Sie sind auf Seite 1von 26
Linpa M. HEywoop (organizadora) DIASPORA NEGRA NO BRASIL Oswaldo Faustino editoracontexto Copyright® 2008 Linda M. Heywood ‘Todos os direitos desta edigio reservados & Editora Contexto (Editora Pinsky Leda.) Hustragio de capa Detalhe alterado de “Tocador de berimbau”, Jean-Baptiste Debrer, 1826 Montagem de capa ¢ diagramacio Gustavo S. Vilas Boas Revisdo da tradugiio Mirna Gleich Revisio de prova Daniela Marini Iwamoto Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP. Brasil ‘Didspora negra no Brasil / Linda M. Heywood (organizadora)s [traducio Ingrid de Castro Vompean Fregone, Thafs Cristina Casson, Vera Liicia Benedito].—Sdo Paulo : Contexto, 2008. Titulo original: Central Africans and Cultural ‘Transformations in the American Diaspora Virios colaboradares Bibliografia ISBN 978-85-7244-394-4 1. Aftica Central — Brasil ~ Assimilagéo cultural 3, Africanos — Brasil - Identidade émnica 4, Brasil - Civilizagao — Influéncias afticanas 5, Diéspora africana 6. Excravidio ~ Aspectos sociais — Histéria 7. Teifico — Escravos ~ Brasil - Historia 1. Heywood, Linda M, dices para catdlogo sistematico: téfico de escravos afticanos : Histéria 981 Eprrora Conrexto Diretor editorial: jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, $20 — Alto da Lapa 05083-030 ~ S4o Paulo — sp PABX: (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br www.editoracontexto.com.br Proibida a reprodusio roral ou parcial. Os infratores sero processdos na forma da lei. De portugués a africano: a origem centro-africana das culturas atlanticas crioulas no século xvi Linda M, Heywood Este capitulo afirma que 0 processo de interpenetragio religiosa, que John ‘Thornton descreveu no capitulo anterior, era também visfvel em outros aspectos da cultura centro-africana, ¢ que essa dindmica continuou a caracterizar as relagdes afro-portuguesas durante o século xvu. Também salienta que, no inicio daquele século, uma cultura crioula emergira na Angola portuguesa ¢ em Benguela, ¢ Passava por um processo significativo de transformagao. Mostra também que esse fendmeno ocorreu como resultado da africanizacéo dos colonizadores portugueses ede suas culturas, ilustrando, portanto, que a crioulizagao nao foi um processo que impactou somente a cultura africana ¢ seus povos. Na Africa Central, os portugue- ses, povo europeu portador de uma cultura ocidental, nao encontraram dificulda- des para se adaptar ao ambiente dominante da cultura africana. E por fim este texto também demonstra como os centro-africanos foram habilidosos em integrar, se- letivamente, elementos da cultura européia em seus contextos culturais. A FAVOR DE UMA CULTURA ANGOLANA CRIOULA ‘Trabalhos jé publicados, assim como contribuicées no presentelivro, fornecem ampla evidéncia da tese de que a cultura portuguesa em Angola e Benguela foi Didspora negra no Brasil significativamente alterada antes do século xvii. O que é menos conhecido sao as condigées que favoreceram essa ocorréncia ¢ os fatores que contribufram para sua disseminagao e evolugao continuas, muito além das principais regides licoraneas da Africa Central em que os portugueses se estabeleceram. Estudos de Angola que tém se concentrado nesta questao salientam as dimensées politico-militares das relagées luso-africanas no perfodo anterior a0 século xix e tém utilizado o termo “feudalismo luso-africano” para caracterizar os arranjos de vassalagem que selavam o relacionamento entre os soberanos africanos ¢ os portugueses na regiao.' Outros trabalhos, entre eles alguns efetuados por escritores modernos ¢ defensores da ditadura brutal de Salazar, que emergiu em Portugal em 1926, desenvolveram o conceito de “luso- tropicalismo” (especialmente em suas manifestagées apds a Segunda Guerra Mundial) para descrever a situaco. Esses estudos chegam ao ponto de ver nas relagdes afto-portuguesas iniciais as raizes da “democracia racial” que eles afirmavam existir em Angola ¢ no Brasil? Outro grupo de escritores portugueses ¢ angolanos, entre eles Oscar Ribas, Mario Anténio Fernandes de Oliveira e Iidio do Amaral, procuraram explicar 0 “luso-tropicalismo” em Angola mais como uma manifestagdo da influéncia da cultura portuguesa.’ Antonio de Oliveira, por exemplo, afirmou que as comemoracées de 1620 da beatificagao do padre jesuita Francisco Xavier, em Luanda, foi uma manifestagao do barroco portugués. Ele descreveu um festejo puiblico que comegou com “brancos conduzidos por um anao negro de Dongo que tinha a intengio de representar 0 padre”. A celebracao também inclufa personagens que representavam reis de Angola e Congo que evocavam “versos herdicos” em honra a Xavier. A festa também inclufa crioulos de Séo Tomé, que executavam uma “danga congo”.! As pesquisas de Antonio de Oliveira, juntamente com Oscar ¢ Ilidio, cujos trabalhos detalharam a vida cultural anterior ao século xix da Angola portuguesa, avangaram além das apologias polfticas, apontando influéncia africana na culeura Ver Anténio da Silva Rego, O Ulimamar Portugués no Século xix (1834-1910) (Lisboa: Agéncia Geral do Ultramar, 1966), p. 248. 2 Gilberto Freyre, Casa-grande e Senzala (Rio de Janeiro: Olympio, 1969 [1933] 2.vols; Gilberto Freyre, Sobnados © Mocambos (Rio de Janeiro: Olympio, 1968 [1936]; Charles Ralph Boxer, Portuguese Society in the Tropics: The Municipal Councils of Goa, Macau, Bahia and Luanda, 1500-1810 (Madison: The University of Wisconsin Press, 1965). idio do Amaral, “Luanda em meados do século xix, revelada num texto de 1848", Garcia de Orta, Ser. Geografia, Lisboa 9: 1-3 (1984); 1-16. * Festejos pela Beatificagio do Padre Francisco Xavier em Luanda (1620), em Mario Antonio E. Oliveica, Reler Africa (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1990), pp. 45- 102 De portugues a alricano portuguesa em Angola. Fles, juntamente com outros que percebiam a influéncia portuguesa nas sociedades africanas em Angola, estabeleceram as bases para 0 estudo dos elementos crioulos na cultura angolana.* CRIOULIZACAO NAS AREAS PRINCIPAL MANIFESTAGOES DO SECULO XVII Durante o século xVIIL, a crioulizag4o dos portugueses e de suas culturas no reino de Angola ¢ no reino de Benguela cra evidente na mistura biolégica de homens europeus com mulheres africanas livres e escravas e no crescimento de uma populacao afro-lusitana. A interpenetracao das duas sociedades era também aparente na esfera cultural. Estas inclufam praticas ¢ rituais religiosos, costumes de nomeagio — do maior segmento da populagéo -, 0 uso do quimbundo e umbundo como as Hinguas francas das duas regides, a cozinha, danga, mtisica ¢ outras préticas culturais da colénia. Naquele mesmo século xvii, a interac&o cultural era tao pronunciada que toda autoridade secular ¢ religiosa que ia da metrépole para a colénia a notava € criticava-a como sendo de uma “decadéncia profunda”.’ Essa avaliagao se baseava nao somente no fato de o comércio de escravizados ter dominado todos os aspectos da vida oficial e nao oficial da colénia, mas principalmente pelo que alguns observadores contemporaneos ¢ escritores consideravam o declinio do controle metropolitano portugués sobre as populagées ¢ as instituigdes culturais da colénia.’ Para eles, Angola e Benguela nao eram entrepostos europeus, embora eles nao tenham usado o termo “crioulo” para descrevé-los. A sociedade de oficiais nascidos na metrépole portuguesa encontrada em Angola e Benguela emergiu, sobretudo, por causa da continua superioridade demogréfica da populagio africana. Em 1772, 0 governador Lencastro relatou a distingio de classes entre a populagio em Luanda ¢ outros colonizadores portugueses que viviam numa area a 19 quilometros da cidade. Segundo cle, existiam cinco classes: a primeira era composta de homens brancos; a segunda, ‘Ves, por exemplo, Oscar Ribas, Misoso: Literatura Tradicional Angolana, vol. 1, 1961; Iidio do Amaral, “Luanda em meados do século xix" Yes por exemplo, Elias Alexandre da Silva, Histévia de Angola, ed. Manuel Miiias, 2 vols, (Lisboa: Editorial tica, 1937). Para perfodo anterior, veja, por exemplo, Anténio de Oliveira de Cardonega, Histéria Geral das Guerras Angolanas (1680-1), 3 vols, eds. José Matias Delgado (Lisboa: Agencia Geral do Ultramar, 1940-42); David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and their Neighbors Under the Influence of their Portuguese, 1483- 1790 (London: Oxford Press, 1966). 103 dspora negra no Brasil de mulatos livres; a terceira, de africanos livres; a quarta de, mulatos escravos ¢ a quinta, de escravos africanos.