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Tradição e apropriação crítica: Metamorfoses de uma afroamericalatinidade
Tradição e apropriação crítica: Metamorfoses de uma afroamericalatinidade
Tradição e apropriação crítica: Metamorfoses de uma afroamericalatinidade
Ebook461 pages6 hours

Tradição e apropriação crítica: Metamorfoses de uma afroamericalatinidade

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About this ebook

O que a capoeira angola tem a ver com grupos indígenas do sudeste mexicano? Em que a tradição africana conversa com a tradição indígena? Essas perguntas balizaram a pesquisa que este livro nos apresenta e nos apontam um caminho único: a apropriação crítica da tradição como exercício de autonomia. Não apenas dos sujeitos envolvidos nesse processo diretamente, mas de toda a comunidade a que os processos se referem.
LanguagePortuguês
Release dateJan 10, 2022
ISBN9788528305692
Tradição e apropriação crítica: Metamorfoses de uma afroamericalatinidade

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    Book preview

    Tradição e apropriação crítica - Alessandro de Oliveira Campos

    Capa do livro

    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery

    EDITORA DA PUC-SP

    Direção: José Luiz Goldfarb

    Conselho Editorial

    Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)

    José Luiz Goldfarb

    José Rodolpho Perazzolo

    Ladislau Dowbor

    Karen Ambra

    Lucia Maria Machado Bógus

    Mary Jane Paris Spink

    Matthias Grenzer

    Norval Baitello Junior

    Oswaldo Henrique Duek Marques

    Frontispício

    © Alessandro de Oliveira Campos. Foi feito o depósito legal.

    Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

    Campos, Alessandro de Oliveira

    Tradição e apropriação crítica : metamorfoses de uma afroamericalatinidade / Alessandro de Oliveira Campos. - São Paulo : EDUC : FAPESP.

        Bibliografia.

        Originalmente Tese de Doutorado - PUCSP, 2013.

        1. Recurso on-line: ePub

    Disponível no formato impresso: Tradição e apropriação crítica : metamorfoses de uma afroamericalatinidade / Alessandro de Oliveira Campos. - São Paulo : EDUC : FAPESP, 2016. ISBN 978-85-283-0540-1.

    Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.

    Acesso restrito: http://pucsp.br/educ

        ISBN 978-85-283-0569-2

       1. Identidade. 2. Crítica. 3. Índios mexicanos - Identidade étnica. 4. Negros - Identidade racial - América Latina. 5. Tradição. 6. América Latina - Civilização - Influências africanas. I. Título.

    CDD 302.4

    305.896

    972.01

    980

    Auxílio Fapesp à publicação – processo n. 2015/14772-0.

    EDUC – Editora da PUC-SP

    Direção

    José Luiz Goldfarb

    Produção Editorial

    Sonia Montone

    Preparação e Revisão

    Siméia Mello

    Editoração Eletrônica

    Gabriel Moraes

    Waldir Alves

    Capa

    Waldir Alves

    Secretário

    Ronaldo Decicino

    Produção do ebook

    Waldir Alves

    Rua Monte Alegre, 984 – sala S16

    CEP 05014-901 – São Paulo – SP

    Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558

    E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ

    Dedico esse trabalho a todos que resistiram e resistem há mais de cinco séculos no território que hoje é conhecido como América Latina.

    Agradecimentos

    Agradeço aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialmente ao Antonio da Costa Ciampa, a Marlene e aos colegas do Nepim.

    Muito obrigado aos professores dra. Carmen Junqueira, dra. Ana Kiyan, dr. Omar Ardans, dr. Salvador Sandoval, dra. Myrna Coelho e dr. Nicanor Rebolledo.

    Obrigado a minha linda companheira Ana Paula e minha família.

    Agradeço de todo meu coração a Môa do Katendê, Cidinha da Silva, Godo e Irma Piñeda. A todas as pessoas do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô de São Paulo, especialmente ao mestre Plínio.

    Ao Subnúcleo de Psicologia e Relações Étnico-Raciais do CRP-SP.

