha,
tiveram uma noite ainda mais negra, pois a enorme quantidade de neve que caiu
tornou o frio ainda mais insuportável. E os gauleses chegaram mesmo a acreditar
que as Virgens Brancas das profecias se tinham virado contra eles, de tal modo
eram fustigados por rabanadas de vento e por borrascas de neve.

Depois, como se todos os elementos tivessem cumprido o seu papel, soltaram-se


do monte Parnaso grandes pedras, ou antes revoadas de rochas inteiras que,
caindo sobre eles, esmagaram não um ou dois de cada vez mas trinta e quarenta.
E o sol só se ergueu quando os gregos, que se tinham refugiado na cidade, a
deixaram, enquanto os Fócios, por seu lado, desciam das montanhas geladas. Só
os guardas de Breno e os homens de elite, muito robustos e rijos, resistiram ao
ataque, embora estivessem enregelados e exaustos. Ao verem o seu chefe
gravemente ferido e numa situação desesperada, estes últimos não hesitaram em
cobrir-lhe o corpo e em transportá-lo, atitude esta que provocou uma debandada
geral.

Na fuga, foram surpreendidos pela noite e acamparam, passando c

então por momentos de pânico, palavra esta que designa medo, crendo-se que
eles estavam a ser inspirados pelo deus Pá em pessoa. 0 pavor da noite fê-los
passar por um falso alarme, quando um grupo de guer`-irOs pensou ouvir um
galope que se aproximava e que os vinham atacar por trás. 0 medo logo contagiou
os outros, e todos empunharam as respectivas armas, dividiram-se em diversos
grupos e guerrearam-se

133
entre si, plenamente convencidos de que enfrentavam os Gregos.

0 pâníco criado foi de tal ordem que, tendo eles esquecido a sua própria língua,
acreditavam que as palavras que ouviam eram dos gre-

1 1 1

gos. Acresce que, no meio da escuridão, não conseguiam distinguir nem


reconhecer a forma dos seus escudos, apesar de serem muito diferentes dos dos
seus inimigos. Assim, todos eles de uma forma ou de outra passaram a noite
enganados e foram poucos os que conseguiram voltar para o campo de Heraclea
quando a luz do dia irrompeu.

Breno perdeu muitos milhares de homens naquela aventura, tendo sido ele
mesmo ferido por três vezes. Sabendo que não tinha muito tempo de vida,
chamou ao seu leito de morte os seus principais lugares-tenentes e pediu-lhes que
acabassem com ele, assim como com todos os feridos, que incendiassem todas
as carroças, alcançassem um porto e voltassem o mais depressa possível para o
país de origem, Ordenou também que o comando do que restava das tropas fosse
entregue a Kikorios e a Milé, e depois de se embriagar apunhalou-se a si próprio,
assim perdendo a vida o chefe desta expedição que se aventurou pelas
montanhas e pelos vales da Grécia.

Por ordem de Kíkorios, ele foi sepultado e tirou-se a vida aos feridos, assim como
a todos aqueles que, em grande número, tinham adoecido devido ao frio e à fome.
Depois, de comum acordo com Milé, Kikorios reuniu os homens que pertenciam
ao seu clã e dirigiu-se corn eles para o mar, tendo ainda de travar várias batalhas
para abrir carninho e chegar aos barcos. Uma vez embarcados, ele e os seus
deixaram-se conduzir pelo vento, e chegaram às costas da Ásia. E são eles que,
desde então, são chamados Gálatas.1’I

No que respeita a Milé e aos seus companheiros, estes tomarain outra direcção e,
depois de várias atribulações, chegaram a um porto e decidiram deixar o país.
Depois de terem trocado uma parte do saque por barcos, fizeram-se ao mar e
chegaram às costas de Creta. Contudo, ficaram aí pouco tempo, pois não foram
bem recebidos pelos habitantes do país. Então, embarcaram de novo e
navegaram até ao Egipto, onde morreu Milé, tendo-se tornado o seu filho Bréogan
0

1, Toda a primeira parte deste capítulo foi redigida de acordo com episódios que
se enc011tram dispersos por obras de escritores gregos e latinos da Antiguidade:
Apamea (XX1,1), Tito-Lívio (V, 34), Justino, que faz o resumo do Gaulês Trogue-
Pompeu (XX1V, 4,5,6,8), Ateneu (X,60), Ãpio (1vrica), Diodoro de Sicilia (V, 31 e
Fragmentos XX11 e

Pólio (VII, 35), Cícero (De Divinatione) e sobrctudo, Pausânias (X, 19, 20, 21, 22,
23).

134
chefe do clã a que mais tarde se chamou Filhos de Milé.

Mas, não lhes interessando o país do Egipto, decidiram todos partir. Andaram
então ao acaso pelo mar Ti

rreflO, e acabaram por desembarcar na Sicília, mas não Permaneceram aí mu’

’to tempo Pois os seus druidas e os seus adivinhos tinham~lhes dito para
navegarem o mais possível para oeste, para os países onde o sol se põe sobre as
vagas do oceano. Voltaram Por isso para o mar, com diversos navios, e acabaram
por chegar à costa de Espanha. E foi aí que morreu Bréogan, filho de Milé ` que
deixou oito filhos, os quais foram Os chefes dos Filhos de Milé que quiseram dar a
estes um país digno do seu valor.

0 filho mais velho de Bréogan dava pelo nome de Ith. Mais do que os irmãos,
estava decidido a descobrir os países maravilhosos cujas virtudes o irmão
Amorgen, que era poeta, tanto enaltecia nas suas visões proféticas. Um dia, com
muito esforço ele subiu ao e I

ume de uma montanha. 0 tempo estava muito claro, Permitindo que se


estendesse o olhar até muito longe, e ele olhou ria direcção dO Poente.
Vislumbrou então uma terra verdejante que tinha uma aparência sedutora. Desceu
à pressa a montanha e foi contar aos irmãos o que vira. Mas Brégu, filho de
Bréogan, troçou dele, dizendo que a terra que vira não podia ser senão uma
nuvem suspensa no céu. Mesmo assim, Ith insistiu levo -os a todos ao cimo da
Montanha de e u

, onde avistara a terra maravilhosa. «Tinhas razão», disseram Os filhos de


Bréogan, «trata-se de uma terra onde Poderemos levar uma bela vida a criar
animais e a viver da agricultura- Vamos Pois preparar a partida de Modo a
alcançá-la por mar.»

Durante várias semanas, Os filhos de Milé construíram navios e


09uiparam_flOs, preparando-os para se poderem abastecer de provisões e de
água doce. Quando terminaram os Preparativos, levantairam âncora e partiram à
vela. E os ventos empurraram-nos a toda a velocidade pelo meio do oceano que
cerca o mundo, ameaçando levar
08.barcos para o fundo e lançar os seus tripulantes nos abismos onde rcinam as
trevas da noite.

Os Filhos de Milé já navegavam há vários dias quando foram envolVidos por uma
bruma. Como o vento caíra, andaram muito tempo à deri’a Sobre as ondas. Mas,
de súbito, viram para lá da bruma uma luz débil que Parecia brilhar a Partir do
vazio. Todos tentaram perceber que luz seria aquela e começaram a desesperar
acreditando estar no fim do mundo, quando vislumbraram a silhuetade uma O’Te
DO meio do mar. e

135
nlâram então na sua direcção com todas as suas forças e chegaram ao

136
pé de uma torre imensa que, muito direita rio mar, ia abraçar o céu. pi. caram
estupefactos quando viram que a torre era de vidro e que, no seu interior, subiam
e desciam homens que pareciam não lhes dar atenção.

Os filhos de Milé gritaram o mais alto que puderam para chamar a atenção dos
desconhecidos. Estes olharam-nos, mostraram-se indiferentes à sua presença, e
não disseram nada. Então, os filhos de Milé perguntaram-lhes quem eram e que
torre era aquela, mas no outro ]ado da muralha de vidro os outros, sem
pronunciarem uma palavra, continuaram entretidos com o que estavam a fazer,
como se nada tivesse acontecido. A luz desapareceu então, e a bruma encerrou-
os numa estranha obscuridade que os encheu de angústia.”’

Entretanto, a bruma não tardou a dissipar-se, tão depressa como se formara. Eles
encontravam-se bem no alto mar, e o sol começou a declinar para o horizonte.
Mas, por muito que eles olhassem em volta, Dão viam nenhum vestígio da torre de
vidro e dos seus misteriosos habitantes. Então, recomeçaram a navegação
seguindo a direcção do norte,

Aportaram na Irlanda na praia que confina com a planície que hoje se chama Mag
Ilha, em memória de Ith, o primeiro dos filhos de Milé a desembarcar naquele
lugar. 0 segundo a desembarcar ali foi o seu irmão Amorgen do joelho branco, o
poeta, que, ao pousar o seu pé eni terra, entoou o canto seguinte:

«Mar tão piscoso e brilhante, terra fértil, bosques em vales, com bandos imensos
de pássaros, mar rude com vagas brancas, estuários profundos

com centenas de salmões, írrupção de peixes,

mar de peixes infinitos, rios abundantes em água, terrafértil e verdejante ... »

Os filhos de Milé tinham chegado em trinta e seis navios. Qualido todos tinham
desembarcado, vieram pessoas falar-lhes e aperceberaal-

144

1. 0 episódio da Torre de Vidro encontra-se apenas na Ilistoría Brittonum, narrativa


ein latim de Nenníus, e que data do século X.

_se cora espanto, de parte a parte, que falavam a mesma língua, ou seja, o
gaélico, passando então a tratar-se afavelmente. Os Filhos de Mílé quiseram
saber o nome da ilha e a identidade dos seus habitantes. <Vós estaís na ilha de
Elga», responderam os outros, «e nós pertenceaios às tribos de Dana.
Actualmente temos três reis, Mac Cuill, Mac Cecht e Mac Greine, filho de Cermat,
filho de Dagda, e os seu s três reinos são Banba, FothIa e Eriu.»”’

Depois de combinarem o que haviam de fazer, os Filhos de Milé decidiram enviar


um dos seus a presença dos reis das tribos de Dana para lhes perguntar se se

137
podiam estabelecer numa parte da ilha para a cultivarem e aí fazerem a criação de
gado. E como tinha sido Ith a coaduzi-los até ali, foi-lhe confiada aquela missão,
partindo ele imediataalente com uma quinzena de homens.

Naquele dia, os chefes das tribos de Dana estavam reurildos em Tara, na casa
real, para resolverem o conflito que opunha Mac Cuill aos seus dois irmãos, Mac
Cecht e Mac Greine. Estes dois últimos acusavam Mac Cuill de ter ficado com a
maior parte dos tesouros de Fiachma, filho de Delbaeth, que morrera pouco antes.
Quando Ith chegou a Tara, o porteiro fê-lo entrar na casa real, e os reis deram-lhe
as boas vindas expondo-lhe depois os motivos daquela disputa.

«Seria conveniente que houvesse um clima de amizade», disse Ith, «pois nenhum
país pode ser feliz e próspero se não houver coacórdía e fraternidade entre
aqueles que o governam, A vossa ilha é boa e verdejante, com pastagens
aprazíveís; o trigo, o peixe, os cereais são aqui abundantes. 0 calor e o frio não
são excessivos e nada vos falta. Deixai-vos pois de quezílias e partilhai
equitativamente os tesouros que vos fazem guerrear uns contra os outros. Pela t’

minha parte, só vos peço uma coisa: que permitis que nos estabeleçamos
numa das vossas regiões. Podeis ficar certo de que a trataremos bem, cultivando-
a e criando animais, ficando-vos muito gratos por todo o bem que nos fizerdes.»
«Tens razão», disseram os reis, «quando nos dizes que é muito triste andarmos
em disputas por causa de tesouros que não são dignos disso. Quanto a ti, volta
para perto dos teus

l- E11COntram-se aqui os três Domes da Mulher Primordial, a que estava


adormecida durante

0 dilúvio e que simboliza a Irlanda. Os três reis possuem nomes reveladores: Mac
Cuill significa literalmente «filho de aveleira» (sendo a aveleira uma árvore mágica
e druidica), Mac Ceclu, «filho do arado» e Mac Greine «filho do sol».

145

138
e diz-lhes que em breve concluiremos um tratado entre nós.»

Ith disse-lhes adeus e, satisfeito por ter cumprido a sua missão, voltou para o lugar
onde os filhos de Milé tinham desembarcado. Entretanto, os chefes das tribos de
Dana começaram a conspirar nas

suas costas. Diziam que ele era filho de um dos reis do mundo, e que viera espiá-
los com o objectivo de se apoderar de toda a ilha, sendo necessário impedir que
aquelas gentes se instalassem naquelas terras que as tribos de Dana tinham
conquistado mercê do seu valor, da sua bravura e da sua tenacidade.
Combinaram então matar Ith e puseram-se em sua perseguição, ferindo-o
gravemente. Ith conseguiu ainda chegar à presença dos filhos de Milé e teve
tempo para lhes contar o que se passara, mas morreu logo de seguida. Muito
consternados, os seus irmãos e os outros filhos de Mílé fizeram-lhe uma sepultura
junto da qual erigiram um marco funerário. «Não permitiremos que este crime
fique impune», disse Eber Donn, o irmão mais velho de Ith. «Vamos
imediatamente pedir aos reis das três tribos de Dana que seja feita justiça.»

Puseram-se então a caminho tomando a direcção de Tara. Pelo caminho


encontraram Bariba, uma das três rainhas. Ao vê-los aproximarem-se, ela disse-
lhes: «Se viestes a esta ilha com o propósito de vos apoderardes dela, ficai a
saber que as estrelas não vos estão favoráveis.» «E por necessidade que aqui
estamos», respondeu Amorgen, o poeta. «Mas com que direito te permites
pronunciar palavras tão nefastas? «Fazei-me um favor», disse Bariba. «Qual?»,
perguntou Amorgen. «Gostava que o meu nome fosse dado a esta ilha» «E como
te chamas, e de que raça és tu?», perguntou Amorgen. «Chamam-me Banba»,
respondeu ela, «e sou da raça de Adão. Sou mais velha que Noé. Durante o
dilúvio estava no cume da montanha, e as vagas do oceano não me atingiram» Os
druidas dos Filhos de Milé lançaram então um encantamento, e Bariba afastou-se
sem que eles lhe fizessem o favor.

Mais adiante, encontraram FothIa, a segunda das três rainhas. Ela dirigiu-se-lhes
nos mesmos termos de Bariba, e eles desembaraçaram~se dela voltando a lançar
encantamentos. Depois, pondo-se de novo a ca~ minho, encontraram a terceira
rainha, esposa de Mac Greme, que dava pelo nome de Eriu. «ó guerreiros»,
exclamou ela ao vê-los, «sede beir. vindos a esta ilha. Há muito que os nossos
profetas anunciaram a vossa vinda. Esta ilha será vossa para todo o sempre e não
haverá terra tão magnífica no mundo inteiro. Nenhuma raça será tão numerosa
como a vossa.» «A profecia é boa», disse Amorgen do joelho branco. «Gostava

que se desse o meu nome a esta ilha», respondeu ela. «Pois bem», disse
Arnorgen, «então que o teu nome seja o seu principal nome.»

E ern seguida chegaram a Tara. Eber Donn e os irmãos foram recebidos pelos
três reis, e protestaram com veemência contra o crime que fora cometido contra
Ith, pois este levara-lhes uma mensagem de paz e não possuía quaisquer
propósitos agressivos ou mal intencionados.

139
Os reis estiveram muito tempo a ponderar e depois deten-ninaram o seguinte: os
filhos de Milé deveriam voltar para os seus barcos e levantar âncora, e se num
prazo de três dias conseguissem aportar de novo, toda a ilha passaria a pertencer-
lhes. Se, pelo contrário, ao fim de três dias, os Filhos de Milé não conseguissem
aportar, a ilha continuaria na posse exclusiva das tribos de Dana. Pensavam os
três reis que os Filhos de Milé nunca mais voltariam, pois os druidas lançariam
tantos encantamentos contra eles que os impeliriam muito para longe de terra.
«Nós vamos pensar», disse Eber Donn. «Que pensa Amorgen desta proposta?»
«Parece-me razoável», respondeu Amorgen. «Até que distância iremos?»,
perguntou Eber Donn. «Iremos para além de nove vagas.»

Os Filhos de Milé deixaram então a fortaleza de Tara e dirigiram~se para sul até
ao porto de Seria, na foz do rio Felle, onde tinham ficado os seus barcos.
Embarcaram neles, levantaram âncora e navegaram para além da nona vaga. Os
druidas das tribos de Dana e todos os poetas lançaram-lhes então
encantamentos, de tal modo que os ventos em~ purraram os navios para muito
longe da Irlanda, enchendo de angústia os seus tripulantes por se acharem no alto
mar.

«E um vento druídico que nos empurra para tão longe», disse Eber Donn. «Vejam
se o vento sopra debaixo dos mastros.» Olharam com atenção e viram que o
vento aí não soprava. «Paciência», disse Erech, um dos filhos de Milé que pilotava
o barco de Eber Donn; «só temos de pedir a Amorgen para se opor a este vento
druídico.» Erech era filho adoptivo de Amorgen e chamou-o. «É uma vergonha
para todos os nossos homens de arte», disse Eber Donn, «termos de suportar
durante tanto tempo a afronta que nos é infligida pelos druidas da Irlanda. «Não»,
respondeu Amorgen, «não é uma vergonha, mas os nOssos homens nada podem
fazer enquanto tu mesmo nada fizeres contra a magia das tribos de Daria.»

Eber Donn desembainhou a espada e apontou-a para o céu. «Por deus!»,


exclamou ele, «eu juro que trespassarei com o fio da minha espada todos aqueles
que vivem nesta ilha.» 0 vento mudou de

140
direcção e empurrou então os barcos dos Filhos de Milé para a costa onde
aportaram pouco depois. «Repara», disse Amorgen, «que o nosso poder druídico
vale mais do que o das tribos de Dana. Voltámos à Irlanda antes dos três dias que
nos tinham aprazado e temos agora o direito de nos apoderarmos de toda a ilha.»

Pegaram nas armas e em todos os seus apetrechos e puseram-se a caminho de


Tara. Entretanto, os chefes das tribos de Dana já sabiam do seu regresso à
Irlanda, tendo-se reunido à pressa ria casa real de Tara, Estavam aí os três reis,
Mac Cuill, Mac Cecht e Mac Grein, assim corno Mananann, filho de Lir, Goibmu, o
ferreiro, Díancecht, o médico, Lug do Braço Longo, filho de Cian, Dagda, a quem
também chamavam Z

Eochaid Ollathaír, e Bobdh Derg, filho de Dagda. Estudaram aprofun~ dadamente


a situação, mas não conseguiram encontrar nenhuma forma para evitar o conflito
que fatalmente os iria opor aos Filhos de Milé. «Temos de partilhar o país com
eles», disse Dagda. «É ímpossível», responderam os três reis. «Temos de os
expulsar desta terra, pois nós somos os únicos donos desta ílha.» «Nós fizémos
um acordo com eles», disse Lug, «e devemos respeitá-lo. Segundo esse acordo,
se eles conseguissem aportar a esta ilha antes dos três dias combinados, tornar-
se-iam os donos da Irlanda. Respeitemos pois os nossos compromissos e
retiremo-nos para os nossos domínios feéricos. Aí seremos sempre nós a mandar,
aconteça o que acontecer, e eles não conseguirao aproximar-se de nós sem que o
saibamos.» «Além disso», acrescentou Mananann, «temos o poder de nos
tornarmos invisiveis, e poderemos por isso errar pelo mundo sem que alguém
possa suspeitar da nossa presença.»

Mas os três reis das tribos de Dana mostraram-se ínamovíveis e exigiram dos
seus companheiros que se envolvessem numa luta sem quartel contra os Filhos
de Mílé que diziam descender de uma mesma linhagem que eles, a linhagem dos
filhos de Nemed. Deste modo propuserani que se formasse um exército e que este
se opusesse com vigor, tanto pelo poder mágico como pelo das arinas, às
pretensões dos Filhos de Milé de ocuparem toda a Irlanda. Por fim, todos
aceitaram, uns com melhor vontade do que outros, enfrentar os invasores e evitar
que eles se apoderassem da Ilha Verde. 0 destino assim determinaria o que
viesse a acontecer, e todos juraram que se confoririariam com o resultado do
conflito.

As tribos de Dana reunirani todos os homens disponíveis, que não eram muitos, e
confiavam sobretudo no poder mágico dos seus druidas que lhes prometiam a
vitória sem a perda de vidas humanas. As tropas

reagruparam-se longe de Tara, num lugar que se chamava Tailtiu em honra da


ama de leite de Lug do Braço Longo, e onde este mandara que ela fosse
enterrada. Aí em honra dela Lug do Braço Lon go’

g realizava- se jogos e, festas que se desenrolavam dez dias antes do início do


mês de Agosto e dez dias depois, e chamavam-se esses jogos e festas Lugnasad,

141
ou seja, «Assembleia de Lug», nome que passou a designar o mês de Agosto.

Foi pois em Tailtiu que se enfrentaram as tribos de Dana e os Filhos de Milé.


Como o exército dos primeiros era pouco numeroso, os seus druídas lançaram
encantamentos e incitaram as tropas a oporeiri-se aos invasores, Mas os druidas
e os poetas dos Filhos de Milé
1

não demoraram a perceber que os seus inimigos recorriam à magia, e por isso
lançaram também eles encantamentos. Desse modo, daí a pouco tempo todos
viram que os belos exércitos das tribos de Daria se tinham transformado em
arbustos e em torrões de turfa, o que não impediu que os três reis Mac CuilI, Mac
Cecht e Mac Greine sucumbissern às mãos dos Filhos de Milé.

Privadas dos seus chefes, as gentes das tribos de Dana foram aconselhar-se com
Morrigane, que lhes disse que era altura de celebrarem a paz, pois a magia dos
Filhos de Milé era muito superior à deles. Deste modo Dagda e o seu filho Bobdh
Derg, na companhia de Mananann, filho de Lir, foram encontrar~se com os Filhos
de Milé para lhes proporem uma forma de partilharem a Irlanda. Começaram por
se sentar em frente a uma fogueira, partilharam os alimentos que tinham sido
passados pelo lume, depois beberam cerveja e hídromel, sendo por fim celebrado
um acordo.

Eber Donri e os seus Irmãos fizeram prevalecer a Ideia de que as tribos de Dana
eram culpadas de um crime contra Ith, filho de Bréogan, que era rei, e, naquelas
condições, deveriam pagar uma grande compensação, naquele caso a Irlanda
inteira. Mas as tribos de Daria de modo algum queriam abandonar esta ilha que
noutros tempos tinham conquistado e por isso chamaram o sábio Fintan, filho de
Bochra, que falou a uns e a outros e demonstrou que era preferível celebrar a paz
do que continuar com guerras até ao fim dos tempos. Fíntan e Amorgen
prepararam então os termos de um tratado cujo juramento deveria ser feito em
nome dos deuses protectores: os Filhos de Milé ocupar-se-iam da superfície da
Ilha Verde, encarregando-se do cultivo da terra e da criaÇão de animais, enquanto
as tribos de Daria se retirariam para o mundo dos tumulus e para pequenas ilhas
que existem ao largo da Irlanda.

142
Deste modo, cada tribo estaria no seu domínio, o que não impediria que houvesse
contacto entre os membros de uma e outra. Nomeadamente foi determinado que
as gentes das tribos de Dana poderiam, se fosse esse o seu desejo, deixar o
mundo invisível e vir fazer companhia aos Filhos de Milé, podendo por sua vez os
Filhos de Milé visitar o domínio das tribos de Dana todos os anos, enquanto
durasse a festa de Samain,

0 tratado foi celebrado sob juramento e solenemente por ambas as partes. Deste
modo as tribos de Dana retiraram-se para o domínio obscuro dos trimulus e para
as ilhas que rodeiam a Irlanda, enquanto as tribos dos Filhos de Milé se
espalharam por todo o país, construindo aí fortalezas, cultivando a terra e
cuidando de belas pastagens para os animais que tinham levado consigo.
Terminou assim a batalha de Tailtiu, com grande satisfação de ambas as partes, e
começou então na Irlanda o reinado dos Filhos de Milé, aqueles a quem hoje se
chama gaélicos.11)

1. Segundo o Livro das Conquistas.

l iÍ1 epois da batalha de Tailtiu e a partilha da Irlanda entre as tribos de Dana e


dos Filhos de Milé, ambas se organizaram de acordo com os seus costumes
antigos e as suas leis ancestrais. Os Filhos de Milé confiaram o poder real a dois
dos filhos de Bréogan, Eber Donn, o mais velho, e Eremon, o mais novo. Eber
ficou com o sul da Ilha Verde, cabendo a Eremon a soberania do norte. Mas os
dois irmãos não se entenderam e daí a pouco travaram uma batalha sangrenta.
Eber Donn foi morto, e Eremon tornou-se o rei supremo de toda a Irlanda, organi~
zando grandes festas na casa real que se situava no interior da grande fortaleza
de Tara.

As trbos de Dana, por seu lado, e de acordo com o que ficara acordado com os
Filhos de Milé, tinham-se refugiado nos domínios féericos, debaixo dos ttimultis,
em cavernas profundas no interior da terra, em palácios que construíram no fundo
de lagos, assim como nas ilhas que rodeavam a Irlanda. E como os seus três reis
haviam perecido na batalha de Tailtíu, reuniram-se um dia para designar aquele
que reinaria entre elas.

Tiveram de escolher entre os seus diversos heróis, tais como Mananann, filho de
Lir, ou o grande Dagda, ou o ferreiro Goibniu, ou Mider de Bri Leith, irmão de
Dagda, ou ainda Bobdh Derg, filho de Dagda. Quanto a Lug, filho de Cian, este
decidira jamais voltar a ser rei, Preferindo manter~se completamente livre para
fazer o que muito bem lhe aprouvesse.

Ora, depois de acesas discussões, as gentes de Daria decidiram dar


0 Poder real a Bobdh Derg, filho de Dagda, tendo em conta tanto a sua

143
nobreza como a sua sabedoria herdada do pai. Este facto provocou o despeito de
Lir, que reinava no tumul Já que ele esp

ws de Fímiachaid, Crava ver atribuída a coroa ao seu próprio


filho, Mananann.(” Contrariado, ele abandonou por isso a assembleia das tribos de
Dana sem se despedir de ninguém e sem pronunciar uma palavra. A sua atitude
chocou de tal modo os chefes que, depois de terem confirmado solenemente
Bobdh Derg, todos pensaram numa maneira de o castigar pelo seu desdém e pela
sua descortesia.

Alguns chefes chegaram mesmo a propor que se deveria perseguilo até sua casa,
incendiar a sua fortaleza e matá-lo com uma lança e uma espada como se ele
fosse um criminoso. E não era realmente um criminoso, por ter recusado inclinar-
se perante o rei que tinha sido designado pelas tribos de Dana como sendo o
melhor para as conduzir? «Não posso acatar a vossa proposta», respondeu
Bobdh Derg, «Uir é um guerreiro corajoso, sempre pronto a lutar até às últimas
consequências por uma causa que lhe tenha sido confiada, e o facto de não se
inclinar perante mim não impede que eu seja o rei das tribos de Dana.»

Assim falou Bobdh Derg e, para provar a sua estima e deferência por Uir, elegeu
Mananann, filho de Uir, para seu principal conselheiro. Mananann aconselhou-o
então sobre a melhor maneira de distribuir as tríbos de Dana pelo território da
Irlanda, de acordo com a partilha combinada com os Filhos de Milé. Segundo ele,
era preciso dispersar as tribos pelos tumultis e fixá-las também nas colinas e nas
planícies mais distantes e

Uir é urna personagem emblemática. Traduz-se muitas vezes o seu nome por
«mar» ou «vagas», mas esta etii-nologia é pouco certa pois a trIanda pagã não
tem um deus marinho (aliás, só tem um deus lavrador). Lir, por viver ern ilhas
distantes, não tem de ser por isso o deu- da navegação marítima. Além do mais,
os gaêlicos parecem ter horror ao mar e rião têm interesse pelo que se passa no
oceano, com a excepção de quando o designam por país do Outro Mundo. Os
gaélicos estão muito mais ligados às fontes e aos rios, portanto às águas doces,
como o parece revelar o nome de Nechtan (derivado do latim Nepturiu,), outra
denominação de Elernar, irmão de Dagda, proprietário de Brug-na-Boyiie, ou seja,
Newgrange. Uir tem, como correspondente em galês LIvr (o rei Lear de
Shakespeare), pai dos heróis Brân Vendigeit «<Corvo Bendito»), Branwen («Corvo
Brarico») e Manawyddan, correspondente britónico exacto do gaélico Mananann,
ele próprio epónimo da ilha de MaD. Esta tiltíma personagem aparecia muitas
vezes nas narrativas irlandesas como SCIldO originária de ilhas distantes, ou seja,
da Terra da Promessa, espécie de paraíso ceita, às vezes chamado Emain
Ablach, nome no qual se encontra o termo que designa as macieiras, o que
remete para a ilha de Avalon da lenda arturiaria. Às vezes Mananann chega a ser
apresentado a cavalgar um fogoso corcel no meio do mar, o que naturalmente
poderia leva£ a associá-lo a Lima divindade marinha. Na tradição galesa,
Manawyddan, contudo, não teIn nenhuma ligação particular com o mar e não tem
nada de navegador.

144
isoladas. Em seguida, Bobdh Derg distribuiu os chefes e os nob
1 seus domínios. Depois Mananann, que era um hábil mágico
res pe os

e um perito en, ciências druídícas, conferiu a todos o dom da invísibílidade, o


Festim de Goibniu e os porcos de Mananann: graças ao dom da invisíbilidade, só
eles se podiam ver uns aos outros; o Festim de Goibniu evitava que senússem o
avançar da idade; quanto aos porcos de Mananann, estes asseguravam-lhes
comida eternamente pois, mortos ao entardecer e comidos durante a noite,
voltavam a estar vivos na manhã seguinte.

Além disso, Bobdh Derg ensinou aos chefes e aos nobres das tribos de Dana
como fazer as suas residências feéricas e como construir as suas fortalezas de
modo a parecerem as da Terra da Promessa, às vezes chamada Emain Ablach, e
que está perdida algures no meio do vasto oceano. Deste modo os chefes das
tribos de Dana, em sinal de gratidão, convidaram Bobdh Derg a visitar as suas
residências assim que elas estivessem prontas, e a assistir ao festim que
realizariam para celebrar a Festa do Tempo, altura que era escolhida para prestar
homenagens e tributos.(,)

E assim foi. Entretanto, Uir foi vítima de uma grande desgraça: a sua mulher, mãe
de Mananann, morreu ao fim de uma doença que durou três anos. Este infortúnio
custou-lhe muito, pois devotava à falecida mulher um amor profundo e sincero,
chorando amargamente a sua morte. A notícia espalhou-se por toda a Irlanda e
chegou à residência de Bobilli Derg na altura em que este estava reunido com os
chefes das tribos de Dana. «Se Lir aceitar a minha amizade», disse Bobdh Derg,
«eu poderei atenuar-lhe o sofrimento provocado pela morte de quem ele amava.
Tenho aqui, na minha casa, três jovens muito graciosas, de óptima aparência e
famosas em toda a Irlanda, Aeb, Aifé e Ailvé, todas filhas de Aílil], rei de Arann.
Elas estão sob a minha guarda e prot-c40, pois foram-me entregues na condição
de eu ser o seu pai adop-

Que pensais disso? Se eu lhe propusesse uma delas para esposa, o nosso
diferendo ficaria resolvido...»

Os chefes e os nobres das tribos de Dana acharam a ideia excelente.

Os dois Parágrafos dedicados à distribuição das tribos de Dana e aos dons


mágicos que ’h” são atribuídos têm origem em Altranth Tige da Medar (o alimento
da casa dos dois ’OPOs), narrativa contida no Livro de Fermoy, manuscrito do
século XV publicado com tradução inglesa por Lilian Duncan em Eriu, vol. X1,
Dublin, 1932. Tradução francesa de Ch--J. Guyonvare-h em Textos mitológicos
irlandeses, Rermes, 1980.

145
Foram então enviados a Uir mensageiros da parte de Bobdh Derg para lhe
perguntarem se gostaria de firmar um acordo de amizade com o rei recebendo
dele para esposa uma das suas filhas adoptivas. Lir ficou eincantado com a oferta
que lhe foi feita e pôs-se a caminho, no dia seguIIIte partindo da sua casa da
Colina Branca, com cinquenta carros muito belos, em direcção ao Lago Derg onde
Bobdh fixara a sua residência e construíra a sua fortaleza. Aí chegado, foi muito
bem recebido i

e viu-se rodeado das mais lisonjeiras atenções.

As três filhas de Ailill, rei de Arann, estavam sentadas no mesmo assento que a
rainha, mulher de Bobdh e sua mãe adoptiva que nutria por elas um imenso amor-
«Lir», disse Bobdh Derg, «estão aqui as filhas do rei Arann. Podes escolher a que
riials te agradar.» «Não me é fácil fazer uma escolha», respondeu Lir, «pois todas
elas são muito bel as e de grande nobreza. De qualquer modo, penso que seria
conveniente escolher a mais velha.» «Assim sendo», disse Bobdh Derg, «a mais
velha é Aeb, que será por isso tua esposa, se for esse 0 teu desejo.» «E esse o
meu desejo», afirmou Uir.