* © censo populacional da colnia de 1776 (O reino de Angola ¢ 0 reino de Benguela) mostrou a distribuigéo demogréfica da populagio, sob a administragio portuguesa, O censo mostrou um total de apenas 1.700 brancos, contra 3.874 africanos, entre livres ¢ escravizados, ¢ 637 mulatos. Quanto & populacio sob a jurisdicao dos chefes indigenas (sobas), 435.637 eram africanos livres ¢ 45.510, africanos escravizados.? Por causa da superioridade demografica da populacio africana e a tendéncia das culturas banto de se transformarem com o passar do tempo ao absorver elementos de fora, emergiu na colénia uma cultura afro- lusitana, com elementos afticanos dominantes em muitas dreas. O grupo que constituiuo centro dessa comunidade crioulaconsistia dealguns dos residentes portugueses de longa data nascidos na metrépole (naturalizados) ce scus filhos brancos nascidos em Angola ¢ criangas mestigas (filhos da terra). O numero de afro-portugueses dessa comunidade crioula aumentou mais rapidamente do que o de europeus em funcdo da escassez de mulheres européias, uma situa¢ao que impediua emergéncia de uma comunidade branca portuguesa auto-sustentavel. Assim, homens portugueses ¢ brasileiros tomaram mulheres africanas para concubinas e esposas, ¢ seus descendentes tornaram-se uma forte influéncia na vida cultural da colénia durante o século xvi. As condig6es que levaram a expansto da populacao crioula com sua cultura mista datam dos primérdios da colonizacao portuguesa, quandoa Monarquia usava acoléniacomo um local deexilio para os pariase os criminosos de Portugal, Madeira e Brasil. Durante 0 século xvill, 0 ntimero de degredados em Angola e Benguela continuou a aumentar, sendo que muitos iam do Brasil, a préspera colénia escravocrata portuguesa nas Américas."° Esses degredados (na maioria homens), contribuiram com varios elementos para o desenvolvimento da cultura crioula. Hé um fato interessante sobre essa populagéo, Muitos dos colonizadores eram o que os oficiais portugueses denominayam de “cristdos novos” (judeus que haviam se convertido ao cristianismo) ¢ acusados de estarem menos interessados em disseminar 0 catolicismo “oficial” e a cultura portuguesa. Na realidade, entre 1714 e 1751, os relatérios do censo oficial descreveram os * Carlos Couto, Os Gapitier-Mores em Angola no Séeulo xv1 (Luanda: Instituto de Investigacao Cientifica de Angola, 1972), p. 110. 9 Couto, Os CapitiéerMores, p. 111. “Selma Pantoja, “Marker traders and smallholders: Women’s business in the food supply in Luanda — 18% to 19° centuries’, texto apresentado na Conferéncia “Bantu into Black: Central Africans in the Adantic Diaspora’, Howard University, 16 a 18 de seterbro de 1999. 104 De portugues a africano europeus que haviam se registrado na municipalidade de Luanda como “exilados, ciganose judeus”" que se casaram e mantinham ligagées com mulheres afticanas. Um desses homens era negociante Joao Teixeira de Carvalho, que, apés ser nomeado para o posto de mestre da escola em Luanda, em 1727, foi identificado como “um mulato de raga hebraica.” Seus criticos 0 acusavam de ser um judeu de Benguela que vivia em concubinato, negociava com estrangeiros € encorajava os escravos a se revoltarem contra seus senhores”.'? Referéncias & maneira pela qual “judeus” ou cristéos novos na colénia falharam em manter a distingao entre as comunidades afticanas ¢ curopéias aparecem nos registros de meados de 1740 ¢ depois. Por exemplo, missiondrios que escreveram em 1749 queixavam-se de que os comerciantes que viajavam para a colénia eram quase todos “cristaos novos... [que] ofendiam suas mulheres, filhas e escravas [...] desacreditavam do batismo e do casamento e introduziram a circuncisao (como um substituto para o batismo) [...]”."