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SUR Lica ae a ee, Ww nail | livro de interesse MARX: A TEORIA DA ALIENAGAO IstVAN MészAROs O problema da alienagdo vem sendo debatido hé muito tempo, sem que diminua o interesse por ele suscitado. Pelo contrério: a julgar por aconte: cimentos histéricos recentes e pela orientagdo de muitos de seus parti- cipantes, a critica da alienacdo parece ter adquirido uma nova premén- cia histérica. Grande parte da discusséo do marxismo, em nossos dias, gira sobre os problemas da alienacdo. Esse estudo mostra como esse conceito de alienagao teve impor- tncia central em todo o desenvolvimento de uma critica da sociedade por Marx, e rejeita a opinido de que existe um “jovem Marx” de orienta- a0 filos6fica, e um “Marx maduro”, preocupado com o determinismo econdmico. O livro divide-se, em sua primeira parte, em trés temas principais: as origens do conceito de alienacdo, desde a antiguidade judaico-cristd até o fim do século XVIII; a génese da teoria da alienagdo em Marx, a partir de sua tese de doutorado e de sua crftica do Estado moderno, e a estrutura conceitual da teoria da alienagdéo em Marx. A segunda parte é dedicada a varios aspectos da alienagao: econd- micos, pol{ticos, ontolégico e moral, e os aspectos estéticos. E nessa Parte que vamos encontrar o exame de varios problemas de grande inte- resse para a crise do mundo atual, como o trabalho alienado ea nature- za humana, as relagdes de propriedade, a objetificagdo capitalista e a liberdade, a producdo e o consumo em sua relacdo com a arte. Na ter- ceira e Gitima parte o autor examina a significag&o contemporanea da teoria da alienagdo em Marx. ZAHAR EDITORES a cultura a servico do progresso social (continuagao da 12 aba) Escrito numa linguagem irénica, que por vezes che- ga a ser mordaz, e num estilo original e muito pes- soal, este livro €, portanto, uma tentativa de res- Posta aos argumentos desenvolvidos por Althusser notadamente em A Favor de Marx e Ler O Capital, ambos publicados por esta editora. Colocando-o a0 alcance do leitor brasileiro, acreditamos estar pro- porcionando a este os meios de formar, por si mes- mo, um jufzo sobre as controversas opinidées do pensador francés. E.P. THOMPSON foi um dos destacados membros da Oposig&o Democrdtica no Partido Comunista inglés em 1956 e posteriormente um dos fundado- res do movimento conhecido como “New Left’. Foi também diretor da revista esquerdista The New Reasoner. ZAHAR EDITORES a cultura a servico do progresso social RIO DE JANEIRO AMISERIA DA TEORIA “Este ensaio 6 uma intervengdo pol {tica polémica e nao um exercicio académico”, afirma o autor, res- saltando assim o fato de constituir o seu titulo uma aluséo 4 Miséria da Filosofia, 0 devastador ataque de Marx a Proudhon, que constitui um dos classicos desse tipo de literatura pol/tica. A Miséria da Teoria 6 uma critica detalhada do marxismo de Althusser, ou “pratica tedrica”’, foca- lizando em profundidade questdes de epistemolo- gia e de teoria e pratica. Essa critica desenvolve-se a partir de uma série de proposicées, segundo as quais a epistemologia do filésofo francés resulta de um limitado processo académico de aprendizado, ‘onde ndo entra em conisideracdo a experiéncia, ou a influéncia do ser social sobre a consciéncia social. Daf haver nela — na epistemologia — um falseamen- to do didlogo com a evidéncia empirica, inerente a producio do conhecimento e a prépria pratica de Marx, o que leva Althusser a cair, repetidamente, em modos de pensamento designados como “idea- listas” pela tradicdéo marxista — e THOMPSON che- ga a chamé-lo de ““o Arist6teles do novo idealismo marxista”. Segundo o autor, o universo conceptual de Althusser ndo dispde de categorias adequadas a explicacdo da contradic#o, mudanca ou luta de classes, 0 que provoca um siléncio em relacéo a categorias importantes como o “econdmico” e a “necessidade”. As conseqiiéncias politicas praticas do pensamento de Althusser sao definidas como um neo-stalinismo ainda mais perigoso do que o stalinismo, porque se disfarca com o refinamento intelectual e uma apa- rente liberalidade. THOMPSON desenvolve ainda uma argumenta¢do construtiva em favor de uma tradigéo socialista alternativa, cujo método é emp/- rico e autocr/tico, e totalmente aberto 4 pratica criativa da Historia. (continua na 23 aba) E. P. THOMPSON A MISERIA DA TEORIA ou um planetario de erros uma critica ao pensamento de Althusser Tradugao de Waltensir Dutra ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO Titulo original: The Poverty of Theory Tradugdo autorizada da primeira edigao inglesa, publicada em 1978, por The Merlin Press, de Londres, Inglaterra. Copyright © 1978 by E.P. Thompson Direitos reservados. A reproducéo nfo autorizada desta publicacdo, no todo ou em parte, constitui viola¢#o do copyright. (Lei 5.988) Edigo para o Brasil. Néo pode circular em outros paises. Capa: José Rios Composigao: Zahar Editores 1981 Direitos para a edi¢do brasileira adquiridos por ZAHAR EDITORES S.A. Caixa Postal 207 ZC-00 Rio que se reservam a propriedade desta versao Impresso no Brasil INDICE Agradecimentos ... 0... cece cece cece eee eee eeee 7 1 A Pratica do Materialismo Histérico . . . 9 at Mapa do Livro 12 il GNVBSO, VOCE EXISE lx snnn x vi olalsia » ihn) wa « «alm eV sdacice 13 IV A Epistemologia de Althusser .......-..00.020e0e0 seen 18 v Tema Histériauma Teoria? 0.6.6 cee cee eee ge ome 22 VE OSEMGsofoe Ga ISOC sconce 6 o5s 6655 devine de scene 34 vol Intervalo: A Légica Historica... 2... eee ee 47 Vit OiMelho Butdas' Engels: a cccocce soos so esctoie yesnee asd 62 Xx Da Economia Politica 4 Origem das Espécies .............. 66 x Estrutura e Processo «1.26. - settee eee teers 82 XI A Histériaccomo,Processo). vce:nern os cee su wissen ons eas 97 XI O Motor da Histéria . 117 XU Os Ogros de Althusser . . 137 XIV O Que Falta no Planetario 158 O Termo Ausente: Experiéncia............... ee oleae 180 XVI Teoria e “Marxismos” . 201 xv Autoeritica .... 2... eee OE eS RB ESB ieee EA See soem, 208 Pés-Escrito ..... eae ar 212 Notas . 217 AGRADECIMENTOS Devo agradecer a Philip Corrigan, Alan Dawley, Martin Eve, Julian Harber, Harry Magdoff, Istvan Mészéros e a Dorothy Thompson, pelos seus comen- tarios. Esta critica a Althusser foi também apresentada numa reuniao da MARHO, em Nova York, num encontro da Radical America, em Boston, e em conferéncias em Nova Délhi e Sussex, e agradeco ao puiblico que me ouviu 0 seu apoio critico. Os discfpulos devem aos mestres apenas uma fé e uma suspensaéo tempo- rarias de seu préprio jufzo, até que estejam completamente instrufdos, e nao uma resignacdo absoluta ou um cativeiro perpétuo ... que os grandes autores recebam portanto o que Ihes é devido, e que também o tempo, que 6 o autor dos autores, nio seja privado do que 6 seu, isto é, descobrir mais e mais a verdade. Francis Bacon A Razfo, ou o ratio de tudo o que jd conhecemos, ndo é a. mesma que serd quando conhecermos mais. William Blake Deixar o erro sem refuta¢éo é estimular a imoralidade intelectual. Karl Marx I Vem crescendo, hd vérias décadas, a confianca que a concepgéo materia- lista da Histéria — o primeiro filho intelectual de Marx e Engels — tem em si mesma. Como uma pratica madura (“materialismo histérico”) ela é talvez a mais forte disciplina derivada da tradigao marxista. Mesmo durante minha propria vida como historiador — e no trabalho de meus préprios compatriotas — os avangos foram considerdveis, e constituem supostamen- te avancos no conhecimento. Isto ndo equivale a dizer que esse conhecimento seja finito, ou sujei- to a alguma “prova”’ do cientismo positivista. Nem pretende supor que o avango tenha sido unilinear e sem problemas. Existem discordancias pro- fundas, e problemas complexos ndo so permanecem sem solucdo como nem mesmo foram formulados. E possivel que o proprio éxito do materia- lismo histérico como pratica tenha estimulado uma letargia conceptual, que agora est4 fazendo pesar sobre nés sua necesséria desforra. E isto 60 mais possivel naquelas dreas do mundo de |fngua inglesa onde uma pratica vigorosa do materialismo histérico foi realizada dentro de um idioma de discurso “empirico’ herdado, que é reproduzido por fortes tradi¢Ges edu- cacionais e culturais." Tudo isto é possivel, provavel mesmo. Ainda assim, ndo se deve exa- gerar a questo. Aquilo que um filésofo, com um conhecimento apenas casual da prética historica, pode vislumbrar e rejeitar, com um irado franzir de testa, como “empirismo", pode ser de fato o resultado de arduas con- frontacées, ocorridas tanto nas lutas conceptuais (a defini¢éo das questées apropriadas, a elaboracao de hipdteses e a exposicdo de atribuigSes ideol6- gicas na historiografia preexistente) como nos intersticios do proprio mé- todo histérico. E a historiografia marxista, que tem agora uma presenca in- ternacional, contribuiu de maneira significativa néo s6 para a sua propria autocritica e amadurecimento (de maneiras tedricas) como também para impor (por repetidas controvérsias, muito trabalho intelectual 4rduo e al- uma polémica) sua presenca a historiografia ortodoxa: impor (no sentido de Althusser) a sua propria “problemética” — ou a de Marx — a dreas signi- ficativas da investigacao hist6rica. 10 A MISERIA DA TEORIA Empenhados nessas confrontagées, negligenciamos, ao que suponho, nossas linhas de abastecimento teérico. Pois, no momento em que parecia- mos prontos para novos avancos, fomos subitamente atacados pela reta- guarda — e nao uma retaguarda de “ideologia burguesa” manifesta, mas por uma que pretendia ser mais marxista do que Marx. Da parte de Louis Althusser e de seus numerosos seguidores foi desferido um ataque imode- rado ao “‘historicismo’’. Os avancos do materialismo historico, seu suposto “conhecimento”, tinham repousado — ao que se revela — num fragile cor- rofdo pilar epistemolégico (“empirismo”); quando Althusser submeteu esse pilar a um severo interrogatério, ele estremeceu e esboroou-se em pd; e toda a empresa do materialismo histérico desabou em ruinas 4 sua volta, Nao apenas se revela que os homens nunca “‘fizeram a sua propria historia” (sendo apenas Tréger ou vetores de determinagées estruturais ulteriores) como também que a empresa do materialismo hist6rico — a consecuco do conhecimento histérico — fora ilegftima desde o inicio, uma vez que a “verdadeira” historia é incognoscivel e ndo pode ter sua existéncia afirma- da. Nas palavras de dois pés-althusserianos, cujo mérito é ter levado a I6- gica althusseriana & sua propria reductio ad absurdam, “a Histéria esta condenada pela natureza de seu objeto ao empirismo”’. Mas 0 empirismo, como sabemos, é uma desacreditada manifestacdo da ideologia burguesa: “A despeito das pretensdes empiristas de pratica histérica, o objeto real da hist6ria é inacess{vel ao conhecimento.” Segue-se qui O marxismo, enquanto pratica tedrica e politica, nada ganha com suas associa- ges com a historiografia e com a pesquisa histérica. O estudo da histéria ndo é sem valor apenas cientificamente, mas também politicamente.? O projeto a que muitas vidas, em geragdes sucessivas, se dedicaram € assim denunciado como uma ilusdo (se “‘inocente”) e como algo pior (se ndo). E, ademais, materialistas historicos de minha propria geracdo tem tardado a tomar conhecimento da dentincia abjeta de que foram vitimas. Continuam trabalhando ao seu jeito antigo e condenado. Alguns esto ocu- pados demais para ter lido as acusagdes que Ihes foram lancadas, mas os que leram parecem ter reagido de duas maneiras. Muitos olharam negligen- temente para o antagonista, vendo-o como uma apari¢do fantasmagérica, um monstro intelectual que, se fecharem os olhos, ndo tardard a desapare- cer, Talvez tenham razo na primeira suposic¢ao — a de que o “marxismo"” althusseriano é um monstro intelectual — mas ele nao desaparecer4é por esse motivo. Os historiadores devem saber que as monstruosidades, se tole- radas — e mesmo lisonjeadas e alimentadas — podem evidenciar uma es- pantosa influéncia e longevidade. (Afinal de contas, para qualquer espirito racional, a maior parte da histéria das idéias é uma histéria de monstruosi- dades.) Este monstro particular (argumentarei) esta agora firmemente PRATICA DO MATERIALISMO HISTORICO il instalado numa determinada couche" social, a lumpen-intelligentsia bur- guesa? : aspirantes a intelectuais, cujo preparo intelectual amador{stico os deixa desarmados ante absurdos evidentes e equivocos filoséficos elemen- tares, e cuja inocéncia na prética intelectual os deixa prisioneiros da pri- meira teia de argumentacao escoldstica que encontram; e burgueses porque ainda que muitos deles desejassem ser “'revolucionérios”, so eles préprios os produtos de uma determinada “conjuntura” que rompeu os circuitos entre a intelectualidade e a experiéncia pratica (tanto em movimentos pol/f- ticos reais como na segregagao efetiva imposta_pelas estruturas institucio- nais contempordneas), e portanto sdo capazes de desempenhar psicodramas revolucionérios imagindrios (nos quais um suplanta 0 outro na adogéo de posturas verbais ferozes), quando na verdade recaem numa velh(ssima tra- digdo de elitismo burgués, para a qual a teoria althusseriana esta talhada sob medida. Enquanto seus antepassados eram intervencionistas pol/ticos, eles tendem com mais freqiiéncia a ser diversionistas (encerrados e aprisio- nados em seu proprio drama) ou “exilados internos’.