    Gracias a los pueblos de Oaxaca, especialmente a los mixes de Santa Maria de Tlahuitoltepec (Damian y su família). A los zapotecos de Juchitán, la UPN de Ixtepec y todos de la sección 22. A los mazatecos de Hualtla de Jimenez (Melquiades, Lupita, Haida y la rádio comunitária Nhãndia). A los compas de San Cristobal de las casas en Chiapas. El Proyeto PAPIITI del Centro de Investigaciones de América Latina y el Caribe-Unam, especialmente Jesús Serna Moreno e Rosalva Ros. A los danzantes del Sol del Kalpulliz de Jalapa. A Kay Cid y su família. Lucia Reyes. Cesar Ortega. Nayeli e Ivan Lopez.

    Prefácio

    O que a capoeira angola tem a ver com grupos indígenas do sudeste mexicano? Em que a tradição africana conversa com a tradição indígena? Essas perguntas balizaram a pesquisa que este livro nos apresenta e nos apontam um caminho único: a apropriação crítica da tradição como exercício de autonomia. Não apenas dos sujeitos envolvidos nesse processo diretamente, mas de toda a comunidade a que os processos se referem. Quando Alessandro apresenta a capoeira angola e as vozes de mestre Môa do Katendê e de Cidinha da Silva como narrativas de uma tradição afro-brasileira, assim como os mixes e zapotecos de Oaxaca em interlocução com a poética zapatista representantes de uma tradição indígena, ele não fala de qualquer tradição. O autor nos apresenta uma constituição psicossocial de tradições e lutas coletivas que resistem há séculos. Essa resistência vai sendo poetizada na narrativa que aqui aparece em formato de livro, provocando no leitor as sensações do caminho percorrido pelo pesquisador, mas também tornando sensível as tradições na figura de sua própria ancestralidade. O debate aqui travado certamente é por uma continuidade de uma psicologia crítica com um projeto ético-político elaborado no cotidiano popular e seus contextos.

    A insistência dos colonizadores pela aniquilação das tradições dos chamados colonizados mostra a força e a importância dessas tradições como emancipação, reconhecimento e luta. Mas tradições não se tornam resistências por si só. Segundo o autor, a apropriação crítica da tradição é que dá aos povos a possibilidade de enfrentamento criativo dos desafios do mundo contemporâneo perante os interesses atualizados da colonização. Essa afroamericalatinidade em luta é o que vai fundamentando uma tradição crítica interpretada pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipação, levando os indivíduos a se posicionarem livremente em relação a suas tradições, ainda que estas apresentem elementos contraditórios, conflitivos e até mesmo opressivos. Nesses percursos de discordâncias, só é emancipatória uma tradição que possa oferecer habilidade no lidar com as contradições, emprestando esse manejo para o campo dos afetos tanto quanto das expressões políticas.

    Neste livro entendemos que a tradição, acolhida na autonomia, oferece contorno, aconchego. Num mundo cada vez mais tomado pelo lógica privatista, onde tudo que é sólido desmancha no ar, a manutenção ou encontro da tradição oferecem limites e produzem sentidos para nossas existências, às vezes tão sufocadas pela captura de heteronomias. A memória ressignifica enquanto o tempo esculpe a história. A relação de um coletivo com sua tradição é permeada por contradições, podendo ser tensa, indicando desafiante convívio entre o residual e o emergente. O que nos indica a identidade afro-latina é justamente parte desse conflito, tornado visível na produção psicossocial de uma subjetividade capaz de confrontar os modos aprisionadores de viver. Primordial para pensar a tradição e sua apropriação é a atenção com que o autor nos leva nesse percurso. Questionando um mundo administrado e disciplinado, o livro apresenta nossa afroamericalatinidade sem o elogio gratuito à mestiçagem e como aposta de elaboração para alguma sabedoria. É um esforço de descolonização. Aponta sentidos de cuidado para que a tradição não seja levianamente acrítica, reproduzindo a mesmice e discursos de resignação derrotista.

    É isso que esse trabalho demonstra. É lembrar para evitar o esquecimento conveniente. Manter o combate, mas também garantir lugar para o descanso lúdico. O autor é desses psicólogos caboclos que amam a cultura popular e invoca a luta dançada e a dança lutada. Aqui temos um texto que implica invenção e retomada numa espiral criativa e inusitada. Talvez seja essa uma tradição desse povo de Exu. Povo da mistura de caminhos, da tensão da resistência. Sentidos emancipatórios. Brasil e México afro-índio-latinos se aproximam neste trabalho com poesia e força. Como nos diz Alessandro O lugar da nossa tradição é a busca da dignidade coletiva.