° Além disso, um relatério oficial do periodo mostrou que a maioria dos europeus degredados que viviam em Luanda, praticavam poligamia, mantendo uma esposa com grande pompa e uma segunda e terceira esposas (estas como escravas — mocambas).!4 Embora o tamanho das populagdes nascidas portuguesa e brasileira e de seus descendentes afro-lusitanos em Angola ¢ Benguela ficasse atrés daquelas de Cabo Verde Brasil, a mistura cultural e biolégica era significativa. Isso se dava especialmente no caso do teino de Angola, na cidade de Luanda e nas dreas em volta dos fortes militares de Muxima, Ambaca, Massangano, Cambambe ¢ Pungo Andongo, € no reino de Benguela, na cidade homénima e na drea de 19 a 26 quilémetros ao redor dos fortes de Caconda. Portugueses e brasileiros naturalizados angolanos seus descendentes brancos ¢ afro-lusitanos (filhos da terra) eram ligados & populagio local por uma série de complexes lagos econémicos, militares, politicos, culturais ¢ familiares. Por exemplo, nasregides principais da colénia—tanto nas cidades litoraneas de Luanda e Benguela quanto prdximas aos pres{dios interiores de Muxima, Massangano, Ambaca, Pungo Andongo, Caconda e Encoje —, uma populacio africana livre ¢ escravizada maior que a de brancos vivia nas casas e vilas que portugueses e afto- lusitanos possufam e participavam da cultura crioula. ncio, A Economia de Luanda e Hinterland no Séeulo xvin: Um Eseudo de Sociologia Historica ‘Lisboa: Edivorial Fstampa, 1996), p. 48. " B Graziano Saccardo, Congo e Angola: com la Storia dell'antica Missione dei Cappucini, 3 vols. (Venice: Curia Provinciale Dei Cappucini, 1982), vol. 2, pp. 299-300. ' Saccatdo, Congo e Angola, pp. 292-29. 44 Jose Carlos Venincio, A Economia de Luanda e Hinterland no Século xvii: Um Estudo de Sociologia Histérica (Lisboa: Editorial Estampa, 1996), p. 51 105 Didspora negra no Brasil Os milhares de africanos livres escravizados, que eram obrigados por seus superiores a trabalhar como carregadores para 0 exército e comerciantes, também participavam da cultura afro-lusitana. Muitos dos escravizados (/adinos) haviam nascido nas residéncias de portugueses ¢ afro-lusitanos. Falavam portugués, eram cristdos, viviam ¢ trabalhavam em casas € fazendas juntamente com seus senhores e senhoras. Qutros eram de propriedade do Estado ou viviam nas fazendas do governo, em vilas em torno de prestdios ou nas vilas minciras pertencentes ao governo. A Igreja Catdlica, que mantinha varias capelas e conventos na colénia, também possufa um ntimero significative de escravos ladinos, os quais faziam parte da populacao crioula, Outro grupo importante era composto de agentes africanos dos portugueses, brasileiros e populagdes mistas engajados no comércio de escravos € outros empreendimentos comerciais no interior. O grupo inclufa pumbeiros descalcados (comerciantes africanos), pretos calcados (mercadores afticanos considerados “brancos” no interior por causa de suas vestimentas ¢ porte) ¢ quimbares (africanos livres, muitos deles ex-escravizados de portugueses ou afro- portugueses) que eram profundamente influenciados pela cultura afro-lusitana © que a disseminavam por meio de suas conexdes de comércio no interior,"® DESENVOLVIMENTO NO CENTRO: A SOCIEDADE PORTUGUESA E AFRO-LUSITANA Foram os colonizadores portugueses c brasileiros, com seus filhos brancos afro-portugueses ¢ 0s filhos de afticanos livres ¢ mulatos (moles ¢ fiexos) ¢ seus es- cravos, que modelaram os elementos afticanos ¢ europeus de suas herangas para formar a cultura afto-lusitana de Angola. As fungGes oficiais desempenhadas por esse segmento da populagao, na colénia, registram o dominio social e politico cres- centedo grupo. Por exemplo, entre 1762 ¢ 1766, ele ocupava sempre as trés posi- ges mais altas no exército abaixo do capitio-mor"® portugués de nascimento, ea tropa era toda composta de mulatos ¢ “fuscas”. Varias vezes, durante o século, oficiais enviados de Portugal tentaram desassociar-se dessa comunidade angolana — africanos, afto-lusitanos ¢ europeus— ¢ condenavam suas prdticas culturais. De fato, alguns tentavam instituir, embora sem muito sucesso, uma nova politica cultural, impondo padrées metropolitanos © Instituto Histérico e Geogrifico Brasileiro (1118), lata 81, pasta 2, “Varios documentos relativos ao governo do reino de Angola 1677 a 1799", carva de Sousa Coutinho, 13 de serembro de 1769; Venancio, A Economia, p. 51 Couto, Os Capititer-Mores, p. 70. 