Desposou então Aeb naquela noite, e ficou a viver na casa de Bobdh Derg durante
quinze dias. Depois levou a mulher para a sua fortaleza, não sem antes ter
prometido a todos os chefes das tribos de Dana que os convidaria para a grande
festa das núpcias. Ach deu-lhe dois fi-

1 lhos, uma rapariga e um rapaz, que se chdmaram Finula. ou seja,


Espá dua Branca, e Aedh, ou seja, Fogo. Ao fim de um certo tempo, ela voltou a
engravidar e, desta vez, deu à luz dois filhos que se chamarani Conn e Fiachra.
Aeb, contudo, morreu no parto, facto que voltou a mergulhar Uir numa grande
amargura e tristeza.

A notícia desta triste ocorrência não demorou a chegar a casa de Bobdh Derg, e
todos os que aí se encontravam deram três oritos para laZn

mentar a perda da filha adoptiva. Mas, quando acabaram de a chorar, Bobdh Derg
disse: «0 amor que tínhamos pela nossa filha e a amizade que nos liga àquele a
quem a entregámos como esposa fazem com que nos sintamos muito
consternados pela sua perda. Mas a amizade por Uir roan-

rmã da defunta.» ter-se-á como dantes, pois dar-lhe-ei outra mulher, Alfé, i

Quando soube desta oferta, Lir veio buscar a segunda jovem aO lago Derg, casou
com ela imediatamente e levou-a com ele para a casa da Colina Branca. Aifé
estimava profundamente e tratava muito bem Os quatro filhos da sua irmã mas, na
verdade, ninguém no mundo poderia deixar de o fazer, tão cheios de graça eles
eram. 0 próprio Bobdh Def9

rfluitas vezes ia a casa de Lir para os ver, e levava-os para passarem uns

146
tempos com ele, pois achava muito agradável a sua companhia.

Naquele tempo, as tribos de Dana celebravam a Festa do Tempo debaixo dos


outeiros e das colinas feéricas, cabendo a cada um dos chefes convidar,
altemadamente, os outros para a sua residência, Ora, chegou a vez de Uir receber
na Colina Branca os chefes e os nobres das tribos de Dana, que foram chegando
e ficando encantados com a beleza e

ileza dos filhos de Lir, que a todos enchiam de alegria e de coma gent,

prazimento. Era costume deles dor iiirem no mesmo quarto do pai e, quando Lir se
levantava, de manhã, ’a sempre deitar-se por alguns moinentos ao lado deles.

Mas este comportamento de Uir teve como consequência fazer com que Aifé
ficasse extremamente enciumada com os filhos da sua irmã, ao ponto de os
ciúmes se transformarem em despeito e em ódio. Então,

um ano Aifé adoeceu e fez-se passar por vítima de uma febre que daudrooeucer e
lhe inteiro, decidindo então livrar-se daqueles que a faziam

provocavam clumes. Assim, um dia ela aparelhou o seu carro, convidou as


quatro crianças para a acompanharem à casa de Bobdh Nerg, e quando elas se
sentaram a seu lado Aifé fez com que os cavalos se dirigissem para o lago Derg.
Mas Finula estava contrariada, pois suspeitava que Alfé lhes queria fazer mal,
tendo-lhes um ódio de morte, e um sonho tinha-lhe mesmo revelado que a irmã da
mãe projectava vingar-se daqueles que lhe provocavam insuportáveis ciúmes.

Ora, Aifé fez o carro parar num vale e ordenou aos criados: «Matai os filhos de Lir,
pois eles roubaram-me o amor do seu pai, e eu dar-vos-ei como recompensa tudo
o que houver de melhor neste mundo.» «Não podemos obedecer-te»,
responderam os criados, «poís estas crianças são dignas de todo o respeito e
amor. Um dia, rainha, pagarás por essa tua intenção tão perversa.»

Então, como os criados se recusavam terminantemente a fazer mal aos filhos de


Uir, Aifé empunhou uma espada e quis ela mesma praticar
0 crime, faltando-lhe no entanto a coragem no derradeiro momento e dando por
isso ordens para que a viagem prosseguisse. Quando chegaram ao pé do Lago
Darvra, ela mandou as crianças tomarem banho no lago. Mas, ainda eles não
tinham mergulhado nas águas e, batendo-lhes com uma varinha mágica e
druídica, ela transformou-os em qua~ trO cisnes graciosos e brancos. «Parti
agora, filhos do rei», disse-lhes ela. «Parti e erral pelo vasto mundo. Haveis sido
condenados a uma ter-

147
rível aventura e todos aqueles que vos amam sofrerão por isso. Doravante será
entre os pássaros que se ouvirão os vossos gritos e os vossos lamentos.»
«Bruxa!», exclamou Finula. «Tu tocaste em nós sem te termos feito mal, mas
podes ter a certeza de que pagaras muito caro pela tua maldade e pela tua
desfaçatez, e no fim nada te poderá valer! Díz-nos só por quanto tempo teremos
de suportar o feitiço de que somos vítimas.» «Se quereis saber, di-lo-ei, mas isso
só servirá para aumentar a vossa mágoa e a vossa angústia», respondeu Alfé.
«Conforme. é meu desejo, o vosso feitiço durará enquanto a Mulher do Sul não
tiver encontrado o Homem do Norte. E já que não resistis à curiosidade, sabei que
nenhum amigo nem nenhum poder vos poderá livrar da forma em que vos
transformei enquanto vós não tiverdes vivido trezentos anos no Lago Darvra,
trezentos anos no Mar de Moyle, entre a Irlanda e a Escócia, e trezentos anos na
angra de Doninann. Apesar da vossa aparêncía, mantereis a vossa linguagem e
cantareis a música doce dos palácios feéricos, que é de tal modo límpída e suave
que adormece todos aqueles que a ouvem. Ficareís pois novecentos anos a terde
suportar na superfície das águas o vento glacial e o sol escaldante. E essa a
minha vingança, filhos de Li^r, por me terdes privado do amor do vosso pai.»

Voltando a subir para o carro, ela ordenou que se prosseguisse a viagem. Assim,
ela continuou o percurso até à casa de Bobdh Derg onde foi muito bem recebida
pelos chefes e pelos nobres das tribos de Dana, admírando-se no entanto Bobdh,
filho de Dagda, por ela não ter trazido as crianças. «A razão é simples», disse ela.
«Uir já não te ama e não te quer confiar os seus filhos, com medo de que não
tomes beni conta deles, na sua ausência.» «Isso surpreende-me», disse Bobdb
Derg, «pois sei que Lir tem a máxima confiança em mim e me confiaria com toda a
boa vontade os seus filhos que amo tão profundamente como se fossem os meus
próprios filhos.»

Mas ele pensou com os seus botões que a mulher o estava a enganar e por isso
apressou-se a enviar mensageiros para a casa de Uir, na Colina Branca. Ao ver
estes chegarem, Lir perguntou-lhes o que os levava ali,

«E por causa das crianças», responderam eles. «Como?», admirou-se Uir. «Elas
não foram para a casa de Bobdh Derg na companhia de Aifé?» «Não»,
responderam os mensageiros. «E diz Aifé que tu é que não quiseste que elas
fossem para a casa do filho de Dagda, com medo de que ele não tomasse conta
delas.»

Ao ouvir aquelas palavras. Lir ficou muito perturbado, pois pensou

jogo que Aífé devia ter feito algum mal aos seus filhos. Assim, logo lia manhã
seguinte, aparelhou o carro e tomou a direcção que levava ao Lago Darvra.
Quando estava a chegar às proximidades do lago, os quatro cisnes aperceberam-
se dos cavalos e do carro, e disse Finula para os seus irmãos: «Que seja bem
vindo este grupo que se aproxima do lago, pois os homens que dele fazem parte
são nobres e poderosos. Nas suas feições há muita tristeza e mágoa, e sem
dúvida estão aqui por andarem à nossa procura. Aproximemo-nos da margem,

148
pois aqueles que se acercam de nós SãO Por Certo Lir e as gentes da sua casa.»

Lir, entretanto, fez parar o carro e aproximou-se da beira do lago. Viu os cisnes
virem ao seu encontro e, espantado por eles terem uma voz humana, perguntou-
lhes a razão de um tal mistério. «Eu vou-te contar», disse Finula. «Os quatro
cisnes que vês são os teus próprios filhos, e foi a tua mulher, irmã da nossa mae,
que, toda enciumada, nos metamorfoscou para que nos perdêssemos,» «Há uma
forma de vos fazer voltar à forma normal?» «Não há. Ninguém pode fazer nada
por nos, ao menos enquanto não tivermos passado pela prova do tempo, que
deverá manter-nos nesta situação durante novecentos anos. Vê bem a nossa
triste sorte.»

Ao ouvir estas palavras, Lir e as suas gentes Soltaram três grandes gritos de dor e
de lamento. «Quel-eis vir connosco para a nossa terra», Perguntou ele, «já que
conservais a linguagem, a razão e a memória?» «0 sortilégio que se abateu sobre
nós», respondeu Finula, «não nos perrnite que vivamos com qualquer outro ser
humano e por isso deveremos Permanecer Destas águas. Mas resta-nos a nossa
linguagem, e podemos entoar músicas suaves, iguais às que se ouvem nos
palácios feéricos. Se Passardes a noite perto do lago, adormecereis embalados
pela suave RIelodia dos nossos caiitos.»

Ur e aqueles que o acompanhavam, interromperam então a sua Viagem e


acomodaram-se naquele lugar para passar a noite. Apuraram os Ouvidos ao canto
dos cisnes, e as horas passaram por eles com uma extTema doçura. Mas, na
manhã seguinte, Lir anunciou aos cisnes que tinha de partir, mas que jainais os
esqueceria. Depois, prosseguiu o seu clininho até ao Palácio de Bobdh Derg.

Foi aí acolhido com todas as honras e com toda a benevolência, inas 0 filho de
Dagda censurou-o por não ter levado os filhos com ele, «()ra essa!», respondeu
Lir, «Por certo não seria eu a recusar-me a traZer os meus filhos a tua casa, bem
Pelo contrário. Foi Aifé, a tua filh2

149
adoptiva, irmã da mãe deles, que lançou sobre eles um sortilégio, fazendo com
que se transformassem em cisnes brancos no Lago Darvra, o que pode ser
comprovado por todas as gentes da Irlanda. Agora eles são cisnes embora
mantenham a razão, o espírito, a voz e a linguagem que encontramos nos seres
humanos.» iva e, manPerante esta notícia, Bobdh Derg ficou
possesso de rai

dando chamar Aifé, censurou-a veementemente pela má acção que praticara. «A


tua maldade terá um preço muito alto», disse-lhe ele, «e Por teres mudado a
aparência dos filhos de Lir, espero que sejas tu mesma vítima de um ,sortilégio
semelhante. Diz-me qual é a Pior das formas em que gostarias de ser
transformada! » «A pior de todas, segundo penso», disse ela, «seria a de um
demónio do ar.» «Pois bem», exclamou Boddh Derg, «nesse caso é essa a forma
que tomarás!»

Ele tocou-lhe logo de seguida com a sua varinha mágica e druídica, e Aifé
transformou-se de repente num espírito maligno do ar. Então misturou-se com o
sopro do vento, e permanece com esta forma até à consumação dos séculos,
como castigo pelo crime perpetrado na pessoa dos filhos de Uir.

Quanto a Bobdh Derg e aos nobres das tribos de Dana, voltaram ao Lago Darvra
e aí se instalaram para ouvirem o canto dos cisnes. E os Filhos de Milé, que
tinham reparado na beleza destes cantos, costumavam também deslocar-se para
ali vindos de todos os cantos da Irlanda. Na verdade, na Ilha Verde, nunca houve
música que se pudesse comparar à dos quatro cisnes. E os cisnes contavam
também histórias e entretinham-se a conversar todos os dias com os homens e as
mulheres que tinham conhecido no passado, quer tivessem sido os seus antigos
mestres ou os seus antigos parceiros de jogo, E, todas as noites, eles entoavam a
música suave do país feérico, de tal modo que, por muitas mágoas e tristezas que
alguém tivesse, adormecia cheio de paz e de bonomia. Ao ouvir-se o canto dos
quatro cisnes, a felicidade era plena.

As tribos de Dana e dos Filhos de Milé reuniram-se nas rnargells do Lago Darvra
durante trezentos longos anos. Ao fim desse tempo, disse Finula aos seus irmãos:
«Sabeis que já se cumpriu o tempo que deveríamos passar aqui? Amanhã
deveremos partir.»

Ao ouvirem aquelas palavras, os filhos de Uir ficaram cheios de Pcna, pois a


possibilidade de falarem com os seus conhecidos, familiares o amigos,
permitia~lhes suportar a sua sina sem terem um grande sofrimento. Além disso,
sabiam que estavam condenados a ir para regiócs

muito inóspitas, fustigadas por ventos cortantes que vêm do norte. Na inanhã
seguinte, os três irmãos e a irmã vieram pela última vez falar aos seus dois pais, a
saber Lir, o pai natural, e Bobdh Derg, o pai adoptivo. Disseram-lhes adeus, e
Fmula entoou um canto de t i

150
rIsteza em que lamentava ter de partir para paragens desconhecidas e afastadas
das que amava. Quando Finula acabou de cantar, os quatro cisnes levantaram
voo

e, batendo as asas vivas e velozes, confundiram-s’e com o céu e tomaram a


direcção do Mar de Moyle, situado entre a Irlanda e a Escócia. Ao desaparecerem
nas alturas, deixaram com uni nó na garganta quem as via partir, e data desse
dia a ProibiÇão na Irlanda de matar cisnes.

0 Mar de Moyle era um lugar 1u01PItO e terrível para nele se viver. Quando os
filhos de Lir viram a vasta costa aparecer diante deles, senfiram a humídade e o
frio colar-se-lhes ao corpo e ficaram cheios de inedo e de angústía. Todas as
provações que já tinham passado pareciarn-lhes uma brincadeira quando
comparadas com as que previam. Certa vez, estando a ser fusÚgados por uma
grande tempestade, disse Finula aos irmãos: «A noite que se aproxima será
terrível e vem lá uma tempestade tão forte e violenta que corremos o risco de nos
separarmos uns dos outros. Devemos Por isso marcar um lugar de encontro para
o caso de o vento e a tormenta nos dispersarem.»

DecIdiram então encontrar-se na Ilha das Focas, pois todos conheciam a sua
localização. Ao aproximar-se a meia-noite, o vento redobrou de violência,
aumentou o rumor das vagas, os 1

clarões da trovoada incendiaram os céus, e o furacao que então se abateu sobre o


céu e os mares fOi de tal ordem que os filhos de Lir se dispersaram pelo vasto
oceano sem que pudessem saber do paradeiro de uns e outros. por fim a tor~
Menta acalmou e a terra e o céu encheram-se de bonança, achando-se -Finula
sozinha no Mar de Moyje. Então, ao ver que os seus irmãos tinham desaparecido,
entoou um canto de lamento e de desespero.

Depois, Sem perda de tempo, dirigiu-se para a Ilha das Focas e Passou aí toda a
noite. Ao nascer do sol, quando perscrutou o horiZonte, viu aproximar-se com
dificuldade o irmão Conn,

caída com a cabeça e a penugem desalinhada,


Ela acolheu-o muito bem e deu-lhe o rfláximo de conforto que pÔde. Pouco
depois, veio também, em péssir00 estado, Fíachra, que., meio encharcado, tremia
de frio e sofria ter-
1velrnente. Finula protegeu-o com a sua asa e murmurou: «Ficaríamos ll’u’tO
contentes se Aedh viesse ao nosso encontro ... »

Pouco depois, lá apareceu Aedh, de cabeça erguida e as penas

151
secas, pois encontrara uma gruta para se abrigar. Finula recebeu-O muito bem e,
para reconfortar os três, colocou Aedh debaixo do peito, Conn debaixo da asa
branca e Fiachra debaixo da asa esquerda, aconchegando-os a todos debaixo da
sua penugem que a todos aqueceu.

«Ah, meus irmãos! », exclamou ela, «Foi terrível a noite que passámos, mas
esperam-nos outras ainda mais cruéis!»

E, com efeito, eles tiveram de permanecer durante muito tempo no Mar de Moyle,
resistindo ao frio e às privações, e sendo visitados muitas vezes pela neve. Jamais
eles tinham passado tão mal! Choraram e gemeram lamentando a triste sina,
fustigados pelo frio da noite, pela neve muito espessa e pelo vento glacial que lhes
cortava a pele e lhes chegava aos ossos! Depois de terem penado nesta situação
durante um ano inteiro, abateu-se sobre eles uma noite ainda pior: estavam então
na Ilha das Focas, a água gelava à sua volta e, como estavam sobre as rochas, as
suas patas, as asas, as penas começaram a enregelar, colando-se de tal modo à
pedra que nem conseguiam fazer um movimento. Após fazerem um grande
esforço para se libertarem, finalmente conseguiram-no, mas deixaram sobre a
rocha a pele das patas, muitas penas e a extremidade das asas. «Ah, filhos de
Uir», disse Finula, «é muito triste a situação em que nos encontramos, pois a água
salgada provoca-nos uma dor intensa ao tocar-nos, e apesar disso estamos
condenados a não deixar o mar: além disso, corremos o risco de morrer se o sal
penetrar através das feridas que temos por todo o corpo.»

Voltaram para a corrente marítima de Moyle com o sal a provocar-lhes dores


intensas, estando condenados a penar naquela situação aflitiva. E permaneceram
junto à costa, sofrendo atrozmente até ao dia eni que se acharam completamente
curados, com as penas saradas e as feridas cicatrizadas. Já recuperados,
começaram então logo de manhã a voar até às costas da Irlanda e da Escócia
mas, todas as noites, antes dO pôr-do-sol, tinham de voltar ao Mar de Moyle.

Um dia, quando sobrevoavam as costas da Irlanda, chegaram à foz do Boyne e


viram aí um grupo de cavaleiros de belo porte, ricamente vestidos de branco, que
montavam cavalos muito ágeis e rápidos. «Sabeis quem são estes cavaleiros,
filhos de Uir?», perguntou Finula. «É bem possível que sejam Filhos de Milé ou
membros das tribos de Dana.»

Aproximaram-se da margem do rio para identificarem os belos cavaleiros que, ao


aperceberem-se deles, também se aproximaram Par estabelecer conversação.
Estavam entre eles dois filhos de Bobdh Derg,

Aedb do espírito ágil e Fergus o Sábio, e com eles havia também dois nobres das
tribos de Dana. Tinham deixado a casa de Bodh Derg para irem à de Lir onde iria
ser celebrada a Festa da Idade. Os cisnes identificaram-se então como sendo os
filhos de Uir e os nobres das tribos de Dana, muito satisfeitos Por encontrá-los,
deram-lhes as boas vindas e quiseram saber da sua sorte. Depois, Finula quis
saber notícias de Lir, de Bobdh Derg e de todos os chefes do povo feérico.

152
«Estão todos bem de saúde e mantêm as suas qualidades, como quando vós
estáveis entre nós», responderam-lhes. «Vivem nos mesmos lugares e amanhã
reúnem-se no palácio do vosso pai, na Colina Branca. Aí se celebrará a Festa da
Idade num clima de grande alegria e felicidade, apesar de se ]amentar a vossa
ausencia, pois ninguém sabia em que e que vós vos havícis tomado desde a
vossa partida do Lago Darvra». «Ah, oxalá tenhais melhor sorte do que nós»,,
disse Finula. «Desde então e até hoje passámos por terríveis e inimagínáveis
provações, e sofremos intermináveis tormentos no fluxo e no refluxo das marés.»

E logo a seguir ela entoou este canto:

«Paira uma grande alegria no palácio de Lir Aí bebe-se cerveja e hidromel,

Contudo, fria é a noite quando descansam os quatrofilhos do rei.

De nada nos valem os nossos tectos Pois só as penas nos cobrem o corpo.

Noutros tempos, os nossos vestuários eram de púrpura, bebíamos o doce


hidromel;

mas hoje o que temos para beber e comer e a arei.a e a salgada onda do mar
Tivemos outrora leitos bem macios

feitos de penas de pássaros;

mas hoje os nossos leitos são rochas nuas que as vagas não conseguem atingir.,
»

Entoado este canto, os pássaros despediram-se dos cavaleiros e desapareceram


nos confins do céu, Os nobres das tribos de Dana puseram-se em marcha na
direcção do palácio de Lir, na Colina Branca, e cOlItaram a todos as provações por
que tinham passado os cisnes e coMO era triste a sua sina. «Nada podemos fazer
por eles», disseram os

153
chefes e os nobres, «mas ficamos contentes por saber que ainda estão vivos e
temos a certeza de que serão salvos no fim dos tempos.»

Os filhos de Lir, por seu lado, voltaram para o lugar onde viviam no Mar de Moyle,
onde ficaram tanto tempo quanto aquele que já aí tinham passado. Mas, um dia,
Finula avisou os irmãos que precisavam de partir. «É chegada a hora em que
deveremos deixar este lugar maldito e partir para a angra de Dorimann. Mas
esperam-nos outras provações, pois aí não teremos nenhum lugar para aterrar
nem nenhum abrigo contra as tempestades. Partamos a pesar disso nas asas do
vento gelado, pois temos de cumprir a nossa triste sina.»

Deixaram o Mar de Moyle e, chegados à angra de Dorrinann, viveram uma vida


cheia de desgraças e de tormentas. Certa vez, tendo o mar gelado à volta deles,
imobilizou-os completamente. Perante o lamento dos três irmãos, Finula consolou-
os o melhor que pôde, lembrando-lhes que seriam salvos quando chegasse o
tempo da sua libertação. Viveram na angra de Dormiann durante os trezentos
anos que lhes tinham sido aprazados, dizendo Finula por fim: «Chegou a hora da
partida. Dirijamo-nos agora para o palácio da Colina Branca, onde vive o nosso pai
com as suas gentes.»

Os irmãos ficaram todos contentes e os quatro levantaram voo, parecendo que o


ar tinha ficado mais suave e mais leve. Assim, daí pouco tempo eles chegaram à
Colina Branca e nela pousaram, mas ficaram muito espantados e cheios de
angústia ao verem que aqueles lugares estavam completamente desertos. Só se
viam aí outeiros verdes e pedras dispersas forradas com urtigas. Os quatro então
chegaram-se uns aos outros e todos eles deram três gritos de dor e de lamento.
Depois, Finula entoou este canto:

«Oh que tristew! Tudo está deserto! Nem um tecto, nem um lar!

0 meu coração enche-se de amargura ao ver no que se tornou este lugar Nem um
cão, nem uma matilha,

nem uma mulher, nem uma sombra, nunca tinhamos visto este lugar assim
quando Lr o nosso pai, nele reinava.

Já não há taças nem bebidas inebriantes na sala iluminada,

nem.jovens cheios de alegria

nas salas defestas, durante osfestins. Quando penso nos outros tempos

o meu Coração pesa-me, e e com uma grande -

magoa que veio este lugar deserto e abandonado esta noite. »

Entretanto, Os filhos de Lir passaram aquela noite no lugar onde se erguera o

154
palácio do pai e onde eles tinham crescido. E aí entoaram a doce música do povo
feérico. Ao amanhecer, levantaram voo, ergue~ ram-se nos céus e viajaram para a
ilha de Clare. Quando lá chegaram todos os pássaros do país se reuniram à sua
volta, passando a chamar-se Lago dos Pássaros aquele lago onde se
encontravam.

Ora, aquele era o tIMPO em que o bem-aventurado Patrício tinha levado a fé de


Cristo para a Irlanda e o seu discípulo, que se chamava Mohévog, se tinha
estabelecido na ilha de Clare onde construíra um eremitério. Ao fim da primeira
noite que passaram nesta ilha, os filhos de Lir ouviram o som dum s’

mo que soava perto dali. Ficaram muito espantados e cheios de medo, Pois
jamais tinham ouvido um som como aquele. Ouviram o som do sino enquanto ele
durou e em seguida puseram-se a entoar em surdina a doce música dos palácios
feéricos.

Ao ouvir aqueles tons suaves, Mohévog, encantado com a tristeza daquele canto,
pediu a Deus que lhe mostrasse quem era capaz de entoar aquela música tão
bela que ele jamais ouvira antes. E, lia noite seguinte, teve um sonho que lhe
revelou que os cantores eram os filhos de Lir. Na manhã seguinte, deslocou-se ao
Lago dos Pássaros e, vendo Os quatro cisnes na superfície das águas,
aproximou-se da margem para ficar perto deles. «SOIs os filhos de Lir?»,
perguntou ele. «SOrnos», resPonderam eles. «Deus seja louvado», disse
Mohévog, «Pois o amor que tenho Por vós é que me trouxe até esta ilha, que
escolhi em vez de todas as Outras. Agora, filhos de Lir, vinde a terra e confiai em
m’

’Ofrimento acabou e ficareis debaixo da minha protecção.»lm* 0 vosso Eles


obedeceram-lhe, e Mohévog levou os para o

Senipre que Moliévog celebrava missa, eles estavam prese seu eremitério. tro
ficavam sentados em segurança e ao abrigo do frio e drites. E os quaMob -

as tempestades. evog inandou um hábil ferre-

tes C iro fazer umas correntes de prata brilhanmeteu umas entre


Aedh C Finula, e outras entre Conn e Fiachra. E os qllatro entoaram admiráveis
cantos que lhe encheram o coração de alegria.

Naquele tempo, o rei de Connaught era Lergnenn, filho de Col-

155
mann, e a rainha era Déoch, filha de Fingliinti. Eram o Homem do Norte e a Mulher
do Sul de que Aifé falara quando lançara o seu sortilégio sobre os filhos de Lir,
tendo previsto que eles se encontrariam. Ora, ao ouvir falar nos cisnes, a mulher
ficou ansiosa por possuí-los. Pediu a Lergnenn para ir buscá-los, e o rei
respondeu-lhe que iria pedir a Moliévog para lhe confiar os pássaros. Enviou então
mensageiros ao encontro de Moliévog, mas estes voltaram com a notícia de que o
santo eremita se recusava a separar deles.

Então, a rainha Déoch ficou furiosa, de cabeça perdida, e jurou que não passaria
nem mais uma noite com o rei se ele não lhe trouxesse imediatamente à sua
presença os pássaros que tanto dese ava. LergnenD foi por isso pessoalmente
falar com Moliévog e perguntou-lhe se era verdade que tinha recusado dar os
cisnes.

«É absolutamente verdade», respondeu Moliévo-

0 rei Lergnenn ficou enraivecido. Entrou na capela onde estavam os cisnes e


pegou neles, junto ao altar, preparando-se para os levar à rainha com dois em
cada mão. Mas mal ele tinha posto a mão neles, caiu-lhes a penugem e, em vez
de cisnes, apareceram diante dele três velhos magros e enrugados e uma velha
decrépita, todos eles descamados e sem pinga de sangue. E Lergnenn ficou de tal
modo horrorizado com aquele espectáculo que se pôs em fuga. Então, disse
Finula a Moliévog: «Santo homem, é altura de nos baptizares, pois não vamos
ficar muito tempo neste mundo. Quando morrermos, cava a nossa sepultura e põe
Conn no meu flanco direito e Fiactira no meu flanco esquerdo. Quanto a Aedh,
põe-no diante de mim, entre os meus dois braços. Apressa-te, pois o nosso tempo
está a chegar ao fim.»

Moliévog sem demoras baptizou os quatro filhos de Uir, e eles morreram daí a
pouco tempo. Então, Mohévog enterrou-os de acordo com as instruções que
Finula lhe dera. Erigiu um pilar de pedra na sepultura e gravou nele os seus
nomes em ogham. Depois, entoou umas orações para que os infelizes filhos de
Uir conquistassem finalmente a paz eterna.”’

1. Segundo a narrativa Oidheadh Clainne Lír (o destino trágico dos filhos de Ulr),
contida em diversos manuscritos do fim da Idade Média. Resumo pormenorizado
por MY1e’ Dillon em Early Irish Literature, Dublin, 1994. Tradução francesa de
Roger Chauviré 011, Contes ossianiques, Paris, 1949.

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1 - >. >

1 1 1 1 1 ?7:

, 1 0 tempo em que Bobdh Derg reinava sobre as tribos de Dana, os .principais


chefes do povo feérico visitavam-se frequentemente entre si, encontrando-se

156
nomeadamente para celebrarem em conjunto a Festa da Idade. Entre os chefes
havia um que era mais famoso do que todos os outros, Eochaid Ollathair, pai do
rei e mais conhecido pelo nome de Dagda. Este chefe era respeitado por todos,
pois era capaz de fazer grandes prodígios como desencadear tempestades ou
apaziguá-Ias. Além disso, Dagda era também capaz de proteger as colheitas, e
fazia com que os gados tivessem sempre pastagens muito ricas, vindo-lhe daí o
nome Dagda, que significa «deus bom». E as gentes das tribos de Dana, quando
precisavam de um conselho, nunca deixavam de o consultar acerca dos
acontecimentos do futuro, pois ele aliava as qua~ lidades de adivinho às de mago.

Um dia, Elcinar deu um grande festim na sua residência de Brug-naBoyne e


Dagda não pôde deixar de estar presente, pois Elcinar era seu irMão, e seria uma
grande desonra, perante as tribos de Dana, se não prestasse homenagem a quem
lhe era tão próximo e possuía, sem dúvida, o mais belo palácio de toda a Irlanda.,”
0 festim durou três dias e três noites.

Ora, Elcinar tinha uma mulher que se chamava Boann, e a beleza desta era tal
que, ao vê-Ia, Dagda ficou obcecado com a ideia de a possuir. Por isso, ficou à
espreita do momento propício para a encontrar

I. Lembremo-nos que se trata do cairi7 megalítico de Newgrange, no condado de


Meath, não longe de Slane, no cimo do vale de Boyne.

157
sem ninguém ver e, quando a ocasião surgiu, declarou-se-lhe sem vergonha nem
reservas. «Eu unIr-me-ei a ti de boa vontade», respondeu Boann, «mas receio o
que possa fazer Elciriar, pois ele é um mágico hábil e vingar-se-á de mim sem dó
nem compaixão.» «É verdade que ele é um mágico hábil», disse Dagda, «mas eu
sou mais hábil do que ele, e sei como o manter longe de tudo o que nos diz
respeito. Confia em mim, mulher, e nada reccies.»

Naquela mesma noite, Dagda pediu a Elciriar para levar uma mensagem da sua
parte a Bress, filho de Elattia, que vivia na Planície da Ilha. Na manhã seguinte,
Elciriar deixou assim o palácio de Brug para levar a cabo a sua missão. Mas,
tendo-se ele afastado um pouco, Dagda lançou-lhe grandes encantamentos para
que ele estivesse ausente durante um ano. Dagda fez com que ele se perdesse tia
escuridão da noite e andasse ao acaso por um longo período de tempo, pensando
apesar disso que a sua viagem só durara um dia e uma noite, o que o poupou às
agruras da fome e da sede.

Então, Dagda foi encontrar-se com Boann, e uniram-se com grande prazer de
ambos. Foi tão profícuo o resultado da união que daí a nove meses Boann deu à
luz o rapaz mais belo e mais perfeito do mundo. «Que nome lhe vamos dar?»,
perguntou Dagda. «Chamernos-lhe Angus,
1

ou seja, Escolha Unica», respondeu Boann, «pois ele é o fruto da minha união
contigo, tendo sido esta a única escolha da minha vida.»

0 filho de Boann e de Dagda foi assim chamado Angus, mas ern seguida passou a
ser chamado com mais frequência Mac Oc, ou seja, «jovem rapaz», pois era
o filho mais recente de Dagda e possuía todas as qualidades do pai, além de ter a
beleza da mãe. Quando Elcmar voltou da viagem, o parto de Boann já ocorrera há
muito tempo, mas, longe de imaginar o que se passara, ele continuou convencido
de que apenas estivera um dia e uma noite ausente da sua casa de Brug-na-
Boyne.

Antes do regresso de Elciriar, entretanto, Dagda enviara o filho para ser educado
na casa de Mider, no outeiro de Bri Leith. A escolha recaíra sobre Mider porque
nele Dagda depositava toda a confiança e sabia qu e ele daria ao rapaz a
melhor educação possível entre os rapazes niais nobres de toda a Irlanda. Deste
modo Angus, durante muitos anos, foi entregue aos cuidados de Mider, em Bri
Leith. Mider tinha um grande campo de jogos em frente da sua residência de Bri
Leith, e albergava nesta cento e cinquenta rapazes e cento e cinquenta raparigas
que tinharil sido confiados aos seus cuidados pelos chefes das tribos de Dana e
pCIOS

chefes dos Fir Bolg que habitavam ainda na Irlanda. Angus era o grande canipeão,
pois tinha uma força e uma habilidade Inigualávels, e MIder tratava-o com tanto
afecto como se ele fosse seu filho.

158
Ora, um dia, Angus entrou em conflito com Triath, filho de Fébal, do clã dos Fir
Bolg e um dos chefes dos Jogos realizados por aqueles que estavam a ser
educados no outeiro de Bri Teith. Triath era também uni dos filhos adoptivos de
Mider, que tinha por ele multa consideração. Triath acabara de criticar Angus por
ter ajuizado mal sobre o vencedor duma partida, e o jovem enfurecera-se. «Só me
faltava ter de levar lições do filho de um servo!», gritou ele.

Acontece que Angus pensava que Mider era seu pai e que iria herdar dele a posse
de Bri Leith, mal podendo suspeitar do seu parentesco com Dagda. Mas, ao ser
injuriado, Triath sobres saltara- se e retorquira: «E a mim só me faltava ter de
suportar que me levante a voz um mercenário que nem conhece o pai nem a
mãe!»

Ao ouvir aquelas palavras, Angus ficou espantado e estonteado, e foi logo ter com
Mider, pois queria saber se correspondiam à verdade as palavras de Triath.