    Myrna Coelho

    Psicóloga e doutora pelo Prolam/USP

    Professora do Instituto Sedes Sapientae

    Sumário

    Agradecimentos

    Prefácio

    Introdução

    Da necessidade deste livro

    O sintagma identidade–metamorfose–emancipação enquanto justificativa

    Parte I - Concepções teóricas e algumas notas de campo

    Capítulo 1 - A narrativa e a tradição

    Narrativa

    Um lugar para os posicionamentos da tradição

    Capítulo 2 - Apontamentos e aproximações da metamorfose humana e a memória

    Um lugar para a memória

    Marcações e o que se conserva dos pressentimentos e anunciações

    Pertencimento, repetição e crítica: o enraizamento e o contemporâneo

    A apropriação crítica da tradição

    Capítulo 3 - O emocionar e a tradição: uma reflexão sobre a Capoeira Angola

    Capoeira com o humor que liberta

    Com o corpo que expressa

    A política que resiste

    A respeito do conflito

    Indo em direção ao mar

    Capítulo 4 - Uma palavra que é cor: algo de uma história mexicana reparadora

    Os zapatistas pela poesia e os excessos do esquecimento

    A dificuldade para conhecer

    A Flor da palavra

    Capítulo 5 - Considerações a respeito da sabedoria

    Conhecimento e compreensão como síntese

    A sabedoria e a experiência

    O problema da mestiçagem para a sabedoria

    Ritmo e mais algumas considerações sobre o corpo

    O esquecimento

    Parte II - Conhecendo as metamorfoses do bom combate e a luta por reconhecimento do Brasil afrodescendente e do México indígena

    Geografias

    Capítulo 1 - Territórios e histórias brasileiras

    Algumas considerações para a superação do ressentimento como parte da luta para o reconhecimento negro

    Vozes da tradição: Brasil

    Entrevista com mestre Môa do Katendê

    Entrevista com Cidinha da Silva

    Capítulo 2 - Territórios e histórias mexicanas

    A vida no México

    Vozes da tradição: México

    Entrevista com Irma Piñeda

    Entrevista com Godo

    Considerações finais

    Referências

    Introdução

    Seguir o caminho, cumprir o preceito,

    salvar o respeito guardar o segredo

    e manter o Axé.

    Muniz Sodré

    Liberdade: Diz Durito que a liberdade é como o amanhecer. Alguns o esperam dormindo, mas outros acordam e caminham durante a noite para alcançá-lo. Eu digo que nós, zapatistas, somos viciados em insônia e deixamos a História desesperada. Luta: O Velho Antônio dizia que a luta é como um círculo. Pode começar em qualquer ponto, mas nunca termina. História: A História não passa de rabiscos escritos por homens e mulheres no solo do tempo. O poder traça o seu rabisco, elogia-o como escrita sublime e o adora como se fosse a única verdade. O medíocre limita-se a ler os rabiscos. O lutador passa o tempo todo preenchendo páginas. Os excluídos não sabem escrever… ainda.

    Subcomandante Marcos

    Os debates em torno da tradição e da identidade, independentemente de sua origem, remetem-nos a problemas da autonomia e da captura dos sujeitos que fazem parte da tradição. Este livro faz referência às possibilidades de apropriação crítica da tradição na América Latina. Para tanto, há duas questões a serem trabalhadas: um ponto marcado pela tradição afro-brasileira da capoeira angola e outro ponto marcado por grupos autonomistas e indígenas mexicanos. Essas duas expressões geográficas, localizadas ao Norte e ao Sul da América Latina, voltaram a ser protagonistas de lutas e possibilidades de emancipação entre sociedade e política nas últimas décadas. A partir daí, meu principal interesse na presente pesquisa é compreender a relação entre tradição e metamorfose numa subjetividade produtora de autonomia a partir de ambas as manifestações.

    Percebo o acúmulo de críticas à própria ideia de identidade quando esta remete a cristalização dos papéis sociais e a um modelo único para entender e falar sobre seres humanos. Com a tradição é semelhante, especialmente quando entendemos a repetição de determinados aspectos da cultura (falarei sobre esse aspecto posteriormente). Entretanto, mesmo quando concordo com essas críticas, não posso deixar de notar o crescente interesse no debate sobre as políticas de identidade por parte da comunidade acadêmica, governos e sociedade civil (Ciampa, 2005).