106 De portugues a africano na populagéo para demonstraro queacreditavam ser habitos mais “civilizados”. Em. 1768, o governador Sousa Coutinho escreveu sobre a necessidade de trazer mais brancos para Luanda e Massangano, na esperanga de que cultivariam a terra e casa- riam entre si, pois “melhorariam a cor eos costumes” da populacao."” Todavia, essas tentativas entravam em choque com a cultura crioula jé firmemente estabelecida e cujos praticantes resistiam a qualquer tentativa oficial de mudanga cultural. No ano seguinte, outra recomendacio do governador Coutinho chamava a atengao da Coroa para colocar todas as criangas mulatas “de qualquer cor”, sem condiges ou pais que tomassem conta deles em orfanatos até as idades de 14 ou 16 anos. As pessoas mais jovens poderiam ter permissao para deixar 0 orfanato depois que aprendessem um oficio e estivessem prontos para casar.'* ‘Trés anos mais tarde, © governador voltou a falar no assunto da populagio incontrolavel de mulatos, sugetindo desta vez. que a Coroa libertasse todos a fim de usé-los para povoar 0 territdrio, salientando que até aquele momento suas ages prejudicavam o prestigio portugués.! Mesmo assim, os portugueses nao podiam controlar a colénia sem os afro-lusitanos. Em 1800, o governador Vasconcelos de Benguela enviou um pedido desesperado ao ministro das colénias, solicitando que lhe enviasse 80 casais do Rio de Janeiro, especificamente “pardos” (afto-brasileiros) como colonos. Ele observou que seriam mais adaptaveis ao clima, iriam aumentar a populacao dentro de alguns anos € poderiam servir como soldados.”” Interesses oficiais com a satide demografica da colénia estavam diretamente ligados aos planos de reforma cultural. A visio oficial era a de que 0 aumento da imigragao européia ou brasileira levaria a uma intensificagao da aculturacio nao apenas dos mulatos, mas da populacao em geral de escravizados e afticanos livres. Essa questo da demografia era particularmente crucial, dado o fato de que a populacao escrava na colénia tinha aumentado durante o periodo. Muitos desses escravizados eram cativos, que cairam nas maos de portugueses, mestigos e afticanos livres, como resultado das varias pequenas guertas travadas contra Estados independentes africanos, ¢ nominalmente seus vassalos.”' Na metade do século xvii o relatério do governador fez referencia a essa tendéncia demografica quando revelou as queixas dos vassalos sobas que eram Arquivo Nacional Histérico de Angola [ania], Officios para Angola, 79-A-7-2, Souza Coutinho para Anselmo Duarte Figueiro de Ferro, 8 de outubro de 1768. 1siGs, Iara B1, pasta 2, “Varios documentos relatives a0 governo do reino de Angola 1677 a 1799", carta de Sousa Coutinho, 13 de serembro de 1769. “Derrota de Benguela para o sertao", em Alfredo Albuquerque Felner, Angola: Apontamentas sabre a Colunizaiia dos Planalzos¢ Litoral do Sul de Angola, 3 vols. (Lisboa: Agéncia Geral das Colénias, 1940), vol. 1, p. 199. Arquivo Histérico Uleramarino [ssi], caixa [Cx], 95, Angola, marco de 1800, n° 18, carta de Alex José Bonificio de Vasconcelos 20 ministro. 2 anu, Angola, Cx 25 1750-1753, citado em Couto, Os Capitites-Mores, p. 158. 107 Didspora negra no Brasil forgados a viver escondidos com seus escravos ¢ pessoas livres porque temiam atirania dos negociantes, cuja tinica ambicao era “carregar e vender em Luanda, todos os dias, um ntimeto infinito de negros livres”, uma situacao que conduzia a varios litigios.? Os planos para aumentar a populagio européia objetivavam interromper o impacto cultural da populagio escravizada na colénia, Esses escravizados perfaziam uma porcentagem significativa da populagio nas reas principais. Por exemplo, em 1797, nimeros de Benguela apontavam que das mais de 9 mil pessoas residentes nas cercanias do presidio de Caconda, cerea de 2 mil eram escravas. Mulheres constitufam o grupo mais numeroso, representando mais de 60% da populagao. Todos os registros do perfodo fazem uma distingao entre aqueles afticanos que eram “civilizados” (que tinham contato com a cultura portuguesa) ¢ os considerados “barbaros” (nao influenciados por essa cultura, espe- cialmente no aspecto religioso).* Um oficial sugeriu que, para preservar os fortes portugueses no interior, as posig6es abaixo de capit&o-mor (quase todas ocupadas porafro-lusitanos) fossem destinadas aqueles considerados “menos barbaros”.”