* Sua importancia prética continua, porém, sendo considerdvel na desorganizacao do discurso intelectual construtivo da esquerda, e na reprodu¢dao continuada da divisdo elitista entre teoria e prdtica. Talvez, se sofrermos experiéncias suficiente- mente violentas a monstruosidade acabe desaparecendo, e muitos de seus devotos possam sér recuperados para um movimento pol/tico e intelectual sério. Mas 6 tempo de fazermos alguma forca nesse sentido. A outra reagdo comumente encontrada entre os materialistas hist6- ricos é mais criticével — a de cumplicidade. Tém uma visdo superficial do marxismo althusseriano e ndo o compreendem inteiramente (e nem gostam do que compreendem), mas o aceitam, como “um” marxismo, Nao se pode esperar que os filésofos compreendam a histéria (ou a antropologia, ou a literatura, ou a sociologia) mas Althusser 6 um filésofo, agindo em seu préprio terreno. E algum rigor conceptual é sem dtivida necessdrio; quem sabe poderfamos até mesmo utilizar certos pontos (‘‘superdeterminacaéo”, “instancias’’)? Afinal, somos todos marxistas. Desta maneira, uma espécie de compromisso técito é negociado, embora a maior parte da negociacdo seja feita de siléncio, e toda a negociac¢&o consista em ceder terreno a Althusser. Pois Althusser nunca se dispés a qualquer tipo de compromisso e certamente nao com o “historicismo”, o “humanismo” e o “empirismo”’. Isto 6 censurdvel porque é carente de escrdpulos no que se refere a teoria, Althusser e seus acdlitos questionam, centralmente, o proprio mate- rialismo histérico. N&o pretendem modificd-lo, mas deslocd-lo. Em troca, oferecem um teorismo a-histérico que, ao primeiro exame, revela-se um idealismo. Como entio é possive! coexistirem os dois numa Gnica tradi¢éo? * Camada. Em francés no original. (N. do E.) 12 A MISERIA DA TEORIA Ou uma modificagéo muito extraordinéria vem ocorrendo, nos Uiltimos anos, na tradicéo marxista; ou esta est4 agora se dividindo em duas — ou varias — partes, O que esté sendo ameacado — o que é agora ativamente rejeitado — é toda a tradi¢ao de andlise marxista histrica e politica subs- tantivas, e o conhecimento que vem proporcionando (ainda que provis6- rio). E se, (como suponho), 0 marxismo althusseriano ndo 6 apenas um idealismo, mas tem muitos dos atributos de uma teo/ogia, entdo o que estd em jogo, dentro da tradig&o marxista, 6 a defesa da prépria razao. II Vou apresentar, de inicio, um mapa de onde quero chegar j4 que haver4 inevitavelmente certos desvios, e um recuo sobre minhas proprias pegadas. Vou dirigir minha aten¢do principalmente para Althusser — e para os textos formativos crfticos, A favor de Marx e Ler O Capital* — sem gastar tempo com sua numerosa progénie. E certo que grande parte desta rene- ga seu mestre, e que outra é influenciada apenas em certas dreas de seu pensamento, Espero, porém, que alguns de meus argumentos gerais (em particular sobre “empirismo” e “moralismo’') possam ser vistos como incluindo também esses rebentos, Peco desculpas por essa negligéncia, mas a vida 6 demasiado curta para ir atrés (por exemplo) de Hindess e Hirst em cada uma de suas tocas tedricas. Também néo descerei a li¢a contra um adversdrio mais formidavel, Poulantzas, o qual — com Althusser — repeti- damente deixa de compreender as categorias histdricas (de classe, ideologia, etc.) empregadas por Marx. Em outra oportunidade, talvez. Vamos ficar agora com o Aristételes do novo idealismo marxista. Questionarei as proposigdes seguintes e as examinarei em seqiiéncia. (1) A epistemologia de Althusser é derivativa de um tipo limitado de pro- cesso académico de aprendizagem, e nao tem validade geral; (2) em conse- qiiéncia, ndo tem a categoria (nem um meio de “tratar”’) da “‘experiéncia” (ou a influéncia do ser social sobre a consciéncia social); por isso, falsifica 0 “didlogo” com a evidéncia empfrica inerente 4 producdo do conhecimen- to e a prética do proprio Marx, incidindo portanto, continuamente, em modos de pensar que a tradicéo marxista chama de “‘idealistas”’; (3) em particular, confunde o necessério didlogo empirico com o empirismo, e faz consistentemente uma representacdo falsa (de formas as mais ingénuas) da “As citagdes de Reading capital (Lire le capital) e For Marx (Pour Marx) ser&o fei- ‘tas segundo as traduges brasileiras, Ler o capital (2 vols., 1979), de Nathanael C. Caixeiro, e A favor de Marx (22 ed., 1979), de Dirceu Lindoso, publicadas por esta editora, ¢ abreviadas aqui como LC @ AFM, respectivamente. (N. do T.) MAPA DO LIVRO 13 prética do materialismo histérico (inclusive a propria prdtica de Marx); (4) a resultante critica do “historismo’’ é em certos pontos idéntica 4 critica especificamente antimarxista do historicismo (tal como represen- tada por Popper), embora seus autores delas derivem conclusées opostas. Esse argumento nos desviaré um pouco de nosso caminho. Proporei entio: (5) o estruturalismo de Althusser é um estruturalismo de @stase,) desviando-se do método histérico do préprio Marx; (6) portanto, o univer- so conceptual de Althusser ndo tem categorias adequadas para explicar a contradi¢&o ou mudanga — ou luta de classes; (7) essas debilidades cr/ticas explicam por que Althusser tem de se calar (ou ser evasivo) quanto a outras categorias importantes, entre as quais a de “econdmico” e a de “‘necessida- des’’; (8) segue-se, disto que Althusser (e sua progénie) se véem incapazes de lidar, exceto da maneira mais abstrata e te6rica, com questées de valor, cultura — e teoria polftica. Quando essas proposigdes elementares estiverem estabelecidas (ou, como diria Althusser, ‘‘provadas”) poderemos entdo afastar-nos um pouco de toda essa estrutura complexa e sof{stica. Podemos mesmo tentar outro tipo de “leitura’’ de suas palavras. E, se nao estivermos exaustos, podemos propor algumas questdes de tipo diferente: como essa extraordinéria fratu- ra ocorreu na tradicéo marxista? Como devemos entender o estruturalismo althusseriano, nado na avaliagdo que faz de si mesmo como “‘ciéncia”, mas como ideologia? Quais foram as condigSes especificas para a génese e ma- turag%o dessa ideologia e sua répida reprodu¢%o no Ocidente? E qual a sig- nificago politica desse desmedido ataque ao materialismo histérico? Ill Inicio minha argumentagdo com uma evidente desvantagem. Poucos espe- téculos seriam mais ridfculos do que o de um historiador inglés — e além do mais, um historiador que se acusa abertamente de prdticas empiricas. — Pprocurando oferecer corregdes epistemolégicas a um rigoroso filésofo parisiense. Posso sentir, contemplando o papel a minha frente, as faces obscuras de um piblico em expectativa, mal podendo conter sua _crescente hilari- dade. No pretendo satisfazé-lo. Néo compreendo as proposicdes de Althusser sobre a relagdo entre o ‘mundo real” e o “conhecimento” e, Portanto, ndo me posso expor numa discussdo das mesmas. E certo que tente/ compreendé-las. Através de todo o Pour Marx, a questdio de como essas ‘matérias-primas” do mundo real chegam ao labora- trio da prdtica tedrica (para serem processadas de acordo com as Generali- dades I, II e III) clama por uma resposta. Mas a oportunidade passa em 14 A MISERIA DA TEORIA branco. Voltando-nos para Lire /e Capital, aprendemos, com crescente expectativa, que agora, finalmente, uma resposta seré dada. Em lugar disto, nos 6 dado um anticl{max. Suportamos, primeiro, um certo tédio e mais exasperacao, 4 medida que uma condenagao ritual contra o “empirismo’” 6 empreendida: mesmo um espirito destituido de rigor filoséfico néo dei- xaré de perceber que Althusser continuamente confunde e combina o modo (ou técnicas) empirico de investigagao com a formacao ideoldégica, inteiramente diferente, 0 empirismo, e, além do mais, simplifica suas pr6- prias polémicas caricaturando até mesmo esse “empirismo" e atribuindo- 'he, indiscriminada e erroneamente, processos “essencialistas” de abstra- 940.5 Mas, finalmente, depois de cingtienta paginas, chegamos — a qué? Podemos dizer entéo que o mecanismo de produgéo do efeito de conheci- mento tem a ver com o mecanismo que sustenta 0 jogo das formas de ordem no discurso cient/fico da demonstracao. (LC, 72/1) Trinta e uma palavras. E o resto é siléncio, Se bem entendo estas palavras, elas me parecem vergonhosas, Fize- ram-nos seguir todo esse caminho apenas para nos oferecer uma repeticao, em termos novos, da questao original. Os efeitos de conhecimento chegam, na forma de “‘matérias-primas” (Generalidades 1, que ja s&o artefatos da cultura, com uma maior ou menor impureza ideoldgica), obedientemente como “'o discurso cient/fico da prova” exige. Devo explicar minha objecdo, e, primeiro, qual ndo é a minha objegao, Nao faco restricdes ao fato de que Althusser ndo oferece “garantias’’ de uma identidade entre o objeto “real” e sua representagao conceptual. Essa garantia formal seria provavelmente de eficdcia duvidosa: mesmo um conhecimento casual de filosofia sugere que tais garantias tem um curto prazo de validade e encerram muitas cléusulas em letra pequena que isen- tam © autor de qualquer responsabilidade. Também nao faco restricdes ao fato de ter Althusser abandonado o terreno enfadonho de Procurar elucidar uma correspondéncia ponto por ponto entre tal acontecimento ou objeto material “real” e tal Percep¢ao/intuic¢do/impressao senséria/conceito, Talvez tivesse sido mais honesto se tivesse confessado francamente que, fazendo isto, estava também abandonando algumas das proposigdes de Lenin no Materialismo e Empiro-Critica — mas ele evidencia um respeito religioso até pela menor das silabas de Lenin.® E certamente Poderia ter confessado que, alterando suas bases, estava seguindo, e nao criando moda filoséfica. Nos velhos tempos (supée-se) quando o fildsofo, trabalhando a luz da lémpada em seu estddio, chegava a essa altura de sua argumentacao, Pousava a pena e olhava em volta, a procura de um objeto no mundo real para interrogar. Comumente esse objeto era o que estava mais A mao: a “MESA, VOCE EXISTE?” 15 mesa em que escrevia. ‘Mesa’, dizia ele, “como posso saber que existes e, se existes, Como sei que meu conceito, mesa, representa a tua existéncia real?” A mesa sustentaria seu olhar sem pestanejar, e por sua vez interro- garia o filésofo. Era uma conversa dificil e, dependendo de quem sa(sse vitorioso do confronto, o filésofo se classificaria como idealista ou mate- rialista. Ou 6 0 que podemos supor, dada a freqiiéncia com que as mesas aparecem. Hoje, em vez disto, o filésofo interroga a palavra: um artefato lingiifstico que jé encontra pronto, com uma génese social imprecisa e com uma historia. E aqui comego a encontrar termos para minha objecao. A primeira é que Althusser interroga essa palavra (ou essa “matéria-prima’’, ou esse “efeito de conhecimento”) com demasiada brevidade. Ela existe apenas para ser trabalhada pela pratica tedrica (Generalidades II) até a conceitua- lizagdo estrutural ou conhecimento concreto (Generalidades III). Althusser 6 tdo sucinto em relacdo a lingiifstica e a sociologia do conhecimento quan- to em relacao a historia ou antropologia, Sua matéria-prima (objeto do conhecimento) é uma substancia inerte, complacente, sem inércia ou ener- gia préprias, esperando passivamente sua manufatura em conhecimento. Pode conter grosseiras impurezas ideoldgicas, é certo, mas estas podem set expurgadas no alambique da pratica tedrica. Em segundo lugar, essa matéria-prima parece apresentar-se para o Processamento como fatos mentais separados (fatos, jdées recues, concei- tos banais): e também se apresenta com cautela. Nao desejo agora brincar com as sérias dificuldades encontradas pelos filésofos nessa critica drea epistemolégica. Uma vez que todo filésofo se defronta com elas, devo acreditar que s&o realmente imensas, E, a esse nivel, ndo posso pretender acrescentar nada que contribua para clarificd-las. Mas um historiador de tradic¢do marxista tem o direito de lembrar a um filésofo marxista que os historiadores também se ocupam, em sua prdtica cotidiana, da formagdo da consciéncia social e de suas tensdes. Nossa observacdo raramente 6 singular: esse objeto do conhecimento, esse fato, esse conceito complexo. Nossa_preocupacdo, mais comumente, 6 com miltiplas evidéncias, cuja inter-relacdo 6, inclusive, objeto de nossa investigacado. Ou, se isolamos a evidéncia singular para um exame a parte, ela néo permanece submissa, como a mesa, ao interrogatério: agita-se, nesse meio tempo, ante nossos olhos. Essa agitagao, esses acontecimentos, se estdo.dentro do “ser social’, com freqiiéncia parecem chocar-se, langar-se sobre, romper-se contra a consciéncia social existente. Propdem novos problemas e, acima de tudo, dao origem continuadamente a experiéncia — uma categoria que, por mais imperfeita que seja, é indispensdvel ao historiador, j4 que compreende a resposta mental e emocional, seja de um indiv/duo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repeti¢des do mes- mo tipo de acontecimento. 16 A MISERIA DA TEORIA Talvez se pudesse argumentar que a experiéncia realmente um nivel muito inferior de mentacdo; que ela sé pode Produzir o mais grosseiro “senso comum", “matéria-prima” ideologicamente contaminada, que difi- cilmente se qualificaria para ingresso no laboratorio de Generalidades 1, Nao creio que seja assim — pelo contrério, considero tal suposig¢o como uma iluséo muito caracterfstica dos intelectuais, que supdem que os comuns mortais séo estupidos, Em minha opiniao, a verdade é mais nuangada: a experiéncia é vélida e efetiva, mas dentro de determinados limites: © agri- cultor “conhece” suas estagdes, o marinheiro “‘conhece” seus mares, mas ambos permanecem mistificados em relago a Monarquia e 4 cosmologia, Mas a questao que temos imediatamente a nossa frente nao é a dos limites da experiéncia, mas a maneira de alcan¢é-la, ou produzi-la, A expe- riéncia surge espontaneamente no ser social, mas ndo surge sem pensamen- to. Surge porque homens e mulheres (e néo apenas filésofos) sfo0 racionais, empregar a (dificil) nogdo de que o ser social determina a consciéncia social, como iremos supor que isto se dé? Certamente néo iremos supor que o "ser" esté aqui, como uma materialidade grosseira da qual toda idea- lidade foi abstra(da, e que a “consciéncia” (como idealidade abstrata) estd ali.” Pois n&o podemos conceber nenhuma forma de ser social independen- temente de seus conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser Social reproduzir-se por um Gnico dia sem o pensamento. O que queremos dizer € que ocorrem mudancas no ser social que dao origem a experiéncia ceptual (G I), foram interrogados e separados em Categorias por um rigo- Toso seminério de professores aspirantes (G T1), € Os G Ill est&o na iminéncia de subir a tribuna e Propor as conclusdes do conhecimento concreto, “MESA, VOCE EXISTE?” 