    As questões do reconhecimento e de seus processos de luta são cada vez mais evidentes nas sociedades contemporâneas. Tomemos como exemplo o que vem acontecendo em lugares como México e Brasil¹ nas últimas décadas. Neste último caso, especialmente com a criação dos chamados Pontos de Cultura,² com as ações afirmativas (Moehlecke, 2002 e Silvério, 2002) e com o reconhecimento das comunidades tradicionais ou/e originárias (quilombolas, indígenas, etc.), vemos debates que, em alguma proporção, dizem respeito às lutas por reconhecimento, tradições, memória e autonomia.

    Nesse momento é preciso então dizer como surgiu a ideia para este livro. Defendi meu mestrado numa sexta-feira de um mês de carnaval em 2007 e, dois dias depois, tomei o avião para Nova York. O destino final era o Japão, terra que, há muitos anos, desejava conhecer. Antes, porém trabalhei como educador e professor de capoeira em Peekskill – NY, graças a um convite de outro professor, Scott, um antigo conhecido com quem havia trabalhado no Brasil anos atrás. Retornar a estrada para além das fronteiras nacionais tornava-se realidade. Tomei a decisão de viver no Japão sem data certa para retornar ao Brasil.

    Durante esse período, estive presente em oito países: Estados Unidos, Japão, Inglaterra, Irlanda, Espanha, Canadá, China e África do Sul, em dezenas de cidades. O objetivo era, além de encontrar meios para minha subsistência, conhecer as comunidades locais, alguns projetos de educação comunitária e grupos de defesa de direitos humanos diversos, principalmente de imigrantes. Era uma ação ativista. Conheci e pude colaborar com grupos como No Borders, No Más Muertes, Independent Media Center e, em outros casos, com atividades de educação e arte que envolviam alguma matriz africana.

    A capoeira angola sempre foi uma importante porta de entrada em todos os países nos quais estive. Ser brasileiro, conhecer e praticar a capoeira possibilitavam uma imersão rápida nos grupos sociais locais espalhados pelo mundo. Essa identificação como capoeirista gerava uma grande empatia entre determinados grupos sociais, mesmo quando existia uma limitação linguística ou imposta pelas diferenças culturais. O que me leva a pensar que a capoeira proporciona uma comunicação particular relacionada a sua tradição, independentemente da nacionalidade de seus praticantes. Fui notando que, em uma roda de capoeira fora do Brasil, o senso de pertencimento àquela arte era mais importante do que os países de origem das pessoas.

    A capoeiragem, junto com o ativismo, ajudava meu trânsito por terras distantes, em culturas completamente diferentes da minha. O interessante é que a percepção dessa inserção, mediada por caracteres da tradição no pertencimento à capoeira, era facilmente notada e compartilhada por outros imigrantes, particularmente, pelos brasileiros que encontrei ocasionalmente. Conheci algumas pessoas que, quando no Brasil, nunca cogitaram a possibilidade de praticar capoeira ou de se envolver com manifestações populares e, depois de certo tempo distantes de suas casas, passaram a participar de algum desses grupos, a fim de estarem junto às muitas comunidades brasileiras espalhadas pelo mundo e, manterem sua identificação como brasileiros.

    Entretanto, isso tende a ser uma condição de muitos imigrantes. Estes se detêm às suas origens, relutam em deixar suas raízes e, com grande frequência, realizam comparações entre o que foi e conhecia com o que é e passam a conhecer por seu trânsito em outros territórios. Em significativa proporção pensam em voltar à terra de origem, mas enquanto isso não ocorre, é a memória que lhes toca e seus corpos passam a representar a pátria.

    Com poucas exceções, ninguém migra por capricho ou mero desejo por diferença. Contingentes econômicos, políticos, sociais, e outros mais, juntos ou separadamente, levam indivíduos, famílias e às vezes comunidades inteiras a se deslocarem geograficamente para terras distantes, estranhas a sua cosmovisão, sem previsão de regresso, sem garantias para o futuro. Tais experiências deixam marcas na subjetividade que não podem ser desfeitas.

    Em minha condição de imigrante, como dekassegui no Japão, trabalhei como operário em fábricas de plástico em Ogaki e metalurgia em Tóquio. Ensinei português, distribui ilegalmente panfletos de escolas de inglês, trabalhando para poloneses mafiosos na Oxford Street, em Londres. Fui garçom, pintor, jardineiro e ajudante geral em Nova York e no Arizona. Camelô e músico nas ruas de Barcelona. Fui afetado por essa condição e compartilhei muitas dessas experiências com vários imigrantes latinos, africanos e asiáticos por aproximadamente dois anos de minha vida, e foi a partir daí que surgiu este livro.