* Em. 1768, Sousa Coutinho, em referéncia as Areas além de Benguela e Caconda, sugeri- ra que os homens portugueses que li viviam usassem a religiao ¢ 0 comércio para unir povos dissidentes e distantes para o beneficio de ambos os grupos. Es nivel de mistura social entre os diferentes grupos sociais nas proximidades dos pre- sidios, Um relatério do capitéo-mor, no final do século, mencionou a dificuldade que ele encontro para separar a populacao escrava dos “moradores” (populacio civi- lizada) uma vez que os “moradores afticanos e mesmo os mulatos mantinham um convivio social com seus escravosa fim de que estes néo fugissem para o interior”. iniciativas, embora nunca totalmente introduzidas, conduziam a certo TRANSFORMAGOES NO CENTRO RELIGIAO A mistura bioldgica ¢ a quebra de algumas das disting6es sociais entre portugueses ¢ afticanos nao eram as tinicas dreas em que a interpenetragao de ‘Couto, Os Capinies- Mores, p. 158. Alguns desses relasdrios estavam incorretos, que oficias as vezes exageravam, a fim de propugnar legislacao aparentando proteger africanos, mas na verdade tinham o abjetivo di comércio para que representantes da Coroa pudessem exercer maior controle fiscal sobre a coldnia. 14GB, lata 31, pasta 5, “Noticias do Presidio de Caconda em Bengucla,” 1797. mics, lata 32, pasta 12, “Noticias do Pais de Quissama.” 25 Couto, Os Capitaes-Mores, p. 70. % Biblioteca Nacional de Lisboa [BN1], 6G Céd. 8554, carta de Sousa Coutinho, 23 de setembro de 1768, fol. 27-28. * TG, lata 32, pasta 4, “Noticias do Presidio de Ambacca do Reino de Angola”, 1797, naldar © 108 = pe as =, Epon aatricane grupos sociais ¢ idéias se concretizaram. A heranga catélica, em particular dos colonizadores portugueses ¢ brasileiros e de seus descendentes afro-lusitanos, passou por um processo extenso de africanizacao durante esse periodo. Por causa dela, as praticas religiosas e o padrao moral da comunidade receberam 0 impacto das crfticas dos oficiais portugueses nascidos na metrdpole. Muitos desses oficiais ficavam escandalizados ao perceber como os rituais da Igreja tornaram-se africanizados. Ficavam especialmente alarmados ao ver curopeus participando no que cles descreviam como “ritos nao cristaos” que vieram adominaras praticas religiosas da Igreja. Em 1736, o governador Rodrigues de Meneses informou & coroa que, em conseqiiéncia da nao-existéncia de prelados no reinado por muito tempo, havia “em todo lugar, nao somente entre os nativos do interior, mas mesmo entre os brancos, uso de supersticao ¢ ritos diabdlicos”. Também observou que, jd que nao havia meios de disciplind-los, persistiam nessas préticas.”* De fato, muitos padres e pessoas leigas em Angola e Benguela eram provenientes das classes de afro-lusitanos ¢ negros livres, que, de acordo com o relatério de um bispo, eram homens louvaveis, um dos quais era “muito bom no latim e teologia moral”, mas ele os considerava “despreparados para exercerem. qualquer dever eclesidstico”. A ofensa moral com que os oficiais recém-chegados qualificavam o que descreviam como fracassos morais ¢ teligiosos da populagéo local era motivada pelo fato de entenderem que a populacao, especialmente os africanos ¢ afro-lusitanos, tinham sido criados em uma “vida promiscua”? Entre o final da década de 1760 ¢ 1772, 0 governador Sousa Coutinho fez varias tentativas para corrigira situagao. Concentrou suaatengio na reconstrugao de igrejas e na construgao de novas, ¢ “terminar com todos os abusos puiblicos dos emtambes [funerais claborados em que rituaisafricanos¢ catélicos coexistiam] € outras superstig6es, que a ignorancia dos brancos permite que se pratique, queimando todos os idolos puiblicos e pelo menos fazendo tudo ter uma aparéncia crista”.*° A fim de encorajar a populacao a praticar ritos fiinebres mais cristaos, Coutinho enviou instrugdes aos capitées-mores dos presidios urgindo-os a terem cemitérios em seus distritos e esbocando o procedimento para assegurar que africanos que viajassem longas distancias dos presidios recebessem o entero adequado. Segundo o governador, isso também podia assegurar que “tivessem 3 conhecimento da Santa Fé ¢ os mistérios para a salvagao de suas almas” . > Gicado em Couto, Os Capitaes- Mores, p. 124 » sn, Angola, ex. 61, Relatdrio do Bispo, 11 de julho de 1778. © Felner, Angola: Apontamenaas sobre a Colonizacéa, 1, Carta le Coutinho, 26 de novernbro de 172, Mt anna, Oficios para Angola, Sousa Coutinho, “Carta para os capitaes-mores de todos os presidios ¢ distritos de todas os enterros dos negras c das condenacées”, $ de novembro de 1768. 