17 Mas fora dos recintos da universidade, outro tipo de produgdo de conhecimento se processa 0 tempo todo. Concordo em que nem sempre é rigoroso, N&o sou indiferente aos valores intelectuais nem inconsciente da dificuldade de se chegar a eles, Mas devo lembrar a um filésofo marxista que conhecimentos se formaram, e ainda se formam, fora dos procedimen- tos académicos. E tampouco eles tém sido, no teste da pratica, desprezfveis. Ajudaram homens e mulheres a trabalhar os campos, a construir casas, a manter complicadas organizacées sociais, e mesmo, ocasionalmente, a ques- tionar eficazmente as conclusées do pensamento académico. E isto nao é tudo. A explicagdo de Althusser também deixa de lado a forca_propulsora do “mundo real’, espontaneamente e sem nenhuma ceri- ménia, propondo aos filésofos questdes até entéo inarticuladas. A expe- riéncia nao espera discretamente, fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstragdo convocaré a sua presenca, A experiéncia entra sem bater 4 porta e anuncia mortes, crises de subsisténcia, guerra de trincheira, desemprego, inflaco, genocfdio. Pessoas esto famintas: seus sobreviventes tém novos modos de pensar em relagdo ao mercado, Pessoas so presas: na priséo, pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiéncias gerais, velhos sistemas conceptuais podem desmoronar e novas problematicas podem insistir em impor sua presenca. Essa apresentagdo imperativa de efeitos do conhecimento nao esté prevista na epistemologia de Althusser, que é a de um recipiente — um fabricante que nao se preo- cupa com a génese de sua matéria-prima, desde que ela chegue a tempo. O que Althusser negligencia é 0 did/ogo entre o ser social e a cons- ciéncia social. Obviamente, esse didlogo se processa em ambas as direcSes. Se o ser social néo 6 uma mesa inerte que no pode refutar um fildsofo com suas pernas, tampouco a consciéncia social é um recipiente passive de “reflexdes”” daquela mesa. Evidentemente a consciéncia, seja como cultura nfo autoconsciente, ou como mito, ou como ciéncia, ou lei, ou ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez: assim como 0 ser 6 pensa- do, também o pensamento é vivido — as pessoas podem, dentro de limites, viver as expectativas sociais ou sexuais que |hes séo impostas pelas catego- rias conceptuais dominantes. Foi hdbito entre os marxistas — na verdade chegou a ser considerado uma prioridade metodolégica caracter{stica do marxismo — ressaltar as pressées determinantes do ser sobre a consciéncia, embora nos Ultimos anos uma grande parte do “marxismo ocidental” tenha feito o didlogo pen- der de novo, acentuadamente, no sentido da dominagao ideolégica. Essa questao dificil, com que muitos de nés freqiientemente nos ocupamos, pode ser deixada de lado no momento; de qualquer modo, ela é mais pro- veitosamente resolvida pela andlise hist6rica e cultural do que por pronun- ciamentos tedricos. Se ressaltei o primeiro interlocutor do didlogo, mais que o segundo, é porque Althusser quase nada tem a dizer sobre ele — e 18 AMISERIA DA TEORIA. se recusa a dar ouvidos as exposi¢des dos historiadores ou antropélogos que tém algo a dizer. Seu siléncio, no caso, é tanto culposo como necessé- rio aos seus propésitos, E uma conseqiiéncia de sua determinacdo anterior de fechar qualquer brecha, por menor que seja, pela qual o “empirismo"’ Possa penetrar. IV Facgamos um resumo. A “epistemologia” de Althusser baseia-se numa exposi¢do dos procedimentos teéricos que 6 em todos os pontos derivada nao 86 de disciplinas intelectuais académicas, mas de uma (e no maximo, trés) disciplina altamente especializada.? A disciplina 6, obviamente, a sua prépria: a filosofia. Mas a filosofia de uma tradi¢do cartesiana de exe- gese logica espectfica, marcada em sua origem pelas pressdes da teologia catélica, modificada pelo monismo de Spinoza (cuja influéncia satura a obra de Althusser!), e caracterizada, em sua concluséo, por um didlogo Parisiense entre a fenomenologia, o existencialismo e 0 marxismo. Assim, os procedimentos de que deriva uma “epistemologia” nao sdo os da “filo- sofia’ em geral, mas de um determinado momento de sua presenca. Nao ha razdo para que os filésofos devam necessariamente identificar seus pré- Prios procedimentos com os de todos os outros tipos de produgao de conhecimento, e muitos fizeram penosos esforcos para estabelecer distin- g6es. Trata-se de uma confuséo elementar, uma funcdo do imperialismo académico e uma tendéncia bastante facil de corrigir. E que tem sido, com freqtiéncia, corrigida. Mas nao por Althusser. Pelo contrério, ele transforma numa virtude seu proprio imperialismo teérico. A peculiaridade de certos ramos da filoso- fia e da matematica 6 a de serem, num grau incomum, fechados em si mes- Mos e auto-reprodutores: a légica e a quantidade examinam seus préprios materiais, seus proprios procedimentos. Isto é 0 que Althusser nos oferece como um paradigma dos verdadeiros procedimentos da Teoria: G II (pratica tedrica) age sobre G I para produzir G ml. A “verdade”’ Potencial dos mate- riais em G I, apesar de todas as impurezas ideolégicas, é assegurada por um monismo spinozista oculto (idea vera debet cum suo ideato convenire):uma idéia verdadeira deve concordar com seu original na natureza, ou, nos te! mos althusserianos; G I nao se apresentaria se ndo correspondesse ao “real E tarefa dos procedimentos cientificos de G II purificar G I de misturas ideolégicas, e produzir conhecimento (G IL), que, em sua coeréncia tedrica, encerra suas prdprias garantias (veritas norma sui et falsi — a verdade é o critério tanto de si mesma como da falsidade). Num breve aparte, Althusser admite que G II possa, em certas disciplinas, seguir procedimentos um A EPISTEMOLOGIA DE ALTHUSSER, 19 pouco diferentes: o discurso da demonstracdo pode até mesmo ser realiza- do em forma de experimento. E a sua Gnica concessdo: as Generalidades II (admite) ‘‘mereceriam, evidentemente, um exame mais profundo que nao posso empreender aqui’’.1! E realmente merece. Pois um tal exame, se realizado escrupulosamente, teria revelado a continua, deliberada e teori- camente crucial confusdo de Althusser entre “empirismo’’ (isto 6, 0 posi- tivismo filos6fico e tudo o que Ihe é afim) e o modo empfrico da pratica intelectual. Essa questo esté proxima da questao do “historicismo’’ (assunto em que tenho um interesse declarado), e por isso ndo posso despaché-la tio depressa. As Generalidades 1 incluem aqueles fatos mentais habitualmente chamados de “fatos” ou “evidéncias”. ‘‘Contrariamente as ilusdes ideolé- gicas (...) do empirismo ou do sensualismo” (nos diz Althusser) esses “fatos"’ ndo sao singulares ou concretos: j4 sdo “‘conceitos (...) de natureza ideolégica.” (AFM, 60). A tarefa de qualquer ciéncia!? consiste em “e/abo- rar seus préprios fatos cientificos, através de uma critica dos ‘fatos’ ideo- Jégicos elaborados por uma pratica tedrica ideolégica anterior’: Elaborar os seus préprios ““fatos’’ especificos é, a0 mesmo tempo, elaborar a sua propria “teoria”, pois o fato cientifico — e nao 0 assim chamado fendme- no puro — sé ¢ identificado no campo de uma pratica tedrica. (AFM, 160) Esse trabalho de “elaborar os seus préprios fatos" a partir de matéria- prima de conceitos ideolégicos preexistentes é feito pelas Generalidades II, que é 0 corpo elaborador dos conceitos e procedimentos da disciplina em questio. Admite-se a existéncia de ‘‘dificuldades” no modo de operacéo de G II, mas tais djficuldades ficam sem exame (‘‘contentemo-nos, sem entrar na dialética desse trabalho tedrico, com as indicagdes esquematicas.”” (AFM, 161)). Isto é prudente, pois as dificuldades sdo substanciais. Uma delas é a seguinte: como chega o conhecimento a modificar-se, ou a avancar? Se a matéria-prima, ou a evidéncia (G 1), apresentada a uma ciéncia (G I) ja esté fixada dentro de um determinado campo ideolégico — e se G1 € 0 dnico caminho (ainda que obscuro) pelo qual o mundo da realidade mate- rial e social pode entrar (uma entrada ideoldgica e envergonhada) nos labo- ratérios da Teoria, entao nao é possivel compreender por que meios G II pode realizar qualquer critica relevante ou realista das impurezas ideol6- gicas que the so apresentadas. Em suma, o esquema de Althusser ou nos mostra como as ilusdes ideoldgicas podem se auto-reproduzir interminavel- mente (ou evoluir de maneiras aberrante ou fortuita), ou entéo nos propée (com Spinoza) que os procedimentos tedricos em si mesmos podem refinar as impurezas ideolégicas dos materiais dados apenas através do discurso cientifico da comprovacdo; ou, finalmente, propde uma Idéia Marxista sempre imanente e preexistente fora do mundo material e social (Idéia 20 A MISERIA DA TEORIA da qual este mundo é um “efeito’’). Althusser apresenta alternadamente a segunda e a terceira proposicdes, embora seu trabalho seja de fato uma demonstracao da primeira. Mas podemos deixar de lado esta dificuldade, j4 que seria cruel inter- rogar com muito rigor uma Generalidade que nos foi oferecida apenas com “indicagdes esquematicas’. E possivel que Althusser esteja descrevendo procedimentos adequados a certos tipos de exercicio de légica: examina- mos (digamos) um trecho de um texto de Rousseau (G I): os usos das pala- vras e a consisténcia da ldgica sdo examinados de acordo com rigorosos procedimentos criticos ou filoséficos (G II); e chegamos a um “conheci- mento’ (G III), que pode ser Gtil (e, nos termos de sua prépria disciplina, “verdadeiro”), mas que é antes cr{tico do que substantivo. Confundir esses procedimentos (adequados dentro de seus prdprios limites) com todos os processos de producéo de conhecimento é o tipo de erro elementar que (suporfamos) s6 poderia ser cometido por alunos em principio de carreira, habituados a comparecer a semindrios de critica textual desse tipo, e mais aprendizes do que praticantes de sua disciplina. Ainda nao chegaram aque- les outros procedimentos (igualmente dificeis) de pesquisa, experimenta- Gao e de apropriacao intelectual do mundo real, sem os quais os procedi- mentos criticos secundérios (embora importantes) nao teriam significado nem existéncia. Na 4rea de produ¢do de conhecimento que é de longe a maior, um tipo de didlogo muito diferente esté em curso. Nao é verdade que a evi- déncia, ou “fatos”, sob investigagado cheguem sempre (como G I) numa forma jé ideolégica. Nas ciéncias experimentais h4 procedimentos extrema: mente elaborados, adequados a cada disciplina, e destinados a assegurar que isso nao aconteca. (N&o estamos, é claro, dizendo que os fatos cienti- ficos “revelam” seus préprios “‘significados” independentemente da orga- nizagdo conceptual). E de importancia central para todas as outras disci: plinas aplicadas (nas ‘‘ciéncias sociais” e ‘“‘humanidades’’) que se desenvol- vam procedimentos similares, ainda que sejam necessariamente menos exatos e mais sujeitos as determinacées ideoldgicas. A diferenga entre uma disciplina intelectual madura e uma formagdo meramente ideoldgica (teo- logia, astrologia, certas partes da sociologia burguesa e do marxismo stali- nista ortodoxo — e talvez do estruturalismo althusseriano) esté exatamente nesses procedimentos e controles; pois se 0 objeto do conhecimento con- sistisse apenas de “‘fatos’’ ideoldgicos elaborados pelos proprios procedi- mentos dessa disciplina, entéo nado haveria nunca uma maneira de confir- mar ou refutar qualquer proposi¢ao: no poderia haver um tribunal de recursos cient/fico ou disciplinar. O absurdo de Althusser esté no modo idealista de suas construcdes tedricas, Seu pensamento é filho do determinismo econdmico fascinado pelo idealismo teérico. Postula (mas ndo procura “provar’’ ou “garantir”) a AEPISTEMOLOGIA DE ALTHUSSER 21 existéncia da realidade material: aceitaremos esse ponto, Postula também a existéncia de um mundo (“externo’) material da realidade social, cuja organiza¢éo determinada é sempre, em Ultima instancia, “‘econdmica’’; Prova disto esté ndo na obra de Althusser — nem seria razodvel pedir essa demonstrag&o na obra de um filésofo — mas na obra madura de Marx. Esse trabalho j4 chega pronto ao inicio da investigacdo de Althusser, como um conhecimento concreto, embora um conhecimento nem sempre cénscio de sua propria prética teérica. E tarefa de Althusser realcar o conhecimento que ele tem de si mesmo, bem como rejeitar varias impure- zas ideolégicas que cresceram nos siléncios de seus interst{cios. Assim, um conhecimento dado (a obra de Marx) conforma os procedimentos de Althusser em cada um dos trés niveis de sua hierarquia: a obra de Marx chega como “matéria-prima” — por mais elaborada que seja — em G I: 6 interrogada e processada (G II) de acordo com princfpios de “‘ciéncia” derivados de seus apergus maduros, suposi¢ées tacitas, metodologias impli- citas, etc.; e o resultado 6 confirmar e reforcar 0 conhecimento concreto (G II1) que as partes aprovadas da obra de Marx j4 anunciam. Nao parece necessério insistir em que esse procedimento é totalmen- te autoconfirmador. Ele se movimenta dentro do circulo nao sé de sua propria problemética, mas também de procedimentos autoperpetuadores e auto-elaboradores, Esta é (aos olhos de Althusser e seus seguidores) exata- mente a virtude dessa pratica tedrica. E um sistema fechado dentro do qual os conceitos circulam interminavelmente, reconhecem-se e interrogam-se mutuamente, e a intensidade de sua repetitiva vida introversiva é erronea- mente tomada por uma “‘ciéncia’”’. Essa “‘ciéncia’’ 6 entdo projetada de vol- ta sobre a obra de Marx — sugere-se que seus procedimentos eram da mesma ordem, e que depois do milagre da “cesura epistemolégica” (uma concepgao imaculada que no exigiu nenhuma fecunda¢do empirica vulgar) tudo se seguiu em termos da elaboracao do pensamento e de sua organiza- go estrutural. Seré possivel resumir numa palavra tudo o que precede? Essa palavra designa um cfrculo. Uma leitura filos6fica de O capital s6 6 poss(vel como aplicacao do que constitui o préprio objeto de nossa reflexdo: a filosofia de Marx. Esse cfreulo s6 € possfvel epistemologicamente pela existéncia da filosofia de Marx nas obras do marxismo. (LC, 34/1). Para facilitar o “‘discurso da comprovacdo”, voltamos a certos trechos de Marx, mas agora como matéria-prima (G I): a mao se estende por toda a obra “imatura” de Marx, quase todas as obras de Engels, aquelas passagens da obra madura de Marx que exemplificam a prdtica do materialismo his- térico, a correspondéncia entre Marx e Engels (que nos leva diretamente ao seu laboratério e nos mostra seus métodos), e a maior do préprio O Capital (“ilustragdes”); mas, por entre os dedos da mao, é possivel espreitar frases 22 AMISERIA DA TEORIA de Marx fora do contexto, “siléncios’”, e mediagGes subarticuladas, que sdo podadas e disciplinadas até que se conformem a auto-suficiéncia da pratica tedrica. E claro: se as questdes so propostas dessa maneira e se o material 6 interrogado deste modo, j4 com as suas respostas ensaiadas, e podendo responder a essas perguntas e nao a outras, podemos esperar que oferecera ao interrogante uma submissa obediéncia. Este modo de pensar é exatamente aquele que foi geralmente cha- mado, na tradigdéo marxista, de idealismo. Tal idealismo consiste néo em postular ou negar o primado de um mundo material ulterior, mas um uni- verso conceptual autogerador que impéde sua prépria idealidade aos fe- némenos da existéncia material e social, em lugar de se empenhar num didlogo continuo com os mesmos. Se hé um “marxismo’’ do mundo con- temporaneo, que Marx ou Engels reconheceriam imediatamente como um idealismo, é o estruturalismo althusseriano.!? A categoria ganhou uma primazia sobre seu referente material; a estrutura conceptual paira sobre © ser social e o domina. Vv Nao pretendo contrapor, ao paradigma da produgao do conhecimento pro- Posto por Althusser, um paradigma universal, alternativo, de minha auto- ria, Vou acompanhar Althusser um pouco mais, em sua incursdo pela minha propria disciplina. Nao é facil fazé-lo sem perder a calma, uma vez que as suas repetidas referéncias a hist6ria e ao “‘historicismo” evidenciam seu imperialismo teérico em suas mais arrogantes formas. Seus comenté- rios, em sua totalidade, nao revelam nem conhecimento nem compreensdo dos procedimentos histéricos; isto é, dos procedimentos que fazem da “historia” uma disciplina e néo um palavrério de afirmagdes ideolégicas alternativas; procedimentos que Ihe proporcionam seu préprio discurso relevante de comprovacdo. Mas sejamos frios. Abordemos esse problema nao em seus suburbios (o que os historiadores acreditam fazer ao consultar e argumentar sobre “evidéncia’’), mas na propria cidadela: a noc&o que tem Althusser de Teoria. Se pudermos tomar aquela cidadela imperial, altaneira e encaste- lada (e absurda), entéo pouparemos nossas energias das escaramucas no terreno circundante. A posigdo caird em nossas maos. A historia (diz-nos Althusser) ‘‘ndo mais existe, a nao ser (...) como. ‘aplicagdo’ de uma teoria (...) que a rigor ndo existe”. As "’‘aplicacdes’ da teoria da histéria se fazem de certo modo no dorso dessa teoria ausente, e se tomam naturalmente por ela”. Essa ‘‘teoria ausente” depende de “‘esbo- cos de teoria mais ou menos ideolégicos”’: TEM A HISTORIA UMA TEORIA? 