    Mesmo quando eu adquiria novas personagens para desempenhar essa identidade imigrante, sempre mantinha o Alessandro–capoeirista–ativista. Mantinha minha rotina de treinos e, sempre que possível, ensinava a capoeira. Também participei de inúmeras marchas e atividades políticas em todos os países em que estive, excetuando-se China e África do Sul. Desse modo, reinventava minha brasilidade, minha latinidade, minhas ideologias. Era eu um estranho, mas não de mim mesmo.

    Da necessidade deste livro

    Pensar em movimentos contemporâneos que visam à transformação social na América Latina é considerar três grandes correntes político-sociais de movimentos nascidos nessa zona étnica e culturalmente diversa: as comunidades eclesiais de base, vinculadas à teologia da libertação; a insurgência indígena, portadora de uma cosmovisão distinta da ocidental e, o guevarismo, inspiração da militância revolucionária. Seus pensamentos e ações convergem para uma enriquecedora mestiçagem, sendo esta uma das características que, de acordo com Zibechi (2008), diferencia os movimentos latino-americanos de outros do mundo.

    Seus movimentos e lutas estão inseridos em culturas que mudam e, com elas, também transformam suas tradições. Muitas são (re)inventadas e outras abandonadas. Esta afirmação se apoia na noção de que cada ser humano carrega questionamentos do processo sócio-histórico, daquilo que se convencionou chamar de tradição. Em determinados momentos, olhamos para a tradição com saudosismo, um lugar desejado, familiar. Em outros, como forma de resistência, ou ainda, como alienação, controle e dominação. Uma dialética entre a autonomia e a heteronomia, a emancipação e a opressão se faz presente. A apropriação crítica da tradição possui algumas particularidades e esse é meu interesse. Afinal, como pensar a dinâmica de algo que não se conclui, mas, ao mesmo tempo, define-se por meio de sua repetição?

    Por meio desta publicação,³ proponho um encontro: uma interlocução entre uma manifestação afro-brasileira, caracterizada pela memória dos combates de escravos (passado) e seus descendentes (presente) na prática da capoeira angola, e a luta dos camponeses mestiços e indígenas de oaxaca e chiapas no México.

    Importante pensar os descendentes no particular da condição racial (negro e índio) e o sentido de pertencimento em relação ao coletivo e o tempo histórico das lutas. Hoje, por exemplo, a capoeira é manifestação cultural e traz a inevitável pergunta: em que medida conserva essa luta?

    Fará diferença se entendermos essas duas condições de luta enquanto movimento, ou manifestação ou como resistência. O que parece acontecer é uma combinação entre essas possibilidades. Esse encontro revela uma mesma necessidade de luta por reconhecimento na América Latina e semelhanças em seus processos de emancipação. Compreendem ações políticas que incorporam elementos tradicionais para desenvolver ou como estratégias de resistência. Muitos ativistas podem encontrar algo bastante original nessas práticas. Talvez algumas manifestações da cultura local, no sentido de tradicionais, ofereçam uma outra visão de participação social e resistência, com provocações e enfrentamentos únicos e funcionais para a manutenção de sentidos emancipatórios no mundo da vida (Habermas, 1989). Se tais práticas são expressões de resistência, resiste-se a que ou a quem?

    É importante apontar duas possibilidades: primeira é estrutural e ideológica, enquanto a segunda, subjetiva e afetiva. A primeira possibilidade de resistência diz respeito a uma forma de protagonismo contra o capitalismo, cujo interesse é pensar alternativas para superar a ordem neoliberal. Como exemplos, pode-se citar inúmeros movimentos sociais antissistêmicos contemporâneos: o surgimento da luta zapatista no México, o Ya Basta!, o Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil, o Movimento de Resistência Global, a contínua luta indígena, os piqueteros argentinos, as fábricas ocupadas, o movimento estudantil chileno, o Fórum Social Mundial.