«Que se passa’?», perguntou-lhe Mider ao vê-lo chegar com um ar sombrio e com


os olhos marejados de lágrimas. «Estou muito ofendido com Triath, o filho de
Fébal», respondeu Angus. «Ele atirou-me à cara que não tenho pai nem mãe. »
«Isso é falso», disse Mider. «É verdade que eu não sou teu pai, embora te tenha
criado com um amor de pai, mas Posso assegurar~te que tens um pai e uma
mãe.» «Então», disse Angus, «PeÇo-te que me digas quem é a minha mãe e onde
poderei encontrar o meu pai.» «A tua mãe é Boann, a mulher de Elcirtar de Brug-
na-Boyne, e o teu pai não é Elcrnar mas Eochaid Ollathair, mais conhecido pelo
nome de Dagda. Foi ele que me incumbiu de te educar, às escondidas de Elciriar,
para que este não ficasse ofendido por teres nascido na sua ausência. É esta a
verdade, meu rapaz, e não quero que me censures por te não ter revelado mais
cedo as tuas origens. Era preciso antes de mais proteger a tua mae, pois se
Elcinar tivesse tido conhecimento do que se Passou, ter-se-ia vingado iiela.»
«Muito bem», disse Angus, «fico-te grato por me revelares que não sou um rapaz
sem pai e sem mãe. Agora, VOU-te pedir que me leves a casa do meu pai, para
que ele me reconheça e assim eu deixe de estar sujeito aos insultos dos Fir Bolg.»

Mider partiu então com o filho adoptivo ao encontro de Dagda. Quando chegaram
a Uisnech de Meath, no centro da Irlanda, onde naque-

159
Ia época vivia Dagda, encontraram-no a meio de uma assembleia dos chefes e
dos nobres das tribos de Dana. Mider chamou-o e pediu-lhe Para se retirar por um
pouco para conversar com o jovem que o acompanhava. Dagda deixou a
assembleia o foi logo ter com eles. «Pois bem, que deseja este jovem guerreiro
que nunca aqui tinha v,ndo?» «É seu desejo ser reconhecido pelo pai», respondeu
Mider, «e que lhe sejam dadas terras, pois não é justo que o teu filho nada tenha
tendo tu vastos domínios em toda a Irlanda.» «Concordo contigo, e fico muito
satisfeito por poder dar as boas vindas a um filho», disse Dagda, «Acontece no
entanto que não tenho nenhuma terra livre nos meus domínios para poder
satisfazer o seu desejo.» «Tu não podes no entanto recusar terras ao teu filho»,
insistiu Mider. «Eu sei», disse Dagda, «preciso apenas de um tempo para
encontrar uma solução, e depois o seu desejo será satisfeito.»1’1

Dagda foi aconselhar-se com Mananann, filho de Lir, e, depois de ter exposto o
caso, ponderaram os dois sobre o procedimento a tomar. «Eu dar-lhe-el de boa
vontade o domínio de Brug-na~Boyne», ex-

plicou Dagda, «mas como havemos de consegui-lo de Elcinar? Ele nunca o


quererá dar ... » «Talvez se consiga alguma coisa...», respondeu Mananann.
«Ouve bem o que te digo sobre o que temos a fazer: Elciriar convidou os chefes e
os nobres das tribos de Dana para a celebração da Festa da Idade na casa de Br-
ug-na-Boyne, na véspera do próximo samain. Faz com que o teu filho te
acompanhe e eu pela minha parte farei com que lhe seja atribuído o domínio de
Brug, com o proprio consentimento de Elcinar, e sem que alguém possa opor-se,»

Deste modo, Mananann, Dagda e Angus partiram juntos para as margens do


Boyne, que tinham a erva seca coberta de orvalho. Forani aí recebidos com todas
as honrarias, e na sala do festim havia palha e rosas frescas para que eles
pudessem dispor de todo o conforto. A sala era bela e sumptuosa: o chão era de
bronze, de uma porta à outra, placas de bronze branco ornamentavam as
paredes, e havia animais de todos os géneros finamente esculpidos a decorarem
os leitos. Elernar dera ordens aos seus criados para irem aos lugares mais
remotos da Irlanda pescar e caçar pássaros e outros animais, em honra dos
visitantes. Os chefes das tribos de Dana sentaram-se para o festim, COn,

1. Segundo a narrativa Tocinarch Etaíne (La Courtíse d’Etaine), contida no Livre


Jaune de Ucan, editado e traduzido em inglês por 0. Bergin e R.I. Best, em Eriu,
vol. Xil, Dublin, 1938. Tradução francesa de Ch-J. Guyonvarch, em Textos
mitológicos irlandeses, Rennes, 1980*

13obdli Derg ao meio, Mananann à direita e Dagda à esquerda. Mais afastados,


encontravam-se Mider e Angus, com Elemar e Goibnlu.

Os convivas sentiam-se felizes e estavam de bom humor, pois eram obsequiados


com os melhores manjares e as melhores bebidas que se possa imaginar. Vieram
músicos recordar-lhes Outros tempos, e reeitaram-se poemas em que se
exaltavam grandes proezas das tribos de Dana quando tinham guerreado contra

160
os Fir Bolg e os Fomore. Depois, todos se foram divertir no prado em frente à
fortaleza e, nessa altura, Manannan chamou Angus à parte para que pudessem
falar sem serem ouvidos. «Esta casa é muito bela, ó Angus», disse Mananann, «C
nunca vi nenhuma tão bela na Terra da Promessa. Que bem situada ela está, num
lugar tão aprazível, nas margens do Boyiie, e na fronteira das cinco províncias! Se
estivesse no teu lugar, Angus, não ficaria descansado enquanto esta residência
não fosse minha, e lançaria encantamentos sobre Elcinar para o intimar a deIxá-la
imediatamente de forma a poder ficar na sua posse. Estamos na véspera de
Samain e como sabes, durante a noite de Samain, o tempo deixa de existir.
Bastar-te-á por isso pedir a Elemar que te deixe ser senhor de Brug durante uma
noite e um dia: ele estará tão entretido com a bebida que nem se aperceberá de
que, no decurso da festa do Samain, uma noite e um dia equivalem a uma
etem’dade.» «Porque me dás esse conselho?», Perguntou Angus. «Eu explico-te
o motivo», respondeu Mananann. «Como o teu pai quer que adquiras terras,
encarregou-me de te instruir sobre o que há a fazer.» «Nesse caso», disse Angus,
«seguirei o teu conselho.» «Jura então sobre o teu escudo púrpura e sobre a tua
espada que agirás rigorosamente de acordo com o que te direi.» Angus prestou o
juramento que Mananann exigia dele. «Muito bern», continuou Mananann, «fica a
saber que Elemar não é o dono legí~ timo desta residência e que o território de
Brug não deverá continuar na sua posse. Quando voltarmos para a sala para nos
regalarmos com as bebidas do festim irás ter com Elcinar e, desembainhando a
tua espada, arfleaçá-lo-ás de morte, mas nada lhe farás, desde que ele prometa
satisfazer a tua vontade que se traduzirá em ficares senhor de Brug por um dia e
uma noite. Ele não poderá recusar e, assim que se tiver esgotado o tenIPO, ele
pedir-te-á para voltar a ser o senhor de Brug, e tu dirás simPlesmente que o tempo
no mundo se mede por dias e noites, e que ele nada mais tem aqui a fazer, pois
deu Brug por uma eternidade.»

Voltaram todos para a sala do festim, e Angus seguiu à risca o conselho de


Mananann. Elcinar deixou-o ser senhor de Brug por uma noite e

161
um dia. Mas, consumado aquele tempo, quando reivindicou a devolução do seu
domínio, Angus lançou~lhe um encantamento mágico e ordenou-lhe que
abandonasse Brug o mais depressa possível. E, ao ouvir aquela ordem, Elcinar
compreendeu que não tinha alternativa senão partir.

’u assim da sua casa com todas as

Elcinar sal suas gentes, tanto homens como mulheres.


Ninguém que se encontrasse na assembleia poderia evitar aquela situação, nem
poderia protestar contra a injustiça, pois o encantamento era tão poderoso que a
todos afectava por igual, sendo impossível fugir~lhe. Mas, assim que à noite se viu
no prado cheio de humidade, Elemar lamentou-se perante a mulher e todos os
que o rodeavam: «Que desgraça se abateu sobre vós, que pertenceis à minha
família e ao meu clã. É muito triste que tenhais de deixar Boyne e Brug, e sentireis
uma grande mágoa e um grande sofrimento quando estiverdes muito longe daqui,
exilados em países desconhecidos. Como é evidente, foi Mananann quem
maldosamente ensinou Angus a agir daquela forma. Ali, estou tão consternado e
tenho o coração tão partido que nem me importo se tiver de morrer!”,

Entretanto, antes de deixar aqueles lugares, Elcmar chamou Dagda para perto de
si e perguntou-lhe: «ó Dadga, tu que és o mais sábio de todos nós, que pensas da
acção perversa de que fui vítima?» «Penso que a acção não foi perversa mas
justa», respondeu Dagda. «Daqui para a frente é a este jovem guerreiro que a
terra pertence. Ele apanhou-te de surpresa, num dia de paz e de amizade, e
permitiste que ele fosse senhor dos teus domínios porque te atemorizaste perante
ele. Mas vou dar~te uma compensação: conceder-te-ei uma terra que não te será
menos proveitosa que a de Brug.» «Que terra é?», perguntou Elcmar. «Vou-te
dizer: trata-se de Cletech, e dos três vales ficam em volta. Fica a pouca distância
daqui. Os jovens do teu clã poderão vir distrair-se na terra de Brug todos os dias, e
tu poderás consumir os frutos da Boyne como antes.» «É bom que seja assim»,
disse Elcmar.

Ele partiu em seguida para a colina de Cletech e mandou construir aí uma


fortaleza. Angus, o Mac Oc, por seu lado, permaneceu na residência de Brug-na-
Boyne .(2)

1. Síntese entre La courtise d’Etaine e La nourriture de Ia maison des deux


gobelets. a

l primeira narrativa, é Dagda quem concebe o truque destinado a espoliar Elcmar;


na segullda, em que Angus é o filho adoptivo do próprio Elemar, é Mananann.

2. Segundo a narrativa La Courtise XEtaine.

Angus dispôs da sua nova residência como muito bem entendeu. 0 intendente de
Elemar não tinha seguido aquele, e veio apresentar-se ao seu novo senhor, com a
mulher e o filho. Angus disse-lhe que manteria todas as suas funções, e que ficaria

162
sob a sua protecção. E, desde então, o intendente foi-lhe devotado, fazendo os
possi i

iveis para que no palácio de Brug tudo corresse pelo melhor.

Ora, uma noite dormia Angus serenamente, e teve de súbito uma visão
surpreendente. Em sonhos viu uma rapariga que vinha ao seu encontro e se
punha à sua cabeceira. Era sem qualquer dúvida a mais belajovem que alguma
vez existira em toda a Irlanda. Angus quis agarrá-la com os braços para a trazer
para a cama, mas ela, com um salto, afastou-se até se confundir com a escuridão.

Angus levantou-se e interrogou os criados, mas nenhum deles vira a beldade, e


ninguém lhe soube dizer para onde ela fora. Ele voltou a deitar-se mas ja não
conseguiu adormecer, tantas vezes o visitava a imagem graciosa da jovem. E
assim ele permaneceu até de manhã, altura em que se encontrava muito
enfraquecido e triste. A forma que entrevira de noite, sem que lhe pudesse tocar
ou falar, pô-lo doente e a partir daí perdeu a vontade de comer. Entretanto, na
noite seguinte, a exaustão fê-lo cair num sono profundo, e voltou a vê-Ia, tendo ela
nas mãos, desta vez, o mais belo címbalo que alguma vez vira. Ela tocou-lhe
música, e depois desapareceu da mesma maneira como aparecera. Angus ficou
acordado o resto da noite e, de manhã, não quis comer. E todas as noites
aconteceu o mesmo: a jovem aproximava-se do seu leito quando adormecia, mas
logo lhe fugia ou lhe tocava uma música que o adormecia rapidamente.

Isto durou um ano inteiro, fazendo com que Angus ficasse cada vez niais fraco. E,
como ele não confidenciava a ninguém os motivos da sua doença, todos à sua
volta estavam muito preocupados. Vieram vários médicos da Irlanda, mas nenhum
soube identificar a doença nem recei~ tar os medicamentos apropriados para o
curar. Então, chamaram Fingen, o melhor médico do Ulster que conseguia fazer
um diagnóstico certeiro de qualquer doença simplesmente olhando para o doente,
e que, ao ver fumo a sair de uma casa, ficava logo a saber quantos doentes havia
lá dentro. Graças a esses seus dotes o tinham chamado à residência da Brug.

Ora, depois de ter examinado Mac 0c com toda a atenção, não conseguiu apesar
disso identificar a doença de que ele padecia. Então,

163
Angus pediu que o deixassem ficar a sós com Fingen, e contou-lhe 0 que se tinha
passado, insistindo muito na beleza da jovem que o vinha visitar todas as noites.

«0 teu sofrimento é realmente atroz, pois amas profundamente uma mulher que
está sempre ausente», disse Fingen. «É ela que me põe doente», disse Angus.
«Adoeceste gravemente», continuou Fingen, «porque não quiseste partilhar o teu
segredo.» «Eu não o podia fazer, pois quem iria acreditar que uma jovem de rara
beleza, extremamente distinta, me vem visitar com um címbalo todas as noites e
me toca música maravilhosa, sendo por isso que fiquei doente? E haverá cura
para uma tal doença?» «Acredito que se encontrará uma solução», respondeu
Fingen. «É óbvio que esta jovem vem ter contigo porque te ama profundamente.
Porque a não vais procurar? Envia mensageiros a Boann, tua mãe, e pede-lhe
para te vir falar.»

Partiram então ao encontro de Boann, que estava na casa de Cletech, e ela foi
informada de que o seu filho estava doente. Ela apressou-se e foi a Brug-na-
Boyne, onde foi recebida por Fingen. «Eu estou a tentar curar Z--

o teu filho», disse este, «pois ele padece de uma grave doença.»

Fingen explicou-lhe o que provocava o enfraquecimento de Mac Oc, que estava a


morrer por ter visto em noites sucessivas uma jovem de grande beleza que lhe
tocava música. «Eu penso», continuou Fingeri, «que num caso destes só a mãe
pode fazer alguma coisa por ele. Se amas o teu filho, dá uma volta por esta ilha
para saber se existe alguma jovem com a aparência que nos é descrita por Angus.
A única maneira de o curar é encontrar a jovem e levá-la à sua cabeceira.»

Boann prometeu a Fingen que partiria sem demora a procura da beldade por toda
a Irlanda, mas foi em vão que ela percorreu as várias províncias, durante um ano,
perguntando por ela a todas as pessoas que encontrava: nem as gentes das tribos
de Dana nem as dos Filhos de Milé lhe souberam indicar a existência de alguém
que se parecesse com a jovem referida por Mac Oc. Voltou por isso para Brug-na-
Boyne inulto desiludida e, mais uma vez, foi falar com Fingen. «Não encontrei
ninguém», disse ela, «e estou muito preocupada com o que pode acontecer ao
meu filho. Que podemos fazer agora?» «Bem», disse Fingen, «já que nem a
própria mãe conseguiu descobrir um remédio para o seL, mal, deve mandar-se
procurar Dagda para que fale ao seu filho, Pois deve ser agora o pai a tentar
encontrar uma cura para ele.»

Foram então enviados mensageiros a Dagda. Este deu-lhes as boas

vindas e perguntou-lhes que bons ventos os levavam ali.

«Ora!», exclamaram eles, «o teu filho Angus está muito doente

e Boann, a sua mãe, pediu que o vás visitar!»

164
Então Dagda apressou-se a tomar o caminho de Brug~na-Boyne, e Boann deu-lhe
as boas vindas quando o viu vir ao seu encontro. «Deves aconselhar o teu filho»,
dlsse-lhe ela, «pols está tão fraco e tão incapacitado para se mexer que nem
sabemos como lhe havemos de salvar a vida! Peço-te que o ajudes, pois está
profundamente apaixonado por urna jovem que o vem visitar todas as noites, mas
que desaparece assi

1 im que ele acorda. Percorri a Irlanda de um canto


ao outro, durante um ano, mas todos os meus esforços foram em vão. Que
podemos fazer por ele, sábio Dagda, que conselho lhe podemos dar?» «De nada
valeria eu falar», disse Dagda, «pois não posso fazer mais do que tu.» «E
verdade», disse Boann, «mas tu és o mais sábio e o mais solicitado dos chefes
das tribos de Dana. Manda consultar Bobdh Derg, o teu filho mais velho, pois ele é
o nosso rei supremo. Ele deve saber melhor do
1

que ninguem como se há-de ajudar Mac Oc.»

Dagda enviou então mensageiros para o Outeiro0) de Femen onde nessa altura
vivia Bobdh Derg, e este acolheu-os com muito boa vontade. «Sede bem vindos à
minha residência, caros servos de meu pai Dagda», disse-lhes ele. «Que motivo
vos traz aqui?» «0 estado preocupante de Angus, filho de Dagda», responderam
eles. «Há dois anos que ele está doente por ter visto uma jovem durante o
sono, e a visão fê-lo perder a saúde. Ora, nós não sabemos onde se encontra, na
Irlanda, a Jovem beldade que ele ama profundamente e que todas as noites lhe
vem cantar músicas muito suaves. Por isso te convocamos, ó rei, da parte de
Dagda, para que mandes procurar em toda a ’lha essa jOvem de beleza
lnigualável.» «Ide dizer a Dagda, meu pai», respondeu Bobdh Derg, «que a
mandarei procurar, mas que preciso do prazo de um ano para tentar
encontrá-la.»

Ao fim de um ano, os mesmos mensageiros voltaram a apresentar-se na casa de


Bobdh Derg, no Outeiro de Femen. «Vasculhei por toda a Irlanda», disse-lhes o
rei, «e começava a desesperar quando encontrei, no lago Bel Dracon, a jovem que
procurais. Ide levar a notícia a Dagda,

1* 7èrtre nO original, palavra francesa que tanto significa outeiro como tunitilus
megalítico, Ou seja, um outeiro artificial cobrindo um dólmen. Segundo estas
tradições de povos celtas Corno os irlandeses os povos feéricos vivem nestes
tumuius ou cairns. (N. T.)

165
e dizei-lhe que estou pronto para levar Angus a esse lago para poder reconhecer
aquela que viu durante o sono.»

Sem perda de tempo, os mensageiros regressaram à residência de Dagda.


«Temos boas notícias», disseram eles, «a jovem foi encontrada! E Bobdh Derg
manda dizer que está pronto para receber Angus e para o levar ao pé dela para
que a possa ver e reconhecer.»

Angus deslocou-se então de carro até ao Outeiro de Femen, onde um grande


festim lhe foi oferecido em jeito de boas vindas. Ao fim de três dias e três noites de
festividades, Bobdh Derg disse por fim: «Chegou o momento de irmos ao lago Bel
Dracon. Deves ver a jovem para saberes se é a que te aparece em sonhos.»

Partiram então para o lago Bel Dracon e, entre as colinas, viram um espectáculo
impressionante, pois liavia aí cento e cinquenta jovens, todas elas de uma beleza
inigualável, divertindo-se nas margens do lago, rindo, cantando e folgando
exuberantemente. Formavam pares tendo a ligá-las uma corrente de prata,
exibiam colares de prata, à volta da cintura tinham correntes de ouro, e os seus
cabelos eram de uma beleza estonteante.”’ Apesar de se parecerem umas com as
outras, de entre elas destacava-se à primeira vista uma que era mais alta alguns
centímetros. «Olha aquela ali», disse Bodh Derg a Mac Oc. «Não é a que te
visitou em sonhos e te veio tocar música muito suave?» «Sim, é ela», respondeu
Angus, «reconheço-a bem. Vou falar-lhe ... » «Isso não é possível», respondeu
Bobdh Derg, «pois ela não depende da minha autoridade e ninguém se pode
aproximar destas jovens. Nada mais posso fazer por ti e não lhe podes falar, muito
menos a podes levar contígo.5>

«Que hei-de então fazer?», perguntou Angus. «Eu estava doente por poder vê-Ia
só à noite, e por ela me fugir quando a queria agarrar, e agora que a vejo em
pleno dia, não posso aproximar-me dela? A minha tristeza é agora muito maior.»
«Ouve-me», disse Bobdh Derg. «Vou dar-te um conselho: esta rapariga é Caer
Ibormaith, e o seu pai é Ethal Aribual do Outeiro de Uaman, na província de
Connaught. A única maneira de te aproximares dela e de a conquistares é falares
co,11 o pai dela. Mas ele só admitirá dar-te a filha se for forçado a isso ou se
estiver debaixo do efeito de algum encantamento.»

Angus e as suas gentes deslocaram-se então à residência de Dagda,

1. Descrição clássica das jovens do povo feérico que, como se verá mais adiante,
Podem metamorfoscar-se em cisnes: voam sempre aos pares e estão sempre
ligadas por correntes.

indo Bobdh Derg com eles. Boann encontrava-se lá, na companhia de


1

Dagda, e Angus contou-lhes o que vira, descreveu-lhes a rapariga, cuja beleza


elogiou, referiu a figura tão distinta que ela tinha, e lamentou que fosse tão

166
inacessível e tão difícil de conqulstar. «Quem é ela afiiial?», perguntou Dagda.
i e o avô dela. Bobdh Derg respondeu-lhe, referindo também o paí

«Pelos deuses!», respondeu Dagda, «com muita pena minha, nada posso fazer
por ti, meu filho, pois esta rapariga não está sob o meu domínio. Ninguém
conseguirá conqulstá-la sem o consentimento de seu pai, e eu sei que ele só a
cederá pela força ou se estiver debaixo do efeito de encantamentos.» «Era
convertiente», disse Bobdh Derg a Dagda, «que tu em pessoa fosses a casa de
Ailill e Maevel11, pois é na sua provincia que se encontra a rapariga. Se tu lhes
pedires ajuda, talvez eles possam fazer alguma coisa por ti.»

Sem demora, Dagda partiu então para a província de Connaught, com uma
escolta de pelo menos sessenta carros e na companhia do seu filho Angus. 0 rei e
a rainha deram-lhes as boas vindas, e passaram uma semana inteira a festejar por
entre comidas e bebidas com que os presenteavam.

«Porque haveis vindo?», perguntaram por fim Aílill e Maeve. «Vou explicar-vos»,
respondeu Dagda. «Encontra-se nesta província uma rapariga por quem o meu
filho se apaixonou, mas com a qual não se Pode relacionar nem pode conquistá-
la, o que lhe provoca uma profunda tristeza e mágoa. Vim a vossa presença para
vos perguntar de que modo se poderá chegar perto desta rapariga e conquistá-
la.» «Quem é ela?», perguntou Ailifi. «Caer Ibormaith, a filha de Ethal Anbual.»
«Ora!», exclamou Aílifi, «nós não temos nenhum poder sobre ela, mas mesmo
assim tudo faremos para que o teu filho a conquiste.»

«Nesse caso», disse Dagda, «convém que chames o teu pai para que Possamos
falar com ele.» «Assim farei», prometeu Ailifi.

-- 0 intendente de Ailill partiu imediatamente para o Outeiro de Ailill e Maeve são


personagens de relevo na epopeia celta da Irlanda, e desempenham um Papel
importante em todos os ciclos, escapando a qualquer cronologia. A rainha Maeve
ri, particular é Imito característica, sendo a síntese entre uma provável rainha
histórica de Conn,,ght e uma antiga deusa ceita. 0 seu nome (Mebdh) significa
«embriaguez» mas também «meio» o que indicia uma posição intermédia entre o
mundo humano e o Outro Mundo, divino Ou feérico. Affill e Macve residem na
fortaleza real de Cruachan (actual Crogh an, no condado de Roscommon); e na
pequena montanha de Knoeknarea, perto de ”90, existe um «cairn» megalítico que
tem o nome de «Túmulo da rainha Maeve».

167
Uaman e, assim que se encontrou na presença de Ethal Aribual, disse-lhe: «Venho
da parte do rei Ailill e da rainha Maeve pedir para que os vás visitar pois
pretendem falar-te.» «Não irei», respondeu Ethal, «pois sei muito bem o que eles
pretendem. Fica pois a saber que jamais darei a minha filha ao filho de Dagda.»

0 intendente voltou para a fortaleza de Ailill e de Maeve e contou-lhes palavra


por palavra o que lhe dissera Ethal Aribual. «Que ímpertínente!», exclamou Aillil,
«juro que a bem ou a mal o traremos até nós, nem que tenhamos de humilhar os
seus guerreiros!»

. Ailill juntou então um grupo de homens armados que se pôs a caminho com a
escolta de Dagda, Chegaram ao Outeiro de Uaman e, após terem lutado contra as
gentes de Ethal Aribual, penetraram no outeiro e saquearam-no, com tal proveito
que no regresso levavam consigo sessenta cabeças de guerreiros e Ethal Aribual
como prisioneiro.

Quando chegaram pouco depois à fortaleza de Cruachan, Ailill disse a Ethal: «Dá
a tua filha ao filho de Dagda.» «Não o farei», respondeu Ethal Aribual. «Para mais,
mesmo que o quisesse não o poderia fazê-lo, pois o poder que a domina é muito
mais forte do que o que eu tenho sobre ela.» «Que poder é então esse que a
domina?», perguntou Ailill. «Acontece muito simplesmente que ela está sob o
efeito de um sortilégio. Durante um ano inteiro, ela tem a forma de um pássaro e
no ano seguinte retoma a forma humana, e ninguém consegue mudar essa
situação.» «Muito bem», disse Ailill, «e em que ano ela tem a forma de pássaro?»
«Eu não devo traí-la», respondeu Ethal.

Então, Ailill ergueu-se e, desembainhando a espada, brandiu-a sobre a cabeça de


Ethal Aribual. «Eu arranco-te a cabeça se não falares!», gritou ele. «Estou a ver
que não me resta alternativa senão falar», suspirou Ethal, «pois estais decidido a
matar-me. Sabei então que na próxima festa de Samain ela estará com uma forma
de pássaro rio lago Bel Dracon, tendo na sua companhia um maravilhoso grupo de
cisnes. Todos estarão à superfície das águas, e será possível falar-lhes a partir da
margem, E111 contrapartida, quem quiser aproximar-se deles, não poderá ter a
forma humana.» «Está bem», interveio Dagda, «já sei o que hei-de fazer.»

Foi então firmada a paz entre Ailill, Dagda e Ethal, sendo este último posto em
liberdade. Depois, Dagda e o filho voltaram para Brug-na-Boyne. Mac Oc estava
agora muito feliz, pois sabia que Polico faltava para conquistar a donzela por
quem se apaixonara e CUP ausência o martirizava.

Na noite anterior à festa de Samain, ele dirigiu-se então para as inargens do lago
Bel Dracon, sendo acompanhado pelo pai. Aproximou-se da água e viu um
maravilhoso grupo de pássaros brancos que cruzavam serenamente o lago e que
estavam ligados entre si por correntes de prata, tendo a coroá-los arcos de ouro.
Angus, com a forma humana, chamou a rapariga pelo seu nome e um
pássaro veio ao seu encontro. «Quem me charna?», perguntou ela. «E Angus,
filho de Dagda, quem te chama. PcÇo-te, Caer, que venhas comigo, pois o meu

168
amor por ti é tão grande que não conseguiria viver nem mais um minuto se não
viesses comigo para a minha residência.» «Eu não posso seguir alguém que
possui a forma humana», respondeu o pássaro, e afastou-se.

Então, Dagda tocou no filho com uma varinha mágica e druídíca, e Mac Oc tomou
imediatamente a forma de UM cisne majestoso. «Bela Caer», gritou Angus,
«podes agora vir comigo?» «POsso, com certeza, mas na condição de me dares a
tua palavra de honra que me deixas voltar amanhã para o lago,» «Eu Prometo»,
respondeu Angus, antes de se abraçar a ela.

Naquela noite, eles dormiram juntos na forma de cisnes e, na manhã seguinte,


deram várias voltas ao lago e uniram-se fisi amente varias ve
1c

zes. Depois ergueram-se no ceu, sempre na forma de pássaros brancos, e


viajaram para Brug-na-Boyne. Aí, em terra firme, Caer retoInou a forma humana:
nunca fora tão bela, e Angus estava no auge da felicidade. Puseram-se os dois a
cantar a música suave dos palácios feéricos, e todos aqueles que ouviam aquela
música ficavam a dormir durante três dias e três noites. E a rapariga ficou a partir
de então a viver com Angus no palácio de Brug-na-Boyne.

Desde então uma grande amizade passou a ligar Affill e Maeve, rei
0 rainha de Connaught, a Angus, o Mac Oc, último filho de Dagda. E as gentes
das tribos de Dana, assim como os Filhos de Milé, ficaram todos muito felizes, de
tal modo que os seus poetas, inspirados por esta história, nunca mais deixaram de
compor belas músicas e de escrever I)arrativas que partem os corações mais
sensíveis.(I

’-Segundo a narrativa Awj,, oenguso (0 sonho de Angus), contida no manuscrito


EgertOn 1782 do Museu Britânico, editado com tradução inglesa por Edward
Muiler na Revue celtique, vol. III, Paris, 1876-1878. Tradução francesa de Ch.-J.
Guyonvarch’h em Te”” ’1i101,ógí- irlandeses, Renries, 198o.

169
Capí1u1o1X

erta vez, os homens de Connaught estavam reunidos junto ao Lago dos Pássaros,
na planície de Aé, tendo sido preparado para eles um grande festim que durou
toda a noite. Ao romper da alva, eles levantaram-se e foram passear pelas
margens do lago, vendo de súbito um homem írromper através da bruma: cobria-o
um manto de púrpura com cinco dobras, e na mão segurava dois dardos de cinco
pontas, tendo ao ombro um escudo de bossa de ouro; à cintura trazia uma espada
de punho de ouro, e uma bela cabeleira dourada vinha pousar-lhe suavemente
sobre os ombros.

«Vêem o homem que se aproxima?», perguntou Loégairé, filho de Crimthann, um


dos mais belos e nobres guerreiros de Connaught. «Julgo que devemos saudá-lo
e recebê-lo bem, pois ele tem um porte nobre e não revela nenhuma hostilidade
contra nós.»

Quando o guerreiro desconhecido chegou ao pé das gentes de Connaught, estas


saudaram-no e deram-lhe as boas vindas. «Agradeço-vos a recepção calorosa»,
disse o desconhecido. «0 que te traz aqui?», perguntou-lhe Loégairé. «A
esperança de que me possais ajudar» «De onde vens e quem és?», voltou
Loégairé a perguntar. «Sou das tribos de Dana», respondeu ele, «e chamo-me
Fiaclina, filho de Rété. Sou um chefe respeitado entre os meus.» «Se é ajuda o
que pretendes de nós», disse Loégairé, «nós dar-ta-emos de boa vontade se tios
disseres o que pretendes.» «0 motivo que aqui me traz é o seguinte: a minha
mulher foi-me raptada por Eochaid, filho de Sâl, que a IIVOU para a sua fortaleza.
Inconformado, eu fui atrás do raptor, que

170
morreu às minhas mãos. Entretanto, a minha mulher refugiou~se em casa de um
filho do seu irmão, GolI, filho de GoIb, cuja fortaleza se encontra no centro da
Planície Agradável, e ele não ma quer devolver. já o combati em sete batalhas,
mas em todas elas fui derrotado e não conseguiu reaver a minha mulher. Hoje,
travaremos uma batalha contra GolI, mas são poucas as nossas possibilidades de
a vencer se não tivermos ajuda. Por isso vos venho pedir auxílio, homens de
Connaught, e estou disposto a recompensar qualquer um de vós que se junte a
mim e venha combater ao lado dos meus homens.»

Ditas estas palavras, o estranho deu meia volta e desapareceu na bruma, ficando
os homens de Connaught a contemplá-lo enquanto deixava os limites da terra
firme e entrava lentamente nas águas do lago com as quais se confundiu.

«Seria para nós uma vergonha se não ajudássemos este homem!», exclamou
Loégairé.

Cinquenta guerreiros dirigiram-se então para o lugar onde tinham visto Fiachria
desaparecer e, entrando nas águas e descendo até à profuni
iante

deza do lago, foram ’untar-se a ele dispostos a ajudá-lo. Ao verem di deles uma
fortaleza e, no prado, dois exércitos frente a frente, puseram-se ao lado de
FiacIma, filho de Rété, que estava na fileira da frente.

«Agora que aqui chegámos», disse Loégairé, «preparemo-nos para fazer frente ao
chefe dos cinquenta guerreiros que estão diante de nós.» «Aqui estou», disse
GolI, filho de GoIb, «e aceito o desafio que nie lançais! Lutemos pois, se é esse o
vosso desejo!»