23 Devemos encarar a sério 0 fato de que a teoria da histéria, no sentido rigoroso, no existe, ou que s6 existe para os historiadores, que os conceitos de historia existentes 30, pois, no mais das vezes conceitos “empiricos”” mais ou menos d procura do fundamento tedrico — “empiricos’’, isto é, fortemente mesticados com uma ideologia que se dissimula sob as suas “evidéncias “. E 0 caso dos me- Ihores historiadores que se distinguem precisamente dos demais por sua preo- cupagdo teérica, mas que procuram a teoria num nivel em que ela néo se pode encontrar, no nivel da metodologia historica, que néo pode definir-se fora da teoria que a fundamenta. (LC 51/II) Vamos fazer um momento de pausa para observar algo estranho. Existe hd 50 anos ou mais (muito mais, se nos lembrarmos de Engels e Marx) uma historiografia marxista que, como ja observei, tem hoje uma presenga internacional. E curioso, portanto, que todos esses historiadores (inclusive, ao que supomos, um ou dois que Althusser colocaria entre “os melhores”) tenham operado durante todas essas décadas sem qualquer teoria. Porque eles acreditavam que sua teoria era, exatamente, derivada em parte de Marx; ou seja, daquilo que Althusser designaria como Teoria. Isto 6, os conceitos er{ticos empregados por esses historiadores, cotidiana- mente, em sua prdtica, inclufam os de exploracdo, luta de classes, classe, determinismo, ideologia e de feudalismo e capitalismo como modos de pro- dugao, etc. etc,, — conceitos derivados de uma tradi¢ao tedrica marxista e por ela validados. Isto é estranho. Os historiadores nao tém teoria. Os historiadores marxistas tampouco tém teoria. A Teoria Histérica, portanto, deve ser algo diferente da teoria histérica marxista. Mas retomemos nosso exame da cidadela, Devemos escalar penhasco apés penhasco até alcancar o cume. A teoria nao pode ser encontrada “ao nivel" da pratica hist6rica, seja marxista ou n&o. Excelsior! A verdade da historia nao pode ser lida em seu discurso manifesto, porque o texto da historia ndo é um texto em que fale uma voz (o Logos) mas a inau- divel @ ilegivel anotacdo dos efeitos de uma estrutura de estruturas. (LC, 15-16/1.) Nao sao muitos os historiadores que supdem que o “discurso manifesto’ da historia revela voluntariamente uma “'verdade’’, nem que o Logos esté murmurando em seus ouvidos. Mesmo assim, a antitese formulada por Althusser 6 um tanto imprépria. “‘Inaud{vel e ilegivel’’? Nao totalmente. “Anotacéo dos efeitos’? Talvez: como metdfora poderfamos deixar isso passar, mas ndo é esta uma metdfora que leva precisamente aquela nocdo da abstragdo de uma esséncia ‘do real que a contém e a encerra, ocultan- do-a’ que Althusser, num estado de espfrito diferente, critica como a marca distintiva do “empirismo’’? (Ver LC, 36/1) “Dos efeitos de uma estrutura das estruturas”’? Onde, entao, esté situada essa ‘estrutura das es- 24 AMISERIA DA TEORIA truturas”’, se no esta sujeita a qualquer investigacdo “empfrica”’ e também (lembramos) se situa fora do “‘nivel” da metodologia histérica? E, se pu- dermos fazer uma pergunta vulgar: esté essa “‘estrutura das estruturas” a//, mergulhada nos acontecimentos da historia, ou esté em algum outro lugar — por exemplo, um Logos que fala, nao a partir do texto da historia, mas de alguma cabega filos6fica? A questdo 6 irrelevante, diz Althusser; pior ainda, é imprépria, é culposa: nasce de uma problemética burguesa e empirista. Dizer que a estrutura poderia ser revelada pelos procedimentos da investigacdo hist6- rica ndo tem sentido, porque tudo 0 que podemos conhecer da historia so certas representacdes conceptuais: Generalidades I impuras. Portanto, a “verdade” histrica sO pode ser revelada dentro da propria teoria, pelos procedimentos tedricos (‘‘o processo que produz o conhecimento-concreto se passa totalmente na pratica tedrica”) (AFM, 162). O rigor formal de tais procedimentos é a Unica prova da ‘'verdade"’ desse conhecimento, e de sua correspondéncia com os fenémenos “reais”: 0 conhecimento-concreto, assim estabelecido, traz consigo todas as “garantias” necessérias — ou todas as que podem ser obtidas. “A histéria em si ndo é uma temporalidade, mas uma categoria epistemologica que designa o objeto de uma certa ciéncia, 0 materialismo histérico."* ‘’O conhecimento da histéria nao é histérico, tanto quanto nao é acucarado 0 conhecimento do acucar.”” (LC, 46/11) Essa escalada final até a cidadela é defendida por uma rede idealista de afirmagées de textura téo densa que é quase impenetravel. S6 podemos construir nosso conhecimento da historia “no conhecimento, no processo de conhecimento, e néo no desenvolvimento do concreto-real’’ (LC, 49/II). E, certamente, uma vez que tudo o que pensamos se passa dentro do pen- samento e em simbolos, codigos e representacées, isto 6, um tru/smo. O surpreendente é que fosse possivel para um filésofo, em fins da década de 1960, repetir esses truismos com tal furia retrica, com téo contundente critica a adversdrios (nunca identificados) e com tal pretensdo de novidade. Mas a retérica e as atitudes de severidade no séo “‘inocentes’’: séo recursos para conduzir o leitor desses tru(smos a proposicée muito diferente de que © conhecimento emerge totalmente no dmbito do pensamento, por meio de sua propria extrapolacdo tedrica. Assim é poss{vel, numa elisdo, rejeitar tanto a questdo da experiéncia (como G I sdo apresentadas a teoria) quan- to a questo dos procedimentos especificos de investigacdo (experimental ‘ou outra) que constituem aquele “‘didlogo" empirico que examinarei bre- vemente. Diz Althusser: . uma vez que estejam verdadeiramente constiturdas e desenvolvidas, [as ciéncias]!§ néo precisam absolutamente da comprovacdo de priticas exteriores para declarar “verdadeiros”, isto é, conhecimentos, os conhecimentos que elas produzem. Nenhum matemético no mundo espera que a fisica, na qual contu- do so aplicadas partes inteiras da matematica, tenha comprovado um teorema TEM A HISTORIA UMA TEORIA? 25 para o declarar demonstrado: a “‘verdade’ de seu teorema Ihe ¢ fornecida em 100% por critérios puramente internos da pratica da demonstracao matemati- ca, € portanto pelo critério da pratica matematica, isto é, pelas formas exigidas da cientificidade matemitica existente. Podemos dizer o mesmo dos resultados de qualquer ciéncia. (LC, 63/1) Poderemos, realmente? Mais uma vez, Althusser recorre a uma disci- plina que na medida em que considera a légica de seu proprio material, é um caso especial: a nogéo de que a matematica poderia servir de paradigma, ndo s6 para a légica mas para a producdo do conhecimento, tem sido fre- qiiente na tradigéo cartesiana, tanto quanto no pensamento herege de Spinoza, E Althusser continua, para declarar triunfalmente: Devemos dizer 0 mesmo da ciéncia que nos interessa ao maximo: o materiali mo histérico. Pelo fato de que a teoria de Marx era “‘verdadeira’’ é que ela péde ser aplicada com éxito, e nao por ter sido aplicada com éxito é que é ver- dadeira. (LC, 63/1) A afirmacdo encerra a sua propria premissa: porque a teoria de Marx é verdadeira (ndo demonstrada), foi aplicada com éxito. As teorias verdadei- ras podem, em geral, ser aplicadas com éxito. Mas como vamos determinar esse 6xito? Dentro da disciplina histérica? E que dizer das ocasides em que as teorias de Marx foram aplicadas sem sucesso? Se propuséssemos isso da seguinte forma: “foi possfvel aplicar a teoria de Marx com éxito na medida em que era ‘verdadeira’: ali onde a teoria teve éxito, confirmou a sua ver- dade’, entdo nos encontrariamos num discurso epistemolégico diferente. Resumindo: Althusser admite, numa clausula perfunctéria (e esta 6, decerto, uma questao num nivel realmente muito baixo de teoria) que “no hé divida alguma de que existe entre o pensamento-do-real e esse real uma relagdo, mas se trata de uma relacdo de conhecimento, uma relacdo de inadequacdo ou de adequacao de conhecimento, e ndo uma relacao real (entendemos por isso uma relacdo inscrita nesse real de que o pensamento 6 o conhecimento adequado ou inadequado)”: Essa relacdo de conhecimento entre o conhecimento do real e o real néo é uma relacdo do real conhecido nessa relagao. Essa distinedo entre relacgo do conhe- cimento e relagdo do real é fundamental: se no a respeitarmos, caimos infali- velmente ou no idealismo especulativo ou no idealismo empirista. No idealismo especulativo se, como Hegel, confundirmos 0 pensamento com o real, redu- zindo © real a0 pensamento, “concebendo o real como o resultado do pensa- mento” (...); no idealismo empirista, se confundirmos o pensamento com o real, reduzindo 0 pensamento do real ao préprio real. (LC, 24/Il) Nao tenho a pretensao de entender isto muito bem, Nao me ocorreria defi- nir a relagdo entre o conhecimento e seu objeto real em termos de uma “relagdio”” na qual h4 duas partes ativas — 0 “real”, por assim dizer, tentan- 26 A MISERIA DA TEORIA do revelar-se ativamente 4 mente receptora, O real, embora ativo em suas outras _manifestagdes, 6 epistemologicamente nulo ou inerte: isto &, so se Pode tornar objeto da investiga¢ao epistemoldgica no ponto em que penetra © Campo de percepgao, ou conhecimento. Nas palavras de Caudwell, “obje- to @ sujeito, tal como se mostram na relacdo mental, passam a existir simul- taneamente” e “‘o conhecer é uma relacéo mutuamente determinante entre © conhecimento e o ser.’ Nao pode haver meios de decidir sobre a “‘ade- quacdo ou inadequagdo” do conhecimento (em contraposigdo aos casos especiais da ldgica, matemitica, etc.) a menos que suponhamos procedi- mentos (um “dialégo” da pratica) destinados a estabelecer a correspondén- cia entre esse conhecimento e as propriedades “‘inscritas” naquele real. Mais uma vez, Althusser pulou de um trufsmo para um s i teorético. Abordou o problema afirmando um lugar comum, que no oferece dificuldades: © pensamento do real, a concep¢do do real, e todas as operacdes de pensa- mento pelas quais 0 real 6 pensado e concebido, pertencem a ordem do pensar, ao elemento do pensamento, que néo se pode confundir com a ordem do real, com o elemento do real. (LC, 24/11) Onde, a nao ser af, poderia ocorrer 0 pensamento? Mas “a relacdo de co- nhecimento entre o real e o real'’ pode ainda perfeitamente ser uma rela- cdo real e determinante, isto é, uma relagdo da apropriacdo ativa por uma parte (pensamento) da outra parte (atributos seletivos do real), e essa rela- gio pode ocorrer ndo em quaisquer termos que o pensamento prescreva, mas de maneiras que so determinadas pelas propriedades do objeto real: as propriedades da realidade determinam tanto os procedimentos ade- quados de pensamento (isto é, sua “adequagdo ou inadequacdo”) quanto seu produto, Nisto consiste 0 didlogo entre a consciéncia e o ser. Vou dar um exemplo (...) e ah! vejo minha mesa. O fato de ser um objeto ‘nulo ou inerte”’ ndo impede que esse objeto seja uma parte deter- minante numa relacdo sujeito-objeto. Ndo se conhece nenhum pedaco de madeira que se tivesse jamais transformado a si mesmo numa mesa; nem se conhece qualquer marceneiro que tenha feito uma mesa de ar ou de ser- ragem. O marceneiro se apropria da madeira e, ao transformé-la numa mesa, € governado tanto pela sua habilidade (prdtica teérica, nascida de uma histéria, ou “‘experiéncia", de fazer mesas, bem como uma historia da evolugéo das ferramentas adequadas) como pelas qualidades (tamanho, gro, amadurecimento) da prépria prancha. A madeira impée suas proprie- dades e sua “‘légica”’ ao marceneiro, tal como este impée suas ferramentas, suas habilidades e sua concep¢ao ideal de mesas a madeira. Esta ilustrago pode nos revelar pouco sobre a relacdo entre o pen- samento e seu objeto, j4 que 0 pensamento nao 6 um marceneiro, nem se ocupa desse tipo de processo de manufatura. Mas pode servir para ressaltar TEM A HISTORIA UMA TEORIA? 27 uma possivel forma de relacdo entre um sujeito ativo e um objeto “inerte”, na qual 0 objeto permanece (dentro de limites) determinante: a madeira no pode determinar 0 que é feito, nem se é bem ou malfeito, mas pode certamente determinar o que no pode ser feito, os limites (tamanho, resis- téncia, etc.) do que é feito, e as habilidades e ferramentas necessdrias para isto. Numa tal equacao, o “pensamento” (se 6 “verdadeiro”) sé pode re- Presentar 0 que € adequado as propriedades determinadas de seu objeto real, e deve operar dentro desse campo determinado, Se escapa a isto, entdo se transforma num remendar malfeito, extravagante e especulativo, € na auto-extrapolacgo de um “conhecimento” de mesas, a partir de um fanatismo preexistente. Como esse “‘conhecimento” nao corresponde a rea- lidade da madeira, demonstraré sem demora a sua “‘adequacao ou inade- qua¢do": tao logo a ela nos sentemos, provavelmente desabard, espalhando toda a série de elaborados molhos epistemoldgicos pelo chao. O objeto real (eu disse) é epistemologicamente inerte: isto é, ndo se pode impor ou revelar ao conhecimento: tudo isso se processa no pensa- mento e seus procedimentos. Mas isto néo significa que seja inerte de outras maneiras: nao precisa, de modo algum, ser socioldgica ou ideologica- mente inerte. E, coroando tudo, o real nao esté “ld fora’ eo Pensamento dentro do silencioso auditério de conferéncias de nossas cabecas, “aqui dentro”. Pensamento e ser habitam um Unico espaco, que somos nés mes- mos. Mesmo quando pensamos, também temos fome e ddio, adoecemos ou amamos, e a consciéncia esta misturada ao ser; mesmo ao contemplarmos o “real”, sentimos a nossa propria realidade palpavel. De tal modo que os problemas que as ‘’matérias-primas” apresentam ao pensamento consistem, com freqiiéncia, exatamente em suas qualidades muito ativas, indicativas ¢ invasoras. Porque 0 didlogo entre a consciéncia e o ser torna-se cada vez mais complexo — inclusive atinge imediatamente uma ordem diferente de complexidade, que apresenta uma ordem diferente de problemas epistemo- légicos — quando a consciéncia critica esté atuando sobre uma matéria- Prima feita de seu proprio material: artefatos intelectuais, relacGes sociais, © fato histdrico, Um historiador — e, sem divida, um historiador marxista — deveria ter plena consciéncia disto. O texto morto e inerte de sua evidéncia nao é de modo algum “inaudivel’’; tem uma clamorosa vitalidade prépria; vozes clamam do passado, afirmando seus significados préprios, aparentemente