109 Didispora negra no Brasil Entretanto, essas iniciativas pareciam ter pouco impacto nos europeus ¢ afri- canos na colénia e no interior. Um relatério da década de 1780 observou que os brancos do interior faziam rituais pagfos nas “casas de uso (rituais de puberdade), participavam em ‘tambos (entambes), adivinhagoes (xinguilamentos) juramentos, poligamia, infidelidade, adoragio a idolos, e circunciséo” 22 Poucos anos mais tarde, quando visitou Angola na década de 1790, Silva Corréa descreveu em detalhe a presenga esmagadora de priticas afticanas coexistindo no coracéo dos rituais da Igreja. Essas priticas sincréticas afto-cristas dominavam 0s sacramentos (funerais, casamentos e comunhio). Fle notou que amaioria da populacioacteditava tantoem “Jesus Cristo como em Moéne-Bengo ou outros feiticeiros” e que os brancos haviam “cafdo vitimas do vicio humano, tolerando ritos primitivos”. E foi ainda mais longe ao concluir que em Luanda a religigo era uma miscelanea de “catolicismo, islamismo* ¢ paganismo”, pela maneira como as pessoas faziam o sinal da cruz, “carregavam um rosétio em seus ombros, eram adeptos da poligamia, ou adoravam seus {dolos”. Ele estava particularmente preocupado com a grande penetragao dos costumes africanos nos tituais catélicos mais sagrados. Escreveu que os funerais (ensambes) eram celebrados com “superstigdes abomindveis”, notando que no ato cristéo mais sagrado “os feiticeiros uniam-se aos rituais mais sérios ¢ consagrados da cristandade”. Acrescentou ainda que os casamentos realizados na igreja também tinham “miisica que ressoava nos corredores”, “tambores demorados € o batuque (danica inidavente qite teeminava em bebedeiia) "queerimamddogpela visinbunea. ‘Também comentou que nas celebragdes de casamentos a noiva dangava e se misturava indiscriminadamente nas festividades dos escravizados.” Silva Corréa era especialmente crftico da forma como os portugueses em Luanda e no interior evitavam seus deveres cristZos ao “permitir” que seus escravos tomassem seus lugares nos ritos catdlicos mais sagrados, enquanto eles mesmos sucumbiam ao mundo material. Na realidade, cle escreveu que as “chibatadas de peniténcia” recafam somente sobre homens e mulheres aftica- nos, 08 quais freqiientemente tentavam evitar esse sacramento. Refetindo-se aos portugueses libertinos do interior, escreveu que alguns daqueles que se mudaram para longe estavam “profundamente envolvidos nessa vida abomi- ndyel” e tinham declarado “guerra aberta contra a nossa sagrada religifio”, fa- Arto, Angola, 20 de junho de 1788, relacério de Alexandre, bispo de Malaca. * Muitos portugueses acreditavam que alguns descendentes de populagdes is secretamente suas crengas. Blias Alexandre da Silva Cortéa, Histéria de Angola, ed, Dr, Manuel Mirias, 2 vols. (Lisboa: Editorial Atica, 1937), vol. 1, p. 93. % Corréa, Histdria, vol. 1, pp. 87-89. cas ¢ judias ainda pravicavam lo De portugues a africano zendo do “recrutamento de famosas concubinas africanas seu Unico interesse”. Acrescentou ainda que os escravos seguiam o exemplo de seus mestres. Em 1800, 0 governador Vasconcelos comentou sobre o aspecto religioso da regiao de Benguela, lamentando que trés periodos de quaresma haviam se passado sem que o vigétio ministrasse os sacramentos ¢ que os nativos (nascidos em Angola) estavam vivendo num estado deapostasia.” A inabilidade da monarquia portuguesa em preencher os cargos nas igrejas das colénias dava pouco incentive aos portuguesese seuss descendentes afto-lusitanos para seguirem os ensinamentos de padres portugueses e brasileiros. Na verdade, alguns desses religiosos engajavam-se abertamente no comércio de escravos ¢ tinham ligagdes com mulheres africanas, atividades essas que nao lhes conferiam autoridade moral sobre a populacao leiga branca, afro-lusitana e de africanos livres. Além de influenciar fortemente os rituais catélicos ¢ 0 comportamento da populagio branca, a cultura africana era evidente nos préprios objetos sagrados utilizados nos rituais da Igreja. Uma ilustracéo desse fato emerge na forma pela qual a Igreja veio a depender dos artesdos negros ¢ mestigos locais, que faziam acera para velas e selos sagrados. Embora apatentemente nao tenham imprimido estilos locais a esses objetos nem afticanizado os simbolos catdlicos, como os congos fizeram, 0 envolvimento dos artesas angolanos na elaboragao dos objetos mais sagrados do catolicismo fornece ainda outro exemplo do papel dos africanos e de seus descendentes em manter ¢ recriar rituais religiosos e praticas européias na Angola do século xvint.