E começou logo ali uma violenta batalha, ao fim da qual Loégairé e os cinquenta
homens que o acompanhavam foram os claros vericedores, deixando caídos
sobre o campo de batalha Goll e os seus cinquenta guerreiros. Depois, avançaram
e saquearam tudo o que encolitraram pela frente. «Onde se encontra a tua
mulher?», perguntou Loégairé a Fiachna. «Na fortaleza, no meio da Planície
Agradável», respondeu Fíachna, «mas tem a protegê-la um poderosíssimo
conti11gente de homens armados.» «Flca então aqui», disse Loé-airé, «enquanto
eu lá vou com os meus cinquenta homens.» ZI

Foram então à fortaleza da Planície Agradável e viram 0 grupo numeroso de


homens que a guardava. Não se deixando intimidar, investiram contra ele e,
combatendo com valentia, abriram uma passagem que dava para o interior da
fortaleza. À entrada desta Loégairé gritou: «Nada vos pode valer! Os vossos
chefes já foram mortos, e GolI, fil,10

180 C-1le--c-

de GoIb, morreu. Estamos na disposição de lutar até vos termos morto a todos,

171
Libertai pois a mulher que tendes como refém e em troca pousaremos as armas e
poupar-vos-emos a vida.»

Aqueles que estavam no interior da fortaleza pediram um tempo para responder, e


Loégairé acedeu ao seu pedido. Re itiraram-se para ponderar e, pouco
depois, a mulher saiu da fortaleza a entoar um canto de lamento pelo facto de
terem morrido tantos guerreiros por sua causa. Loégalré pegou-lhe pela mão e
conduzm-a até Fiachria que, muito contente com o sucesso daquela aventura,
convidou Loéagairé e os seus cinquenta homens para um festim na sua resi
dêncla. «Não sei como te manifestar a minha gratidão», disse Fiachria a Loegairé,
«mas vou fazer-te uma proposta: fica comigo neste país e governemo-lo em
conjunto, tu e eu. Tenho uma filha que se chama Der GreIne e, se ela te agradar,
poderás desposá~la.»

Mandaram chamar a rapariga, cuja beleza e belo porte muito agradaram a


Loégairé. FiacIma deu então a mão de Der Greine a Loégairé is passaram a

e os do’ noite juntos. Por seu lado, os cinquenta guerreiros que tinham
acompanhado Loégairé tiveram cada um a sua mulher, sendo escolhidas
as mais nobres jovens do país. E todos ali permaneceram um ano inteiro.

«Nós gostávamos de ter notícias do nosso país», disse então Loégairé a FiacIma.
«Permiti que partamos.» «Se é esse o vosso desejO, não vos contrariarei»,
respondeu Fiachria. «Mas devo advert

1 1 ir-vos de unia coisa: ’de de cavalo para o


vossopépsaíesm, mtearsaa»ssim que aí chegardes, de modo algum deveis pousar
os

Eles foram então às cavalariças de Fia ,cIma onde escolheram cavalos


robustos e ágeis, deixaram a ifortaleza, atravessaram bosques e pla-

1.

metes, e pouco depois encontravam-se nas margens do Lago dos Pássaros. Ora,
precisamente naquele dia os homens de Connaught estavam leunidos num festim,
e Crimthann, pai de Loégairé, encontrava-se entre eles, Todos se lamentavam
então de não terem notícias dos homens que tinham partido no ano anterior.

Assim, quando viram Loegaire e os seus cinquenta guerreiros a dirigirem-se na


sua direcção,

surgindo das profundezas do lago, ficaram todos contentes e foram recebê-los


para lhes dar as boas vindas. «Não se aproximem!», exclamou Loégairé. «Viemos
aqui para nos desPedirmos de vós.» Trocaram então diversas informações sobre
o ocor~ rido no ano em que tinham estado separados. «Não nos deixes», pediu

172
Crimthann, «pois no reino de Connaught tu podes ter tudo o que desejas: ouro,
prata, pastagens férteis para o gado, cavalos rápidos e as mais nobres mulheres
de toda a ilha.»

Mas nem Loégarré nem nenhum dos seus cinquenta companheiros quis ficar a
viver no reino de Connaught, e depois de se despedirem dos familiares e dos
amigos, voltaram para as águas do lago. Pouco depois, entraram na fortaleza
onde Loégairé partilhava o poder com Fiachna.11)

Este poder, entretanto, só era exercido sobre as tribos de Dana que viviam no
Connaught, pois Ailill e Maeve eram por seu lado rei e rainha dos Filhos de Mité.
Segundo fora estipulado a seguir à batalha de Tailtíu, estes últimos povoavam o
território da Irlanda enquanto as tribos de Dana se estabeleceriam nos outeiros,
sob as colinas e debaixo das águas dos lagos, não podendo as suas gentes ser
vistas pelos Filhos de Milé senão quando o desejassem, pois tinham o dom da
invisibilidade. Vivendo de acordo com o que tinha sido combinado entre eles, os
dois povos mantinham excelentes relações e respeitavam-se mutuamente.

Ora, nesta época em que partilhava com Loégairé a soberania sobre as tribos de
Dana que viviam em Connaught, Fiactina tinha um hábil porqueiro chamado Rucht
e este Rucht tinha uma relação de amizade com o porqueiro das tribos de Dana
que residiam no Munster, o qual, de nome Friuch, não lhe ficava atrás em
habilidade e reputação, Assim, sempre que faltavam bolotas em Munster, Rucht
convidava Friuch a levar a sua vara de porcos a Connaught e, por seu lado,
quando faltavam bolotas em Connaught, Friuch convidava Rucht para a apanha
de bolota em Munster.

Além desta entreajuda, os dois homens também costumavam encontrar-se de


tempos a tempos para fazerem jogos mágicos e de prestídigitação. Ambos eram
de uma habilidade inigualável, e as tribos de Dana procuravam saber qual deles
era o melhor. Mas, como não havia vencedor nem vencido nos torneios que
realizavam, sendo de igual valor os dois concorrentes, as gentes de Dana ficaram
impacientes e acabaram por lhes impor provas susceptíveis de desequilibrar a
balança a favor de um ou de outro. «Já que sois tão fortes», disseram-lhes uin dia,
«fazei pois com que os vossos porcos fiquem um ano sem conICI’-

Segundo uma narrativa contida num manuscrito do século XV, publicado com
traduÇãO inglesa por Saint O’Grady, Silva Gadelica, Dublin, 1892. Tradução
francesa de GeorgOS Dottin na EI)opeia Irlandesa, nova ed. Paris, 1980.

Veremos então qual das duas varas é a mais resistente.»

Rucht e Friuch lançaram encantamentos sobre os porcos que tinham ao seu


cuidado e, ao fim de um ano, ambas as varas tinham não só sofrido por causa da
falta de comida como os porcos de Munster tinham emagrecido tanto como os de
Connaught. «Pelo mal que fizestes passar os porcos», disseram-lhes, «ina’s
vale que deixais de cuidar deles!» E a ambos foi retirada a actividade de

173
porqueiro.

Além de ficarem estupefactos e consternados, Rucht e Friuch não conseguiram


resolver o seu problema de saber qual deles era o mais hábil. Decidiram então
mudar de forma durante um ano e rivalizar durante este período para saber qual
deles venceria melhor as dificuldades. E, de comum acordo, tomaram a forma de
corvo.

Ao longo do ano, sobrevoaram a Irlanda e enfrentaram diversas dificuldades. Mas,


por muitas lutas violentas que fizessem entre si, não havia maneira de qualquer
um deles ganhar vantagem ao outro. No dia primeiro do ano seguinte,
compareceram perante a assembleia de Munster, tendo voltado a adquirir a forma
humana assim que pousaram no chão.

Foram recebidos com boas vindas e perguntaram-lhes o que tinham feito durante
o ano sob a forma de pássaros. «Na verdade», disseram eles, «não tendes motivo
algum para estardes satisfeitos e para nos desejardes as boas vindas. Obrigaste-
nos a tentar demonstrar qual de nós é o mais hábil, mas não se chegou a
nenhuma conclusão. Devemos lembrar-vos que, por causa das provas que nos
impusestes, haverá muitas mortes e a Irlanda terá muitas razões para se
lamentar,»

Quiseram logo saber se eles se estavam a referir a uma guerra em particular,


obtendo como resposta: «Não o podemos dizer, mas o certo é que todos os povos
desta ilha, sejam as tribos de Dana ou os Filhos de.Milé, serão vítimas do que está
para acontecer. Ninguém conseguira evitar um grande sofrimento e duras penas e
o sangue dos homens correrá nos rios e nos lagos. Agora, para satisfazer a vossa
exigência e para ficarmos a saber qual de nós é o mais hábil, iremos mudar de
fon-ria durante mais um ano inteiro.»

E imediatamente, deixando a assembleia, foi cada um para seu lado. Um dirigiu-se


para o Shamion, onde mergulhou transformando-se ’lurfl Peixe enorme. 0 outro
partiu para o Suir(’) onde mergulhou e, por

1, Rio do Munster.

174
seu lado, também transformou num enorme peixe. Depois, ambos, através dos
nos, dos lagos e do mar, nadaram ao encontro um do outro. Passaram metade do
ano no Sharmon e a segunda parte no Suir, e procuraram não se ferir nem se
cansar enquanto se perseguiam mutuamente.

Um dia, estando os homens de Connaught reunidos numa assembleia nas


margens do Lago dos Pássaros, assistiram a um espectáculo extraordinário: dois
peixes enormes lutavam nas aguas com uma extrema violência, de tal modo que
faíscas saíam das suas escamas que mais pareciam espadas num combate cruel.
E as faíscas, muito vivas e incandescentes, chegavam até às nuvens.

Ao fim de lutarem sem piedade diante dos homens de Connaught durante algum
tempo, os dois peixes saíram do lago e, sobre a margem, readquiriram a forma
humana, sendo reconhecidos como os dois porqueiros. Fiachria foi então até perto
deles e deu-lhes as boas vindas. «Não nos deveis dar as boas vindas»,
responderam eles, «pois de nada valem as nossas lutas, que, como pudestes ver,
são terrivelmente violentas. Continuamos sem saber qual de nós é o melhor e
tomaremos agora uma nova forma para pormos à prova a nossa habilidade.»

Após terem ficado à conversa durante algum tempo, despediram-se de Fiachria e


dos homens de Connaught e partiram cada um para seu lado. Tornaram-se então
dois campeões famosos pela sua força e resistência. Um era o campeão de
Ochall, que era o rei do Outeiro de Femen, em Munster, e o outro o campeão de
Fergria, que era o rei do Outeiro de Nento-sob-as-águas, em Connaught. Todas as
campanhas levadas a cabo pelas gentes de Ochall, ficavam a cargo do seu
campeão e o mesmo acontecia em relação às campanhas realizadas pelas gentes
de Fergria em Nento-sob-as-águas. A fama dos dois campeões espalhou-se
rapidamente pela Ilha Verde, sem que alguém soubesse de onde eles tinham
vindo.

Entrementes, Ochall decidiu deslocar-se com as suas gentes à assembleia que os


homens de Connaught estavam a realizar junto ao lago Raich, 0 cortejo de Ochall
era notável: nele seguiam sete vezes vinte carros e sete vezes vinte cavaleiros, e
os cavalos, de uma única cor, ti~ nham riscas prateadas sobre o corpo. Várias
mulheres desmaiarant ao ver aquele cortejo, pois nunca na vida tinham visto um
espectáculo tão esplendoroso. Quando chegaram, os homens de Ochall deixaram
Os carros e os cavalos no prado, sem ninguém a vigiá-los.

Os homens de Connaught vieram ao seu encontro e deram-lhes as boas vindas,


perguntando-lhes depois qual era o motivo da visita. «Nós

viemos», respondeu OchalI, e- realizar provas convosco «fazer jogos


1

para vermos quem é mais forte de entre nós.» «Assí”m seja», resporideram os
homens de Connaught.

175
D urante todo o dia se fizeram jogos no prado e ao anoitecer juntaram-se todos
num festim que durou até meio da noite. Mas, no dia seguinte, Ochall disse aos
homens de Connaught: «Estamos mui

’to satisfeitos, mas agora eu quero que um de vós lute contra o meu campeão,
que se chama Rinn.» «Manda vir o teu campeão.»

Ochall chamou Rinn, e este POstou-se diante dos homens de Connaught que, ao
vê-]o, ficaram de tal modo assustados que não ousaram desafiá-lo, convencendo-
se antecipadamente que iriam ser derrotados.

Ora, naquele mesmo momento, todos viram um cortejo que se aproximava, vindo
do norte. Nele havia três vezes vinte cavalos atrelados a carros e tres vezes vinte
homens que montavam cavalos negros, parecendo que cavalgavam sobre o mar.
Estavam todos mal vestidos e mal armados, e os cavalos que montavam, magros
e sujos, pareciam arrastar-se penosamente. Perante aquele cenário tão miserável,
puseram-se todos a rir, embora 0 cortejo tenha sido depois muito bem recebido e
tenha sido Perguntado àqueles que 0 compunham o que dese

javam. «Eu sou Fergria, do Outeiro de Nento-sob-as-águas», respondeu


orgulhosamente o chefe do cortejo. «Vim aqui com as minhas gentes Para
competir cOrivosco. Entre os meus companheiros, tenho um campeão tão
poderoso que duvido que alguém deseje enfrentá-lo.» «pols bem», responderam
os homens de Connaught, «outro grupo antecipou-se ao teu, o de OchalI, do
Outeiro de Femen, e trouxe um campeão de tal forma temível que ninguém se
atreve a enfrentá-lo.» «Façamos com que lutem um contra o outro», disse Fergita.

Ao ver o campeão recém-chegado, que se chamava Faebal, a assembleia ficou


aterrorizada, e desmaiaram vinte homens de medo e de eOMOÇão. Nenhum dos
homens de Connaught teria aceite o desafio, mas Rinn, o campeão de Ochali,
ergueu-se imponente e muito seguro de si e foi ao encontro de Faebal

«Eu lutarei contra o teu campeão!», exclamou ele na direcção de Fergria.

E, com efeito, atiraram-se um ao outro com uma incrível ferocidade, durando o


combate três dias e três no’

que os ites. Tão violenta foi a luta ferimentos provocados em


ambos não paravam de aumentar, ficando os corpos todos ensanguentados e
cheios de nódoas negras. Por

176
fim tomou-se a decisão de os separar, por se recear que pudessem morrer de
exaustão. Mas, após um breve repouso, mudaram de aspecto e
metamorfoscaram-se em hediondos demónios da rio te, e depois
arremessaram-se um contra o outro dando urros medonhos. E a luta que se
seguiu durou três dias e três noites sem que jamais um ga-

parados, e readnhasse vantagem ao Outro. Mais uma vez foram se

quiriram a forma habitual, ou seja, a do-, dois porqueiros Rucht e Fruich. «vejam
até onde nos levou a vossa loucura», disseram então. «Quisestes que lutássemos
para pôr à prova a nossa valentia, e foi nisto que deu o desafio que nos lançastes.
Porque quereis saber qual de nós é o melhor, atraístes grandes males e penas
para nós os dois, o que acarretará grandes males para esta ilha no futuro.» «Que
quereis . og», perguntaram-lhes então. «Aconte

dizer com iss . ce que no futuro uma guerra terrível e


sangrenta se abaterá sobre esta ilha, e isto por causa da nossa rivalidade. Como
resultado dela muita dor e iniseria se espalharão pelos guerreiros desta ilha, sejam
eles das tribos de Dana ou dos Filhos de Milé. Melhor teria sido por isso se não
tivésseis incentivado a disputa entre nós doís.» «Nesse caso», disseram os
homens de Connaught, «o melhor será ficari-nos por aqui e considerafinos que
tendes gual valor. Porque não pomos um fim às disputas declarando-vos a ambos
vencedores?» «Já é demasiado tarde»,

mais deixaremos de nos bater um contra o responderam eles, «e ja 1

stes vós que qulsestes que assini fosse.» outro, mas fo

Os dois deixaram a assembleia e desapareceram sem se saber exactamente que


rumo tomavam, transformando-se em minhocas e mergulhando nas águas. Um
deles foi para a fonte de Uaran Garan, em Cormaught, e dizia chamar-se Tumue a
quem o interpelava. 0 outro foi para o ribeiro do Glass Gruin, em Cualngé no
UIster, e dizia chamar-se Crunniuc-

Um dia, o chefe da província do Uister chamado Maga, filho de Daré, velo banhar-
se no Glass Gruind e viu, sobre uma pedra, uITI pequeno animal colorido que
parecia uma minhoca. 0 animal chamou Maga pelo seu nome, e ele, cheio de
medo, quis sair dali imediatamente. «Não te vás», disse o animal. «Tens todo o
interesse em ficara conversar comigo, pois poderei dar-te alguma informação
preciosa-’

antado. «A felicidade está ao te0 «0 quê-?», perguntou Maga, muito esP


s nestas alcance, Maga, filho de Daré. Existe um barco cheio de tesouro

terras, e ele está à tua espera no lugar em que o curso de água se lança

no mar. Se não acreditas em mim, vai ver com os teus próprios olhos.» Então

177
Maga foi ao longo do rio até ao estuário, e aí viu um barco

que tinha naufragado. Como não viu ninguém a bordo, entrou para dentro dele e
descobriu que estava cheio de jóias, de taças de ouro, e de urna grande
quantidade de pedras preciosas. Depois de ter ordscunaadeoasàas, suas oentes
para recolherem o tesouro e para o levarem para

in Maga voltou rio acima ao encontro do lugar onde vira o pequeno animal. «Pois
bem», disse aquele, «acreditas agora ria minha palavra>» «Acredito», respondeu
Maga. «Mas quem és tu, que tens um aspecto tão esquisito e que me revelas
coisas escondidas?» «Já ouviste falar de Rucht e de Friuch, os porquelros de
Connaught e de Munster?» «Já, e sei que a disputa entre eles nunca acabará pois
são os dois igualmente

«Eu sou um dos porqueihabilidosos. Mas que relação têm contigo’.’»

ros, embora hoje tenha esta forma e seja conhecido por Crurinitic. Vou agora
dizer-te outra coisa, Maga, filho de Daré: amanhã uma das tuas vacas virá beber
água ao rio e, ao fazê-lo, erigolir-me-á. Então ela engravidará e dará à luz um
vitelo de belo porte e de cor negra que se chamará o Moreno de CuaIngé, Fica
também a saber que amanhã, na fonte do Connaught, uma outra minhoca,
parecida comigo, também será engolida por uma das vacas que pertencem ao
reino Maeve. Também esta ficará grávida e dará à luz um vitelo que, graças aos
seus mag-

ia níficos cornos, se chamará o Belo Cornudo de Aé. Virá por fim do di

em que dois touro terrível. Os do’

s provocarao uma guerra is touros acabarão por se enfrentar nessa


guerra, e nenhum sobreviverá a ela. Assim concluirão as nossas provas no futuro,
Maga, filho de Daré, e isto é tudo o que te posso dizer.»

Então, o pequeno verme muito colorido desapareceu na profundeza das águas do


Glass Gruind, deixando muito pensativo e melancólico Maga, filho de Daré.

No mesmo momento, e naquele mesmo dia, a rainha Maeve foi-se refrescar à


nascente de Uaran Garan no Connaught. Nas mãos levava um vaso de bronze
branco, para lhe a facilitar as abluções. Mergulhou então o vaso na nascente e um
pequeno animal que lhe pareceu uma minhoca ficou preso dentro do recipiente.
Ela ficou a examiná-lo durante algum tempo, pois tinha uma foi-ma estranha e era
multicolor, Ora, de súbito, o animal pôs-se a falar: «Rainha, tu és poderosa e
respeitada, mas um dia faltar-te-á qualquer coisa e tu entrarás numa guerra
terrível para conseguires obter aquilo que te faltar.» «Que queres tu dizer com
isso,

178
verme tão pequeno e insigníficante?», perguntou a rainha, cheia de surpresa. «Na
verdade, ao invés de ser um verme insignificante, sou capaz de tomar todas as
formas que quero. Mas o destino está feito de tal modo que jamais encontrarei a
paz enquanto for vivo. Queres saber quais foram as formas que tomei desde que
os homens da Irlanda me enfeitiçaram?» «Fala, pequeno verme. e diz-me o que
sabes.»

m era, a razão

Ele contou-lhe então que ~ da disputa com o seu amigo, as


metamorfoses por que ambos tinham passado e

as lutas intermináveis que tinham travado sem nunca se conseguirem livrar delas.
«Mas», disse Maeve, «quando é que tu e o teu camarada con-

seguirão descansar?» «0 desfecho 1à está próximo, e tu terás nele uma palavra


a dizer, ó Maeve. Fica a saber que, amanhã, uma das tuas vacas virá matar a
sede a esta nascente e, ao beber água, engolir-me-á. Ela ficará grávida e dará à
luz um jovem touro dotado de uns cornos tão magníficos que se chamará o Belo
Cornudo de Aé. E fica também a saber que no Ulster, no Glass Gruind, se
encontra neste momento uma minhoca em tudo semelhante a mim. Amanhã ela
será engolida por uma das vacas de Maga, filho de Daré, que parirá um touro
negro que se chamará o Moreno de Cualngé. E tu, rainha Maeve, desejarás esse
touro, porque ele será tão soberbo e poderoso como o Belo Cornudo de Aé. E
nenhum touro da Irlanda se atreverá a mugir depois de o Moreno de Cualgné e o
Belo Cornudo de Aé o terem feito.»

Depois de pronunciar estas palavras, o pequeno verme de múltiplas cores saltou


para fora do vaso e desapareceu nas profundezas da nascente. E a rainha Maeve
voltou muito pensativa para a fortaleza de Cruachan.`I

Ao anoitecer daquele mesmo dia, Ailill e Maeve encontravam-se em casa, no


interior da fortaleza, com todos os seus parentes, a cozerem a comida no
caldeirão. E tendo o rei e os seus guerreiros feito na véspera dois prisioneiros,
disse ele: «Aquele que for capaz de ir pôr o rebento de um vime à volta do pé de
um dos cativos terá uma recompensa à sua escolha.»

1 Segundo a narrativa Os dois porqueiros, contida no Livre Leinster e no


manuscrito Egerton 1782, editado por Windisla, «Irishe Texte», vol. 111. Tradução
francesa de Arbois de Jubainville em Les druides e les Dietix à,forme Xanimaux.
Outra tradução francesa de Ch.-J. Guyonvarc’h em Textes rnythologiques
irlandais, Rermes, 1980. Esta narrativa serve, como muitas outras, de prólogo à
célebre epopeia de La R=ia de CuaIngé, que põe à bulha os homens do 1JIster
com os outros homens da Irlanda por causa da posse do Moreno de CuaIngé.

Escura como breu estava aquela noite. Todos os homens quiseram vencer o
desafio, mas todos logo voltaram sem terem conseguido pôr o rebento de vime à

179
volta do pé do cativo, na casa das torturas, pois tinham muito medo dos fantasmas
que rodeavam a fortaleza. Então o jovem Néra ergueu-se e disse: «Pois bem, irei
eu, e vencerei o desafio que nos lanças.» «Se assim for», disse Allill, «terás a
minha espada de punho de ouro.»

Néra envergou então uma sólida armadura e dirigiu-se para a casa onde estavam
os prisioneiros. A armadura, contudo, calu-lhe três vezes, dizendo-lhe um dos
prisioneiros: «Tens de por um prego na armadura, ou jamais ela deixará de cair no
chão.» Néra pôs então um prego na
1 1

armadura e conseguiu segurá-la. «Es corajoso», disse o cativo. «Sem dúvida»,


respondeu Néra, «e isso permitir-me-á obter como prêmio a espada de punho de
ouro do rei A’1’11.» «Ouve», disse ainda o cativo, «já que és tão coraJoso, põe-me
às costas para que eu possa ir beber água contigo. Eu estava cheio de sede
quando para aqui me trouxeram.» «Sobe para as minhas costas», respondeu
Néra. «Mas onde é que te hei-de levar’)» «A casa mais próxima.»

Ao aproximarem-se da casa mais próxima, viram-na de súbito ser cercada por


uma corrente de fogo. «Não há nada de bom para nós nesta casa», disse o cativo,
«pois onde existe fogo falta a discrição. Vamos à outra que está mais perto de
nós.»

Mas quando chegaram ao pé da casa mais próxima, viram-na ser cercada por um
lago. «Não vamos a essa casa», disse o cativo. «A banheira que nela existe só
deve servir para tomar banho, para se refrescar o corpo ou para se lavar a louça
depois de uma noite de sono. Vamos a outra.»

Entraram então noutra e o cativo afirmou que aí havia com que saciar a sede,
pousando-o Néra no chão. Naquele lugar havia, com efeito, banheiras para se
refrescar o corpo e para se tomar banho, mas não havia torneiras. No meio da
sala encontrava-se também uma cuba com lixívia. Depois de ter bebido um gole
de cada um dos recipientes para a água, o cativo soprou a última gota sobre os
habitantes da casa, que morreram todos, Depois disso, Néra levou o prisioneiro
para a casa das torturas.

Mas Néra viu então um cenário surpreendente: no lugar da fortaleza, estava a


colina queimada à sua frente e, entre um montão d cabeças metidas em estacas,
reconheceu as cabeças de Ailill, de Maeve de todos os seus famili

i lares.

Entretanto, como uma multidão de guerreiros se confundia com a sonibra, ele


seguiu-os até penetrar no interior do outeiro. Uma vez aí

189 C_1C?_1

180
chegados, todos aqueles homens foram mostrar ao rei as cabeças que levavam
consigo. Néra, por seu lado, deixou-se ficar prudentemente para trás, ocultando-
se. «0 que é que fizestes ao homem que vos acompanhava?», perguntou-lhes o
rei. «Não lhe fizemos nada, pois não estava com os outros», eles. «Trazei-o à
minha presença para que lhe possa falar.» Trouxeram Néra à presença do rei, que
lhe perguntou: «Como vieste até aqui?» «Não o sei», respondeu Néra. «Eu segui
os guerreiros que assaltaram e incendiaram a fortaleza.» «Está bem», disse o rei,
acrescentando: «Vai àquela casa onde te espera uma mulher. Diz-lhe que eu é
que te mandei ao seu encontro e traz-me todos os dias um feixe de lenha.»

E assim foi. A mulher deu-lhe as boas vindas, e ele dormiu com ela naquela noite.
E todos os dias, desde então, ele levava um feixe de lenha à casa do rei. Mas
todos os dias ele via um cego que, carregando às costas um coxo, saía da casa
do rei e se dirigia para um muro em frente da casa. «É aqui?», perguntava o cego.
«É sim», respondia o coxo, «Agora vamo-nos embora.»

Muito espantado com aquela estranha cena, Néra acabou por perguntar à mulher
o que sabia ela àquele respeito. «0 coxo e o cego vão observar a coroa que se
encontra escondida no muro», respondeu ela. «A coroa é um diadema de ouro
que o rei põe durante as festas, pois é mágica e dá poder a quem a ostenta.
Esconderam-na no muro para que ninguém, a não ser o rei, lhe possa tocar.»
«Mas porque e que aqueles dois vão juntos assegurar-se de que a coroa está
sempre lá?», perguntou Néra. «A explicação é simples: como um é cego e não vê
nada, e o outro é coxo e não consegue andar, o rei fica certo de que a coroa não
será furtada.» «Uma coisa ainda me intriga», continuou Néra. «Gostava de saber
o que se passou no dia em que entrei no outeiro. Pude observar que a fortaleza de
Cruachan tinha sido destruída e incendiada, e que as gentes do teu povo mataram
Ailill e Maeve, assim como todos os que lhe são próximos.» «Isso não é exacto»,
respondeu a mulher. «Foi um exército de sombras que foi à fortaleza. Mas o que
viste acabará por acontecer se não puseres os teus de sobreaviso.» «Mas
como?» «Le~ vanta-te e vai ter com eles. Eles estão sempre de volta do caldeirão,
cujo conteúdo ainda não foi comido. Diz-lhes para se manterem em guarda, na
próxima noite de Samain, pois os homens do outeiro deverão atacar nessa altura
a fortaleza de Cruachan e todos os que aí se encontrarem. 0 que viste ainda não
aconteceu. Aconselha também

Ailill e Maeve a virem atacar o outeiro na véspera de Samain, pois há muito tempo
foi profetizado que este outeiro seria destruído por Ailill e Maeve, os quais se
apoderariam da coroa do rei Bnun. Esta coroa conceder-lhes-á a supremacia
sobre todos os outros povos da Irlanda.» «1\4as eles pensarão que estou a
inventar histórias se lhes disser que vim a este outeiro», disse Néra. «Leva contigo
frutos de verão», disse a mulher. «Fica também a saber que estou grávida de ti e
que darei à luz um rapaz. Quando o teu povo vier destruir o outeiro, envia-me
uma mensagem a avisar-me, para que eu possa refugiar-me num abrigo, com o
teu gado. E tu próprio poderás vir aqui sempre que quiseres. Agora parte, vai ter
com os teus.»

181
Depois de colher áleas~rosas, alho selvagem e morangos, Néra dirigiu-se para a
fortaleza, tendo a impressão de que permanecera três dias no outeiro. Ora, ao
chegar a casa encontrou aí Ailiii e Maeve, assim como os seus familiares, à volta
do caldeirão. «Cumpriste, o que te pedi?», perguntou Ailill. «Cumpri», respondeu
Néra, «mas vivi aventuras muito estranhas. Fui a um belo país onde havia grandes
tesouros, pedras preciosas, ricos ornamentos, comidas muito saborosas e bebidas
inebriantes. Mas os habitantes desse pais na proxima noite de Samain vêm matar-
vos e incendiar a fortaleza, a não ser que vós mesmos ides na véspera destruir o
outeiro.» «Nesse caso», disse Ailill, «nós iremos já sem falta atacá-los antes que
eles nos venham atacar. Ainda bem que fizeste esta viagem, ó Néra. Como
recompensa pelo que fizeste ganharás a espada de punho de ouro.»

Três dias antes do Samain, Ailill avisou Néra de que ele deveria ir então proteger a
mulher e os seus bens. Néra voltou então ao outeiro, e a mulher deu-lhe as boas
vindas. «Vai agora a casa do rei», disse-lhe ela, «pois eu fui lá todos os dias levar
um feixe de lenha em teu lugar, fingindo que estavas doente. E segura nos braços
o teu filho.»

Néra tomou o filho nos braços, e depois foi levar um feixe de lenha à casa do rei,
como se nada tivesse acontecido. Ailill e Maeve reuniram os homens de
Connaught e foram atacar o outeiro. Depois de o destruírem, levaram consigo
todas as riquezas que nele existiam. E foi assim que Ailill e Maeve obtiveram a
coroa de Briun que lhes conferiu a supremacia sobre todos os outros povos da
Irlanda.

Néra, por seu lado, voltou para o outeiro com a sua mulher, o filho e’ 0 gado,
ficando aí a viver desde então.”)

Naquela mesma altura, em Munster, reinava um rei chamado

182
ois filhos, Rib e Ecca. Tendo tido o desgosto de Failbé que tinha d 1 1 1

perder a mulher, Failbé desposara uma Jovem de grande beleza que se chamava
EbIlu. Ora, esta EbIlu andava a deitar o olho ao filho mais novo, Ecca, por quem
estava loucamente apaixonada. Ela enchia-o de atenções e manifestava por ele
tanto interesse que o rapaz acabou por perceber que aquela afeição, longe de ser
a que uma mãe tem por um filho, era antes filha do desejo.

Ecca passou então evitar encontrar-se com Ebliu, pois não queria provocar
qualquer transtorno ao pai. Multas vezes ia a caça com os jovens da sua idade e
chegava o mais tarde possível à casa real, mas isso de nada lhe valia, pois Ebliu
fazia-lhe esperas e arranjava sempre maneira de lhe dar a entender o quanto
estava apaixonada por ele. Assim, tornou-se inevitável que Ecca se tenha deixado
seduzir por Ebliu e se tenha deitado no seu leito de amor,

Durante algum tempo a relação passou despercebida a toda a gente. Mas, um dia,
entrando o rei Failbé de surpresa no quarto, viu a mulher e o filho juntos na cama.
Foi tão grande a sua mágoa e a sua dor que pensou matar os dois logo ali, mas
acabou por se acalmar e ordenou-lhes que abandonassem Munster
imediatamente.

Deste modo Ecca, filho de Failbé, deixou o país do pai na companhia de Ebliu,
com toda a criadagem que o servia. E o seu irmão mais velho, Rib, que não se
dava bem com o rei Failbé, foi atrás dele.

0 grupo de exilados dirigiu-se para norte, esperando encontrar aí um lugar


aprazível para se estabelecer. Mas os druidas que os aconipanhavam disseram-
lhes que não era conveniente que os dois irmãos ficassem a morar na mesma
residência.

Decidiram por isso separar-se e, enquanto Ecca continuou o seu caminho para
norte, Rib e as suas gentes dirigiram-se para leste. Depois de muito errarem,
descobriram um belo lugar na planície de Arbthenn. «Eis o lugar que nos
interessa», disse Rib aos seus companheiros. «Esta bela planície rica e verdejante
será excelente para a criação de gado, terá sempre alimento em abundância. E
nós poderemos saciar a sede à nossa vontade nesta fonte que brota do solo em
direcção ao ceu.»

1. Segundo a narrativa Echira Nerai (as Aventuras de Néra), conservada no


manuscrito Egerton 1782, e publicada por Thurneysen em Die Irische Helden Und
Konigssage. Versão francesa de i, Markale em Les Cahiers d’Histoire el de
Folklore, vol. VI, Análise e resumo em J. Markale, A Epopeia celta da Irlanda, nova
ed., Paris, 1993.

Estabeleceram- se então na planíci

ie de Arbthenn, decididos a residir aí para sempre. Mas, naquela mesma noite,

183
quando iam buscar água à fonte, esta transbordou bruscamente e inundou-os a
todos. E foi a partir de então que passou a haver um lago no meio da planície de
Arbthenn.

Por seu lado, Ecca, Ebliu e todas as suas gentes continuaram a dirígir-se para
norte, mas não encontraram nenhum lugar onde se estabelecer. Andaram assim
durante vários dias, parando apenas algumas horas à noite para descansarem os
membros fatigados e cuidar dos cavalos esgotados por puxarem carros muito
pesados, Chegados por fim ao vale da Boyne, encontraram-se num prado que
ficava na vertente de uma colina onde se situava o outeiro de Brug, que tinha um
brilho muito incandescente ao pôr~do-sol.