    Até mesmo o momento das eleições presidenciais de Chavez, Lula, Morales e Correa pode ser considerado processos políticos que demonstram uma nítida insatisfação com a estrutura conservadora de um modo de existir do capital em território latino-americano. Um ciclo que não surgiu do nada, mas que foi maturando lentamente durante os últimos quarenta anos do século XX para se coagular e irromper, de um modo mais permanente e orgânico, nas duas últimas décadas recém transcorridas (Rojas, 2008). Resiste-se ao capitalismo, à sua selvageria devastadora diante do processo de humanização, à sua produção de desigualdade, à sua arbitrariedade, às suas práticas genocidas, à fragmentação, ao seu egoísmo e à instituição de seu totalitarismo econômico e ideológico.

    O segundo ponto, da subjetividade, é instaurado por um protagonismo de caráter cultural. Em uma realidade cada vez mais conflitiva às aproximações interpessoais e aos afetos, os modos de celebrar, cantar e dançar latinos são recursos simbólicos que se difundem e irradiam para o restante do mundo.

    No cotidiano podemos perceber o interesse e a abertura sobre esse modo particular de ser latino em maior interlocução com outras culturas (ibid.). Como exemplo, podemos citar o consumo de cervejas mexicanas, da salsa, do samba, dos ritmos caribenhos. Até algo mais ilustrativo, como a aceitação do espanhol como idioma oficial nos trabalhos cotidianos da ONU, ou do crescente número de trabalhos acadêmicos de pesquisadores latino-americanos em congressos pelo planeta. Igualmente, o surgimento de novos departamentos de estudos latino-americanos em importantes universidades pelo mundo, assim como, a crescente tradução de autores latinos para outras línguas.

    Afinal, é no cotidiano que as utopias vão sendo inventadas, revisitadas e marcadas pelo desejo de autonomia. Eis as figuras do pachuco mexicano e do malandro brasileiro, que insistem em ocupar o imaginário e expor as contradições de suas sociedades, na relação dialética entre admiração e condenação, subversão e disciplina. Personificado no pachuco chicano, uma insubmissão que não míngua e, na figura do malandro, uma vadiagem prazerosa que permanece mesmo com todo esforço da ordem instrumental para aprisionar o corpo e o pensamento.

    Os efeitos psicossociais considerados nesse cenário se valem de aspectos subjetivos da memória e da contestação como fatores fundamentais para responder questões pertinentes à identidade e à metamorfose humana em um sentido emancipatório, isto na possibilidade de construção crítica da tradição.

    Considerando o movimento dos trabalhadores, entre outros da sociedade civil, como dizem Rivas e Gabriel (2008), nos damos conta de que, ao longo de todo o continente, quem tem resistido centenas de anos, e continua a fazê-lo, são os povos indígenas. Esse índio que nos habita enquanto latinos é quem nos ajuda a respirar, caminhar e pensar diferente. Assim, as autonomias, sejam elas movimentos coletivos ou necessidades particulares, são demonstrações ativas, palpáveis, que comprovam uma resistência secular que se mantêm viva, em desenvolvimento, e que continuam a fazer propostas às sociedades atuais (Albertani, 2011).

    Percebemos manifestações brasileiras em diversos movimentos sociais e culturais, quer seja no quilombo, nas reuniões de uma escola de samba, numa roda de capoeira ou no terreiro de candomblé. Lugares estes em que a sociabilidade é marcada por ações prévias, mas, ainda assim, espontâneas, de resistência às fragmentações do capitalismo contemporâneo (Malandrino, 2006).

    O contato, a experiência com essas manifestações de luta, produziu, em mim, inúmeras questões a respeito do encontro da tradição com a inovação, do residual com o emergente. Solidariedade, diversidade e participação direta são fundamentais para que os espaços citados possam existir, mas serão traços de emancipação? Indicarão autonomia? Como ocorrem? Na medida que se buscam respostas para essas questões, observam-se a delimitação de problemas oferecidos pelo senso de comunidade e os processos de emancipação dos movimentos sociais. Tal posicionamento crítico é importante para que não se erga um elogio gratuito à tradição, pois, se o foco é construído por sua exclusiva valoração, facilmente pode-se perder a construção analítica dessa perspectiva latino-americana de luta e autonomia.