revelando seu préprio conhecimento de si mesmas como conhecimento. Se mencionamos um “fato” comum — “O Rei Zed morreu em 1100 A.D." — jd estamos mencionando um conceito de realeza: as relacées de dominagdo e subordinacao, as funcées e papel do cargo, o carisma e dotes magicos que acompanham esse papel, etc., e nos deparamos com isto nado apenas como um objeto de investigacéo, um conceito que desempenhou certas fungdes na mediagdo de relacdes numa dada sociedade, com (talvez) varias nota- 28 AMISERIA DA TEORIA ges conflitantes desse conceito endossadas por diferentes grupos sociais (os sacerdotes, as criadas) dentro daquela sociedade — n&o sé isso, que 0 historiador tem de reconstituir com dificuldade, mas também esta evidén- cia € recebida por ele dentro de um quadro tedrico (a disciplina da histéria, que também tem uma histéria e um presente controvertido) que aperfei- . goou © conceito de realeza, pelo estudo de muitos exemplos de realeza em diferentes sociedades, resultando em conceitos dela muito diferentes da imediagao, em poder, em senso comum ou em mito, daqueles que testemu- nharam na pratica a morte do Rei Zed. Essas dificuldades so imensas. Mas as dificuldades se multiplicam muitas vezes quando examinamos nao um fato ou conceito (realeza) mas aqueles acontecimentos que a maioria dos historiadores considera como centrais para seu estudo: 0 “processo” histérico, a inter-relacdo de fend- menos dispares (como economias e ideologias), a causacao. A relacdo entre © pensamento e seu objeto torna-se agora extremamente complexa e me- diata; e, ademais, o conhecimento hist6rico resultante estabelece relagdes entre fendmenos que nunca poderiam ser vistos, sentidos ou experimenta- dos pelos atores desse modo naquela época; e organiza as constatagdes de acordo com conceitos e dentro de categorias que eram desconhecidos dos homens e mulheres cujos atos constituem o objeto de estudo — todas essas dificuldades sdo tao imensas que se torna evidente que a historia“‘real” e.0 conhecimento histérico séo coisas totalmente distintas. E certamente sao. Que mais poderiam ser? Mas disto se conclui que devemos derrubar a ponte entre eles? Ndo poderd o objeto (historia real) permanecer ainda numa relagdo “objetiva” (empiricamente verificével) com seu conhecimen- to, uma relacdo que é (dentro de limites) determinante? Ante as complexidades desta concluséo, um certo tipo de mente racional (e, em particular, uma mente racional inocente do conhecimento prdtico dos procedimentos histéricos e impaciente por um caminho facil para o Absoluto) recua. Esse recuo pode tomar muitas formas. E interes- sante (e deve ser de interesse para os marxistas) que, na fase inicial do recuo, tanto o empirismo como o estruturalismo althusseriano cheguem a um idéntico reptdio do “historicismo”’. Assim, longe de serem originais, as posigdes de Althusser significam uma capitulagao a décadas de critica aca- démica convencional da historiografia, cujo resultado foi por vezes relati- vista (a “historia” como expressdo das preocupacées do presente), outras vezes idealista e teorista, e outras ainda de um ceticismo extremamente radical quanto as credenciais epistemolégicas da historia. Um caminho pode ter passado por Husserl e Heidegger; outro, por Hegel e Lukacs; outro ainda através de uma tradic&o mais “empirica”’ de filosofia lingiiis- tica “‘anglo-saxénica": mas todos os caminhos levaram a um fim comum. Ao fim de sua laboriosa vida foi possfvel aquele formidével praticante do materialismo historico, Marc Bloch, afirmar com robusta confianca o TEM A HISTORIA UMA TEORIA? 29 carater objetivo e determinante de seu material: “‘O passado é, por defi- nigdo, um dado que nada no futuro modificard.’""7 Na década de 1960 semelhante confianca nado podia ser expressa em companhia intelectual respeitdvel: era poss{vel para um talentoso autor, parte da tradi¢éo mar- xista, afirmar o relativismo histérico como um lugar comum: Para as ciéncias humanas, a individualidade histérica é elaborada pela escolha do que € essencial para nés, isto 6, em termos de nossos julgamentos de valor. Assim, a realidade historica se modifica de época para época, com modifica- g6es na hierarquia dos valores.!8 As razées particulares propostas para a falta de credibilidade epistemolé- gica da historia foram diferentes, como o foram as solucdes oferecidas; mas Oakeshott e Althusser, Lucien Goldmann e Reymond Aron, Popper e Hindess/Hirst voltaram todos sua atengao para a mesma 4rea, com inten- Ges semelhantes.!9 A “historia” talvez tenha provocado essa vinganca contra si mesma. Nao pretendo negar que os séculos XIX e XX criaram auténticos e por vezes monstruosos “historicismos” (nogdes evoluciondrias, teleolégicas e essencialistas da automotivacdo da “historia"); nem pretendo negar que esse mesmo historicismo impregnou certa parte da tradicdo ‘narxista, com a nogdo de uma sucessao programada de ““fases”’ hist6ricas impulsionadas rumo a um fim predeterminado pela luta de classes. Tudo isso mereceu severa censura. Mas a censura feita ao materialismo histérico supunha com demasiada freqiiéncia a sua culpa, sem uma investigacdo escrupulosa da sua pratica; ou, se os exemplos de culpa eram identificados (freqiientemen- te na obra de idedlogos, mais que na prdtica madura de historiadores), supunha-se ent&o que invalidavam todo o exercicio, e n&o apenas coloca- vam em questdo o praticante, ou a maturidade do conhecimento histérico. E se criticos e filésofos (Collingwood a parte) foram geralmente culpados dessa cOmoda elisdo, ninguém foi mais imoderado em sua atribui¢do de “historicismo” a pratica do materialismo historico que Althusser: do co- meco ao fim, a pratica dos historiadores (e dos historiadores marxistas) é presumida por ele, mas néo examinada, Fagamos voltar contra os criticos o escrutinio da critica, e vejamos como Althusser e Popper chegaram 4 rejeicdéo comum do “historicismo’’. Para Popper, hé um sentido muito limitado no qual admitiré que certos “fatos” da historia séo empiricamente verificdveis. Mas quando atraves- samos uma obscura (mas critica) fronteira dos fatos isolados ou evidéncias particulares e passamos as questées de processo, formacées sociais e rela- ¢des, ou causacdo, penetramos imediatamente um reino no qual devemos ser ou culpados de “historicismo’” (que consiste, para ele, em parte na atribuigao, a historia, de leis de previsdo, ou na proposic&o de “interpre- tagdes gerais” que derivam de categorias “holistas” impréprias, impostas 30 AMISERIA DA TEORIA pela mente interpretadora, que sao empiricamente inverificaveis, e que nds mesmos contrabandeamos para a histdria), ou estamos confessadamente oferecendo uma interpretacdo como um “ponto de vista’. Os fatos isolados estao, de qualquer modo, contaminados pela sua proveniéncia aleatéria ou pré-selecionada. A evidéncia sobre 0 passado sobrevive ou de maneiras arbitrarias, ou de maneiras que impdem uma determinada pressuposi¢aéo ao investigador historico, e portanto — ‘As chamadas “fontes"’ da historia registram apenas os fatos que parece bas- tante interessante registrar (...) as fontes, em geral, encerrardo apenas fatos que se enquadram numa teoria preconcebida. E como ndo hé outros tatos dis- poniveis, ndo serd possivel, em geral, comprovar esta ou qualquer outra teoria subseqiiente. A maioria das interpretagGes serao “‘circulares no sentido de que se devem enquadrar a interpretacao usada na sele¢do original dos fatos’’. Dai ser o conhecimento histérico, em qualquer sentido amplo ou geral, o seu proprio artefato. Embora Popper admita que uma interpretacdo possa ser descon- firmada por nao corresponder a fatos discretos empiricamente verificaveis (uma admisséo que Althusser nao pode fazer), pelos seus critérios de prova — critérios derivados das ciéncias naturais — ndo podemos ir além disso. A prova experimental de qualquer interpretacdo é impossivel: por isto a interpretagdo pertence a uma categoria fora do conhecimento histdrico (“ponto de vista), embora cada gerac&o tenha o direito, e mesmo uma “'necessidade premente’’, de oferecer a sua interpretacdo ou ponto de vista como uma contribuigdo ao proprio auto-entendimento e auto-avaliacdo.?° Segundo Popper, nao podemos conhecer a “histéria’, ou no maximo podemos conhecer apenas fatos isolados (e os que sobreviveram através de sua propria auto-selecdo, ou auto-selecdo histérica), A interpretagdéo consiste na introdugao de um ponto de vista: este pode ser legitimo (em outras bases) mas nao constitui nenhum conhecimento histérico verdadei- ro, Althusser parte mais ou menos da mesma premissa:24 embora mesmo a sugestéo de que podemos conhecer os fatos isolados receba seu desprezo, j4 que nenhum fato pode alcangar identidade epistemolégica (ou a signi- ficago de qualquer significado) até que seja situado num campo tedrico {ou ideoldgico); e 0 ato teérico é anterior a qualquer coisa que se pretenda como investigagao “'empfrica”’, e a conforma. No esquema de Althusser, a ideologia (ou Teoria) assume fungdes propostas por Popper, como interpretacdo ou ponto de vista. E somente em suas conclusées que encontramos entre ambos alguma discordancia acentuada. Para Popper, “nao ha histéria da humanidade, hé apenas um namero indefinido de historias de todos os tipos de aspectos da vida huma- na’’. Essas hist6rias sdo criadas por historiadores a partir de uma “‘matéria TEM A HISTORIA UMA TEORIA? 31 infinita” de acordo com preocupacdes contempordneas.?? A énfase recai, com a monotonia de um martelo a vapor, sobre a incognoscibilidade de qualquer processo histérico objetivo e sobre os perigos da atribuicao “his- toricista’". Devemos procurar as apalpadelas o caminho de volta numa penumbra empirista, identificando os fatos obscuros aos nossos pés, pouco @ pouco e um de cada vez. Mas onde Popper vé perigo, Althusser vé uma espléndida oportunidade, um espaco conceptual, um vazio que convida a sua ocupa¢do imperial. O processo histérico é incognoscivel como objeto real; 0 conhecimento histérico é produto da teoria; a teoria inventa a his- t6ria, seja como ideologia ou como Teoria ("ciéncia’’}, O unico problema € (lembramos) que ‘‘a teoria da histéria, no sentido forte, ndo existe’’. Mas Althusser pode fornecer essa teoria aos historiadores. Nao temos ne- cessidade de tatear no escuro: daremos um salto, um gigantesco salto epis- temolégico, da escuridao para a luz. Jé observamos esse espantoso idealismo. Na verdade, Althusser é rigoroso, rigido mesmo, em relacao ao idealismo. “O idealismo especula- tivo", nos diz ele, confunde o pensamento e o real reduzindo o real ao pen- samento e ‘‘concebendo o real como resultado do pensamento”. Mas Althusser ndo faz, com tantas palavras, esse gesto supérfluo. (Negar explici- tamente a existéncia prévia de um mundo material poderia até mesmo atrair para ele alguns olhares curiosos dos lideres do P.CF.). Como um “materialista” obediente, Althusser afirma que o real existe, em algum lugar, lé fora. Para nés, 0 “real” no é uma palavra de ordem teérica: 0 real 6 0 objeto real, existente, independentemente do seu conhecimento, mas que ndo pode ser definido a no ser pelo seu conhecimento. Nesse segundo aspecto, tedrico, o real se confunde com os meios do seu conhecimento (AFM, 219). E, do mesmo modo, hé mais de 350 anos, um filésofo, falando a partir da posicao oposta, declarava: Para nés, Deus néo é uma palavra de ordem tedrica; Deus é a Primeira Causa que existe independentemente de nosso conhecimento, etc. — 0u, para sermos mais precisos, ““O certo é que Deus nada fez na natureza que nao fosse por causas segundas’’. O argumento nao impediu que Francis Bacon fosse acusado de ser ateu em segredo, e Althusser nao se deve sur- preender ao ser acusado de dissolver a realidade numa fic¢do idealista. Pois, uma vez feito esse gesto piedoso e necessdrio (como uma espécie de a priori genético, uma cléusula “em Ultima instancia’’), 0 “‘real’’ é rapida- mente arrastado para fora da cena, Tudo o que o pensamento pode conhe- cer 6 0 pensamento — e artefatos de pensamento bastante malfeitos, “pois a mente do homem 6 (...) como um espelho encantado, cheia de supersti- Ba AMISERIA DA TEORIA cdo e impostura, se ndo for libertada e reduzida’.* A teoria deve reparar isso. Althusser ndo confunde tanto 0 pensamento com o real como, ao afirmar a incognoscibilidade do real, confisca a realidade de suas proprieda- des determinantes, reduzindo assim o real 4 Teoria. Essa Teoria permanece imanente, esperando a cesura epistemoldgica de Marx. E 0 conhecimento que foi entéo apropriado por Marx (embora ‘‘revelado”’ fosse uma palavra melhor) ndo era de modo algum determinado por seu objeto. Os historia- dores intepretaram O capital de maneira inteiramente errdnea: © que eles nao viam é que a hist6ria aparece em O capital como objeto de teo- ria, e ndo como objeto real, como abjeto “‘abstrato” (conceptual), endo como ‘objeto concreto-real; ¢ que os capitulos em que o primeiro grau de um trata- mento histérico é aplicado por Marx ou para as lutas pela reducéo da jornada de trabalho ou para a acumulacao primitiva capitalista, remetem, como a seu principio, a teoria da historia, 4 acelera¢So do conceito de historia, e de suas “formas desenvolvidas”, da qual a teoria econdmica do modo de produgéo capitalista constitui uma “regido”” determinada. (LC, 59/11). E ainda: Apesar das aparéncias, Marx no analisa nenhuma “sociedade concreta”, nem mesmo a Inglaterra, que menciona constantemente no Volume I, mas o MODO DE PRODUGAO CAPITALISTA e nada mais |...) Néo devemos imaginar que Marx esteja analisando a situacao concreta na Inglaterra, quando a discute. Apenas a discute para “‘ilustrar” sua teoria (abstrata) do modo de producdo capitalista. (L & P, 76). Vestido dessa capa escarlate e guarnecida de peles da Teoria, Althus- ser pode agora entrar em todo saldo de conferéncias adjacente e, em nome da filosofia, denunciar os titulares e exproprié-los de suas pobres ¢ falhas disciplinas que pretendem ser conhecimentos. Antes que essas disciplinas possam de qualquer modo seguir adiante, devem primeiro sentar-se ante sua tribuna e aprender suas licées: Em particular, os especialistas que trabalham nos dominios das “'Ciéncias Humanas” e das Ciéncias Sociais (dominio menor), isto 6, economistas, histo- riadores, socidlogos, psicélogos sociais, psicdlogos, historiadores de arte de ratura, ou religiosos e de outras ideologias — e mesmo linguiistas e psicana- listas, todos esses especialistas devem saber que ndo podem produzir conhe mentos verdadeiramente cientificos em sua especializa¢do a menos que reco- nhecam a indispensabilidade da teoria fundads por Marx. Pois ela é, em princfpio, a teoria que “abre” ao conhecimento cientifico o “‘continente’’ no qual trabalham, no qual produziram até agora uns poucos conhecimentos preliminares (lingiifstica, psicandlise) ou uns poucos elementos ou rudimen- tos de conhecimento (0 ocasional capitulo de histéria, sociologia ou econo- mia) ou ilusdes puras e simples, ilegitimamente chamadas de conhecimentos. (L& P, 72) TEM A HISTORIA UMA TEORIA? 