«Estamos muito cansados e Ja não conseguimos andar», disse Ecca. «Fiquemos


aqui, pois este lugar é fresco e apirazível, e poderemos montar as nossas tendas
no sopé da colina, abrigados do vento.»

Começaram a instalar-se mas, no alto do outeiro, Angus, filho de Dagda, tinha


estado a vê-los e ficara furioso por os intrusos estarem a instalar-se nos seus
domínios sem sequer se terem dado ao trabalho de lhe pedir autorização. Assim,
deixando a sua casa, ele veio ao encontro de Ecca que, após lhe ter censurado a
sua indelicadeza, intimou-o a partir imediatamente com as suas gentes, pois não
estava disposto a per~ mitir que estragassem aqueles pastos puros que cobriam a
encosta. Feita a intimação, voltou para Brug.

Como caía a noite, Ecca decidiu adiar a partida, preferindo esperar pela manhã
para retomar a viagem. Montaram as tendas rapidamente e, como todos estavam
fatigados, dormiram profundamente.

Ainda estavam mergulhados no sono quando Angus apareceu no meio deles, mais
furioso do que nunca. Lançou um encantamento sobre Os cavalos de Ecca e de
Ebliu, e todos os cavalos morreram imediataInente. «Procedeste muito mal, ó filho
de Dagda», disse-lhe Ecca. «Nós fião tencionávamos prejudicar-te e estávamos
apenas a descansar até de Inanhã, Pois todos nós estamos exaustos.» «Eu não
vos dei permissão para que ficásseis», gritou mac Oc. «Sois vós os culpados por
eu ter lançado um encantamento sobre os vossos cavalos para os matar. Se
terides algo a lamentar, é a vossa presunção.» «Tu procedes mal ao nos
repreenderes tão vilmente!», replicou Ecca com veemência. «Além de não
respeitares os deveres de hospitalidade, privaste-nos dos nossos cavalos. Quem é
que agora nos puxara os carros com tudo o que têm den-

184
tro?» «Vós mesmos puxarei,, os carros!», respondeu Angus.

Então eles começaram a arrumar as tendas e quando tudo ficou pronto, puseram-
se corajosamente a puxar os carros. Mas como o terreno não era plano, tiveram
uma grande dificuldade para os fazer avançar, Angus observava-os a partir da sua
casa, com um ar irónico, e disposto a dar-lhes outra reprimenda se não deixassem
a sua terra. Mas depois, vendo-os fazer um esforço tão desmedido, teve pena
deles, desceu a colina e foi ao seu encontro. «Esperai!», gritou ele. «Vou dar-vos
um cavalo para vos compensar dos que matei. É um cavalo forte e poderoso que
vos permitirá puxar todos os carros ao mesmo tempo.»

Angus foi a Brug e voltou de lá com uma magnífico cavalo cínzento, de pêlos
brilhantes, a crina prateada e as patas robustas e ágeis. Trazia o belo animal
arreios de prata guarnecidos com fivelas em ouro onde estavam incrustadas
pedras preciosas de todas as cores. «Cedo-te este cavalo sem pedir nada em
troca», disse ele a Ecca, «mas devo prevenir-te de uma coisa. Este cavalo não
pertence a nenhuma raça que tu conheças e terás de ter o cuidado de o não
deixar nunca parar, seja dia ou noite. Não o deixes nunca descansar pois, se o
fizeres, isso causará uma grande catástrofe, a qual te será fatal a ti e aos teus.»

Os exilados, sem perda de tempo, retomaram a viagem C Viram maravilhados que


o cavalo, na verdade, puxava sozinho todos os carros sem fazer um grande
esforço. Entraram no Ulster e daí a pouco avistaram uma planície muito verdejante
rodeada de colinas, a planície de Neagh. «Eis um belo lugar para nos
estabelecermos», disse Ecca. «Aqui existe erva em grande abundância para
criarmos o nosso gado, e o terreno é tão plano que não teremos dificuldade em
construir aqui as nossas casas.»

Descarregaram os carros mas, absorvidos pela tarefa, esqueceram-se de vigiar o


cavalo. No momento em que este parou uma fonte jorrou então do solo, lançando
para o ar jactos de água que se projectavam torrencialmente nos céus. Ecca
lembrou-se então da advertência de Angus e, muito perturbado com o fenómeno
que provocara, mandou construir sem demora, com pedras de grandes
dimensões, uma casa à volta da fonte com uma porta que vedava o caminho às
águas torrenciais. Deste modo, a água deixou de correr e de inundar os terrenos
vízinhos, e Ecca decidiu edificar a sua própria casa perto da fonte para melhor a
vigiar.

Todos puseram mãos à obra e, Ecca encarregou uma criada da sua confiança de
vigiar a fonte, ordenando-lhe que tivesse sempre a porta Z:I

rigorosamente fechada, excepto quando as gentes da fortaleza fossem buscar


água à fonte.”’

Construiu-se assim uma cidade ao redor da fortaleza de Ecca e este, com as suas
gentes, dedicaram-se à criação de gado que ia pastar ria erva abundante da
planície onde também se cultivava o trigo. Ebliu deu a Ecca duas filhas que se

185
chamaram Ariu e Libane. Numerosos chefes do UIster vieram visitar Ecca e
prestaram-lhe homenagem, tendo ele tanto sucesso que ficou soberano de
metade da província. E todos elogiavam as excelentes qualidades de Ecca, filho
de Failbé.

Quando chegou à idade de casar, Ariu desposou um poeta de nome Curnan, que
cheio de boa vontade percorria o país de lés a lés recitando ou cantando profecias
que pareciam desprovidas de qualquer sentido: por esse motivo lhe chamaram
Curnan, o Simples. Curnan repetia constantemente que um dia um lago surgiria
por causa da fonte, sendo por isso urgente fazer barcos. «Veio esta planície cheia
de morte e destruição», dizia ele. «Veio jactos de água a saírem da terra, jactos
impetuosos e torrenciais. Veio o nosso chefe e todos os seus hóspedes engolidos
pela fúria das águas, Também vejo Ariu, a minha amada, levada pelas vagas. Oh!,
nem sequer a posso salvar. Todos morrerão nesta planície, à excepção de Libane
e de eu proprio. Que triste destino... E vejo Libane a leste e a oeste: ela nadará
muito, muito tempo no vasto oceano, passando perto de costas misteriosas e de
ilhotas obscuras, e perto de grutas profundas imersas nas J

aguas. W, esta cidade desaparecerá, e só eu ficarei para chorar os que partiram ...
!» Era este o lamento que Cuman o Simples constantemente entoava àqueles com
que se cruzava, mas ninguem o queria ouvir e todos lhe voltavam as costas
quando o viam aproximar-se.

Ora, um dia, a mulher que estava encarregue de vigiar a fonte esqueceu-se de


fechar a porta. Logo a água saiu da casa de pedra e invadiu a planície, formando
um grande lago que se chama Lough

I- Outra versão da mesma narrativa atribui a aventura não a Ecca mas ao seu
irmão Rib. É Mider, o pai adoptivo de Angus, que lhe dá o cavalo, e lhe faz a
mesma advertência. Mas o cavalo põe-se a urinar tão abundantemente que Rib se
vê obrigado a fechá-lo numa casa. Trinta anos mais tarde a urina transborda e
inunda todo o país. (Revue celtique, tomo xv, segundo o manuscrito de Rermes
dos Dindsenchas, série de notas mitológicas sobre os lugares da Irlanda).

186
Neagli. Ecca, filho de FalIbé, EbIlu, toda a família e todas as suas gentes foram
vítimas das águas furiosas, salvando-se apenas a sua filha Libane e o seu genro
Curnan o Simples.”

Mesmo tendo sido arrastada pelas vagas, Libane conseguiu sobreviver e desceu
com o seu cão às profundezas do lago onde viveu um ano inteiro, numa gruta.
Mas, ao fim de um ano, ela cansou-se de estar presa e exprimiu o desejo de ser
um salmão para poder nadar nas águas profundas dos estuários e poder percorrer
com os seus semelhantes o mar claro e verde. Com efeito, mal ela exprimira o seu
desejo, este fora satisfeito, embora o seu rosto e os seus seios tenham mantido o
aspecto dos duma donzela. (2)

Libane errou assim durante trezentos anos por todos os lagos e todos os rios da
Irlanda, e percorreu o mar profundo e encapelado junto à costa. Multas vezes ela
voltava ao lago Neagh e, aí, entoava um lamento em memória de seu pai Ecca e
de toda a sua família. Depois, voltava a partir pelos estuários e continuava as suas
longas incursões por toda a Irlanda.

Ora, certo dia, estando ela num rio de águas pouco profundas, foi pescada pelo
santo homem Congal que, professando a fé de Cristo, vivia num eremitério.
Congal ficou surpreendido e maravilhado ao ver aquele ser estranho e belo, e
Líbane contou-lhe os acontecimentos que

1 .Reconhecer-se-á nesta história o tema da célebre lenda bretã da Cidade de Is,


engolida pelas vagas do mar por culpa da princesa Dahud que deu as chaves das
represas que protegiam a cidade. No País de Gales encontra-se esta tradição no
caso da baía de Cardigan, estando na origem da catástrofe o esquecimento de
uma mulher encarregue de vigiar uin poço, que não fechou uma porta, deixando
assim que ele transbordasse. Pode tambérn mencionar-se a tradição respeitante
ao país de Lyonesse, engolido pelo mar ao largo de Penzance no Cornwall. Este
tema da cidade engolida pelas águas parece constante na lenda celta. Ver J.
Markale, Os Celtas e a civilização céltica, Paris, Payot, 1994 (cap. consagrado ao
Mito céltico das origens) e, sobretudo A mulher celta, Paris, Payot, 1992 (cap.
consagrado à «Princesa engolida»).

2. Este ser meio-mulher meio-peixe não é uma sereia, apesar da opinião corrente:
na origem, uma sereia é, com efeito, um monstro feminino com barbatanas que,
vivendo em baixios, seduz os navegadores para os levar para o fundo. Pelo
contrário Libane é o perfeito rnodelo de um tipo melusino (ainda que Melusina
tenha uma cauda de serpente e não de peixe). É preciso ter em conta que este
tema foi explorado muitas vezes pelos escultores irlandeses da Idade Média:
testemunham esse facto as representações muito misteriosas, incOrrectamente
chamadas «sercias», que se podem encontrar no exterior da catedral anglicaria de
GaIway, e sobretudo a representação surpreendente que se encontra num
contraforte, no interior da magnífica igreja romana de Clonfert (condado de
GaIway), a qual está alétu disso colocada sob o orago de São Brandão, o
Navegador.

187
testemunhara. Quando Congal lhe perguntou se queria receber o baptismo, ela
aceitou humildemente e pediu a Deus para a acolher na paz eterna. Então ele
baptizou-a e no mesmo instante morreu Libane, filha de Ecca, que veio a ser
Muirgen, a «Filha do Mar»Y1

Segundo a narrativa A inundação do lago Neagh, contida no Leabhar na h Uidré,


manuscrito do fim do século XI, editado com tradução inglesa por 1. 0’ Beirne-
Crowe em Ki1kenny Archaeological Journal, Kilkenny, 1870. Outra tradução
inglesa de P. W, Jiyce em Old Celtíc romances, Dublin, 1879.

188
aquele tempo havia um jovem herói chamado Fraech, que era o homem mais belo
de toda a Irlanda e Bretanha. Tinha por pai Idach de Connaught e por mãe Befinn,
irmã de Boann, das tribos de Dana. 13efinn oferecera-lhe dez vacas feéricas,
brancas e com orelhas vermelhas, e que produziam leite em grande abundância.
Na casa onde vivia encontravam-se cinquenta filhos de reis, todos da mesma
idade, com a mesma estatura e o mesmo aspecto que ele, e encontravam-se
também três harpistas muito talentosos. A fortuna de Fraech era imensa, e a sua
reputação estendia-se muito para além do Connaught.

Acontece que Finnabair, filha de Ailill e de Maeve, que reinavam então naquela
província, de tanto ouvir falar nas excelentes qualidades de Fraech, se apaixonou
por ele sem nunca o ter visto. Tendo chegado aos ouvidos de Fraech as
pretensões da jovem em relação à sua pessoa, ele decidiu então ir conhecê-la. A
este respeito falou com as suas gentes, que lhe deram todo o apoio. «Mas»,
acrescentaram elas, «antes de ires para casa de Ailill e de Maeve, vai falar com a
irmã da tua mãe e pede-lhe para te dar presentes feéricos.»

Fraech foi então à residência desta última, que se chamava BoaDn e o recebeu
com benevolência, dando-lhe o que ele lhe pediu: cinquenta capas, azuis como as
costas de um escaravelho, que estavam ornadas com broches vermelhos,
cinquenta túnicas brancas com adornos de aniinais em ouro e prata, cinquenta
broquéis de prata com orlas vermelhas salientes, pedras preciosas que brilhavam
à noite como raios de sol, e cinquenta espadas de punho de ouro. Da casa de
Boann, ele trouxe tam-

189
bém cinquenta cavalos que tinham como pendentes do pescoço sinetas de ouro, e
exibiam caparazões de púrpura, arreios de ouro e de prata decorados com figuras
de animais e munidos de cinquenta chi

CI 1 icotes em latão branco que tinham na ponta


colchetes de ouro; trouxe ainda sete cães de caça equipados com correntes
prateadas, sete tocadores de trompa de cabelos longos dourados, vestidos com
túnicas multicolores
1 1

e com mantos brilhantes, e seguiam o grupo três druidas coroados com díademas
de prata revestidos a ouro.

Quando se aproximavam de Cruachan onde residiam Ailill e Maeve, a’sentinela


que estava na torre da fortaleza viu-os desembocar na planície e foi anunciar ao
rei e à rainha, aos gritos: «Vem ao nosso encontro uma companhia como nunca se
viu desde que reinais sobre Connaught. Juro pelo deus protector da minha tribo
que jamais se viu companhia tão brilhante e rica: vêm com tal ligeireza e com tal
aparato que nunca vi nada igual! Quanto aos malabarismos e às habilidades que
exibe o jovem que se encontra no meio da companhia, ultrapassam tudo o que se
possa imaginar: ele atira o dardo para a frente e, antes que a arma atinja o solo,
sete cães com correntes de prata seguram-na em pleno ar.»

Ao ouvirem tão grande elogio, as gentes que se encontravam na fortaleza de


Cruachan precipitaram-se para as muralhas para poderem ver o grupo que se
aproximava, e foi tal a pressa e a sofreguidão que várias pessoas ficaram
esmagadas, tendo morrido dezasseis. Depois, o espectáculo que todos viram foi
impressionante: os membros do grupo deixaram os cavalos soltos pelo prado e
libertaram os caes que, começando a correr velozmente, num instante, às vistas
das muralhas de Cruachan, caçaram sete gamos e sete raposas. Depois, os cães
partiram para um pântano e trouxeram de lá sete lontras que depositarafil à porta
das muralhas. Então, os membros do grupo sentaram-se na erva fresca e ficaram
à espera.

Foram da parte de Ailill e de Maeve perguntar-lhes quem eram e de onde vinham,


e responderam que Fraech, filho de Idach, desejava visitá-los. Disso foram então
avisados o rei e a rainha, dizendo Aílill: «Sejam bem vindos, com todo o vosso
séquito!»

Fizeram-nos entrar e foi-lhes dada uma casa para repousarerfl. Nela encontraram,
da lareira ao muro1`, sete leitos dourados com uni frontão de bronze e divisórias
de teixo vermelho à volta dos quaís corriam cintas de bronze. Sete cintas de cobre
partiam tambéli, do caldeirão até ao tecto da casa. Esta, feita de abeto, era
coberta conI

ripas e tinha dezasseis janelas com caixilhos em cobre.

190
Um caixilho de prata, e a seguir um frontão, uniam as travessas da casa e
cercavam-na de uma porta à outra.

Após dependurarem as armas nas paredes da casa, Fraech e os seus


companheiros começaram a reti iosas das suas írar pedras preci

arcas. E quando Ailill e Maeve vieram cumprimentá-los e dar-lhes as boas vindas,


falaram de diversos assuntos durante bastante tempo, dizendo-lhes depois a
rainha: «É meu desejo jogar xadrez com este jovem.» «Pois bem, se o desejas,
que se faça a tua vontade», concordou o rei, «mas entretanto seria bom que se
fosse preparando uma refeição para os nossos hóspedes.»

Trouxeram uinjogo de xadrez. 0 tabuleiro era esplêndido, todo em bronze branco,


com os cantos em ouro, e as peças eram de ouro e de prata. Maeve começou a
jogar com Fraech e, enquanto decorria a par~ tída, as gentes da casa coziam os
alimentos. «Diz agora aos teus harpistas para nos tocarem qualquer coisa», disse
Ailill a Fraech, e este ordenou aos harpistas: «Começai a tocar.»

As harpas estavam guardadas em sacos de pele de lontra, debruados a couro


escarlate com ouro e prata incrustados. As harpas eram de ouro, de prata e de
bronze branco tendo em relevo as figuras de pássaros e de cães. Quando se
tocava nas cordas, as figuras corriam às voltas ao redor dos homens. Os harpistas
começaram a beliscar as cordas, e provocaram um tal sofrimento e uma tristeza
tão grande que morreram doze homens da casa de Ailill e de Maeve.

Estes músicos, excelentes melodistas, eram irmãos, e chamavam-se Lamuriento,


Risonho e Adorrnecedor. Eram assim chamados de acordo com as diferentes
melodias que tocara a harpa de Dagda em honra deles. Com efeito, aquela,
quando do nascimento deles, tinha provocado tristeza quando das primeiras dores
da mae, provocara sor~ risos e regozijo com o parto dos dois primeiros filhos, mas
induzira ao sono quando do nascimento do terceiro, pois o trabalho de parto foi
rtluito penoso e a mãe adormeceu. Quando esta acordou, quis comemorar o que
sentira durante os seus partos.

Quanto a Maeve e a Fraech, jogaram xadrez durante três dias e três Iloites, sem
sequer darem pela escuridão, pois das pedras preciosas

L A lareira tem fratIcêsfoyc r - N. T.1 encontra-se no centro da sala, saindo o fumo


por uma abertura feita no tecto.

191
desprendia-se uma luz muito suave. Por fim, Fraech levantou-se. «Basta», disse
ele, «que já ganhei esta partida, seja qual for a joga-

da que fizeres a seguir. E não fiques aborrecida se te pedir para deixarmos de


jogar.» «Desde que te encontras nesta casa», respondeu Maeve, «nunca os dias
me pareceram tão compridos!» «Não admira», replicou Fraech, «estamos a jogar
há três dias e três noites! »

Maeve ergueu-se, envergonhada por ter deixado os jovens sem comer, mas
disseram-lhe que eles tinham sido servidos com grande fartura. Então, ela pediu
que lhes dessem ainda mais comidas e bebidas, para que se saciassem. Depois,
Aíli11 e ela chamaram Fraech à parte e perguntaram-lhe qual era o motivo que o
1tinha levado a Cruachan. «Eu queria visitar-vos», respondeu Fraech. «E uma
grande honra para nós», disse Ailill, «e estamos muito felizes por te conhecermos.
Fica a saber que gostamos muito de te ter aqui connosco.» «Nesse caso ficarei
convosco uma semana», disse Fraech.

Assim, durante uma semana ele ficou alojado na fortaleza de Cruachan. os seus
companheiros iam caçar todos os dias e traziam caça em abundância, vindo
visItá-los as gentes de Connauglit. Mas Fraech estava muito aborrecido por não
ter encontrado FIrmabair, pois viajara por causa dela, estranhando que Ailill e
Maeve não lha tivessem apresentado.

Ora, uma manhã, Fraech levantara-se logo aos primeiros raios de sol e, quando
foi ao pátio lavar-se na fonte, viu Finnabair tomar a mesma direcção na companhia
de uma criada. Imediatamente ele tomou-lhe as mãos e disse-lhe: «Vem falar
comigo, pois se aqui me encontro é por tua causa.» «Eu sei», respondeu ela, «e
ficaria muito feliz na tua companhia, mas isso não é possível. 0 meu pai e a minha
mãe pediram-me que me escondesse de tI» «Aceitas fugir comigo?», perguntou
Fraech. «Isso seria uma atitude insensata, pois sou filha de um rei e de uma
rainha. Quero no entanto que saibas que Isso não significa desprezo por ti, pois a
tua riqueza e a tua reputação são suficientes para que a minha família consentisse
em obteres a minha mão. Além disso, era contigo que eu preferia ficar, pois amo-
te desde que comecei a ouvir falar de ti. Toma este anel, que servirá para nos
manter unidos. A minha mãe deu-me para o guardar, e se perguntar porque não o
trago comigo direi que o perdi.»

Separaram-se logo em seguida, mas Ailill e Maeve foram prevenidos de que a sua
filha se encontrara com Fraech. «Receio muitO», disse o rei, «que a nossa filha
fuja com esse jovem.» «Poderíamos dar-

-lhe a nossa filha com todas as honras na condição de ele aceitar dar um bom
dote e se se comprometer a acompanhar-nos quando tivermos de fazer uma
expedição guerreira.» Naquele mesmo momento, Fraech entrou em casa. «A
vossa conversa é secreta’?», perguntou ele. «Se o fosse, não poderias nela
participar», respondeu Allifi. «Gostaríamos que nos dissesses o que desejas.»
«Nesse caso, serei lesto a dizer-vos o que dese-jo», disse Fraech, que perguntou

192
em seguida: «Quereis dar-me a mão da vossa filha’ .>»

Ailill e Maeve entreolharam-se muito sérios.

«Nós dar-te-ernos a sua mão», afirmou Ailill, «desde que aceites dar-nos o dote
que te pedir.» «0 que desejas então?» «Três vintenas de cavalos de cor
acinzentada, com freios em ouro e prata, doze vacas leiteiras com capacidade
para darem leite, cada uma delas, a cinquenta pessoas, e tendo cada uma delas
um veado branco com orelhas encarnadas. Peço-te também que jures que nos
acompanharás sempre que de ti necessitarmos numa expedição guerreira. Caso
aceites as nossas condições, a nossa filha será tua.» «Pela minha espada e pelas
minhas arrnas!», exclamou Fraech, «nem mesmo a Maeve de Cruachan eu
darei um tal dote!» E, irado, deixou-os e abandonou a casa.

Ailill e Maeve retomaram a conversa. «A situação agravou-se», disse Ailill, «pois


agora ele é capaz de levar a nossa filha à força, o que nos encherá de vergonha e
de desonra perante os reis e os nobres da Irlanda. A meu ver, mais vale que
acabemos com ele antes que nos deixe ficar mal.» «Isso não seriajusto», disse
Maeve, «pois ele é nosso hóspede, e temos o dever de lhe prestar assistência e
de o proteger. Matá-lo só serviria para nos desonrar.» «Eu agirei de tal forma»,
disse Ailili, «que evitarei que a desonra caia sobre nós.»

Os dois imediatamente saíram da fortaleza e viram os cães na caça. Estava-se a


meio da tarde e os caçadores dirigiam-se para o lago para se refrescarem,
seguIndo-os Affill e Maeve. «Disseram-me», disse Ailill a Fraech, «que és um
nadador excelente. Mergulha no lago para que possamos admirar o teu talento.»
«Como é o lago?», perguntou Fraech. «E igual aos outros», respondeu Ailifi. «Não
tem nenhuns perigos e nele é frequente tomarem~se banhos.»

deixando o cinto na margem. Fraech despiu-se e mergulhou nas águas

Ailill aproximou-se, baixou-se, pegou no cinto, abriu a bolsa que estava dele
pendente, onde descobriu o anel de Finnabair, e reconhecendo-o imediatamente,
atirou-o com um gesto brusco para um lugar distante do lago.

193
Entretanto, Fraech, sem nunca deixar de nadar, estivera sempre, a observar
aquela cena. Seguiu o anel com os olhos e viu um salmão saltar para fora da água
e engoli-lo, Sem perder tempo, precipitou-Se para o peixe, agarrou nele,
transportou-o para terra e pô-lo num lugar escondido da margem, no meio dum
canavial. Depois, quando se preparava para sair do lago, gritou-lhe AiIiII: «Um
instante! Vês aquela sorveira, naquele lado do lago? Acho muito bonitas as suas
bagas. Antes de vires ter connosco, vai lá e traz-me um ramo.»

Fraech nadou até ao outro lado do lago, chegou perto da sorveira, arrancou-lhe
um ramo, e transportando-a sobre um ombro, nadou de volta ao encontro do rei.
Enquanto isto acontecia, Finnabair aproximara-se do lago e estivera a apreciar os
movimentos muito belos e ágeis de Fraech a nadar: nunca ela vira um corpo tão
branco, com uma cabeleira preta tão harmoniosa, e um rosto tão delicado, com os
olhos azuis e os lábios bem vermelhos. 0 coração acelerou-se-lhe e pôs-se a
sonhar.

Entretanto, Fraech aproximou-se da margem e arremessou o ramo da sorveira


aos pés de Ailifi. «Estas bagas são magníficas!», gritou ele. «Nunca eu vi bagas
iguais a estas. Peço-te, Fraech, que nos vás buscar outro ramo.»

Fraech deu meia volta e começou a atravessar o lago. Mas, quando chegou a
meio, sentiu que, vindo do fundo, um monstro o estava a atacar. «Atirem-me a
espada!», bramiu ele, «Estou a ser atacado por um monstro!»

Mas, com medo de Ailill e de Maeve, ninguém se atreveu a atirar-lhe uma arma.
Então, Finnabair despiu-se num abrir e fechar de olhos a atirou-se às águas com a
espada de Fraech. Ao ver a filha ter aquela atitude, Ailill disparou contra ela um
dardo de cinco pontas. 0 dardo atravessou as duas tranças da rapariga, mas
Fraech agarrou-o com a mão direita e voltou-o contra Ailill com uma tal precisão
que a seta atravessou o vestido púrpura do rei. Finnabair estendeu então a
espada para Fraech, que exclamou: «ó Finnabair, tu és mesmo a branca
aparição”’ que me vem salvar!»

De posse da espada, Fraech cortou logo a cabeça do monstro e arremessou-a


para a margem. Estava no entanto exausto, com o corpo branco cheio de feridas,
ordenando Ailill que o transportassem para a fortaleza.

1. É este o sentido do nome gaéíico Finnabair, o equivalente estrito do galês


Gwenhw’f’af, ou seja, Guenievre, a esposa do rei Artur.

«Curem-no!», gritou ele, «e preparem-lhe um banho para que possa lavar as


feridas. Dêem-lhe também um caldo para que se possa recompor.» Disse depois
para Maeve: «Eu não deveria ter procedido daquela maneira, pois o rapaz não
tem culpa nenhuma e, além disso, ele demonstrou multa coragem. Estou
arrependido de ter procedido tão mal. Quanto à nossa filha, traiu-nos levando-lhe
a espada. Os seus lábios calar-se-ão antes de amanhã à noite, pois já não é
possível tolerar tanta audácia e presunção.»

194
Entraram depois na fortaleza. Fraech estava a tomar banho, havendo mulheres à
sua volta a esfregarem-no e a lavarem-lhe a cabeça. Deram-lhe a beber um caldo,
depois retiraram-no da banheira e deitaram-Do numa boa cama.

Naquele mesmo instante, ouviu-se um grande lamento que se espalhou por toda a
Cruachan, e viu-se de seguida no prado três cinquentenas de mulheres vestidas
com túnicas de purpura, com a cabeça coberta com toucados e trazendo nos
pulsos braceletes de prata. Logo alguém foi mandado perguntar-lhes por que se
lamentavam daquela maneira e quem eram. «Nós lamentamo-nos por causa de
Fraech, o filho de Idacha e de Befinn de quem é o filho favorito, e o jovem mais
amado de todas as tribos de Dana.»

Fraech, que ouvira o lamento, pediu para o deixarem ir ao encontro daquelas


mulheres. «Reconheço entre os lamentos o da minha mãe e das mulheres de
Boan», disse ele. Transportaram-no então para o prado, no exterior da fortaleza, e
logo que o viram, as mulheres rodearam-no e levaram-no, desaparecendo na
bruma que repentinamente se levantara e que cobria Cruachan.

Mas, no dia seguinte, quando a tarde ia a meio, viram Fraech voltar na companhia
das cinquenta mulheres. Estava curado de todas as feridas e já vencera a fatiga.
As mulheres que o acompanhavam eram todas da mesma idade, da mesma
estatura, igualmente belas, e tinham um aspecto feérico, não sendo possível
distinguir umas das Outras. Pouco faltou para que as pessoas morressem
esmagadas, tal foi a precipitação quando quiseram contemplá-las de perto. Elas
deixaram Fraech à porta do pátio principal e, depois de se despedirem dele,
regressaram pelo mesmo caminho por onde tinham vindo. Mas como, ao
afastarem-se, elas continuaram a entoar o lamento com um sentimento profundo,
todas as pessoas que se encontravam naquele momento ’10 Pátio ficaram loucas.
E é desta história que provém o «Lamento das

195
dos os músicos da Irlanda.”’

Fadas», inuitO cOnhecill’ de to aeve,elevanFraech entrou


imediatamente na casa. de Ailill e de M

tou-se toda a assembleia para o acolher e para lhe dar as boas vindas, parecendo
que ele vinha de outro rnundo.”’ 0 rei ”- a rainha também se levantaram e
exprimiram o seu arrependimento, pedindo-lhe desculpas pelo que lhe tinham
feito. Ele, por seu lado, saudou-os e fez as pazes com eles, começando-se depois
os festejos. grupo e disseEntretanto, Fraech mandou chamar um
joveM do seu

-lhe: «Vai à margem do lago, a um lugar onde eu estive no meio de um canavial e


onde deixei um salmão, Leva-o a Finnabair e pede-lhe para o preparar e para o
cozer bem. Diz-lhe também que o anel se encontra no interior do peixe. Creio que
ele nos poderá ser muito útil esta noite.»

Ailill e Maeve, comprazendo-se com a música e a bebida, não tardaram a ficar


embriagados. Então, o rei pediu ao seu intendente par .a lhe trazer as
suas jóias, que foram, expostas à sua frente. .«Que maravilha!», exclamaram
os convidados. «Nunca vimos uma riqueza igual!» Ailill ordenou então: «Mandem
vir Finnabair!» ouro, Finnabair

Pouco depois, exibind .o um vestido debruado a disseapresentou-


se perante o pai e toda a assembleia. «Minha flha»,

-lhe o rei, «onde está o anel que a tua mãe te deu rio ano passado para o
guardares? Ainda o tens? Se o tiveres, traz-mo para que todos possam admirar a
sua beleza.» «Não sei onde ele está», respondeu Finnabiar. «Nesse caso»,
replicou AiIIII, «vai procurá-lo. Se o não encontrares, juro-te que te faço a alma sair
do corpo!» «Isso não é justo!», PrOtestaram os presentes. «Tens aqui riquezas
suficientes para que nem dês pela falta do anel.» «Estou disposto a dar à tua filha
objectos Preciosos como esse», interveio Fraech, «pois ela salvou-me a vida, e
estou-lhe muito grato por isso.» «Não insistas», disse Ailifl. « Se ela não trouxer o
anel que lhe peço, nenhumajóia que lhe dês a poderá salvaf-» «Assim

ou procurá-lo.» «Não1», gritou AiliII. 1F-u sendo», disse Finnabair, «v

1. Este Lamento das Fd,, é, com efeito, um dos mais antigos cantos tradicionais e
mantétn-se enraizado entre todas as classes do povo irlandês. ou seja, ao sidh, o
outro mundo

2, É este o caso: Fraech foi levado ao «pas das Fadas,>, vas que se referein,
a outeiros mpgalíticos. Nas outras narrati ida que se supõe existir sob os
achan está constrAilifl e a Maeve, tudo leva a pensar que a sua fortaleza de Cru e
de ond, a qualquer sobre um coim, no qual é Possível ern`rat ` certas ocasiões,

196
momento pode surgir o povo feérico para se misturar com os humanos.

sei muito bem que se deixares esta sala, desapareces da minha vista para
sempre. Se pensas que escapas assim tão facilmente, enganas-te. Mas permito
que mandes alguém procurá-lo em teu lugar.»

Finnabair incumbiu então a sua criada daquela tarefa. «Eu juro pelo deus protector
da minha tfibo», disse Finnabaír, «que se o anel for encon~ trado, não ficarei nem
mais um minuto em teu poder, e que farei a partir de então o que muito bem
entenderl» «Se se encontrar o anel», exclamou Ailifi, «serás livre até de te
encontrares com o rapaz das cavalariças.»

Naquele momento, a criada entrou com um prato nas mãos. No prato todos viram
um salmão bem temperado e cozido, condimentado com mel e especiarias,
estando o anel de ouro sobre o salmão. Ailill e Maeve olharam-no muito
espantados, e depois olharam para Fraech, que levou a mão ao cinto. «Parece-
me», disse ele, «que quando mergulhei no lago, a teu pedido, deixei o cinto na
margem. No cinto havia uma bolsa pendente e dentro dela estava este anel. Se
realmente tens ainda uma réstia de decência, Ailill, diz-nos o que fizeste ao anel.»
0 rei defendeu-se o melhor que pôde, muito embaraçado:

«Este anel pertencia-me e dei-o a Finnabair, mas soube que ela to tinha dado. Foi
por isso que, quando mergulhaste no lago, o tirei da tua bolsa e o atirei à água. 0
que me espanta é vê1o aqui. Por tua honra, ó Fraech, explica-nos este prodígío,»
«É muito simples ... », respondeu Fraech. «Ao dar-me este anel, a tua =, filha
ficou comprometida comigo, o que te deixou incomodado. Enquanto nadava, vi-te
pegar nele e atirá-lo à água, e vi depois o salmão engoli-lo. Nessa altura agarrei o
salmão e escondi-o na margem, de forma dissimulada. Ainda há pouco, antes do
festim, mandei buscá-lo para o dar à tua filha e foi ela que, ao mandar cozer o
salmão, descobriu o anel. Assim se explica que ele esteja agora perante ti.»