    Dessa maneira, é pertinente dizer algo mais sobre a tradição. Esse é um tema bastante controverso e de difícil fixação, pois remete simultaneamente à autonomia dos indivíduos e às imposições do coletivo, além de contar com pouco consenso entre pesquisadores. Mesmo ainda não dizendo quem é o sujeito, refere-se a um recurso, que permite explicar o mundo. Diz respeito a como as pessoas percebem a vida, especialmente, o lugar de sua memória, com dilemas e escolhas a respeito da liberdade, do arbítrio e da construção e reprodução da própria tradição. Segundo Grubacic:

    A palavra exata tradição tem dois significados históricos: a saber, um é mais familiar e mais difundido, e tem o significado de folclore – histórias, crenças, costumes e modelos de comportamento – enquanto o outro significado é menos familiar e pode ser entendido como: prosseguir, transmitir, articular, discutir, aconselhar. E por que eu chamo a atenção para, e também enfatizo bastante, essa diferença na interpretação da palavra tradição? Justamente por causa da possibilidade de o termo tradição poder, na história dos conceitos, ser compreendido de duas formas diferentes. A primeira (provavelmente a mais comum) é que a tradição é reconhecida como uma estrutura acabada que não pode ou não deve ser modificada jamais, e deve ser preservada em seu estado íntegro e prosseguir inalterada no futuro. Dessa maneira, uma compreensão da tradição está relacionada àquele elemento da natureza humana que é conservador, e que está propenso a um comportamento estereotipado, Freud diria ainda a compulsão da repetição. O outro significado da tradição, que eu defendo aqui, diz respeito à nova e criativa forma de reviver a experiência da tradição. Assim como forma, digamos, imediata, positiva, de transmissão, foi executada do outro lado da natureza comum, provisoriamente considerada revolucionária, ao longo das linhas da verdade paradoxalmente expressa: uma esperança de mudança e, ao mesmo tempo, uma necessidade salubre de permanecer no mesmo. (2006, p. 19)

    Essa reflexão faz observar dois aspectos importantes. Refiro-me, primeiramente, a possibilidade de identificar uma quebra de tradição. Onde e como ocorreria? Quando certa ruptura poderia significar o exercício ou ganhos em termos de autonomia? O segundo aspecto trata-se do encontro com a exterioridade das culturas. E, nesse caso, é importante salientar que devemos estar atentos para não avaliar a diferença cultural como algo imutável, logo que é produção histórica. A estereotipia do índio na floresta – que não pode se apropriar da tecnologia do branco urbano com o risco de não ser mais índio – é um exemplo do senso comum que ignora a matriz da tradição.

    Afinal, assim ocorre parte da folclorização. Aquele que não se insere no mundo do outro, num universo simbólico paralelo e estranho ao seu, apreende toda possibilidade de mudança e movimento como sinônimo de abandono e de perda de identidade. Por isso, não me interessa e não concordo com os discursos que se ocupam em resgatar a identidade ou em salvar a tradição. Não farei outros apontamentos sobre o folclore, a cultura popular e de massa e sua relação com a subjetividade por essa perspectiva, apesar da relevante consideração que esse tema instiga.

    Seguir sinalizando a subjetividade também não é tarefa simples, já que, entre diferentes proposições conceituais, como psicanalítica, fenomenológica, comportamental, não se compreende suas possibilidades e constituição do mesmo modo. É importante deixar claro o conceito e o modo que venho entendendo a subjetividade, tal qual o sentido atribuído por Arditi (2011), quando se refere a uma subjetividade que é a afirmação e negação simultânea das identidades.

    Costa (2005, p. 18) observa que as

    identidades se constroem em exército de memória, na repetição, reiteração de categorias que têm significados para a comunidade. Assim, é isso que forma e sustenta a tradição: a conservação de determinadas categorias significativas para a comunidade e que se constitui um forte indicador de coesão social.

    Aproximamo-nos, então, do que diz Ciampa (1997) ao debater os aspectos pressupostos da identidade. Nesse sentido, corroboro que este é um trabalho que busca compreender os sentidos emancipatórios contidos na metamorfose da tradição. Reconhecer os movimentos qualitativos da identidade requer que sua conceituação­ seja móvel, apropriada à sua dinâmica processual e não estática, servindo a cultura em sua função de nos humanizar (ibid.).

    Diz Costa (2005) que o processo de produção da cultura popular só é esclarecido se observadas normas de funcionamento das comunidades narrativas onde esta se processa. Apesar de estar de acordo com a necessidade de entender as narrativas produzidas nas comunidades, sempre se deve considerar a atuação do processo sócio-histórico em sua produção e que ele não está sujeito a determinismos herméticos. A tradição é repetida, mas também modificada para sua própria continuidade.