33 N&o importa que os vassalos nesses continentes ou ‘dominios menores’ se considerassem marxistas — eram impostores e talvez devam agora pagar um duplo tributo & “teoria que Marx fundou’ mas que ninguém, inclusive (notavelmente) Marx, entendeu antes da anunciacdo de Althusser, Quanto 4 minha pobre e laboriosa disciplina da historia, a expropriagdo de nosso insignificante principado (sem divida um dom{nio realmente pequeno) 6 total: Temos, uma vez mais, que purificar nosso conceito de teoria da histéria, de modo radical, de toda contaminagéo pelas evidéncias da histéria empirica, pois sabemos que essa “historia emp/rica’’ nada mais é que o aspecto desnudo da ideologia empirista da hist6ria. (...) Devemos conceber do modo mais rigoroso a necessidade absoluta de libertar a teoria da histdria de qualquer envolvimen- to com a temporalidade ““empirica"’ (LC, 46/11). Acima de tudo, devernos derrubar o “poder incrivel” de um preconceito, que constitui 0 estofo do historicismo contempordneo, e que nos levaria a con- fundir © objeto do conhecimento com o objeto real, afetando o objeto de conhecimento das “qualidades’’ préprias do objeto real de que ele é conheci- mento. (LC, 48/11). E claro que Althusser e seu regimento de assistentes pretendem impor uma tributacao punitiva a esse pequeno (e agora subjugado) dominio da historia, @ langar nossos pecados as cabecas de nossos filhos até a terceira geracdo. Ficamos perplexos nesse mundo invertido de absurdos. E sua magica penetra ainda as mentes que nele vagueiam, a menos que ali ingressem armadas e sob a disciplina da critica. (O “senso comum” de nada lhes ser- vira: todo visitante € revistado na fronteira'e despojado dele.) Mentes encantadas movem-se através de campos visiondrios e sem humor, vencem obstdculos imagindrios, degolam monstros miticos (“*humanismo”, “mora- liso’), executam ritos tribais com o ensaio de textos aprovados. H4 dra- ma: os iniciados sentem que tém algo a fazer (estéo desenvolvendo uma “eiéncia”) ao descobrir novos “siléncios’’ em Marx, e extrapolam mais ainda das raz6es auto-extrapolantes da Teoria, E hé o drama maior dos hereges e das heresias, quando alunos e disc/pulos se afastam da fé e sur- gem profetas rivais, e 4 medida que se multiplicam sub e pés-althusseria- nismos e estruturalismos derivativos (lingfsticos e semiéticos). E claro: pois é exatamente quando uma teoria (ou uma teo/ogia) nao esté sujeita a controles empfricos que as disputas sobre a colocacdo de um termo levam aos partos tedricos: o parto da partenogénese intelectual. Eis, portanto, onde estamos. Mais um espetdculo espantoso, aberran- ‘te, 6 acrescentado 4 fantasmagoria de nosso tempo. Nao é um momento propicio para a vida da mente racional: para uma mente racional na tradi- 34 A MISERIA DA TEORIA ¢&o marxista 6 uma época insuportavel. O mundo real também acena para a razdo com as suas préprias inversdes. Contradigdes obscenas se manifes- tam, gracejam e desaparecem; o conhecido e o desconhecido trocam de lugar; até mesmo as categorias, quando as examinamos, se dissolvem e se transformam em seus contrarios. No Ocidente uma alma burguesa anseia por um “'marxismo” que lhe cure a propria alienacdo; no mundo “comu- nista’’, uma pretensa “base socialista’’ dé origem a uma “‘superestrutura” de fé crist@ ortodoxa, materialismo corrupto, nacionalismo eslavo e Solje- nitsin. Nesse mundo o “marxismo” desempenha a funcdo de um “Apare- Iho Ideoldgico de Estado” e os marxistas séo alienados, néo em sua identi- dade propria, mas no desprezo do povo. Uma velha e laboriosa tradig&o racional se decompée em duas partes: um drido escolasticismo académico e um pragmatismo brutal de poder. Tudo isso ndo 6 sem precedentes. O mundo atravessou essas mudan- cas de cena antes. Elas indicam a solucdo de (ou indicam que estdo sendo contornados) certos problemas, a chegada de novos problemas, a morte de velhas questdes, a presenca invisivel de questdes novas e informuladas a nossa volta, A "Experiéncia’’ — a experiéncia do fascismo, stalinismo, racismo, e do fendmeno contraditorio da “afluéncia’ da classe operaria em setores de economias capitalistas — estd fazendo romper e exigindo que reconstruamos nossas categorias. Mais uma vez, testemunhamos 0 “ser social’ determinando a ‘‘consciéncia social’, 4 medida que a expe- riéncia se impde ao pensamento e o pressiona; mas, desta vez, ndo é a ideo- logia burguesa mas a consciéncia ‘‘cientifica” do marxismo que esté cedendo sob a tensdo. Este é um tempo em que a razdo deve ranger os dentes. A medida que 0 mundo se modifica, devemos aprender a modificar nossa linguagem e nossos termos. Mas nunca deverfamos modificd-los sem razéo. Respondendo a Althusser, negar-me-ei a vantagem de travar essa batalha em terreno favordvel — isto 6, 0 terreno dos préprios escritos de Marx e Engels. Embora numa batalha sobre esses termos quase todas as escaramu- ¢as pudessem ser ganhas (pois, repetidamente, Marx e Engels, nos mais especificos termos, inferem a realidade tanto do processo como da estru- tura “inscritos’’ na hist6ria, afirmam a objetividade do conhecimento historico_e condenam modos de pensar “‘idealistas’’ idénticos aos de Althusser), recuso-me a levar a discussdo nesse terreno por trés raz6es. Primeiro, embora cada escaramuga pudesse ser ganha, a batalha permane- ceria sem decisdo: tudo o que o dogma forgado a recuar tem que fazer é OS FILOSOFOS E A HISTORIA 35 “er” Marx ainda mais seletivamente, descobrir novos siléncios, repudiar mais textos.** Segundo, hé muito deixei de estar interessado neste tipo de defesa do marxismo como doutrina.?5 Terceiro, embora eu conheca esses textos, e talvez até mesmo saiba como ‘‘lé-los’’ de uma maneira diferente da leitura de Althusser — isto é, eu os conhego como aprendiz, e, como praticante do materialismo, os tenho empregado na minha prdtica por muitos anos, os tenho testado, tenho uma divida para com eles, e também, ocasionalmente, descobri neles diferentes tipos de “'siléncio” ou inadequa- ¢do — embora tudo isto seja verdade, creio que o tempo desse tipo de exe- gese textual jd passou. A esta altura, e somente a esta altura, posso chegar perto de alguma concordancia com Althusser. Porque para nés dois o fato de registrar uma congruéncia entre nossas posicdes e um determinado texto de Marx nada pode provar quanto a validade da proposicéo em questio: pode, apenas, confirmar uma congruéncia. Em cem anos, o universo intelectual modificou-se, e mesmo aquelas proposicées de Marx que nao exigiam revi- séo nem esclarecimento foram definidas num determinado contexto, com freqiiéncia foram estabelecidas em antagonismo a determinados opositores hoje esquecidos. Em nosso novo contexto, frente a objecdes novas e talvez mais sutis, essas proposi¢ées devem ser novamente pensadas e formuladas. Trata-se de um problema histérico conhecido. Tudo deve ser repensado mais uma vez, todo termo deve submeter-se a novos exames. Devo alongar-me um pouco mais em felacdo a certas objecdes prati- cas, Embora estas se apresentem desde logo a qualquer praticante da hist6- ria, 0 filésofo sem dtivida as considera triviais: pode fazer com que desa- parecam com uma varinha de condao epistemolégica. Mas as objecdes devem ser mencionadas, pois as descrigdes dos procedimentos histéricos propostas por Popper ou por Althusser n&o correspondem aquilo que a maioria dos historiadores pensam ‘que estéo fazendo, ou “acham’’ que estdio fazendo na pratica. Vemos que alguns fildsofos (e mais sociélogos) tém uma noco tedrica, mas vaga, do que sao as “fontes” historias. Assim, reconhecem-se pouco na afirmacéo (Popper) de que “as chamadas ‘fontes’ da hist6ria registram apenas os fatos cujo registro pareceu bastante interes- sante”; nem na afirmacao (Hindess-Hirst) de ‘os fatos nao séo nunca dados, séo sempre produzidos”. A afirmagao de Popper parece dirigir a atencdo para a intencionalidade dos atores histéricos: a evidéncia historica compre- ende apenas os registros que esses atores pretenderam transmitir 4 poste- ridade e, portanto, impée suas intengdes como uma regra heuristica ao historiador, Hindess e Hirst, que se reconhecem, em sua epistemologia, althusserianos verdadeiros (embora mais rigorosos do que seu mestre), transferem a atencdo da génese da evidéncia para sua apropriacdo (dentro de um determinado campo tedrico) pelo historiador, que “produz” fatos, a partir de alguma coisa nao “dada”. 36 AMISERIA DA TEORIA Ambas as afirmagdes sdo meias-verdades, o que equivale a dizer que nao sao verdadeiras. Grande parte da evidéncia hist6rica sobreviveu por motivos muito distantes de qualquer intencao dos atores de projetar uma imagem de si mesmos a posteridade: os registros administrativos, de tribu- tacdio, legislacdo, crenca e pratica religiosa, as contas dos templos e mostei- ros, e a evidéncia arqueolégica de suas localizagées. Pode ser verdade que quanto mais remontamos no tempo registrado, mais as evidéncias se tor- nam sujeitas a atribuigdo de intencdo de Popper. Isto, porém, nao constitui uma propriedade da evidéncia que historiadores e arquedlogos antigos tivessem irresponsavelmente negligenciado. Na verdade, quando examinam 8 primeiros glifos maias ou inscri¢des cuneiformes da Babildnia antiga, um importante objeto de estudo é, precisamente, a intencdo dos autores do registro e, através disso, a recomposicao de sua cosmologia, sua astrologia seus calendérios, seus exorcismos e sortilégios — 0 seu “interesse”. A evidéncia intencional (evidéncia oferecida intencionalmente a pos- teridade) pode ser estudada, dentro da disciplina histérica, téo objetiva- mente quanto a evidéncia nao-intencional (isto é, a maior parte da evidén- cia histérica, que sobrevive por motivos independentes das intengdes dos atores). No primeiro caso, as intengdes sdo, elas proprias um objeto de investigagdo; e em ambos os casos os “fatos” hist6ricos sio “produzidos”, pelas disciplinas adequadas, a partir de fatos evidenciais. Mas a confisséo de que, neste sentido disciplinado, os fatos historicos séo “produzidos”, justificaré a meia-verdade de Hindess e Hirst, de que os ‘‘fatos nunca sdéo _dados'"? Se ndo fossem, de algum modo, dados, entéo a pratica histérica ocorreria numa oficina vazia, manufaturando a histéria (como Althusser e Hindess/Hirst gostariam de fazer) a partir de ar tedrico. E a propria condi- cdo de “dados” dos fatos, as propriedades determinadas que apresentam ao praticante, representam uma metade do didlogo que constitui a disci- plina do historiador. Popper parece ver toda evidéncia historica como a Crénica dos Reis. Poucas evidéncias historicas séo “registradas’” nesse sentido autoconscien- te: e o que hd, ainda pode ser lido no sentido ‘infernal’ de Blake, isto 6, posto de cabeca para baixo e sacudido, até que se descubra o que os seus autores supunham mas nao pretendiam registrar — suposicdes e atributos implfcitos inscritos no texto. A maioria das fontes escritas séo de valor, pouco importando o “interesse” que levou ao seu registro. Um acordo de casamento entre o filho de um latifundiario e a filha de um mer- cador das Antilhas no século XVIII pode deixar um depésito substancial num arquivo administrativo, de negociaces prolongadas, atos legais, acor- dos de propriedade, e mesmo (raramente) uma troca de cartas de amor. Ne- nhum dos atores teve a inten¢do de registrar fatos interessantes para uma vaga posteridade, mas sim de unir e assegurar a propriedade de maneiras especfficas, e talvez também estabelecer uma relagéo humana. O historia- OS FILOSOFOS E A HISTORIA 37 dor leré esse material e, luz das perguntas que propée, poderé derivar dele evidéncias relativas a transagGes de propriedade, procedimentos legais, mediagées entre grupos proprietarios de terras e mercantis, estruturas fami- liares especificas e lagos de parentesco, a instituic&o do casamento burgués ou a atitudes sexuais — evidéncias que os autores no tiveram a inten¢éo de revelar, e algumas das quais (talvez) se horrorizassem em saber que che- gariam a luz. Isso acontece e volta a acontecer: é sempre assim. Pessoas foram tributadas, e as listas dos fogais séo recolhidas nao pelos historiadores dos impostos, mas pelos demdgrafos historicos. Pessoas tiveram de pagar dizi- mos, € os registros imobilidérios foram usados como evidéncia pelos histo- riadores agrdrios. Pessoas eram arrendatérias tributdrias ou enfiteutas: seus titulos de arrendamento eram arrolados e transferidos nos arquivos do tri- bunal senhorial, e essas fontes essenciais so interrogadas pelos historiado- res repetidamente, nao so em busca de novas evidéncias, como também num didlogo no qual propdem novas questdes. De modo que parece a um mero historiador ser tolice (de “fato’’, eu sei que é tolice) afirmar, com Popper, que “as fontes encerrardo, em geral, apenas fatos que se enqua- dram na teoria preconcebida’’. Os_fatos estdo a/i, inscritos no_registro_historico, com _determinadas propriedades, mas isso_ndo implica, de certo, uma nocéo de que esses fatos revelam seus significados e relacdes (conhecimento-histdrica) por si ‘me: mos, e independentemente dos procedimentos. tedricas. Poucos empiristas diriam isto, e certamente ndo Popper. Mas na medida em que esta nocao sobrevive, o faz em nivel de metodologia mais que de teoria; isto é, se for possivel criar somente 0 método correto, geralmente quantitativo (positi- vismo armado de computador), entdo os fatos revelardo seus significados independentemente de qualquer exercfcio conceptual rigoroso. Discuti com a estase desse tipo de posicéo “empirista”, durante muitos anos, em minha prépria pratica, e ndo pretendo repetir essa discussfo. Uma peque- na parte daquilo que Althusser tem a dizer sobre o “empirismo’ (quando concebido como ideologia) é justa.27 E é 0 reconhecimento imediato da obviedade dessa justica — tanto o seu “senso comum” como sua aceptabi- lidade académica geral — que constitui a porta de entrada habitual para os leitores inexperientes, e que os convida ao interior de seu absurdo mundo silogistico. Em lugar de repetir mais uma vez essa velha historia, vamos apresen- té-la da maneira que se segue. Um historiador esta autorizado, em sua pratica, a fazer uma suposicao proviséria de cardter epistemoldgico: a de que a evidéncia que esté utilizando tem uma existéncia “real” (determinan- te), independente de sua existéncia nas formas de pensamento, que essa evidéncia 6 testemunha de um processo hist6rico real, e que esse processo 38 A MISERIA DA TEORIA (ou alguma compreensdo aproximada dele) é 0 objeto do conhecimento histérico. Sem tal suposi¢do, o historiador nao pode agir: deve sentar-se numa sala de espera a porta do departamento de filosofia por toda a sua vida, Supor isto ndo implica a pressuposigao de toda uma série de nogdes intelectualmente primérias, como a de que os fatos revelam involuntaria- mente seus préprios significados, que as respostas sdo fornecidas indepen- dentemente das questdes etc. Nao estamos falando da pré-historia, mesmo que, em certos circulos, a pré-historia sobreviva e mesmo se instale, com pompa, nas cétedras. Qualquer historiador sério sabe que os “fatos’’ séo mentirosos, que encerram suas proprias cargas ideolégicas, que perguntas abertas, inocentes, podem ser uma mascara para atribuices exteriores, € que mesmo as técnicas de pesquisa emp/rica mais sofisticadas e suposta- mente neutras — técnicas que nos forneceriam a “historia” jé embalada e sem o contato da mente humana, através da ingestdo automatica do compu- tador — podem ocultar as mais vulgares intromissdes ideolégicas. 