Aílill, terrivelmente perturbado, olhou para Maeve que se mantinha calada, e


depois fixou o olhar em Fraech sem ser capaz de falar. «Rei Ailill», continuou
Fraech, «todos os que estão aqui presentes ouviram as palavras que pronunciaste
ainda há pouco. Tu disseste que, se o anel fosse encontrado, ela poderia partir,
nem que fosse com o moço das cavalariças, segundo as tuas próprias palavras.»
«Tu sabes muito bem», exclamou Finnabair, «que só a ti trago no coração!»
«Pelos vistos», suspirou Ailill, «tenho mesmo de te dar a minha filha. Exigir-te-ei
no entanto uma única coisa: que jures acompanhar-nos em todas as expedições
guerreiras em que necessitemos da tua ajuda.»1’1

Fraech ficou assim na fortaleza de Cruachan e dormiu com a don-

197
zela. Na manhã seguinte, despediu-se do rei e da rainha de Connaught e, com
todas as suas gentes e Finnabair, regressou para a sua residência.

Pouco tempo depois, a pedido de Ailill e de Maeve, ele veio ajudá-los numa
expedição guerreira. Mas, logo que regressou, soube que lhe tinham roubado as
vacas e que a sua mulher desaparecera. Foi a mae que lhe velo anunciar: «A tua
ausência não foi nada feliz, pois provocar-te-
1

-a um grande sofrimento. Roubaram as tuas vacas e levaram Finnabaír. Três das


tuas vacas estão na Escócia do norte, no território dos Pictos. E as outras, assim
como a tua mulher, estão nas montanhas dos Alpes.(’) «Eu vou à procura dela!»,
exclamou Fraech. «Não vás!», disse a mãe, «pois se o fizeres a tua vida correrá
um grande perigo. Eu dar-te-ei outras vacas.» «Mas, e Firinabair?» «Na Irlanda há
mulheres tão belas e nobres como ela e eu própria me encarregarei de te arranjar
uma que te convenha.» «Não me interessa o que dizes», disse Fraech, «pois de
qualquer modo partirei em busca de Finnabair e das minhas vacas.»

Deixou então a mãe e, acompanhado de três novenas de homens, de um falcão e


de um cão puxado pela trela, pôs-se a caminho e chegou à província do UIster,
onde encontrou Conall Cemach(11 com quem fez amizade. Disse-lhe este,
acompanhando-o na sua demanda: «A tua missão está condenada ao fracasso,
pois prevejo que terás de passar por muitos tormentos e por muito sofrimento.»
«Acompanhar-me-ás, seja qual for o perigo?», perguntou Fraech. «Nunca recusei
ajuda a um amigo», respondeu Conall. «Acompanhar-te-ei para onde quer que
vás.»

Juntos atravessaram então o mar e o norte da ilha da Bretanha, entraram no mar


de Wight, erraram muito tempo na Gália e por fim avistaram as montanhas dos
Alpes. Quando aí chegaram, viram uma rapariga que pastava carneiros.

«Vamos falar-lhe», disse ConalI, «enquanto as nossas gentes esperam aqui por
nós. Sem dúvida, ela poderá prestar-nos informações sobre

1. Como nas narrativas dos Dois Porqueiros e das Aventuras de Néra, esta
Cortesã de Finnabair constitui um dos numerosos prólogos da célebre epopeia da
Razzia des Boenfs de Cualngé. Nesta Fraech participará e morrerá às mãos do
herói Couhoulinn.

2. As narrativas irlandesas incluem sempre um jogo de palavras entre os Alpes , o


nome Alba, que designa Grã-Bretanha.

3. Este Conall Cernach é uma das principais personagens do ciclo épico do UIster.
Cornpanheiro de armas do herói Couhoulinn, será também um dos protagonistas
da Razzia des Boeufs de Cualngé. Numerosas narrativas mostram-no a intervir
nas circunstâncias mais diversas.

198
este país.» Foram então falar a rapariga que, ao saber que eles vinham da Irlanda,
começou a chorar. «Porque choras?», perguntou Fraech. «A minha mãe veio da
Irlanda, tal como vos», respondeu ela, «mas podeis ter a certeza de que não está
cá de sua livre vontade. Estais num país horroroso e terrível, povoado por jovens
guerreiros cruéis e traiçoeiros que andam por todo o lado a roubar tesouros, vacas
e mulheres.» «Qual fo, a

1 última coisa que roubaram?», perguntou ConaIl. «Eles roubaram a mulher e as


vacas de Fraech, filho de Idach, de Connauhgt, na Irlanda. A mulher encontra-se
na fortaleza que existe lá em cima, e as vacas vão agora pastar para a encosta da
montanha.» «0 que e que nos aconselhas?», perguntou Fraech. «Penso que
devereis ir-vos encontrar com aquela mulher que está a levar as vacas a pastar.
Dizei-lhe por que estais aqui e ela, que veio da Irlanda, saberá aconselhar-vos
melhor do que eu.»

Apressando-se, Fraech e Conall foram então ao encontro da mulher que tomava


conta das vacas na encosta da montanha. Ela deu-lhes as boas vindas e
perguntou-lhes de onde vinham: «Nós vimos da Irlanda», respondeu Fraech, «e
queremos resgatar a mulher que está na fortaleza, assim como as vacas que nos
foram furtadas. Sabes como havemos de entrar naquele lugar?»

Ouvindo aquelas palavras, a mulher deu três gritos de lamento. «Ah», exclamou
em seguida, «é o infortúnio que vos traz a este país. A fortaleza está guardada por
uma serpente monstruosa que só deixa entrar quem conhece. Aos estranhos ela
devora sem piedade, jamais tendo escapado alguém com vida. Mas quem sois
vós afinal, tão temerários ao ponto de acreditardes que podeis entrar na
fortaleza?» «Este é Fraech, filho de Idach, de Connaught, e eu sou Conall
Cernach, companheiro do Ramo Vennelho(”, no Ulster. Finnabair, filha de Affil e de
Maeve, é a Prisioneira que está na fortaleza, e as vacas dadas a Fraech pela sua
mãe, Befinn, das tribos de Dana, estão no meio dessas que guardas.»

Ao ouvir aquelas palavras, a mulher não se conteve e, pondo os braços à volta do


pescoço de Fraech, manifestou uma enorme alegria. «Que se passa?», perguntou
Conal], muito surpreendido com aquele comportamento, «Eu vou explicar-vos»,
respondeu ela. «Se estou tão feliz, é porque está próxima a hora em que a
fortaleza será destruída.

I. Espécie de fraternidade guerreira do Ulster que, agrupada ao redor do rei Conor


(Conchobar mae Nessa,) fazia as suas reuniões numa casa chamada «Ramo
Vermelho», onde estavam expostos os troféus conquistados nas batalhas.

199
Com efeito, circula pelo país uma profecia que diz que tu deverás pôr um teimo
aos nossos infortúnios. Segundo essa profecia, bastar-te-á apertar o cinto à volta
da cabeça da serpente para que esta adormeça imediatamente.» «Isso é mesmo
verdade?», admirou-se Conall. «Nesse caso, não percamos tempo.» «Esperai»,
disse a mulher, «pois os guerreiros que guardam a fortaleza são tão perigosos
como a serpente. E melhor esperar pela noite. Vou para minha casa mas, esta
noite, não mungirei as vacas, e farei de conta que as vitelas precisam de mamar
toda a noite. Deixarei a porta entreaberta, pois sou sempre eu que a fecho todos
os dias antes de cair a noite. Vós entrareis assim na fortaleza assim que os
guardas estiverem a dormir e em seguida fareis o que muito bem entenderdes.»

Esperaram então que a noite caísse e foram para a porta da fortaleza. A serpente,
com um pulo medonho, atirou-se a eles, mas Conall teve tempo de lhe apertar a
cabeça com o cinto, adormecerido-a. Então avançaram, mataram os guardas,
libertaram Finnabair e fugiram levando as jóias mais preciosas que encontraram
na fortaleza, Atearam um grande fogo cuja luz se propagou por toda a montanha,
e partiram apos reunirem as vacas de Fraech. Em seguida, não demoraram a
chegar a um porto e partiram por mar com Finnabair e as vacas que 13efirin dera
a seu filho.

No entanto, faltavam três e por esse motivo se dirigiram para o território dos pietos
do norte, na Escócia. Após passarem por graDdes dificuldades, conseguiram
encontrar o lugar onde se encontravam as vacas, apoderaram-se delas e
saquearam a fortaleza do que as roubara. Feito isso, dirigiram-se para a costa e
navegaram até às costas da Irlanda, onde aportaram num lugar chamado
Bennchur.

Nessa altura, após terem renovado o seu juramento de amizade, Fracch e Conall
Cernach separaram-se. CoDall voltou para a sua fortaleza, e Fraech, na
companhia de Finnabair, atravessou a ilha com o seu gado e dirigiu-se para sua
casa onde ja ninguem o esperava.”’

Segundo a narrativa intitulada Tain bô Fraich (Raz ia des boeuft de Fraech) e


contida no

manuscrito XL, guardado na Biblioteca dos advogados de Edimburgo, e que data


do séculO XVI, editado com tradução inglesa de A. - 0. Anderscr) na Revue
celtique, tomo XX1V (1903). Tradução francesa de Georges Dottin, em LÉpopée
irlandaise, Paris, 1980.

C a p í t ti oX1

L”, ’- 1

-4 - . um belo dia do início do Verão, Bran, filho de Fébal, andava a passear


sozinho pelos campos que se estendiam em frente da sua fortaleza. Estava um
dia de sol e soprava uma ligeira brisa. De súbito, Bran ouviu uma música vinda de

200
trás de si. Voltou-se para saber quem estava a tocar mas, assim que se voltou, a
mesma música continuou a ouvir-se nas suas costas. Isto durou al um tempo, até
que,
9

embalado pela extrema melodia e harmonia daquela música, ele deitou-se na


relva e adormeceu,

Quando despertou, Bran viu perto de si um ramo duma macieira com flores
brancas que não se distinguia facilmente de outros ramos, e levou-o para a
fortaleza. Quando os Filhos de Milé chegaram à sala onde se ia realizar o festim,
uma mulher apareceu vestida com um traje muito leve. Avançando para Bran, ela
começou a cantar:

«Eis um ramo da macieira de Emain”1 que te trago, semelhante aos outros. Ele
tem ramos menores de prata branca e sobrancelhas de cristal conifiores. Ela vem
duma ilha longinqua

ao redor da qual brilham os cavalos marinhos viajando na espuma das ondas.

1, Trata-se de um dos nomes gaélicos da Terra das Fadas, que corresponde à ilha
de Avalon da lenda arturiana,

201
Quatro colunas suportam esta ilha, são quatro colunas de bronze

que brilham ao longo dos séculos no mundo, num lugar onde brotam numerosas
flores.

É uma terra de bondade e de beleza

onde abundam os cristais e as pedras preciosas.


0 mar arremessa a vaga contra a terra

e nela deposita os cabelos de cristal da sua crina. Aqui não se conhece a dor nem
a perfidia:

nem mágoa, nem desgosto, nem morte, nem doença, nem,fraqueza,

pois vive-se sob o signo de Emain, Beleza de uma terra maravilhosa Onde tudo é
maravilhoso

e onde a bruma não tem igual ... »

Assim que terminou o canto, a desconhecida afastou-se, e ninguém soube para


onde ela foi. Mas levava com ela o ramo da macieira, que por si mesmo saltara
das mãos de Bran para as dela sem que ele o conseguisse evitar, Bran ficou muito
impressionado pelo que acontecera, e ocorriam-lhe ao espírito, sem cessar, as
palavras que ela cantara, Ficou toda a noite sem conseguir dormir, e de manhã,
muito cedo, foi ter com um druida que tinha fama de ser muito sábio e que residia
no país de Corcomroe,111

0 druida chamava-se Nuca. Bran perguntou-lhe qual era o significado do canto


que ouvira e da presença da mulher misteriosa na grande casa da sua fortaleza.
«Não é difícil de perceber», respondeu o druida. «Esta mulher veio de Emain, ou
seja, da Ilha das Macieiras. E, ao apresentar-te um ramo de macieira de Emain,
estava a convídar-te para te ires encontrar com ela nesse lugar.» «A sério?»,
admirou-se o filho de Fébal. «E onde se situa esta ilha de que me falas?» «A ilha
situa-se algures no vasto oceano, para os lados onde o sol mergulha nas ondas.
Não se conhece a sua exacta localização e ninguém lá consegue ir sem a ajuda
de um guia.» «Nesse caso, que hei-de fazer?», insistiu Bran.

«Queres mesmo ir ter com a mulher à Ilha de Emain?» «Não quero o’utra coisa»,
respondeu Bran, «poís desde que me visitou que não consigo pregar o olho a
pensar que nunca mais a vejo.»

0 druida pôs-se a meditar longamente, e depois indicou a Bran o dia em que


poderia começar a construir um barco, especificando mesmo o número de homens
que o deveriam acompanhar a saber dezasseis, nem inais um, ou de contrário ele
poderia sofrer graves reveses. Por fim índicou~lhe o dia mais conveniente para
partir e o porto de onde deveria sair,

202
Bran regressou então a casa e, no dia marcado pelo druida Nuca, ordenou que se
começasse a construir um barco com três cascos. Feito o barco, seleccionou os
familiares que o poderiam acompanhar na arrojada viagem. Entre eles,
encontrava-se um certo German, de quem Bran gostava tanto como se fosse seu
irmão, assim como Nechtân111, filho de ColIbran, que era um grande conhecedor
da arte de navegar, Reunindo o grupo que o iria acompanhar, Bran levou-o ao
porto de Cloghan12) para aí se fazerem os últimos preparativos para a viagem.

Embarcaram no dia marcado pelo druida Nuca, e ainda mal tinham içado as velas
e começado a afastar-se da costa, quando os três irmãos de Bran chegaram à
praia e daí começaram a gritar muito alto para que os fossem buscar. «Voltai para
casa! », gritou-lhes Bran, «pois não posso levar a bordo mais homens do que os
previstos!» «Nesse caso», responderam eles, «vamos atirar-nos à água,
seguiremos no teu encalço, e podes ter a certeza de que acabaremos por nos
afogar se não nos aceitares a bordo! » (3)

E, no mesmo instante, eles atiraram-se à água e nadaram para o largo, Vendo que
estavam decididos a cumprir a ameaça, Brari deu ordens para que se desse meia
volta e, com medo que se afogassem, permitiu que subissem para bordo.

Nesse dia, remaram até ao anoitecer, pois o vento não era suficiente para fazer
avançar a embarcação. Quando a noite caía avistaram duas pequenas ilhas
rochosas totalmente desprovidas de vegetação e com

1. No condado de Clare, no seio dum vale verdejante e solitário que domina o


maciço calcáriO desértico de Burren. Foi em Corcomroe que foi construída, no
século XIII, a mais ocidental das abadias cistercienses. A toda a volta subsistem
diversos vestígios megalíticos e célticos.

L Nechtân é o nome gaélico derivado do latim Neptuntis, o que indica claramente


a classificação marítima da personagem.

2. No condado de Kerry, ao fundo da Baía Brandão, cujo nome evoca a figura de


São Brandão, o Navegudor, fundador histórico do mosteiro de Clonfert, tendo sido
inserido nesse nome o mito pré-crisião de Bran.

3. Trata-se claramente de um encantamento mágico: se os três irmãos de Bran


morressem afogados, a responsabilidade recairia sobre Bran que perderia a sua
honra.

203
duas fortalezas em cima. Ouviram uma algazarra vinda de lá, que era provocada
por pessoas que falavam alto e que se vangloriavam de ter praticado actos
heróicos. «Nós podemos aportar e perguntar-lhes se conhecem a direcção da Ilha
das Macieiras», disse Diuran, o Poeta. «Tens razão», respondeu Bran. «Vamos
falar-lhes, pois devem saber coisas que nós ignoramos.»

Mas, enquanto pronunciavam aquelas palavras, um vento fortíssimo abateu-se


sobre o barco e deixou-o dest,,overnado sobre as ondas. Depois de terem andado
ao sabor do vento e das ondas durante toda a noite, já não viram pela manhã nem
a ilha nem terra firme, ignorando completamente onde se encontravam.

«Tudo isto é por vossa culpa», disse Bran aos irmãos. «Vós subistes para o barco
contrariando as determinações do druida Nuca que me avisou que eu poderia
sofrer graves reveses no caso de ter mais de dezasseis homens a bordo. Agora só
nos resta deixar o barco à deriva e ver para onde ele nos leva.»

Os irmãos, sentIndo-se culpados, não responderam, e os outros companheiros de


Bran, cheios de angústia, mantiveram-se também em silêncio. Andaram assim ao
sabor das correntes durante três dias e três noites, sem verem terra. Ao fim do
quarto dia, ouviram um ruído proveniente de nordeste. «É o ruído de ondas a
baterem na costa», disse Bran. «Dirijamo-nos para lá, pois estou certo de que aí
descobriremos alguma coisa.»

Não demoraram multo até avistarem terra. Quando estavam a tirar à sorte quem
iria a terra, um enorme enxame de formigas, cada uma delas do tamanho dum
potro, surgiu na praia e avançou para o mar. Era muito visível que estas formigas
gigantes pretendiam alcançar o barco e devorar a tripulação. Bran ordenou aos
seus homens que remassem com todas as forças e conseguiram então ficar fora
do alcance das formigas, passando novamente três dias e três noites à deriva no
Mar sem saberem onde se encontravam.

Ora, -na manhã do quarto dia, avistaram à luz do sol uma ilha alta e grande, com
terrenos suspensos nas alturas, Havia fileiras de árvores em cada um dos terrenos
e, nos ramos, estavam dependurados pássaros. Bran e os seus companheiros
aconselharam-se sobre o que havia a fazer, mas não chegaram a nenhuma
conclusão. Então Bran decidiu ir a terra sozinho não tendo aí nenhum percalço.
Caçou dois pássaros e levou-os para o barco, proporcionando a toda a tripulação
uma excelente refeição. Logo depois voltaram para o mar.

A meio do dia, avistaram outra Ilha que lhes pareceu grande e arenosa. Quando
se preparavam para aí acostar, viram um monstro que parecia um cavalo, mas
que linha as patas de um cão, o pêlo todo eriçado e unhas pontiagudas. Era
visível que 0 monstro esta B,aramnuoitrodeci30onutente, preparando-se para
saltar sobre eles e os devorar.

que se navegasse para o largo o mais depressa possível, mas quando o monstro
percebeu que estavam a fugir dele, correu pela areia e comeÇou a

204
arremessar calhaus contra o barco. E apressando-se o mais que podiam, os
navegadore.

s conseguiram escapar-lhe.

Pouco tempo depois avistaram outra ilhaursatia, mo


uPitoçeptal,anauisOaaccoamsodesignou German para ir explorá~la, mas Di

panhá-lo, dizendo que o risco era menor se fossem dois. Assim que
desembarcaram, caminharam com muita atenção e foram dar a um grande prado
onde observaram enormes pegadas no terreno que pareciam ter sido deixadas
pelos cascos de cavalos. Havia também, espalhadas 0,11 pouco por toda a parte,
grandes cascas de noz. E como também havia casas eni ruínas, chamaram os
seus companheiros para virem ver com os seus próprios olhos o que eles estavam
a ver. Este espectáculo, no entanto, assustOu-os, Pois não conseguiram
compreender o que poderia ter provocado aquelas pegadas e aquelas ruínas, de
tal modo que apressaram-se a voltar para o barco.

Quando já se tinham afastado da costa, avistaram uma multidão de cavalos, de


um tamanho enorme, que se dirigiam para o mar, montados por uma raça de
homens magros e negros que os incitavam com altos gritos. Os navegadores não
duvidaram de que havia ali unia conspiração de demónios e de fantasmas e
afastaram-se a toda a velocidade daquele lugar maldito.

Chegaram depois 9 outra ilha que tinha na costa uma casa com um grande pórtico
nas traseiras. Havia também uma porta que dava directamente para o mar, com
uma batente de pedra com uma abertura por c

onde as vagas lançaram uni salmão. Desembarcaram então e entraram na casa.


Esta estava deserta, mas nos seus quatro cantos havia quatro leitos, comida e um
recipiente de vidro que continha uma bebida aparentemente inebriante. Eles
comeram e beberam o que encontraram, e depois voltaram para bordo sem terem
visto vivalma.

Voltaram a navegar ao acaso por muíto tempo e começavam a sentir sede e fome
quando descobriram outra ilha que tinha uma grande falésia que caía a pique
sobre o mar e que estava coberta, no cimo, por

205
uma densa floresta. Bran desembarcou na ilha e, embrenhando-se na floresta,
arrancou um ramo de urna árvore. 0 ramo esteve nas suas mãos durante três dias
e três noites, enquanto o barco dava voltas à ilha, e ao quarto dia apareceram três
maçãs na ponta do ramo. Todos partilharam entre si as maças e saciaram-se
delas.

Também passaram na proximidade de uma pequena ilha, baixa e muito bela de se


ver, onde avistaram grandes animais parecidos com cavalos. Cada animal mordia
o flanco de outro arrancarido-lhe um pedaço de carne com pele, de tal modo que
rios de sangue carmesim escorriarri das feridas e derramavam-se sobre o chão.
Os navegadores afastaram-se a toda a velocidade, sentindo-se cada vez mais
fracos e desamparados pois não tinham nada para comer.

Ora, no momento de maior aflição, avistaram uma nova ilha onde se destacavam
numerosas árvores cobertas de frutos, mormente grandes maçãs de cor dourada.
Havia pequenos animais vennelhos que se poderiam tomar por porcos selvagens
debaixo das árvores, às quais, batendo-lhes com as patas, faziam cair as maçãs.
Depois, comiam-nas com uma imensa satisfação. Enquanto isso, diversos
pássaros banhavam-se nas ondas perto da ilha e quando, ao anoitecer, os
animais vermelhos se retiraram para as suas cavernas, eles voaram para as
arvores e começaram a debicar os frutos. «Parece que estamos com sorte», disse
Bran. «Se estes animais vermelhos e estes pássaros comem com tanto prazer os
frutos das árvores, isso significa que também nós poderemos comer esses frutos.
Vamos pois abastecer-nos a terra.»

Desembarcaram na praia e estranharam que o solo fosse tão quente debaixo dos
pés. Na verdade, aquele calor tornou-se tão insuportável que tiveram de regressar
à pressa ao barco; apesar disso, ainda tiveram tempo de levar corri eles uma
grande quantidade de maçãs que lhes permitiram ter alimento para vários dias.

Quando a comida começou de novo a faltar e eles mal podiam respirar devido ao
mau cheiro do mar, acostaram numa ilha estreita na qual se erguia uma fortaleza
rodeada duma muralha muito branca, corno se tivesse sido construída com cal ou
com giz, e tão alta que quase chegava à nuvens. Como havia uma porta aberta na
muralha, eles atravessaram-na e viram grandes casas também brancas. Entrararri
na que lhes parecia maior e encontraram-na sem ninguém, apenas com um gato
que saltava sobre uns pilares que existiam nos quatro cantos da sala. Ao ver os
recém-chegados, o gato não pareceri minimamente

assustado, pois continuou a saltar como se não estivesse ali ninguem. Aos olhos
dos recém-chegados, entretanto, apresentaram-se outras

coisas. Havia três filas de objectos numa das paredes da casa, indo de uma porta
à outra: uma de broches dourados e prateados pregados à parede por alfinetes; a
outra de cordões de ouro, tendo cada um a dimensão de um círculo de cobre; e a
última, por fim, de grandes espadas, com Pedras preciosas incrustadas nos
punhos de ouro. Avançando pela sala, eles viram no meio, no fogão, carne

206
assada, toucinho cozido, e grandes taças cheias até cima de uma bebida de
cheiro agradável. «Isto é para nós?», perguntou Bran, voltando-se para o gato.

0 gato olhou-o por um instante, e depois continuou entretido a saltar de um pilar


para outro. Bran percebeu então que aquela refeição tinha sido preparada a
pensar neles e comeram e beberam até se fartarem, adormecendo depois nuns
leitos que ali se encontravam. Na manhã seguinte, quando acordaram, deitaram
as bebidas em bilhas e juntaram os restos de comida para os levarem com eles.
Mas, quando estavam de partida, disse um dos irmãos de Bran: «Eu gostava de
levar um destes colares.» «Não faças isso», disse Bran, «pois desconfio que esta
casa está a ser vigiada. Estes objectos foram postos aqui para despertarem a
nossa cobiça.»

Mas, às escondidas, o irmão apoderou-se dum colar e, no mesmo instante, o gato,


que tinha estado tranquilamente a saltar de um pilar para outro, atirou-se a ele
como uma flecha implacável e o infeliz ficou de tal modo em brasa que se
transformou num montão de cinzas, 0 gato voltou então para junto de um dos
pilares e Bran tentou acalmá-lo com palavras muito suaves, ao mesmo tempo que
pos o colar no seu lugar. Os navegadores voltaram depois para o barco, muito
entristecidos por terem perdido um companheiro.

Andaram de novo três dias inteiros no mar e por fim avistaram uma ilha que
estava dividida em duas partes iguais por uma paliçada. Num lado pastava um
rebanho de cabras brancas, e do outro um rebanho de cabras negras, enquanto
um homem muito robusto andava de um lado para o outro a separar os animais.
Quando ele agarrava uma cabra branca e a atirava por cima da paliçada, o animal
tomava-se negro ao tocar no solo, e se o fazia a uma cabra negra, esta tornava-se
branca.”’

Ao verem aquele espectáculo, Bran e os seus companheiros assustaram-se.


«Devemos desconfiar daquele sortilégio», disse Bran. «Vamos fazer uma
experiência: deitemos qualquer coisa negra no

207
lado das cabras brancas para ver o que acontece.»

Pegaram então num ramo cuja superfície estava enegrecida e atiraram-no para a
parte da ilha onde se encontravam as cabras brancas, ficando o ramo branco
instantaneamente. Arremessarain depois um outro ramo que era branco para o
lado das cabras negras, e o ramo tornou-se negro. «Na verdade», disse Bran,
«esta experiência é elucidatíva. Devemos deixar este lugar tão estranho, ou
arriscamo-nos a ter alguma má experiência.»

Pouco tempo depois, avistaram outra ilha na qual estavam reunidas grandes
multidões de homens e de mulheres. Tanto eles como elas eram inteiramente
negros, quer fisicamente quer no vestuário que envergavam. Tinham fitas
igualmente negras amarradas à volta da cabeça e não paravam de se lamentar.
«Um de nós deve ir ter com eles e perguntar-lhes porque se lamentam daquela
maneira. E devemos aproveitar para lhes perguntar qual a rota a tomar para a ilha
que desejamos alcançar.»

0 acaso designou o segundo irmão de Bran para desempenhar aquela missão. Ele
foi a terra e diriggiu-se para as gentes de negro, mas assim que chegou perto
delas, corneçou também a lamentar-se. Bran mandou então dois homens buscá-
lo, mas estes, ao invés de o reconhecerem entre os outros, puseraffl-se
igualmente a chorar e a lamentar-se. Bran disse então: «Que vão lá quatro
homens com correntes e que os tragam à força. Para terem êxito não deverão
olhar para a terra, e deverão cobrir o nariz e a boca para evitarem respirar os
miasmas da ilha e apenas verem aqueles que vão buscar!»

Diuran, Nechtân, German e o terceiro irmão de Bran foram a terra e, com infinitas,
precauções, acorrentaram os dois homens que tinham ido buscar o primeiro. Mas
não conseguiram descobrir este, de tal modo ele já se confundira com os outros.
Quando perguntaram aos dois resgatados o que tinham visto, eles responderam
que não se lembravam de nada. E,

1 Encontra-se uni episódio semelhante na narrativa galesa de Peredur. Vde 3.


Markale, Le (ycle du Graal, sexta época: Perceval o Galês. A mudança de cor
significa a passagem de um mundo para outro, e a paliçada simboliza a fronteira
entre o mundo humano dos Filhos de Milé e o mundo, completamente feérico, das
tribos de Dana. Já , ten, hamado muitas vezes a este episódio o «Van das
Almas», tendo-se corno referência o texto galês en, que

so, é preciso ter em conta as cabras mudam de cor ao atravessarem um estuário.


Neste ca. a região que Bran e os seus companheiros se
encontram nos I imites do mundo humano, num ambígua em que se manifestam
personagens ou acontecimentos extraordinários, não estando eles ainda prontos
para atravessar a fronteira. Assim s, explica o facto de andarem nluitO tempo
perdidos no mar antes de encontrarem a Ilha das Fadas.

cheios de mágoa por terem perdido o segundo irmão de Bran, os navegadores

208
deixaram a toda a pressa as costas da ilha das lamentações.

Não tardaram a avistar outra ilha de muito pequenas dimensões, onde existia uma
fortaleza, com uma porta aparentemente de bronze, não se podendo entrar nela
senao por uma ponte de vidro. Bran e os seus companheiros desembarcaram e
dirigiram-se para a fortaleza, muito decididos a falar com os que nela deviam
habitar. Mas, assim que puseram os pes na ponte de vidro, caíram todos para trás,
sendo incapazes de se manter de pé na superfície muito escorregadia.”

Estavam naquela situação embaraçosa quando viram uma mulher sair da fortaleza
com um balde na mão. Levantando uma placa de vidro, ela encheu o balde numa
fonte que jorrava água debaixo da ponte. Depois, parecendo que nem tinha
reparado na presença de Bran e dos seus companheiros, voltou para trás e entrou
na fortaleza. «Que alguém venha falar a Bran, filho de Fébal!», gritou em voz
muito alta Diuran, o Poeta. A mulher, que acabara de entrar, reabriu a porta e
olhou para fora. «É mesmo Bran, filho de Fébal?», perguntou ela com um tom
ironico antes de voltar a desaparecer no interior da fortaleza.

Rastejando, Bran e os seus companheiros chegaram à porta de bronze e


começaram a bater nela com as espadas e os escudos na esperança de que a
viessem abrir. Mas o bronze transformou o barulho que faziam numa música muito
suave que os fez dormir até de manhã.

Quando acordaram, viram a mesma mulher sair da fortaleza com o balde na mão.
Ela fez o mesmo que no dia anterior, indo encher o balde à fonte que existia
debaixo da ponte. Nechtân não se conseguiu conter: «Que alguém venha falar a
Bran, filho de Fébal!», gritou ele.

A mulher pareceu não ter ouvido nada mas, ao fechar a porta, voltou-se e disse
simplesmente: «Bran, filho de Fébal, parece-me muito belo.» E desapareceu no
interior, voltando então Bran e os seus compa-

nheiros a bater à porta de bronze com as suas armas. Mas ao fazerem-

I. É lógico que este episódio pode muito bem conter uma alusão a uma qualquer
terra áretica e, nesse caso, a ponte está coberta por um leito de gelo. Mas
estamos no domínio do mito, onde a lógica nada conta. Com efeito, corno na
lenda arturiana, esta ponte de vidro é uma fronteira entre os dois mundos, sendo
semelhante à célebre «Ponte da Espada» que Lancelot tem de atravessar para
libertar a rainha Guenievre da fortaleza de Gorre, ou seja, de Vidro, onde a
mantém prisioneira Méléagant, uma espécie de divindade dos infernos. Note-se
que, no episódio aqui apresentado. Bran e os seus companheiros não chegarão
nunca a entrar na fortaleza, sinal evidente de que ela não é a «Emain Ablach»
onde devem ir. Vide J. Markale, Le Çycle du Graal, terceira época: Lancelot du
Lac.

209
_”lIF,

-no, provocaram música e esta prostrou-os até à manhã seguinte. Estiveram


assim durante três dias e três noites, sem comer nem

beber. Na manhã do quarto dia, a mulher dirigiu-se a eles. Era muito bela, e trazia
um manto branco, um colar de ouro à volta do pescoço, e um diadema de prata
sobre os cabelos negros. Calçava sandálias de prata branca que realçavam a
delicadeza dos seus pés, e no manto tinha pregado um broche prateado
guarnecido com ouro. E o manto, batido ao de leve pela brisa matinal, deixava ver
uma camisa de seda muito fina sobre a pele branca. «Sê bem vindo, Bran, filho de
Fébal», disse ela.

Em seguida, ela pronunciou o nome de cada um dos companheiros de Bran. «Hã


muito tempo», disse ela, «que sabíamos que vós viríeis. Mas, nobre Bran, não
fiques ofendido por não poderes entrar nesta fortaleza.»

Guiou-os até uma grande casa que se encontrava na costa, sobranceira ao mar, e
ela própria trouxe o barco deles para a areia. Ao entrarem na casa, eles viram um
leito para Bran e outro para três das suas gentes. Logo a seguir, a mulher deixou-
os e voltou para a fortaleza.

«Então», perguntou Diuran a Bran, «esta mulher não é a que viste na tua
residência e a que procuramos há tanto tempo?» «Não, não é», disse Bran, «e
esta ilha não é aquela de que andamos em demanda. Não há aqui macieiras, e
nada nela se parece com a descriçao que me foi feita pela mulher antes de reaver
o ramo da macieira de Emain.» «É pena», disse Nechtân, «pois esta mulher é
muito bela e ganharias muito em ter uma esposa da sua beleza.»