    Desse modo, precisamos observar, junto aos processos de criação, manutenção e atualização cultural, aquilo que surge na cultura popular ou tradicional como sua recepção, tanto de outros elementos estranhos a ela como por atualização simbólica dos padrões que a caracterizam. A maneira de aceitar seus simbolismos e oferecer recursos simbólicos e materiais à visão de mundo da comunidade faz a dinâmica da tradição ser própria, possuir um movimento que a diferencia de outras.

    Partimos, assim, reconhecendo que o singular contém o universal, tema suficientemente discutido na psicologia social e que ainda assim aparecerá mais adiante. Saber das realizações autônomas possíveis na tradição, e saber como isso é feito, passa a ser uma questão de receptividade. Deve-se considerar, no momento de sua anunciação, que tudo aquilo que se transmite na tradição poderá ser recebido e apropriado pelos membros de uma determinada comunidade. Revela-se, sobretudo, a memória na tradição e sua função de mediação entre passado e presente, já que o risco de a tradição estabelecer uma má afinidade espreita a todo momento os processos de vinculação tradicional e a construção identitária.

    Na excelência deste exercício de aproximação entre passado e presente, tradição e contemporaneidade, a memória não registra tudo e de modo igual a todos. A memória produz e não simplesmente reproduz, como destaca Bosi (2003). Ela é ativa. Há certa capacidade em nós humanos de realizar escolhas narrativas, seleções de como e o que contar, a depender dos propósitos e circunstâncias da interlocução. Aquilo que consideramos tradição e, consequentemente, a memória de quem se insere nela, na maioria das vezes, é uma pequena parte do que vemos, um fragmento, um recorte e não uma totalidade. Por isso, a tradição se percebe nos rituais, nas grandes festas, cerimônias e em determinados comportamentos, mas não o tempo todo e em todo lugar. A tradição carece de ser reapresentada, presentificada pelo humano.

    Considerando o conceito de tempo em Plotino (Enéadas), para quem só existe o presente, pois todo o restante (passado e futuro) só pode decorrer dele, a função da tradição poderia ser compreendida como conjunto de obras textuais, condutas, músicas, expressões que consolidam a integração de um grupo social hoje. Porém, aqui, ela é também lugar de mediação das experiências sociais e intergeracionais. Pois, assim, a tradição revela sua dupla função: a integração social e a mediação das experiências cronológicas, ou seja, uma estratégia que revela uma forma de compartilhar sentidos.

    Eis a importância do esquecimento também, não enquanto falha da memória, mas como uma brecha para a criação, para a inovação (Costa, 2005). Da tradição não se lembra, mas se relembra, se refaz, ressignifica. Nela se vive a atualidade da lembrança, não o passado tal qual. Esquecer é rejeitar o estranho em determinado contexto e reside nesse ato a tensão entre aquilo que seria residual e o que podemos considerar emergente.

    Talvez a mesmidade (Ciampa, 1997), diferentemente da mesmice que antes de mais nada é aparência da simples repetição tal e qual, ofereça sentidos de pertencimento em que seja possível a autonomia na tradição. Na mesmidade se constrói a singularidade. Conceitos como metamorfose, emancipação, mesmidade, mesmice, indivíduo, personagem estão ao longo da obra de Ciampa, e suas conceituações auxiliam a trabalhar aproximações sobre o pertencimento e o esquecimento, a contextualização do contemporâneo na tradição, e principalmente, a apropriação crítica da tradição e sua possibilidade de emancipação. Saliento que esses conceitos não recebem capítulos separados neste livro. Eles serão discutidos ao decorrer de todo o trabalho.

    Porém, o eixo teórico e o conceito mais relevante neste estudo é o do sintagma identidade–metamorfose–emancipação, proposto por Ciampa (2005). Sintagma é um segmento linguístico que expressa uma relação de dependência. Nessa relação de dependência, está suposta a existência de um elemento determinado e outro determinante (ou subordinado), estabelecendo um elo de subordinação entre ambos. Cada um desses elementos constitui um sintagma. Na concepção original de sintagma, essa noção era utilizada para se referir a qualquer segmento linguístico: a palavra, a sentença e o período. Recentemente, o termo sintagma é comumente empregado para se referir

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