28 Portan- to, isto é sabido: conhecemos nosso offcio téo bem quanto os filésofos conhecem o seu. A evidéncia historica existe, em sua forma priméria,?? nao para reve- lar seu proprio significado, mas para ser interrogada por mentes treinadas numa disciplina de desconfianca atenta. Os fatos isolados podem ser inter- rogados pelo menos de seis maneiras diferentes: (1) antes que qualquer outra interrogacao possa ter inicio, suas credenciais como fatos historicos devem ser examinadas: como foram registrados? Com que finalidade? Podem ser confirmados por evidéncias adjacentes? E assim por diante. Este 6 um aspecto basico do offcio; (2) ao nivel de sua prépria aparéncia, ou auto-revelacdo aparente, mas nos termos de uma investigagdo histo- rica disciplinada, Quando os fatos sob escrutfnio séo fendmenos sociais ou culturais, veremos, na maioria das vezes, que a investigagdo acrescenta evidéncias portadoras de valor, nas quais as qualidades mesmas da auto- avaliagdo inerente aos fendmenos (por exemplo, atitudes para com 0 casa- mento, ou dentro do casamento) tornam-se objeto de estudo; (3) como evidéncias isentas de valor, mais ou menos inertes, “neutras’’ (indices de mortalidade, escalas de salarios, etc.) que sdo entdo submetidas a indagagao, 4 luz das questdes particulares (demogréficas, econdmicas, agrérias) pro- postas: tendo essas indagacées seus procedimentos préprios e adequados (por exemplo, estatisticos) destinados a limitar (embora nem sempre te- nham éxito) a intromissdo de atribuic&es ideolégicas; (4) como e/os numa série linear de ocorréncias, ou fatos contingentes — isto é, a historia “tal como realmente aconteceu” (mas como nunca poderd ser plenamente conhecida) — na construgdo de uma exposi¢ao narrativa; sendo essa recons- trugdo (por mais desprezada que seja pelos filsofos, socidlogos e por um numero crescente de historiadores contempordneos que se deixaram ate- morizar pelos primeiros) em constituinte essencial da disciplina histérica, OS FILOSOFOS E A HISTORIA 39 um pré-requisito e premissa de todo conhecimento histérico, a base de qualquer nocdo objetiva (distinta da tedrica) de causacao, e a preliminar indispensdvel 4 construcdo de uma exposicao analitica ou estruturada (que identifica relacdes estruturais e causais), mesmo que no curso dessa andlise a narracdo primitiva sequencial sofra, ela mesma, uma transformacdo radi- cal; (5) como elos numa série lateral de relacSes sociais/ideolégicas/econd- micas/politicas (por exemplo — este contrato é um caso especial da forma geral de contratos daquela época: tais contratos eram governados por essas formas de lei, impunham tais formas de obrigacdo e subordinacdo), permi- tindo-nos assim restabelecer, ou inferir, a partir de muitos exemplos, pelo menos uma ‘seco’ proviséria de uma dada sociedade no passado — suas relacées caracteristicas de poder, dominac4o, parentesco, serviddo, relagdes de mercado, e o resto; (6) segue-se disto, se levarmos a quest&o um pouco mais adiante, que mesmo fatos isolados podem ser interrogados em busca de evidéncias que sustentam a estrutura Esta sugesto é mais controvertida, Muitos (talvez a maioria) dos his- toriadores praticantes concordariam com os meus cinco pontos: essas ma- neiras de interrogar as evidéncias pertencem a disciplina e ao seu proprio “discurso da prova”. Um materialista histérico pode objetar que a organi- zacao estrutural de determinadas sociedades pode ser inferida ndo sé de evidéncias maiores (a que chegaremos, no devido tempo) mas podem ser inferidas, até certo ponto, de certos tipos de fatos aparentemente isolados. Assim, um arrendamento de terra existe como fato’’ como uma formula latina inscrita num registro de tribunal. Mas o que esse arrendamento “sig- nificava’’ néo pode ser compreendido independentemente de toda uma estrutura de ocupacdo da terra e leis relacionadas, isto é, dentro de um sis- tema de ocupacdo e, portanto, esse “fato’”’ — e muito certamente uma série de fatos da mesma ordem (pois certos fildsofos da hist6ria isolam os “fatos"’ para exame epistemoldgico e os colocam sobre a sua mesa de semi- nario um de cada vez, ao passo que os historiadores estdo sempre lidando com 0s fatos em grupos e em séries) — traz consigo um certo “{ndice’ em relagdo ao sistema ou, pelo menos, deveria propor ao interrogador uma questo indicativa. Da mesma forma, uma letra de cambio é um “indice” em relacdo a um determinado sistema de crédito no qual essa letra pode ser negociada. Este ponto tem significagdo nao sé em relacdo a nocdo de Althusser de que a “estrutura” no pode ser “inscrita’’ no real (de que a teoria ‘‘pro- duz” essa historia), mas em relacdo ao nominalismo de Popper, e ao “‘indi- vidualismo metodolégico”, que considera todas as nogGes de coletividade e de estrutura como ficcées “holistas’ ou como abstracdes impostas pelo observador. Mas, como MacIntyre mostrou, “o exército” 6, na visdo de Popper, um conceito abstrato; “o soldado” é um conceito concreto, uma evidéncia isolada, que ele admite. E, nao obstante, 40 AMISERIA DA TEORIA Nao se pode caracterizar um exército com referéncia aos soldados que a ele pertencem. Para isso seria necessério identificd-los como soldados, 0 que jé seria introduzir 0 conceito de um exército. O soldado nao é apenas um indivi duo que pertence a um exército. Assim, verios que a caracterizagdo dos individuos e das classes tém de ser feita em conjunto. Essencialmente, esses duas tarefas nao séo separdveis.20 Um nominalista, se fosse suficientemente rigoroso, teria que descrever 0 registro da enfiteuse e a letra de cémbio como textos de escritos sobre velino ou papel, e se veria também em dificuldades para descrever a escrita independentemente do conceito de linguagem. Sao os filhos dos nominalis- tas de ontem que hoje sdo os discfpulos de Althusser. Vamos ficar por aqui. Mostrei certas maneiras de interrogar os fatos, e sem duvida outros meios disciplinados e adequados podem ser propostos Estes tém dois atributos comuns: (1) supdem que o historiador esté empe- nhado em algum tipo de encontro com uma evidéncia que nao é infinita- mente maledvel ou sujeita 4 manipulacdo arbitréria, que hd um sentido real e significante no qual os fatos “‘existem’’, e que séo determinantes, embora as questdes que possam ser propostas sejam varias e elucidem varias inda- gacdes; (2) envolvem uma aplicacdo disciplinada e ponderada, e uma disciplina desenvolvida precisamente para detectar qualquer tentativa de manipulagao arbitraria: os fatos nfo revelaraia nada por si mesmos, o histo- riador_ter4_que trabalhar arduamente para permitir que eles encontrem “‘Suas proprias vozes’’. Mas atencdo: nao a voz do historiador, e sim a sua (dos fatos) propria voz, mesmo que aquilo que podem “‘dizer"’ e parte de seu vocabuldrio seja determinado pelas perguntas feitas pelo historiador. ‘Os fatos no podem “falar” enquanto nao tiverem sido interrogados. Levantei, na argumentacio precedente, certas “‘objecdes prdticas’ em relacdo as aparéncias, isto 6, 0 que o historiador pensa estar fazendo, o conhecimento que tem de seus proprios processos. Isto leva a procedimen- tos muito diferentes dos apontados por Popper. E Althusser encontraria em minha exposigao capitulacdes censuraveis a “ideologia empirista’’. Mas nfo pretendo prolongar esta linha de defesa: ela poderia ser muito estendida, muito desenvolvida, e poderfamos penetrar mais intimamente a Oficina de trabalho do historiador. Mas apresentar uma defesa seria admi- tir que foi feita uma acusacao séria, a exigir tal defesa. E isto ndo aconte- ceu. Nem Popper, nem Althusser, evidencia qualquer conhecimento (ntimo dos procedimentos do historiador: nenhum deles compreende a natureza do conhecimento historico. Popper mostra maior curiosidade e, portanto, suas objegdes merecem a cortesia de alguma resposta;3! mas suas repetidas confusdes entre procedimentos nas ciéncias experimentais e na disciplina historica, e entre os diferentes tipos de conhecimento que disso resultam, invalidam seu questionamento.3? Althusser néo revela nenhuma curiosi- dade, Ele nao gosta do produto, o conhecimento histérico, e sua aversdo OS FILOSOFOS E A HISTORIA al talvez seja grande a ponto de impedir uma maior aproximagao. Ele sabe que a Teoria poderia escrever uma historia melhor. "OQ conhecimento da historia nado é hist6rico, tanto quanto nado ¢ acucarado o conhecimento do actcar”. E o que diz Althusser. Examine- mos um pouco esse bravo epigrama. Obtém o assentimento de um espirito desatento devido ao seu Obvio senso comum, e mesmo 4 sua banalidade: nenhum conhecimento pode ser a mesma coisa que seu objeto. Quanta verdade! E poderiamos criar uma Casa da Moeda epistemoldgica, para cunhar epigramas da mesma ordem. ‘“‘O conhecimento do Partido Comu- nista Francés nao é comunista, tanto quanto ndo é molhado o conheci- mento da 4gua’. (Poderiamos recomendar essa pratica como distragao mental durante mondtonas viagens de trem.) Mesmo assim, os termos desse epigrama banal foram dispostos de modo a nos levar a uma falsa conclu- so. Na primeira cldusula (“historia (...) historico"’) somos levados delibe- radamente a uma ambigiiidade, pois “historico”’ pode significar relaciona- do aos acontecimentos ou evidéncias historico-reais, ou pode significar relativo a disciplina historica (0 conhecimento da histéria). Althusser pre- tende que nés — porque um filésofo rigoroso nao poderia cometer inocen- temente um tal solecismo — confundamos esses dois significados. Se ele tivesse proposto que o “conhecimento histérico nao esta relacionado com a historia, tanto quanto nao é acucarado 0 conhecimento do acticar’’, ndo reconhecer {amos imediatamente uma revelacdo de verdade. Suspeitariamos, (com razdo) de que estévamos sendo enganados. E examinarfamos mais cri- ticamente a segunda clausula. Por que “doce’’? Que relacées existem entre “historico” e ‘doce’ de modo a ser possivel uma analogia logica( “‘Histéri- co" & uma definigdo genérica: define muito geralmente uma propriedade comum de seu objeto (relativo ao passado e n&o ao presente ou ao futuro). “Doce” isola uma unica propriedade, entre varias outras que se poderiam propor. O agicar tem propriedades e constituic¢do quimicas, pode ser mas- cavo ou brando, em cubos ou pulverizado, pesa tanto, e seu preco continua subindo. A propriedade isolada por Althusser — docura — nao se relaciona com o conhecimento, mas com a percepcao sensérea, O acticar tem gosto doce, mas ninguém jamais provou o sabor da histéria, que talvez fosse amargo, Portanto, essas duas cldusulas tém apenas uma relagdo retérica ou polémica entre si. Um honesto equilibrio das cldusulas nos teria dado o seguinte: “O. conhecimento da historia nao € mais historico do que é doce o gosto do agticar.” Isto ndo teria surpreendido os inocentes leitores com a sabedoria da Teoria, nem os teria feito correr a consultar Bachelard e Lacan. Ou po- deria ter sido proposto ainda de uma outra forma: “‘o conhecimento da his- toria ndo é mais histérico do que é quimico o conhecimento do agucar.” Isto nos teria aproximado mais de uma analogia, mas nao teria servido tio bem ao propésito do truque althusseriano. Pois raciocinar/amos que 0 ¢o- 42 A MISERIA DA TEORIA nhecimento da historia é hist6rico (pertinente a disciplina historica) exata- mente da mesma maneira em que o conhecimento do acticar é quimico (encontra sua defini¢do na ciéncia quimica). O que Althusser nos quer transmitir com seu epigrama é o seguinte: “o conhecimento da historia nao tem com a histéria real maior relac¢do do que tem o conhecimento do agiicar com o agucar real.” Veriamos, entao, que nao nos é oferecida uma arrojada descoberta, mas um tru(smo episte- moldgico (o pensamento nao 6 a mesma coisa que o seu objeto), ou entdo uma proposigao cujas duas cléusulas séo inexatas e cujas implicacdes séo mesmo um tanto absurdas. Mas somos convidados a entrar no teatro al- thusseriano através de muitas roletas verbais desse tipo: “compramos” essas proposigées exaltadas como nosso prego de entrada. Tudo o que pre- cisamos dar em troca é um pouco de nossa razo. E uma vez dentro do tea- tro, verificamos que nao ha safdas. Poderiamos examinar outras proposicdes viciadas, da mesma maneira, mas ndo vou expor meus leitores ao tédio. Jd ¢ tempo de formularmos uma pergunta mais séria: como Althusser, 0 arquiteto racional, construiu esse ‘teatro do absurdo? De que problemas se ocupava, cujas complexidades o levaram a _essas agonias_de automistificacdo? Uma resposta poderia ser proposta em dois niveis diferentes: ideoldgico e tedrico. Deixamos de lado, no momento, a investigacdo ideolégica. Primeiro, far-Ihe-emos a justica de considerar suas idéias segundo a avaliacdo feita por ele mesmo: vamos supor que Althusser chegou ao irracionalismo por processos (ainda que falhos) racionais. Vimos que a rachadura central, que percorre todo o pensamento de Althusser 6 uma confuséo entre os procedimentos emp/ricos, controles em- piricos, e algo que ele chama de “empirismo”. Essa rachadura invalida ndo uma ou outra parte de seu pensamento, mas 0 pensamento como um todo. Sua posi¢io epistemolégica impede que compreenda os dois “didlogos” a partir dos quais se forma nosso conhecimento: primeiro, 0 didlogo entre © ser social e a consciéncia social, que da origem a experiéncia; segundo, o didlogo entre a organizacao tedrica (em toda a sua complexidade) da evi- déncia, de um lado, e o carater determinado de seu objeto, do outro. Em conseqléncia da segunda deficiéncia, ele nado pode compreender (ou deve representar erroneamente) o cardter daqueles procedimentos empiricos que so elaborados, nas diferentes disciplinas, néo s6 para interrogar os “"fatos”, como para assegurar que eles respondam, néo com a voz do inter- rogador, mas com a sua voz propria. Em conseqiiéncia da primeira incapa- cidade, Althusser n3o pode compreender nem a génese real, existencial, da ideologia, nem as maneiras pelas quais a praxis humana contesta essa imposi¢&o ideolégica e pressiona contra suas amarras. Como ignora ambos os didlogos, néo pode compreender como o conhecimento historico “acon- tece” (como experiéncia), nem os procedimentos de investigacdo e verifica- OS FILOSOFOS E A HISTORIA 43 ao