Dito isto, ela voltou, trazendo-lhes um cesto que tinha dentro o que parecia queijo
ou leite coalhado. Distribuiu o alimento por todos, e todos se regalaram com ele.
Em seguida, encher o balde na fonte debaixo da ponte de vidro e deu o seu
conteúdo a Bran. Depois foi encher o balde a pensar nos outros e, quando viu que
estavam todos saciados, deixou-os e voltou para a fortaleza.

«Realmente», disse Nechtâm a Bran, «esta mulher seria uma esposa digna de ti.»
«Não foi ela que me velo trazer o ramo de Emain», respondeu Bran.

Na ausência de Bran, entretanto, os seus companheiros não deixavam de trocar


impressões. Começavam a ficar fatigados de tantas viagens infrutíferas e, não
sabendo como regressar à Irlanda, não lhes parecia má ideia ficarem algum
tempo naquela ilha onde eram tratados com tantas atenções.

«E se pedíssemos a esta mulher para dormir com Bran?», perguntou então


Nechtân. «Sim», concordou Diuran, «mas como havemos de propor-lhe isso sem
a ofender?»

210
A mulher voltou na manhã se

guinte, trazendo comida no cesto e bebida no balde. Diuran disse-lhe: «És capaz
de provar que gostas de Bran dormindo com ele? Porque não passas aqui esta
noite, para que isso aconteça?» «Como é que podeís fazer uma tal proposta a
esta mulher?», gritou Bran furioso. «Eu seria incapaz de fazer uma tal proposta!
Nós só queremos saber, ó mulher, que direcção devemos tomar para chegarmos
a Emaín Ablach, a Terra das Fadas, onde me espera aquela que me foi levar um
ramo de macieira.»

A mulher começou a sorrir, e disse: «Amanhã terás uma resposta para a tua
questão.»

Naquela noite, Bran e os seus companheiros adormeceram profundamente na


casa. Mas, ao acordarem, repararam que estavam no barco, no meio do mar.
Nunca mais eles viram a ilha misteriosa, nem a fortaleza, nem a ponte de vidro,
nem a casa onde, junto à costa, tinham dormido, nem a mulher que lhes tinha
servido comidas e bebidas deliciosas.

Sentiram-se terrivelmente deprimidos e de nada valeu Bran tentar cOnsolá-los


dizendo-lhes que aquelas aventuras eram etapas necessárias para poderem
chegar a Emain: por muito que ele se esforçasse, uma profunda tristeza e um
sentimento de desamparo acompanhava-os enquanto o barco andava ao sabor
das ondas. De súbito, avistaram uma ilha de onde Provinham ruídos estranhos,
semelhantes aos que fazem os ferreiros quando batem com a bigorna dos seus
martelos. Aproximaram-se e viram, com efeito, quatro ferreiros que ali
trabalhavam. Estavam perto da costa, quando ouviram um dizer: «Estão ao vosso
alcance?» «Estão», respondeu outro. «Mas que gentes são aquelas?» «São uns
garotos», disse um terceiro. «E num pequeno barco», acrescentou um quarto.

Ouvindo aquela troca de palavras, Bran ficou muito inquieto. «Fujamos daqui»,
disse ele, «mas sem fazer o barco dar meia volta. Rememos para trás de modo
que eles não se apercebam da nossa fuga.»

Remaram então em sentido inverso. 0 primeiro homem que falara na oficina


perguntou aos outros: «Já chegaram ao porto?» «Não», respondeu o segundo.
«Eles estão imóveis e não avançam.» Pouco depois, o primeiro ferreiro retomou a
palavra: «Que estão eles agora a fazer?» «Penso», disse o segundo, «que estão
a preparar-se para fugir, Pois estão mais longe do porto do que estavam ainda há
pouco.»

1)1)1

211
Então os ferreiros precipitaram-se para a costa, segurando nas mãos enormes
massas de ferro vermelho e arremessaram-nas em direcção ao barco. As massas
não os atingiram mas o mar a toda a volta começou a ferver enquanto os
remadores faziam uni esforço

do para se porem longe dali.

De repente, num instante eles começarani a navegar num mar que parecia de
vidro esverdeado. As águas eram tão límpidas que os navegadores podiam ver as
pedras no fundo. Mas não se via nenhum animal, nenhum peixe, nenhum monstro
debaixo do barco, nem se via nada entre os rochedos a não ser cascalho e areia
de cor verde. Navegaram assim durante muito tempo, maravilhados com a beleza
e a transparencia esplendorosa da água.

Mas logo depois ela transformou-se numa espécie de nuvem leve e sem
consistência, e eles chegarani a pensar que o barco se iria afundar. Olhando por
sobre as águas viram um belo país verdejante e o tecto de fortalezas. Avistaram
também um animal monstruoso nos ramos de uma árvore e gado bovino em
campos existentes à volta. Um homem amado com uma espada e um escudo,
quando se apercebeu do grande animal no ramo da árvore, começou a correr
desenfreadamente. 0 monstro, entaO, estendeu o pescoço para fora das
folhagens, aproximou o focinho do maior boi da manada, e atirando-se a ele
devorou-o num instante. Nisto todos os outros bois da manada se puseram a fugir
numa correria louca. Perante aquele espectáculo, Bran e os companheiros ficaram
apavorados, ainda mais porque o barco não poderia deslocar-se muito depressa
naquelas águas. Mas, ultrapassados os momentos de angústia, conseguiram
deixar aquelas perigosas paragens e viram-se num mar normal, apesar da água
parecer parada. Por muito que tentassem remar com todo o vigor, durante várias
horas o barco não avançou. Por fim, le-vantOu-se 0 vento, a vela enfunou-se, e
voltaram a deslizar sobre as ondas.

Acostaram daí a pouco a uma ilha coberta de árvores que pareciam salgueiros ou
aveleiras, com frutos maravilhosos e grandes bagas. Sacudiram alguns ramos e
depois tiraram à sorte para ver quem provaria os frutos, sendo escolhido B ran.
Este esmagou algumas bagas numa taça e bebeu o sumo, caindo então num sono
profundo que durou até ao outro dia àquela mesma hora. Entretanto, os seus
companheiros mostravam-se preocupados, sem saberem se ele estava vivo ou
morto, pois uma espuma vermelha apareceu-lhe na comissura dos lábios. Ele, no
entanto, acordou fresco e bem disposto, e disse-lhes: «Podeis tomar o sumo, Pois
é excelente.»

Juntaram então todos os frutos que puderam para levar para bordo, certos de que
com eles poderiam obter um sumo agradável e inebriante,

Estavam os navegadores para partir quando viram uma grande nuvem vir na sua
direcção. Mas logo eles,repararam que se tratava de um grande pássaro e,
aterrorizados com a ideia de que ele ia aprisioná-los com as suas garras

212
monstruosas, puseram-se a correr em busca de abrigo, atravessando um bosque
até se encontrarem no centro da ilha. Havia aí um peque-no lago na
extremidade do qual pousou o pássaro, que tinha no bico um ramo tão colossal
como um carvalho, mas de uma especie desconhecida. 0 ramo possuía diversos
galhos muito grandes dos quais pendiam, como se fossem frutos, cachos de uma
espécie de bag «os amarelos, que mal se viam através das folhas, por serem
estas muito frescas e abundantes,

1 Bran e os companheiros ficaram corri os olhos fixos no pássaro, a ver o que ele
iria fazer. Mas ele não se mexia e, vendo melhor, repararam que tinha a plumagem
em péssimo estado, podre e comida pelos bichos. Um dos homens aproximou-se
com cuidado do pássaro, e este permaneceu imóvel; depois voltou para perto dos
companheiros e todos se preparavam para partir quando apareceram por cima
deles duas grandes águias, que por sua vez se puseram perto do pássaro
enorme. Depois de urna leve pausa para repousarem, as águias puseram-se a dar
bicadas na sua plumagem, como que para o aliviar dos parasitas que o
infestavam.

Assim estiveram as duas águias até meio do dia. Em seguida, Z=I

começaram a comer as bagas do ramo, antes de novamente se porem a dar


bicadas na plumagem decrépita do vizinho, arrancando-lhe as penas em pior
estado. Por fim colheram os frutos, esmagaram-nos contra pedras e atiraram-nos
ao lago, fazendo com que a água criasse espuma e ficasse toda amarela. Então o
grande pássaro ergueu-se e, dirigindo-se para o lago, foi-se banhar, ao mesmo
tempo que as duas águias levantaram voo e desapareceram do mesmo modo
misterioso como tinham aparecido no céu.

Passado um instante, o grande pássaro saiu do lago e, depois de se sacudir


vigorosamente, ficou imóvel na margem como se quisesse dormir. Cada vez mais
intrigados com o seu comportamento, Bran e os companheiros Dão se atreviam a
aproximar-se dele, limitando-se a observá-lo através do ramo das árvores. E por
fim o grande pássaro lá se moveu, agitando as asas e levantando voo, num
instante, tão veloz e imponente

213
como quando chegara, e desapareceu na mesma direcção de onde viera. «Parece
evidente», disse Diuran, o Poeta, «que ele velo aqui restau-

rar forças. Vamo-nos também banhar no lago para recuperarmos as energias.»


«Tens de ter cuidado», gritou Bran, «poís pode ser perigoso ,à que o pássaro
contaminou as águas e quem nele se

o banho no lago, jfectado!» «Se ele se banhou, também eu o posso banhar pode
ficar in tornar banhO.»

fazer!», replicou Diuran, acrescentando: «Vou

Tendo dito aquelas palavras, despiu-se e mergulhou nas águas onde ficou durante
algum tempo, dando depois duas ou três braçadas para chegar à margem. E,
naquele dia, os olhos brilharam-lhe como nunca, os dentes jamais tinham sido tão
sãos, e nenhum mal parecia ser capaz de o atormentar. Apesar disso, nenhum dos
seus companheiros quis seguir o seu exemplo, e voltaram todos para o barco,
contentando-se em levar para bordo as bagas vermelhas colhidas no bosque.

Na manhã do dia seguinte, estando a navegar calmamente, viram com grande


espanto um homem a guiar um carro puxado por dois cavalos por cima das ondas.
o desconhecido dirigiu-se para o barco e entabulou conversa com Bran.
ssim corno todos os teus

«Sê bem vindo, Bran, filho de Fébal, a espantou-se Bran. «E companheiros.»


«Como é que me conheces?»,

quem és tu?» «Sou Manananng filho de Uir, das tribos de Dana, e vim ao teu
encontro para te anunciar que em breve alcançarás o objectivo que persegues».
«Mas», admirou-se Bran, «que prodígio é esse que te permite galopar os teus
cavalos sobre o mar?» «As coisas nem sempre são o que parecem», respondeu
Manartann- «Tu achas maravilhoso que o teu barco seja capaz de navegar sobre
as águas mas, a meus olhos, o que tu chamas mar é uma planície florida sobre a
qual se desloca o meu carro puxado por dois bons cavalos. 0 que te parece um
mar claro, ó Bran, filho de Fébal, é para mim uma aprazível planície corri flores
encantadoras. Enquanto tu vês vagas à tua volta, eu, nesta planície imensa e
maravilhosa, vejo gado a pastar tranquilamente na erva

c, eja Verão ou Inverno. Os verde e macia que está sempre presente, s

peixes que vês através das ondas são para mim pássaros que cantam no ramo
das árvores, e a espuma das vagas é para mim como frutos de Yo do ano. Sim,
Bran, o teu barco riave-

ouro que amadurecem ao long roçando na copa das árvores, e um ga sobre o


alto de um bosque, xo do casco do bosque cheio de frutos
maravilhosos encontra-se debai

214
teu barco, um bosque repleto de frutos muito odoríferos, de frutos Per-

tumado, :ujas folhas são da cor do mais puro ouro.»

Bran e o,,, seus companheiros ouviam cheios de espanto o que lhes dizia
Mananann. Este deu várias voltas ao barco, com os cavalos a galoparem em
grande estilo e a atirarem chuviscos brancos na direcção das -vela,
.1

«Agora devo deixar-vos», disse NILtrianaini. Bem sei que ja passastes muito frio,
fome e sede. mas talvez as privações fossem ireecssarias para conseguirdes
finalmente avistar a Ilha das Mulheres através da bruma. É muito frequente, na
verdade, passar-se perto do que se pretende sem se dar conta disso. Adeus,
Bran, filho de Fébal, e que os teus companheiros e tu remem com todas as vossas
forças para a ilha das Mulheres, Emain, que é tão aprazível para quem a visita.
Não estais longe, e chegareis à ilha antes do pôr-do-sol.»

Dito isto, Manannan desapareceu das suas vistas por entre uma fascinante nuvem
de espuma. Puseram-se então todos a remar com energias renovadas, cheios de
confiança e dc ,perança Assim foi ate que chegaram a uma ilha que,
prudentemente, se limitaram a contornar. Viram nela grupos de homens e de
mulheres que se riam a gargalhada e que, mesmo depois de olharem para Bran e
os seus companheiros, continuaram a conversar e a dar grandes gargalhadas.
«Coiii ç_crie/_d que esta não é a ilha das Mulheres», disse Bran. «Mas temos de
saber que gentes são essas e o que e que as faz rirem-se daquela maneira.»

Tiraram à sorte para escolher quem iria a terra, e o acaso elegeu o terceiro irmão
de Bran. Este desembarcou e, assim que chegou ao pé dos que se riam, começou
também a rir como eles. E por muito que o,,,, seus companheiros o chamassem,
não respondia, limitando-se a olhá-los e a fazer troça deles. Então, Bran lembrou-
se das advertências ou druida Nuca: em caso algum deveria levar mais de
dezasseis companheiros a bordo. Agora que os três irmãos tinham desaparecido,
a ordem era reconstituída. Com alguma mágoa, Bran decidiu então abandonar
este terceiro irmão na ilha dos Bem Humorados e voltaram para o alto mar
remando corajosamente.

Pouco depois, ficaram em frente duma grande ilha onde se destacava uma vasta
planície, com belos bosques abundantes em árvores floridas e um grande planalto
coberto por uma erva macia. Junto ao mar erguia-se uma grande fortaleza, alta e
imponente. Atracaram o barco e dirígiram-se para ela. A porta estava aberta e
entraram para o pátio, onde havia uma casa que tinha também a poria aberta.
Olhando para o interior,

215
viram dezassete leitos ricamente ornamentados com tapeçarias. Viram também
dezasseis raparigas que preparavam um banho. Não se atrevendo a entrar,
sentaram-se no pátio, em frente da soleira da porta.

Quando o sol começava a declinar no horizonte apareceu uma mulher montada


num cavalo de raça. A cavaleira envergava uma capticha azul, um manto de
púrpur a bordado, pulseiras com gravações em ouro, e sandálias de prata. Desceu
do cavalo em frente deles e logo uma das dezasseis raparigas pegou na montada
pelas rédeas e levou-a para a cavalariça. Então a mulher avançou para Bran, que
nela reconheceu aquela que lhe levara o ramo de macieira de ErnaD e depois o
fizera ouvir a música das fadas.

«És bem vindo, ó Bran, filho de Fébal», disse ela. «Há muito tempo que eu
aguardava este momento. Foi a esperança de te receber nesta ilha que me levou
a ir visitar-te na tua fortaleza. Os teus companheiros são também bem vindos por
terem tido a coragem de te acompanhar nas tuas longas a-venturas por mar. Pois
não é realmente fácil descobrir esta terra em que reino só, em paz e harmonia,
sem mágoas, tristezas ou doenças. Mas agora que aqui estais, entraí nesta casa.»

Após entrarem na casa, Bran e os seus companheiros tomaram banho em


grandes banheif as que estavam preparadas para eles. Depois, a rainha sentou-se
com as suas dezasseis companheiras ao redor num lado, enquanto Bran ficou no
lado oposto com os seus dezasseis companheiros à sua volta. Levaram a Bran um
prato de prata cheio de manjares requintados e um copo de vidro cheio até cima
de um licor muito saboroso. Serviram também urn prato e um copo a três dos seus
companheiros. Quando acabaram de comer e de beber, a rainha levantou-se e
disse: «Como vão dormir os meus hóspedes?» «Como te aprouver», disse Bran.
«Pois então», disse a rainha, «que cada um escolha a mulher que tem diante de si
e a leve para a cama consigo.» E porque na casa havia dezassete quartos
equipados cada um com um bom leito, os dezasseis companheiros de Bran
deitaram-se com as dezasseis filhas da rainha, e ele próprio foi dormir com a
rainha.

Na manhã seguinte, disse a rainha a Bran: «Fica comigo nesta ilha, ó Bran, filho
de Fébal, e jamais ficarás velho. Serás sempre tão joverti como és hoje, e a tua
vida não terá fim. E os prazeres de que desfrutaste na noite passada, desfrutá-lo-
ás todas as noites. Fica, pois ja perdeste muito tempo a correr de ilha em ilha
entre perigos e grandes, tormentas. «Mas quem és tu afinal?», perguntou Bran. A
rainha desatou a rir e

disse: «Que importa isso? Já me deram tantos nomes que nem sei qual e o que
tenho. Contenta-te em saber que estou do teu lado e que daqui para a frente nada
de mal te poderá acontecer. Todos os habitantes desta ilha me respeitam e
respeitam os meus hóspedes. Sou a rainha e todos os dias aplico a justiça para
que nunca deixem de ter uma vida calma e feliz, sem guerras e sem conflitos de
qualquer espécie.

216
Ditas estas palavras, a rainha despedIu-se de Bran e saiu para o grande prado
existente em frente da fortaleza, para se reunir com o seu povo. Bran e os seus
companheiros permaneceram nesta ilha durante os

três meses de Inverno, parecendo-lhes que estes três meses tinham durado
três anos. Mas, ao fim desse tempo, Neclitân, filho de ColIbran, ficou cheio de
saudades. «Estamos aqui há multo tempo», disse ele um dia a Bran, «Porque não
regressamos a casa?» «Não sejas incoiiveníente», respondeu Bran, «pois em lado
algum levaremos uma vida tão agradável como a que aqui levamos.»

Entretanto, Os companheiros de Bran começaram a murmurar e a acusar o seu


chefe, dominado pela rainha da ilha, de não os querer levar de volta para o seu
país. «Muíto ama Bran esta mulher», disse German, «e sendo assim, deixemo-lo
com ela e regressemos nós à Irlanda.»

Ora, Bran estivera a ouvir a conversa, e disse-lhes: «De modo algum partíreís
daqui sem mim. Se realmente pretendeis voltar para o vosso país, e se,
mantiverdes esse vosso propósito, ficai a saber que irei convosco, pois o dever de
um chefe é estar sempre com os seus companheiros.»

Prepararam então em segredo a partida. Um dia, tendo ido a rainha presidir a uma
assembleia do seu povo, Bran e os seus embarcaram no barco e navegaram para
o largo, mas a rainha, que nesse mesmo instante voltava para a fortaleza, viu o
barco afastar-,se com Bran e os seus companheiros. Ela foi então a cavalo até à
beira-mar, e atirou Um novelo para dentro do barco, agarrando-o Bran e ficando
com ele colado à mão. Nessa altura, a rainha só teve de Puxar o fio do novelo
para fazer os fugitivos voltarem para o porto. «Porque partís desta maneira?»,
perguntou-lhes ela. «Ao menos POdíeis-me ter prevenido, em vez de fugirem
como ladrões,»

Como todos abaixaram a cabeça sem saberem o que dizer, Bran acabou por
tomar a palavra: «Os meus companheiros queriam rever o seu pais c eu não podia
deixá-los partir sozinhos.» «0 teu sentimento é nobre, Bran, filho de Fébal», disse
a rainha, «mas sabíeis vós que grandes peri-

217
gos vos esperavam? Se quereis Partir para a Irlanda, podeis fazê-lo amanhã logo
pela nianhã, mas devo prevenir-vos do seguinte: nunca deveis descer do barco e
pôr os pés em terra, aconteça o que acontecer.»

Partiram no dia seguinte, depois de se despedirem da rainha da ilha e das suas


dezasseis companheiras, e, estando o vento favorável, não demoraram a avistar
as costas da Irlanda onde acostaram num lugar chamado desde então o Regato
de Bran.` Ora, realizava-se então uma grande assembleia na costa, e
perguntaram- lhes quem eram.

Bran respondeu, mas as pessoas de terra não compreenderam as suas palavras.


Ele insistiu, dizendo com toda a exactidão quem era, onde residia, e que reis
reinavam sobre o país. «Não conhecemos esses de quem nos falas»,
responderam elas. Então um velho avançou para a borda da água. «Ouvi contar,
na minha infância, que aí há uns trezentos anos, um chefe chamado Bran, filho de
Fébal, partiu para o mar e nunca mais voltou. És tu? Pareces-me bem jovem para
poderes ser aquele que dizes ser.» «Sou eu, apesar de poderes duvidar da minha
palavra», disse Bran, «e os meus companheiros estão aqui para servir de
testernunhas.»

Naquele momento, Nechtân, filho de ColIbran, não se contendo, ,altou para fora
do barco. Mas mal os seus pés tocaram na terra ele ficou feito em cinzas, como se
tivesse estado sepultado há séculos.

Então, Bran entoou um lamento por Nechtân, filho de ColIbran. Depois, após ter
contado as suas aventuras às pessoas que estavam ali na costa, despediu-se
delas, mandou içar as velas e logo o seu barco desapareceu na bruma. Ninguém
a partir dali o voltou a ver, mas toda a gente sabe que Bran, filho de Fébal, se
encontra na Terra das Fada, algures no vasto oceano, junto da grande rainha
MorrIgarte, filha de Ernma.”’

i Trata-se de Brandon Creek, na baía de Brandon, no norte da península de


Dingle. Segundo a tradição, foi daq.ui que São Brandão partiu na sua navegação
cri) busca do Paraíso, o que prova que existe uma profunda ligação entre o mito
de Bran e a piedosa lenda de São Brandão.

Síntese de duas narrativas: Iniramni Brain (Navegação de Bran), contida em


diversos manuscritos, editado por K. Meyer e A. Nutt, com tradução inglesa em
The Voyage of Bran; Mailduin, editado por K. Meyer em Zets(-hhri,ftjúr
Celtische Philologiè, v()[, XIII, tradução francesa de D’Arbois de Jubainville em
L’Epopée celtique en Irlande, vol. V do seu Curso de literatura celta.

- m dia, Mider de Bri Leith, das tribos de Dana, decidiu fazer uma visita ao seu filho
adoptivo, Angus, filho de Dagda, que ele criara e por quem tinha uma grande
afeição. Assim, por alturas da festa de Samain, ele deslocou-se até à residência
de Angus, em Brug-na-Boyneb, e encontrou aí Mac Oc ocupado a observar, numa
colina, grupos de rapazes que brincavam na encosta, enquanto Elcmar. irmão de

218
Dagda. na colina de Cletech. a sul, também observava aquela cena.

A certa altura os rapazes começaram à bulha, e Angus correu para os separar


antes que a luta Provocasse sangue quando Mider os fosse tentar pacificar. «Sai
daqui!», gritou-lhe ele, com medo que Elcitiar descesse e fosse também meter-se
no meio daquela confusão. «Elcmar está aborrecido contigo desde que tu o
expulsaste de Brug. Eu próprio vou acalmar estes rapazes estouvados!»

Angus foi então meter-se no meio dos jovens que se esmurravam e tentou
acalmá-los, mas não foi fácil e, no meio da confusão gerada, um dos rapazes
atirou uma ponta de aveleira contra Mider, ferindo-o num olho. Então, Mider
aproximou-se de Angus, magoado e furioso, mostrando-lhe o sangue que corria do
olho.

«Era melhor eu não te ter vindo visítar!», gritou ele. «Já estou arrependido da
minha viagem, Pois sinto-me humilhado com o que aconteceu! Esta ferida, no
entanto, não me impedirá de ver o país em que me encontro, e não estou certo se
conseguirei voltar para o meu ... » «As tuas palavras são injustas, ó Mider»,
respondeu Angus, «e ofendem-me muito. Vou pedir a Diancecht para vir tratar de
ti. Ele curar~te-á e poderás

219
depois voltar a ver este país com tanta clarividência como se fosse o teu.» Mac
Oc, sem perda de tempo, foi encontrar-se com Diancecht e dis-

se~lhe o que esperava dele. Diancecht acompanhou-o a Brug e tratou


imediatamente de curar Mider, cujo olho ficou bom. «Excelente», disse Mider,
«poderei agora comprazer-me com a minha viagem, pois estou curado.» «E ainda
será melhor», retomou Angus, «se ficares aqui durante um ano, até à próxima
festa de Samain. Serás meu hóspede e terás o prazer de visitar a minha terra e de
conviver com os meus amigos.» «Eu só fico», respondeu Mider, «se for
compensado da humilhação que sofri e da vergonha por que passei.» «E como
desejas ser compensado?», perguntou Mac oc. «Eu só te peço o seguinte: um
carro no valor de sete jovens escravas, um manto a meu gosto e a rapariga mais
bela da Irlaiida.» «Eu tenho o carro e o manto que pretendes», disse Angus. «Mas
também quero a rapariga mais sábia e mais bela de todas as que existem na
lrlanda», insistiu Mider. «Onde se encontra ela?» «No Ulster. Trata-se de Etaine,
filha de Ecliralde, rei do nordeste. Ela é sem dúvida nenhuma a mais sábia e bela
rapariga de toda a Irlanda.»

Oc pôs-se a carrunho do Ulster e chegou Sem perda de tempo, Mac


c, sidia o rei Ecliraide. Deram~lhes as boas pouco depois a Mag Inís, onde re i i

vindas, e ao fim de três noites perguntaram-lhe o que o levava ali, ao que ele
respondeu que desejava a mão de Etalne, a filha do rei. «Não a terás», respondeu
Echraide, «pois, se ta der, nada mais conseguirei de ti, devido aos teus poderes
mágicos. E se a minha filha for desonrada, ninguém das tribos de Dana me
quererá pagar uma compensação por isso.» «Garanto-te que isso não
corresponde à verdade», disse Angus. «E se te recusas a dar-me a tua filha,
posso comprar-ta agora mesmo.» «Assim está bem», disse o rei. «Quanto tenho
de pagar por ela?» «0 que eu te peço é o seguinte: quero que desbraves nas
minhas terras doze planícies que estão cobertas de floresta, para que nelas haja
boas pastagens para os meus gados, e para que nelas se construam casas,
façam jogos e se realizem assembleias.» «Eu atenderei ao que me pedes»,
respondeu Mac Oc.

Em vez de voltar para casa, ele foi ter com o pai, Dagda, ao qual contou o que se
passara. Dagda prometeu-lhe então que o trabalho exígido por Ecliraíde seria
levado a cabo e, deste modo, no dia seguinte começou o desbravamento das
doze planícies. Findo o trabalho, Angus foi de novo encontrar-se com Echraide e
reclamou-lhe a mão de Etaine.

«Tu não a terás», disse o rei, «a não ser que transformes em doze rios tudo o que
este país possui de nascentes, de pântanos e de turfeiras,

de tal modo que as águas possam ir lançar-se ao mar. Assim, serão drenadas as
minhas terras que darão peixes em abundância às tribos e às famílias do meu
país.» «Isso será feito», respondeu Mac Oc.

220
Foi de novo ter com o pai, expôs-lhe a situação, e Dagda fez com que doze
grandes rios se formassem no pais de Echraide antes de se irem lançar no mar
em grandes estuários, coisa que ’amais se vira até então. Quando o trabalho ficou
concluído, Angus voltou a casa do rei Ecliraide e reclamou-lhe a mão de Etaine.
«Pelo deus que protege a minha tribo», disse o rei, «ainda não é desta que te dou
a mão da minha filha, pois se eu ta desse, amanhã já nada poderia obter de ti.»
«Que mais queres então?», perguntou Mac Oc. «Eu digo-te o que pretendo: quero
o equivalente ao peso da minha filha em ouro e em prata. Caso consigas trazer-
me o que te peço, poderás levar Etalne.» «Terás o que pedes», respondeu Angus.

Chamaram a donzela e pesaram-na na casa de Echralde. Então, Angus fez trazer


o equivalente ao seu peso em ouro e prata e deu-o a Echralde. «Agora estás
satisfelto?», perguntou ao rei. «Acho que já tive de pagar um bom preço pela tua
filha, e que eu saiba nunca nin ’

1 guem pagou um preço tão alto por uma donzela ’rlandesa.» «Podes
levá-la», respo 1 1

ndeu Ecliraíde, «mas lembra-te que és o responsável pela sua honra e pela sua
saúde.»

Mae Oc levou então Etaine consigo para Brug-na-Boyne onde o esperava Mider.
Ao vê-lo, Etaine ficou tão encantada com a sua boa aparencia e com a sua
beleza que se apaixonou por ele imediatamente. Mider, por seu lado, ao ver as
feições finas da donzela e a elegância do seu corpo, ficou muito bem
impressionado e também se apaixonou.

Etaine e Míder acabaram por dormir juntos naquela noite. No dia

s 1 1 eguinte, Angus deu a Mider o


manto e o carro que lhe prometera, e Míder, aparti de então muito satisfeito, ficou
um ano inteiro na companhia do seu ir 1 1

filho adoptivo em Brug. Concluído este tempo, Mider anunciou a Mac Oc a sua
intenção de voltar para a sua própria residência, no outeiro de Bri Leith. «Não
posso impedir-te de o fazeres», disse Angus, «mas toma

é niu bem conta da mulher que levas contigo. A que lá te espera”) ito

1. No direito ceita. o homem pode ter unia ou mais concubmas, mesmo sendo
casado, na condição de a mulher legítima aceitar a pessoa que lhe é apresentada
pelo marido. Este concubinato é de ahum modo leal, pois é sujeito a um
verdadeiro contrato que protege a concubina: este contrato é válido por um ano e
pode ser renovado. É o que acontece neste caso.

221
poderosa e perita em POIs, foi educada por Bresal, um dos druidas mais
sabedores das tribos de Dana.»

Mac Oc, na verdade, tinha pouca confiança em Fuamnach, mulher de Mider. Ela
era a filha de Beothach, do clã de larbonel, e, graças às lições de Bresal, conhecia
melhor do que ninguem os sortilégios e sabia lançá-los sobre quem lhe
desagradasse.

1c

Depois de se ter comprometido a tomar conta dela, Mider partiu com Etame para o
outeiro de Bri Leith, onde foram recebidos por Fuamilach que lhes deu as boas
vindas. Em seguida, ela contou ao marido o que se passara nos seus domínios
enquanto estivera ausente. «Vem, 6 MideD>,
1

disse ela, «para que eu te mostre a casa e as extensões de terra que possuis, e
para que a filha do rei possa contemplar as tuas nquezas.»

Mider fez então uma ronda completa pelos seus domínios e Fuamnach mostrou-
lhe, assim como a Etaine, tudo o que fora feito ao longo do ano. Depois, levou-os
para casa e fê-los entrar no quarto onde dormia. «Só mulheres nobres têm acesso
a este quarto», disse ela a Etaine, «e fica a saber que agora podes dispor dele à
tua vontade.»

Mas logo que Etaine se sentou na borda da cama, Fuamnach bateu-lhe com uma
varinha de aveleira púrpura e transformou-a numa poça de ,água que se estendeu
por toda a casa. Feita a malvadez, Fuamnach saiu o mais depressa possível dali e
desapareceu na fortaleza para se refugiar na residência do seu pai adoptivo, o
druida Bresal.

Entretanto, o calor da lareira e do ar, e a fermentação do solo, actuaram de tal


forma sobre a poça de água espalhada pela casa que ela se transformou num
verme, o qual pouco depois se tomou uma mosca purpura. Esta mosca tinha uma
cabeça humarta, e jamais no mundo se vira um insecto tão belo como aquele. 0
som da sua voz e o zumbido das suas asas produziam uma música mais suave
ainda que a das harpas e das gaitas de foles, e os seus olhos brilhavam como
pedras preciosas na escuridão. 0 perfume que dela emanava era tão agradável
que fazia passar a fome e a sede a todos os que dela se aproximassem. As
gotinhas segregadas pelas suas asas curavam todos aqueles que ficassem
doentes ou se sentissem debilitados. Ela acompanhava Mider onde quer que ele
fosse, sem jamais o deixar, e ele regozijava-se com a sua presença, pois sabia
que Etaine estava do seu lado tendo adquirido aquela forma. Ora, como ele a
amava profundamente, nunca se interessou por outra mulher enquanto a mosca
esteve com ele, e sentia-se saciado só de a contemplar. Adormecia ao som do seu
zumbido, e ela encarregava-se de o acor-

222
dar sempre que se aproximava alguém cuja presença lhe desagradava. Quando
Fuamnach ouviu falar da mosca que tanto extasiava Míder,

compreendeu imediatamente que se tratava de Etaine. Tratou então de Ir Visitar


Mider, mas Poruma questão de segurança fez-se acompanhar a Brug-na-Boyne
Por três chefes das tribos de Dana, a saber Dagda,
9

0 ma e Lug do Braço Longo.

Mider censurou vivamente Fuamnach e disse-lhe que, se ela não estivesse


rodeada de três responsáveis pela sua segurança, a não deixaria partir viva. Ela
retorquiu que não tinha nenhum remorso pela acção praticada, que preferia fazer
o bem a si mesma do que a qualquer outra pessoa, e que, fosse qual fosse a
forma que tomasse Etaine, nunca deixaria de a importunar. E, dito isto, lançando
encantamentos que lhe tinham sido ensinados pelo seu mestre, Bresal,
desencadeou um vento druídico que envolveu a Mosca num grande turbilhão o a
arremessou violentamente para fora da fortaleza de Bri Leith- E o vento era tão
forte e terrível que a infeliz Etaine não conseguiu encontrar nem lugar, nem copa
de árvore, nem cume de colina, onde pousar durante sete anos, ficando refém dos
rochedos à beira mar e das grandes vagas que vinham rebentar na praia. Mas, uni
dia, ela bateu em Mac Oc, quando este passeava no prado que dominava a
fortaleza do Brug-na-Boyne, e Mac Oc reconheceu Etame na forma de mosca
púrpura.

Ele deu-lhe as boas vindas e, dando-lhe guarida nas pregas do seu manto para a
proteger do vento que continuava a soprar, levou-a para o interior da fortaleza. Aí
ele colocou o insecto na sua câmara de sol,,), que estava sempre inundada de luz
e que continha ervas com multo bom cheiro e Propriedades maravilhosas. E, a
partir de então, ele dormia todas as noites ao lado dela e cuidava dela com todo 0
carinho para que pudesse reaver as suas cores e a suas energias.

I. Mencionada noutras narrativas irlandesas, assim como o ,,to

francês da Folie Tri,çta,11, esta «Câmara de Sol» evoca um antigo ritual de


regeneração pelo sei. 0,a, a cena passa-,se em Brug-na-Boyne, ou seja, no cairn
megabtico de Newgrange, o que não acontece por acaso, Com efeito, no soIstício
de Inverno. os Prjmcros raios de sol penetra o outeiro de Newgrange por
n1 n

- uma abertura feita ao cimo da entrada, sobem ao longo do corredor e chegan, à


câmara funerária que iluminam com uma assombrosa claridade durante ai-uns
minutos. ora, nesta câmara, encontravam-se bacias de pedra nas quais tinham ido

olocados ossos e cinzas, É inegável que se tratava de um rito simbólico do

223
renascimento. 0 que é digno de nota, neste caso. é o facto de haver urna
extraordinária correspondência entre o mito e a realidade arqueológiea. Vide J.
Markale, Dolmens el Menhirs,
10 Civifisation Inégalithique, Paris, Payot. 1994.

224
Ora, Fuamnach, ao ouvir falar dos cuidados com que Angus tratava Etame, na sua
residência de Brug enviou-lhe um mensageiro para lhe pedir que fosse a Bri Leith
onde ela própria se deslocaria para fazer a paz com Mider e o seu filho adoptivo:
se eles aceitassem a proposta de paz, ela devolveria a Etaine a forma humana.
Muito satisfeito com aquela proposta, Mae Oe foi logo ao seu encontro.

Mas Fuamnach, ao invés de ir para Bri Leíth, foi direita a Brug e, entrando na
fortaleza, dirigiu-se logo para a câmara de sol. Aí lançou uns terríveis
encantamentos, e o vento druídico, arrebatando o insecto do lugar onde estava,
pô-lo a errar por cima da Irlanda. Depois de suportar muito frio e muita chuva, a
mosca acabou por cair em estado de grande fraqueza no tecto duma casa onde
homens e mulheres do UIster se preparavam para começar a beber. Etaine estava
de tal modo subnutrida e debilitada que adquirira a forma de uma mosca normal, e
foi naquele estado que, passando através do buraco da chaminé, entrou na taça
de ouro que a mulher de Etar, um dos campeões do UIster, segurava numa das
mãos. Esta, sem dar por isso, engoliu-a com a bebida e ficou grávida naquela
noite, dando à luz, nove meses depois, uma rapariga chamada Etaine, filha de
Etar.

Entretanto, Mider e Anger, tendo estado à espera de Fuamnach sem que ela
aparecesse, tinham ficado preocupados. «É evidente que ela nos fez cair nutria
armadilha», disse Mae Oc. «Se ela souber que Etame está em minha casa, é
capaz de lhe ir fazer mal. Devo por isso regressar urgentemente a Brug.»

Quando chegou à fortaleza, não encontrou Etaíne ria câmara de sol.


Compreendeu então que Fuamnach ali estivera e que de novo desen~ cadeara
um vento druídico para levar o insecto dali para fora. Furibundo, partiu então no
encalço de Fuamnach e encontrou-a precisamente no momento em que ela se
preparava para entrar na casa do druida Bresal. «Maldita mulher!», gritou ele.
«Serás castigada pelo crime queicometeste, pois não posso admitir que tenhas
desonrado e posto em perigo a mulher por quem sou responsável!»

E, atirando-se a ela, cortou-lhe a cabeça e voltou depois para Brug-na-Boyne


levando aquela consigo.

Etaine, por seu lado, foi criada com todo o carinho por Etar em Inber Cichmaine,
onde estava rodeada de cinquenta filhas de chefes. Etar dava-lhes de comer e
vestia-as para que pudessem estar constantemente a tomar conta de Etaine. Esta
cresceu cheia de sabedoria e de beleza, e todos

234

os homens do UIster elogiavam as suas qualidades e o seu encanto.


1

Um dia, quando as jovens se banhavam no estuário, viram um cavaleiro que,


saindo das águas, se dirigiu para elas. 0 cavaleiro montava um cavalo escuro

225
multo ágil, imponente e grande, com a crina e a cauda frisadas. Cobria-o um
manto verde cujas dobras muito largas, com um broche de ouro saliente, caiam
sobre uma camisa fina ornada de bordado vermelho. Segurava na mão uma lança
de cinco pontas inteiramente guarnecida de ouro, e ao ombro trazia um escudo de
prata bordado a ouro, Uma fita prendia-lhe os cabelos louros para impedir que
eles caíssem sobre o rosto. Ele deteve-se diante das donzelas e entoou-lhes uni
canto estranho que elas não compreenderam, embora tenham ficado encantadas
com a beleza do cavaleiro e se tenham logo apaixonado por ele. Apesar disso, ele
deixou-as, ficando elas sem saber de onde viera e para onde ia aquele que era
Mider e que viera de Bri Leith para contemplar Etaine, pois jamais ele a esquecera
e jamais a amara tanto como agora.

Naquele tempo, o rei supremo da Irlanda era Eochaid Airem, filho de Fimi. Ora,
naquele ano que se seguiu à sua subida ao trono, ele mandou que se anunciasse
por toda a Irlanda que em Tara se realizaria um festim durante a festa de Samain.
Todos os nobres e reis dos Filhos de Milé deveriam aí deslocar-se, pois
aproveítar-se-ía aquela ocasião para Se tratar de negócios e para se fixarem os
impostos que deveriam ser pagos ao rei supremo. Mas os homens da Irlanda
responderam que Dão iriam ao festim de Tara enquanto o rei que os convocava
não tivesse urna esposa digna de si. Na verdade, Eochaid Airem não era casado,
e não havia chefe ou nobre da Irlanda que não honrasse o festim de Tara tendo
uma mulher a seu lado. Eochaid enviou então os seus servos C os seus
mensageiros a todas as províncias em busca de uma mulher que fosse digna do
rei supremo. Quando voltaram, os enviados disseram-lhe que tinham encontrado
apenas uma mulher que correspondia exactamente ao ideal que ele perseguia:
Etaíne, filha de Etar, no UIster.

Na esperança de a ver, o próprio Eochaid Airem se deslocou então ao lugar onde


lhe tinham indicado que estava a rapariga e, ao atravessar um vale verdejante, viu
uma donzela junto a uma fonte, Com um pente de prata magnífico a sobressair de
enfeites dourados, ela lavava-se num tanque de prata ricamente ornamentado
com quatro pássaros de ouro e pedras preciosas. A donzela estava vestida com
um belo manto púrpura claro, tendo broches de prata e um alfinete de ouro a cin-

226
tilarem sobre o peito. Cobria~lhe o corpo uma camisa comprida de seda verde
bordada a ouro, com ouro e prata acolchetados, e o sol derramava tons
maravilhosos pela roupa que trazia vestida. No alto da cabeça tinha duas tranças
douradas, e quatro ganchos mantinham-nas separadas, havendo uma pérola de
ouro no alto de cada uma delas.

Naquele instante a rapariga soltava os cabelos para se lavar e, segurando-os com


as mãos, em seouida fê-los caírem sobre os seios. As Z:I

mãos eram mais brancas que a neve nocturna e as maçãs do rosto mais
vermelhas que uma dedaleira púrpura. A boca era fina e sem defeitos, e os dentes
brilhantes como pérolas. Os olhos eram mais cinzentos que o jacinto. Vermelhos e
finos eram os lábios, leves e suaves os ombros, ternos, doces e brancos os
braços. Os dedos eram longos, magros e brancos. As unhas eram muito belas, de
um vermelho pálido. 0 ventre era f,cérico, mais branco que a neve ou a espuma do
mar. As coxas eram macias e brancas, a barriga da perna estreita e muito
elegante, os pés finos, imaculados e brancos; os calcanhares eram muito bem
torneados o delicados, e muito brancos e redondos eram os joelhos,

Eochaid Airem, maravilhado com toda aquela harmonia, aproximou-se da donzela


e cumprímentou-a, tendo ela correspondido ao seu cumprimento. Depois, ele
perguntou-lhe quem ela era, e ela respondeu que era Etame. filha de Etar.
campeão do UIster.

«Donzela, queres casar comigo’?», perguntou-lhe ele. «E quem és

Z’

tu?» «Eu sou Eochaid Airem, rei supremo da Irlanda, e vim pedir-te em
casamento.» «Não devo ser eu a dar-te uma resposta, mas sim o meu pai». disse
ela.

0 rei foi logo encontrar-se com Etar, e este concordou em lhe dar a filha se ele
tivesse um bom dote para lhe dar. Eochaid deu-lhe sete jovens escravas e uma
magnífica manada de vacas brancas, e levou Etame para Tara.

Ao saberem que o rei arranjara uma esposa, os homens da Irlanda foram ao


festim de Tara. Chegaram quinze dias antes do Samain e permaneceram quinze
dias depois de terminado o festim. Ficaram espantados com a beleza e a
elegância de Etaine e não paravam de a elogiar, dizendo que nunca um rei da
Irlanda tivera uma mulher tão perfeita.

Entretanto, Eochaid Airem tinha um irmão que se chamava Ailill Anglonnach. E


quando este viu Etame pela primeira vez, no festim de Tara, apaixonou-se
imediatamente por ela. Não parava de a contemplar e de suspirar, de tal forma
que a mulher acabou por lhe perguntar: «Para

227
quem olhas, ó Ailill? Só o amo’* Pode suscitar olhares tão profundos e suspiros
como os teus!»

Ailíll, muito envergonhado, recriminou-se a si mesmo e evitou daí em diante olhar


para Etame. Mas, tendo partido os homens da Irlanda a seguir ao festim de Tara,
Ailill pelo contrário deíxou-se ficar, sendo acometido de um estado de grande
fraqueza devido ao ciúme , -

, a inveja e ao despeito que o minavam. Preocupado com ele, Eochaid Airem, o


seu irmão, mandou chamar o seu médico, Fachtna. 0 médico auscultou o peito de
AffilI, e este suspirou profundamente. «Penso que não estás doente», disse
Fachtna. «Tu foste acometido do que me parece ser uma espécie de inveja,»

Ao ouvir aquelas palavras, Ailill ficou cheio de vergonha e evitou dizer ao médico o
que o atormentava, não podendo por isso ser curado. Ora, Eochaid Airem devia
partir no seu périplo real pelas províncias da Irlanda., mas Preocupava-o tanto a
saúde do irmão que disse a Etaine: <Mulher, trata do meu irmão e presta-lhe toda
a assistêrícia que puderes, pois ele parece-me bem doente. E, se Por infelicidade,
ele morre, tu triesma faz-lhe a sepultura e escreve o seu nome em ogham na laje
que ’oJ ellgidi neste )ugar.»

Tendo incumbido Etaine de cuidar de Ailili, Eochaid começou então


0 seu Périplo por todas as províncias da Irlanda. Etaine, por seu lado, ]a todos os
dias à cabeceira de Affill para lhe lavar a cabeça e lhe dar de comer. Mas Affill
piorava de dia para dia, e Etaine receava que ele morresse. «Ouve», disse-lhe ela
uma noite, «às vezes fico a pensar que a tua doença é provocada por um
pensamento que não tens coragem de confessar. Estou certa de que. se mo
confessares, poderei fazer alguma coisa para te curar.,> <Oh

mulher!». respondeu Niffil, «tu poderias fazer alguma coisa para me curar mas eu
não me atrevo a revelar-te a causa do meu mal.» «Diz-me o teu se,credo» «Não to
direi», obStíDOU-se AffiL

No entanto, ao fim de alguns dias de muita insistência da parte dela, ele decídiu-
se a falar, «Se queres saber a causa do meu mal», disse ele, «vou-to revelar: és
tu. Desde que te vi pela primeira vez, fiquei de tal maneira apaixonado que deixei
de ser senhor do meu coração e dos meus sentimentos. E uma situação bem
triste, ó mulher do rei, pois o meu corpo e 0 meu espírito estão doentes e nada me
pode curar a não ser que tu própria me sirvas de remédio. Nem podes imaginar
como o meu amor é um espinho dilacerante que me rasga a alma e me destrói
todo por dentro! 0 meu amor, que tem as dimensões da terra inteira e do céu

228
infinito, tortura-me noite e dia e flagela-me a alma que vive no meio de sombras e
de trevas! Não podes imaginar como me consumo a lutar conZn

tra as sombras que não param de me visitar e de me torturar, ó mulher!» Assim


falava cheio de mágoa Ailill Anglonnac, filho de Finn, irmão do rei supremo da
Irlanda, Eochaid Airem. E, depois de se ter pronunciado, escondeu o rosto com
vergonha por estar apaixonado pela mulher do irmão. «É uma pena que tenhas
ficado tanto tempo sem dizer a origem do teu mal», murmurou Etame, «pois
poderíamos tê-lo curado há muito tempo.» «Tu poderias curar-me completamente,
se o deseJasses», disse Ailifi. «Eu quero», retorquiu Etaine. «Esta noite, quando
todos forem dormir, vem ter comigo à casa que se encontra fora da for~ taleza. Eu
estarei lá e farei com que fiques curado.»

Aillil teve muito cuidado para não dormir, naquela noite. Mas, chegado o momento
de partir para o encontro, foi visitado por um sono profundo e dormiu até de
manhã. Etame, por seu lado, tendo-se dirigido para a casa fora da fortaleza, viu
chegar um homem fraco e fatigado, parecido com Ailill, mas ela percebeu que não
era ele. «Não foi contigo que marquei um encontro», disse ela, «mas com um
homem a quem prometi curar, pois está muito doente devido à paixão que tem por
mim.» «0 encontro que marcaste com esse homem não seria conveniente», disse
o desconhecido, «e garanto-te que aquele que esperavas amanhã estará curado.
Fui eu que o fiz dormir e vim no seu lugar para te poupar à desonra e à
vergonha.» «Mas quem és tu?», perguntou Etaine. «Não me reconheces? Quando
eras Etaine, filha de Ecliraide, pertencias-me, e desde então nunca deixei de te
amar. Tu sabes bem que me chamo Mider de Bri Leith. «Se é como tu dizes, o que
é que então nos separou?», perguntou Etaine. «Os artifícios de Fuaninach e os
encantamentos do druida Bresal. Não te lembras, ó Etaine, a mais amada e a
mais digna de ser amada?» «Lembro-me, na verdade», disse Etaine, «mas tudo
isso está envolto numa névoa muito distante, parecendo que sombras aparecem à
minha frente sem que eu consiga apreender o seu sentido. E que farás tu para
curar Ailill Anglonnach?» «Eu fá-lo-ei passar por um sonho que o levará a pensar
que te teve nos braços durante toda a noite. ó mulher tão amada, virás comigo?»
«E para onde me levas?», perguntou Etaine.

Então, Mider entoou este canto:

«0 bela mulher tão amada, virás comigo

para a terra tão amada onde se ouvem músicas,

onde sobre os cabelos se levam coroas de primaveras, onde, da cabeça aos pés,
o corpo é da cor da neve, onde ninguém Pode ficar triste ou sentir-se infeliz,

onde os dentes são brancos e as sobrancelhas são negras, onde asfaces são
vermelhas como as dedaleiras emflor? A Irlanda é bela, mas Poucas paisagens

são tão belas como as que verãs na grande planície onde te levarei.

229
A cerveja da Irlanda éJorte, mas a cerveja da Grande Terra é ainda mais
inebriante. E um país maravilhoso o que já conheces.- nele os jovens nunca
envelhecem

e correm rios de hidromel,

nele os homens são encantadores, perfeitos, e o amor não é proibido...

0 mulher tão amada, quando chegares ao meu pais passarás a levar uma coroa
de ouro no cimo da cabeça, comerás porco fresco todo o ano,

tomarás cerveja e leite, ó mulher,

bela mulher tão amada, virás comigo?»

«É impossível», respondeu Etaine. «Estou casada com o rei supremo da Irlanda e


não 0 Posso deixar.» «E se eu conseguir que o rei da Irlanda me dê a tua mão,
virás comigo?» «Sim», respondeu simplesmente Etame. Então Mider
desapareceu, sem que Etaine soubesse o rumo que ele tomara.

De manhã, ela viu Ailill Angloninach vir ao seu encontro com um óptimo aspecto e
um olhar radioso. «ó mulher!», exclamou ele, «tu curaste-me, e não sei como te
agradecer.» «Eu sei como poderás agradecer-me», disse ela. «Basta que não
fales a ninguém sobre o que se passou esta noite entre nós.»

Passados alguns dias, Eochaid Airem voltou do seu périplo real pelas províncias
da Irlanda. Ao ver o irmão curado, ficou muito contente e agradeceu a Etaine o
tratamento que lhe dera. Então, Ailill Anglonnach voltou para sua casa e nunca
mais ficou doente.

230
No dia seguinte, Eochaid Airem levantou-se muito cedo e subiu ao terraço de Tara
para contempiar a planície que se estendia sob o brilhante sol de Verão. Ao olhar
ao redor da fortaleza viu aproximar-se um estranho guerreiro, que vestia urna
túnica púrpura e cuja cabeleir2 loura caía em ondas até aos ombros- 0 guerreiro
tinha os olhos brilhantes e

a lança de cinco pontas. do pescoço trUia azuis, e na mão segurava um


edras preciosas suspenso um escudo de prata bordado a ouro e com p

nele incrustadas. Eochaid não o reconheceu, mas sabia que aquele homem não
tinha estado na noite anterior na sala de festins de Tara. «Bem vindo, guerreiro
que não conheço», disse Eochaid- «Eu conheço-te», respondeu o outro. «Tu és
Eochaid Airem, rei supremo de toda a Irlanda.» «Tens razão, mas corno te
chamas’» «0 meu nome não é muito conhecido entre os Filhos de Milé. Fica a
saber que me charno

«Gostava de jogar xadrez conMider de Bri Leith.» «E que desejas?» iu


Eochaid, «eu sou tigo», respondeu o guerreiro. «Na verdade», retorqu
’da muito bom no jogo de xadrez, e quando me desafiam para uma parti nunca
recuso. Mas a rainha ainda está a dormir, e o tabuleiro e as peças estão nos seus
aposentos.» «Não importa», respondeu o guerreiro, «eu tenho aqui um jogo de
xadrez que não tem menos valor.»

Era verdade o que dizia, pois tinha em seu poder um tabuleiro de prata com cada
canto iluminado por uma pedra preciosa. Depois, retirou as peças que eram de
ouro dum saco com malhas em bronze, e pousou o tabuleiro sobre o terraço.
«Agora podemos jogar», disse ele. «Eu não jogo se não houver uni prétnio», disse
Eochaid. «E qual será o prémio?», perguntou Mider. «É-me indiferente.» «Pois
bem», disse Mider, «se tu ganhares o prêmio serão cinquenta corcéis acinzentad
io,,,,, com as cabeças malhadas e vermelhas, as orelhas pontiagudas, o peito
largo, as narinas muito abertas, as patas muito finas e poderosas, fogosas,
rapidas, fáceis de atrelar, e também cinquenta rédeas esmaltadas. Se eu perder,
os corcéis estarão aqui amanhã à terceira hora.» .

os dois homens começaram então a jogar. Eochaid ganhou a partida e Míder


retirou-se, levando o jogo de xadrez. No dia seguinte, quando Eochaid andava
pelo recinto da fortaleza de Tara, viu Mider aproximar-se do terraço. Não sabia de
onde ele vinha nem como conseguira

isfeito ao ver que Mider trazia consigo chegar ali, mas ficou muito sat
rédeas esmaltadas. uni grupo de cinquenta caval ios acinzentados com

«Está bem», disse ele, «mantiveste a palavra.» «0 que é prometido é devido»,


disse Mider. «Vamos jogar outro jogo hoje9» «Por mim está

bem», respondeu o rei, «na condição de que haja um prémio.» «Isso nada tem de
mais. Se ganhares esta partida, dar-te-ei cinquenta vacas

231
inbrancas de orelhas vermelhas, cinquenta portas com bojo cinzento, c’

quenta espadas com protecção em marfim, e cinquenta mantos sarapintados. 0


que pensas>» «Concordo em absoluto», respondeu Eochaid.

1 Fizeram uma partida, Eochaid ganhou, e no dia seguinte Mider voltou com tudo
o que tinha prometido. E assim foi durante vários dias: Mider perdia regularmente,
e Eochaid ia acumulando as suas riquezas na fortaleza de Tara.

Entretanto, o intendente do rei estava muito admirado com tantos tesouros


acumulados em tão pouco tempo. Interrogou Eochaid, e este contou-lhe como
ganhava aquelas riquezas. «E muito estranho», disse o intendente. «Aconselho-te
a não confiares neste homem, pois parece-me que ele tem poderes mágicos. Na
próxima vez, não deixes que seja ele a propor o prêmio. Impõe-lhe tu pesados
encargos, e veremos como ele assume as suas responsabilidades. »

Assim, quando Mider apareceu no terraço para propor a Eochaid uma nova partida
de xadrez, foi este a impor as condições em caso de vencer, a saber, retirar todas
as pedras de Meath, construir uma estrada sobre os pântanos de Larriraige e
plantar uma floresta no vale de Breifné. «Isso é muito», disse Mider, «mas mesmo
assim aceito as condíções.» Voltaram a jogar e Eochaid ganhou a partida.
«Antanhã terás o que pediste», disse-lhe Mider, «mas não deixes que nenhum
homem ou mulher saia da fortaleza antes do sol nascer.» «Eu prometo», disse
Eochaid, «ninguém sairá da fortaleza antes do nascer do sol.»

Mas, ao invés de manter a promessa, o rei mandou o seu intendente ver o que se
passava. 0 homem saiu então da fortaleza e foi observar os movimentos de Mider.
Viu uma multidão de homens a trabalharem arduamente na construção da
estrada, outros a recolherem pedras, e ainda outros a plantarem árvores. Voltou
imediatamente para Tara e contou a Eochaid os grandes trabalhos que estavam a
ser feitos durante a noite para que a promessa fosse cumprida. E acrescentou que
nunca vira no mundo um poder mágico tão poderoso como aquele que
testemunhara.

Estavam a conversar quando viram aproximar-se o grande guerreiro de cabelos


louros e de olhos azuis. Tinha um cinto à volta do tronco e parecia furioso. Eochaid
ficou um pouco assustado, mas deu-lhe as boas vindas. «Pouco me importam as
tuas gentilezas», respondeu Mider com aspereza. «As tarefas que me pedes para
executar e as exi-

232
e difíceis, Eu estava realgências que me fazes são demasiado duras

1 de cumprir o combinado para te agradar, mas tu mente na


disposição s lá, acalma-te», disse o rei. «Eu tentarei ser abusas da
situaÇão.» «Vamo, , íogo?», perguIlmais
compreensivo tia proxima vez». «Fazernos Outro - -

tou Mider. «De boa vontade», respondeU EOchaid- ’<Mas qual será 0 prérfiío?»
«0 que decidir o vencedor», disse Mider. «Eu aceíto», disse oa vontade para
contigo, pois desse modo o rei, «o que prova a minha b 5

nada fica combinado previamente.»’ partida,


ficanJogaram novamente mas, desta vez, Míder ganhou a
ele. do Eochaid muito embaraçado, «Que prémio desejas?», perguntou

E MideT respondeu, «QueTo a tua mulher, Etaíne, filha de Etar do antes de ser
tua.» Aterrado, Uster, que foi minha mulher MuitO
«Nesse caEochaid acabou Por dizer’- «Dá-me um prazo» «Eu dOu-tO»-

so, volta daqui a um ’, e eu cumprirei o meu compromisso rnê,

Mider partiu, deixando Eochaid numa grande angústia, 0 rei dcsconfiava que Mider
tinha deliberadamente criado aquela situaÇãO catastrófica de que dificilmente
conseguiria sair corno vencIdor* Entretanto. na0 tinha intenção
nenhuma de perder Etaine e de a dar a Mider, de tal forma

ões.”’ após muito reflectir, resolveu não cumprir com as suas obrigaÇ

que, por esse motivo. no dia combinado, Eochaid Aírein reuniu ao seu s s
e dos guerreiros da Irlanda. redor, em Tara, a elite dos eus homen
rtaleza ser cercaid,nciou no ,,

Além disso, Eochaid Prov , eDtido de a fo

e de a casa onde estava com EtaiBe ser defendida por hoda de tropas,
a quem quer que quisesse faPmens armados e determinadOS a resistir
m como as da casa, foram afertar a rainha. As portas da fortaleza assi
poderes mágicos id sabia que o homem de grandeS

rolhadas, pois Eocha, Z:I .o da assembleia, não


faltaria ao encontro marcado, Etaine estava no mel

chefes e os senhores que rodeavam o rei naquela noite, e servia os não


impedirain, apesar de tudo, que Mider As medidas tomadas

i, Era evidentemente aqui que Mider pretendia chegar. perdendo partidas

233
sucessivas, o hábil mágico que era capaz de pagar prémios exorbtant1S venceu a
desconfiança de Echaid e .,lho, o cair na sua armadilha. Em todas as nar-

aumentou a sua rapacidade, Para élic , são apresentados como sendo milito
infe,,tivas., os Filhos de Milé, ou Seja, o’ ga o antigos deuses druídicos
que se rioTes à, personagens das tribos de Daiw 11,do estas os s, ou seja, as
Fadas da ira~ s, «boqs gCnte

tomaram por us,quência, até aos nossos dia t-1

dição popular oral da irianda e da Escócia. - oral, se não fosse o com---


2, 0 final desta história poderia considerar-se «II

que falta ao prometido, Prlm”ro mandando espia” depois tentandO `’ assum’r os

’) A ,

aparecesse, sem se saber como, no meio da casa. Ele era extremamente belo,
mas a todos pareceu que Daquela noite estava ainda mais belo do que era
habitual, com os cabelos louros, os olhos azuis e o manto ornado com pedras
preciosas e um broche de ouro. 0 coração de, Etaine estremeceu ao vê-lo assim,
no meio de uma assembleia que lhe era hostil, mas ficou calada, limitando-se a
encher os copos de cerveja e de hídromel. Estavam todos estupefactos por ele
estar ali, no meio da sala, quando todas as entradas lhe estavam vedadas. Mas
Eochaíd avançou para ele e deu-lhe as boas vindas.

«Estou aquí», disse Mider, «para reclamar o prêmio combinado e se não mo deres
perderás a honra.» «Um rei da Irlanda não pode dar a mulher a outro», respondeu
Eochaid. «Posso dar-te tudo o que me pedires, mas é impossível que Etaine parta
contigo esta noite.» «Tu prometeste-ma», disse Mider, «e deves liquidar a tua
dívida perante todos os homens da Irlanda.» «Eu não te darei Etaine», disse
Eochaid com um ar muito ríspido. «Não me assustas», respondeu Mider.
«Ninguém se pode furtar às suas obrigações e muito menos um rei. Eu próprio
não tive de liquidar os compromissos assumidos, apesar de todas as dificuldades
por que tive de passar?» «É verdade», acabou por ter de admitir Eochaid,

Então Mider voltou-se para Etaine. «Mulher», disse-lhe ele, «é verdade que me
acompanharás, se o rei supremo da Irlanda o consentír?» «Sim», respondeu
Etaine. «Eu prometi~to.» «Mas eu não ta entrego!», gritou Eochaíd furibundo.
«Cometes perjúrio», disse Míder, «e todos os homens da Irlanda são testemunhas
de que não tens palavra.» «Apenas consinto que tomes Etaíne nos braços e lhe
dês três beijos», disse Eochaid. «Farei então como dízes», disse Mider.

Míder segurou as armas com a mão esquerda e, com a direita, envolveu a cintura
de Etaine e deu-lhe três beijos. Depois, sem pronunciar uma palavra, fê-la passar
por um orifício do tecto

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desapareceram na noite.

Os guerreiros que rodeavam por não terem podlíi-

indo

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pertence às tribos de Daria», alguém disse, «e as tribos de Dana vivem c,

nos oute, iou-se com a

iros da Irlanda. Com certeza ele refúgi rainha no outeiro mais


próximo.»

Eochaid partiu então, com a elite dos homens da Irlanda, para o outeiro mais
próximo de Tara, do lado oeste, o de Bart Finn. Quando aí chegaram, o rei
ordenou que se escavasse o solo do outeiro até se conseguir desalojar os
fugitivos. Escavou-se toda a noite, vasculharam-se os mais recônditos recantos do
outeiro”’, mas não se encontrou nada nem ninguém, pois os homens das tribos de
Dana tinham o poder de se tornar invisíveis àqueles que não eram do seu povo.
Mas, de manhã, viram aproximara-se uma mulher já velha. «Que procurais vós
aqui, homens da Irlanda?», perguntou ela. «Procuramos Etaine, a mulher do rei da
Irlanda, que acaba de ser levada», responderam eles. «0 homem que foi
encontrar-se convosco e que levou a vossa rainha não é daqui», respondeu ela.
«Se desejais encontrá-lo, deveis dirigir-vos para a resídência de Bri Leith.»

Rumaram para norte e, ao entardecer daquele dia, chegaram ao outeiro de Bri


Leith. Escavaram o solo toda a noite e de manhã perceberam que todo o esforço
tinha sido em vão. Apesar disso, voltaram a escavar durante todo o dia, e, quando
o sol já declinava para o horizonte, viram dois cisnes brancos que, lado a lado, se
erguiam no céu, Por um instante os pássaros sobrevoaram as suas cabeças e
depois, rumando a norte, perderam-se na bruma.

A partir deste tempo distante, quando a tarde cai e uma bruma leve sai das
turfeiras, ouve-se muitas vezes o canto dos dois cisnes brancos que nadam à
superfície das águas calmas de um lago ou de um rio. Têm um canto tão
harmonioso que é impossível reter as lágrimas ao ouvi-]o, pois é a música das
fadas que se eleva no ar por entre os últimos raios de sol. Quando menos se
espera, vê-se os dois pássaros levantar voo, sobrevoar por um breve instante na
bruma, e desaparecer. E todos sabem que é Etaine, a bela rainha de Tara, que, na
companhia

1. É preciso ter em conta que o nome gaélico «Airem» significa «aquele que
trabalha», «aquele que escava o solo». Este facto não é certamente casual, e
sabe-se que numerosos cairns megalíticos foram destruídos por sucessivas
gerações de agricultores. Por outro lado, uma das versões da lenda defende que
Eochaid Airem foi o primeiro irlandês a meter um jugo nos bois para os fazer puxar
a charrua.

de Mider de Bri Leith, rei das Sombras, vai percorrer o céu sobrevoando a
Ilha Verde em direcção ao país da Eterna Juventude, aí o e
frutos sdeurcaonntehetcedoaotriasntoezlla1 nem a dor e onde as árvores têm
flores nde não

236
1 Síntese de quatro narrativas, todas intituladas Tochmarc Etaine (Courtise
d’Etaine), conservadas no Livre de ia Vache Brune (Leabhar na hUidré),
manuscrito do fim do século XI, no Livre Jaune de Lecan, manuscrito do século
xiv, e no manuscrito Egerton 1782, Textos publicados em diversas obras,
nomeadaniente por Best e Bergin, em Eriu, vol. XII, com tradução inglesa.
Tradução francesa de Ch.4. Guyonvarc’h

iriandais, Rennes, 1980 em Textes mYthologiques .


Análise de J, Markale, L’Épopée celtique d’Iriande, Paris, 1994. A personagem de
Etame simboliza a soberania da Irlanda, e aparece nas narrativas rrijtologicas e
épicas com numerosos nomes, tais como Ethné (mãe de Lug), Tailtiu (mãe
adoptiva de Lug), Banha, Fothla, Eriu e, mais tarde, no ciclo do Uster, com o nome
da célebre Deirdré.

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Outra obra de,fean Markale publicada pela ÉSQUILO:

0 CRISTIANISMO CELTA

e as suas sobrevivências populares

Comoforam os celtas cristianizados?

0 que é que sobreviveu da antiga religião druídica?

É respondendo a estas e outras interrogações que Jean Markale analisa este


fenómeno histórico apaixonante que foi a emergência do cristianismo celta.
Nascido na Bretanha, na Irlanda e na ilha da Bretanha de uma fusão entre o
druidismo e o cristianismo, esta espiritualidade aceita a mensagem de Cristo
conservando ao mesmo tempo muitas das características da tradição céltica:
Monaquismo, santos heróicos, integração das mulheres no culto, bispos errantes,
peregrinações pro amore Dei...

Ainda hoje, nas zonas rurais - essencialmente na Bretanha - Jean Markale tem
descoberto sobrevivências populares deste cristianismo celta no culto dos santos,
assim como nas festas tradicionais e nos santuários.

Combatido pela Igreja de Roma - foi mesmo, por vezes, considerado herético - o
cristianismo celta influenciou profundamente o conjunto do cristianismo e constitui
uma chave fundamental para compreender o «cristianismo português».

N’ DE PÁGINAS: 248 - FoRmATo: 16X23 Cm - PREÇO: 17,5

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