da disciplina histérica. A “cesura epistemoldgica”, com Althusser, é uma cesura com 0 autoconhecimento disciplinado e um salto na auto- geragdo do “conhecimento”, de acordo com seus proprios procedimen- tos tedricos, isto é, um salto para fora do conhecimento e para dentro da teologia. Ele da esse salto porque no consegue ver outra safda do compulsivo campo ideolégico do empirismo genuino, com sua complacéncia intelectual propria e suas técnicas positivistas autoconfirmadoras. “O positivismo, com sua estreita visio da racionalidade, sua aceita¢do da fisica como para- digma da atividade intelectual, seu nominalismo, seu atomismo, sua falta de hospitalidade para com todas as visées gerais do mundo“? — isso néo foi inventado por Althusser. Aquilo de que ele quer fugir — a prisdo empi- rista, fechada em si mesma, cujas metodologias patrulham com as chaves (estatfsticas, lingiifsticas) presas 4 cintura, fechando todas as portas para impedir 0 ingresso do processo estruturado — certamente existe. Althusser escalou seus muros, pulou, e agora constréi seu teatro num sitio adjacente. Prisdo e teatro se entreolham com desconfianga. Mas (coisa curiosa) tanto a priséo como 0 teatro esto construidos em grande parte com os mesmos materiais, embora os arquitetos rivais sejam inimigos jurados. Vistas do an- gulo do materialismo historico, as duas estruturas evidenciam uma identida- de extraordinaria. Sob determinadas luzes, parecem ecoar-se mutuamente, fundir-se, exemplificar a identidade dos opostos. Ambas sao produtos da estase conceptual, erguidas, pedra sobre pedra, com categorias nao-hist6ri- cas, estaticas. A questio critica concerne menos a epistemologia em sua relag¢do com fatos isolados (embora tenhamos observado certas semelhan¢as no caso) do que a legitimidade epistemolégica do conhecimento hist6rico, quando considerado em seu aspecto de conhecimento de causacio, de es- trutura, das modalidades de relagao entre grupos ou instituigdes sociais, e da logica (ou “leis”) do processo histérico. E aqui que prisdo e teatro unem forgas comuns contra o materialismo historico, pois ambos afirmam ser esse conhecimento (como um conhecimento do real) epistemologicamente ilegitimo; Althusser n3o pode atingir o “empirismo” de maneira alguma, porque parte da mesma premissa e simplesmente faz uma “cesura”, auma certa altura, rumo a uma conclusao idealista. Tanto Popper (a) como Al- thusser (b) afirmam a incognoscibilidade da historia como processo que encerra sua propria causa¢ao, j4 que (a) qualquer nogao de estruturas e me- diagdes estruturais acarreta atribuigdes “holistas” impréprias, e as nogdes “historicistas” de causac3o e de processo so inverificdveis pelos testes experimentais; ou uma vez que (b) a nogdo de que o conhecimento “ja esta realmente presente no objeto real que deve conhecer” é uma ilustio do empirismo “‘abstracionista”, que toma erroneamente as suas préprias atti: buigdes ideolégicas como descobertas empfricas. O que importa que Al: 44 A MISERIA DA TEORIA thusser salte, ent0, para a concluséo de que o conhecimento pode e deve fabricar, a partir de sua propria matéria tedrica, um “‘conhecimento” his- térico que 6 (no uso que faz Popper da expressSo), um notdrio “histori- cismo”’? Um verdadeiro empiriste ficara satisfeito com isso, pois aos seus olhos Althusser apenas confirmou, pela sua agilidade idealista, o carater inverificével e ideoldgico de tode essas pretensdes ao conhecimento his- torico. Althusser oferece um excelente exemplo da discusstio no seminério —um epilogo para A miséria do historicismo. As objecées ao materialisme histérico que esses antagonistas levan- tam em comum sido: os “fatos’” (mesmo se conheciveis) sdo isolados; sio como uma “'mateéria-prima” impu‘a — portanto (algo nao explicitado, mas suposto) multiplos ““fatos” multiplicam as impurezas. Os fatos histéricos sobrevivem (como textos) de modos fortuitos ou pré-selecionados: chegam sempre j4 no interior de um campo ideolégico (de uma certa sociedade do passado, e em termos de sua proptia auto-avaliag¢4o); nao sio, portanto, de modo algum “neutros”. As nocdes historicas de causagao ou de estrutura so construgdes tedricas altamente elaboradas; como tais, séo propriedades da teoria e nao de seu objeto, a historia “real’’. Nenhum procedimento em- pirico pode identificar a categoria classe social; ndo se pode realizar nenhu- ma experiéncia que prove ocarater burgués da ideologia burguesa, nem mes- mo que autorize essa nogdo holista. O vocabuldrio pode ser diverso, mas a logica de ambas as partes 6 convergente. A essa altura os filésofos apertam- se as maos, beijam-se nas bochechas e se separam. O verdadeiro empirista diz, ent&o: ‘Os fatos isolados séo tudo 0 que se pode conhecer. A ‘histéria’ é um conceito holista inadequado para cobrir uma seqiiéncia de fatos isola- dos tal como de fato se sucederam. Se introduzimos conceitos, os estamos introduzindo como ‘modelos’ que Nos ajudam a investigar e organizar esses fatos; mas devemos deixar claro que esses modelos existem em nossa cabeca e no ‘na’ historia, E devemos desenvolver técnicas empiricas cada vez mais aperfeicoadas, livres de valores e preferivelmente quantitativas, para permi- tir que esses fatos se mostrem tal como realmente aconteceram. Haja o que houver, farei com que os fatos ngo escapem de suas celas isoladas de pri- sdo, entrem em relacdo, ou realizem assembléias de massa.” O marxista estruturalista exaltado diz: “Adeus! Teus procedimentos me aborrecem. Volto ao meu teatro para escrever 0 roteiro a partir de alguma historia me- thor, revolucionéria.” Mas 0 curioso 6 que, caminhando em diredes opostas, eles acabam chegando exatamente no mesmo lugar. Veremos como isso acontece. As “ciéncias” (propds Althusser) ‘nao precisam absolutamente da comprova- Gao de praticas exteriores para declatar ‘verdadeiros’ os conhecimentos que produzem”. E (lembramos) cita explicitamente o materialismo histérico como uma dessas ciéncias. “E a pratica tedrica de Marx que constitui o critério da ‘verdade’ dos conhecimentos produzidos por Marx (LC, 61/11). E OS FILOSOFOS E A HISTORIA 45 certo que ele diz uma vez, numa rara concesséo a um mundo extrafiloséfi- co, que os éxitos e fracassos desse conhecimento tedrico “‘constituem ‘ex- perimentos’ pertinentes a reflexdo da teoria sobre si mesma e seu desenvol- vimento interno”. A concesséo é imprecisa, os “‘experimentos’ nao sao identificados, os critérios de éxito ou fracasso ndo s&o especificados; o tom sugere que tais “experimentos” sao pertinentes mas néo essenciais; e nao ha sugestdo de que possam determinar, sob nenhum aspecto, o ‘’desen- volvimento interno” da teoria. De modo que, mais uma vez, encontramos uma compatibilidade notavel entre o estruturalismo idealista de Althusser ‘0 “empirismo fraco” de Popper. Nossos dois filsofos estiveramn trilhando caminhos distintos, mas pa- ralelos, cumprimentando-se por cima dos epistemologicamente iletrados canteiros dos historiadores. Mas agora os caminhos novamente convergem. O ceticismo radical de Popper parecia colocar-nos sob a orientagdo de uma lagica vigilante; a epistemologia de Althusser nos dirige para os rigores da pratica tedrica. Ambos parecem dignificar a teoria ou a ldgica, e colocé-las acima das aparéncias ilusdérias da “realidade objetiva”. Mas a conseqiténcia 6 que os dois se encontram, nao na fonte do pensamento, mas a contemplar com espanto o lago dos peixinhos dourados das aparéncias. Ambos os ca- minhos da légica levam 4 mesma sujei¢ao das coisas. Popper desautoriza 0 que nao pode ser percebido pelos sentidos, testado pela experimentaco, verificado; mas as interconexGes dos fendme- nos sociais, a causagao dentro do processo histérico parecem-Ihe estar além de qualquer prova experimental: por isso o empirismo fraco nos deixa con- templando, sem compreendé-las, as manifestagdes mais imediatas do mun- do, aceitando-as tal como so porque isso ¢ 0 que parecem ser. Althusser, pelo contrario, esta vigilante contra as aparéncias do “senso comum”. Des- confia de toda manifestagao de todo sinal “exterior” — a pratica tedrica esta equipada de seus proprios critérios e de seu proprio discurso da de- monstracdo. Mas o que se segue disso? Como a teoria possui apenas meios internos para a sua autoverificacao, ela poderia se desenvolver, pela sua propria extrapolacao, da maneira que melhor the parecer. (E isto é o que faz, em algumas expressées altamente tedricas.) Mas na verdade nao pode- mos lidar com as questées da vida dessa maneira, nem podemos encami- nhar as questdes do pensamento de qualquer maneira substantiva ou sobre qualquer problema substantivo, Quando deixamos para trés a epistemo- logia e fazemos perguntas sobre nossos vizinhos, ou sobre a economia, ou a historia ou a pratica polftica, entéo algum tipo de suposi¢do (referente Aquilo sobre o que estamos pensando) deve ser feito antes mesmo que pos- samos comegar a pensar. Como a teoria desautoriza qualquer apropriaco ativa do mundo ex- terior da Gnica maneira possivel (pelo relacionamento ativo, ou o didlogo, com sua evidéncia) entéo todo esse mundo deve ser pressuposto. A “ma- 46 A MISERIA DA TEORIA téria-prima” (G I) que chega é simplesmente tomada como dada, e nenhum volume de processamento puramente interno por G ii para transformé-la em G Ill pode “produzir bolsas de seda com essas orelhas de porco” — ela continua sendo (embora fantasiada e sofisticada) exatamente o que era no comeco — suposigdes (preconceitos, interpretagdes de “senso comum” daquilo que “todo mundo sabe") que se prestam convenientemente a con- firmacéo (ou “ilustragdo”) das proposig6es anteriores da teoria. Nao im- porta realmente que Popper e Althusser, inclinados com espanto sobre o mesmo lago, vejam peixes de cores diferentes — as nogdes empirico-bur- guesas e estrutural-marxistas daquilo “que todo mundo sabe” sao apoiadas em pressupostos ulteriores diferentes. Ambos tém razées episternolégicas imaculadas para ver exatamente o que queriam ver. Ali, naquele lago, nadam as aparéncias: para Althusser os peixes pa- recem vermelhos, para Popper eles sdo cinzentos — o primeiro vé um mag- nifico Estado dos Trabalhadores passar nadando, o outro vé, entre as algas, uma reticente Sociedade Aberta. E ambos acabardo ficando com aparén- cias, j4 que ambos comegaram negando que estas sejam a inscri¢éo de uma tealidade ulterior, de relacdo e praticas, cuja significag8o sé pode ser des- vendada depois de um drduo interrogatério. As aparéncias nao revelardio essa significago espontaneamente e por si mesmas — havera necessidade de repeti-lo? Nao pretendo negar a seduto- ra e evidente por si mesma mistificagdo da aparéncia, ou negar nosso pré- prio auto-aprisionamento em categorias ndo examinadas. Se supomos que © sol se move em torno da terra, isto nos seré confirmado a cada dia pela “experiéncia’. Se supomos que uma bola rola morro abaixo pelas suas préprias. energia e vontade inatas, nada, na aparéncia, nos desautorizaré. Se supomos que as mas colheitas e a fome sao causadas pelo castigo de Deus por nossos pecados, néo poderemos fugir a esse conceito apontando a seca, as geadas tardias e as pragas, porque Deus bem poderia ter escolhido esses instrumentos para se manifestar. Temos que romper as velhas categorias e criar outras, novas, antes de podermos “explicar” a evidéncia, que sempre esteve ali. Mas a criacdo e a destruicdo de conceitos, a proposigao de novas hi- pOteses, a reconstrugdo de categorias, néo séo questao de invencdo tedrica. Isto qualquer um pode fazer. A pentiria seria, quem sabe, uma brincadeira do diabo? As pragas nas plantacdes inglesas seriam uma conseqiiéncia da feiticaria francesa? Ou talvez a realizagdo de uma velha maldicdo, conse- qiléncia do adultério da Rainha? As aparéncias confirmaréo do mesmo modo cada uma dessas hipéteses: sabe-se muito bem que o diabo anda solto por ai, que os franceses sao feiticeiros, e que a maioria das rainhas é de adilteras. E, se consideramos a Unido Soviética um Estado de Trabalha- dores guiado por uma teoria marxista esclarecida, ou que as forcas do mer- cado na sociedade capitalista maximizarao sempre o bem comum, em qual- INTERVALO: A LOGICA HISTORICA 47 quer desses casos podemos ficar no mesmo lugar o dia inteiro, vendo o bri- Ihante sol socialista percorrer o céu azul, ou a bola do Produto Nacional Bruto rolar pelo morro da abundancia, ganhando béngdos 4 medida que desce. Nao precisamos repetir este bé-a-ba. Mas este bé-a-b4 ndo 6 um cédigo especial, compreendido apenas pelos légicos. E um alfabeto comum, a ser dominado na fase de aprendiza- gem de todas as disciplinas. Tampouco 6 uma licdo rigorosa, a ser periodi- camente ministrada aos ““empiristas” (e sé a eles). Sem duvida ha empiris- tas que precisam dessa correcdo. Mas a licdo é uma faca de dois gumes. Hipdteses autogeradoras, que nao estdo sujeitas a nenhum controle empi- rico, nos levardo ao escravizamento da contingéncia téo rapidamente — e talvez mesmo mais rapidamente — quanto se renderdo ao “‘6bvio’’ e ma- nifesto. Inclusive, um erro gera e reproduz o outro, e ambos podem ser freqiientemente encontrados na mesma mente. O que devemos recitar de novo, ao que parece, é a natureza 4rdua do embate entre o pensamento e seu material objetivo: o “‘didlogo” (seja como praxis ou em disciplinas intelectuais mais conscientes de si mesmas) a partir do qual todo conheci- mento é obtido. VII Haverd agora um breve intervalo. Podemos imaginar que as luzes se acende- ram e vendedores de sorvete estdo circulando. Durante esta pausa pretendo discutir a ldgica historica. Os filésofos ou sociélogos que tém uma aversdo ou uma desconfianca profunda por esse assunto so aconselhados a se reti- rar para @ foyer e o bar. Poderdo voltar para a secdo VIII. Nao é facil discutir este tema. Recentemente, eu estava em Cam- bridge como convidado a um seminario de antropdlogos ilustres, quando me pediram para justificar uma proposigao, e respondi que ela era validada pela “légica histérica”. Meus améveis anfitrides ndo conseguiram disfargar © riso. E claro que partilhei de sua hilaridade, mas também fui levado a refletir sobre o significado “antropolégico” desse didlogo. E hdbito, nos rituais académicos, que os praticantes de diferentes disciplinas demonstrem respeito, nao tanto pelas descobertas da disciplina de cada um, mas pelas credenciais auténticas que as proprias disciplinas apresentem. E se um se- minédrio de historiadores viesse a rir das credenciais mesmas (isto é, a Idgica ou disciplina central para sua pratica) de um filésofo ou de um antropdlo- go, isso seria considerado um insulto. E a significacéo desse didlogo foi a existéncia de uma suposi¢&o muito generalizada de que a “historia” cons- titui uma exceco a essa regra; que a disciplina central 4 sua pratica era um motivo de riso, e que, longe de me ofender, eu, como praticante, partici- Paria da hilaridade. t

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