** ‘Tanto em Angola quanto em Benguela, o envolvimento de afticanos e de seus descendentes em varias atividades associadas a Igteja Catdlica ajudou a africanizd-la. Uma das razées foi que africans nao batizados (escravizados ou livres) constituiam a maior parte da populago. Corréa acreditava que a antiga lei que exigia dos senhores e comerciantes o batismo dos escravizados destinados ao Brasil, mas que nao tinha sido imposta para aqueles que permanecessem na cidade ¢ arreadores dos presidios, dava margem a que africanos escravizados na colénia ficassem sem os beneficios do batismo e instrugao na doutrina da Igreja.” O fato de permitirem que os escravos nao convertidos os representassem nas celebragées da Igreja ou que tomassem seus lugares para receberem indulgéncias nos dias santos deu um aspecto africano ao catolicismo portugués em Angola. “ Correa, Histéria, vol. 1, 95. % anu, Angola, cx. 95, n° 18, do governador Vasconcelos ao ministro. Corséa, Histéria, vol. 1, p.127. Corréa, Histdria, vol. 1, p. 93. Corréa, Histaria, vol. 1, pp. 91-93. il Didspora negra no Brasil Muitos escravizados, entretanto, foram batizados, receberam nomes cristos e podiam até mesmo ter a expectativa de ser entertados nos cemitétios das igrejas ao lado de seus senthores."' Luanda tinha igrejas reservadas para os escravizados, ¢ alguns deles eram membros de irmandades religiosas. A existéncia dessas praticas, juntamente com a grande escassez. de padres que a colénia enfrentava, significou que afticanos (inclusive os escravizados) estavam mais & vontade para introduzir rituais de praticas nativas no catolicismo. Os escravizados que chegaram as Américas levaram elementos desse catolicismo centro-africano com eles, e essas praticas acabaram pasando por novas transformagGes ao se tornarem parte da didspora americana.” Misses catélicas — jesuftas, carmelitas de pés descalgos, capuchinhos e rerceira ordem dos franciscanos —, que foram para Angola a fim de trabalhar entre os “condenados”, desempenharam a maior parte de suas atividades entre os milhares de escravizados que viviam com eles nos hospicios ¢ igrejas. As miss6es catélicas tiveram também um impacto no desenvolvimento das praticas crioulas. Na verdade, segundo um relatério, como na maioria das igrejas ¢ hospicios os escravizados falavam portugués, nao foi dificil instrui- los na doutrina e costumes cristéos, conforme as regulamentagées exigidas pela Igreja. Os missiondrios perceberam que precisavam de intérpretes, como acontecia ao se relacionarem com os africanos que viviam fora do ambiente crioulo. Muitos dos escravizados que viviam dessas instituigées tinham ligagées na comunidade e acompanhavam os missiondrios em suas viagens anuais, fazendo muito para disseminar esse catolicismo misto até os limites da colénia. Centenas de africanos livres e afro-lusitanos, muitos deles de familias proeminentes que eram catequistas nas igrejas em Luanda e em outros lugares das dreas centrais, formavam um segmento importante na hierarquia das igrejas ¢ cram instrumentais em modelar o catolicismo angolano e dissemina-lo para além da colénia. © trabalho religioso que exerciam sem a supervisio de missiondrios estrangeiros foi um grande passo para assegurara influéncia afticana no catolicismo angolano. thos, lata 32, pasta 2, “Noticias de Benguela e seus distritos 1798"; Zbid., lata 31, pasta 9, “Noticias sobre 0 presidio de Nova Redondo, 1797.” * Ver, por exemplo, Ilidio do Amaral, “Descrigio da Luanda Setecentista, vista por meio de uma planta do ano de 1755", Garcia de Orta, 9:3 (1961): 409-420; José de Almeida Santos, “A sociedade Inandense em meados do séeulo xix", Anais da Academia Portuguesa de Histéria, 2 séria, 31 (1986): 351-375. Saceardo, Congo e Angola, 3: 131. 2 De portugués a africano NOoMEACAO, LINGUAGEM, CULINARIA, MUSICA E SIMILARES O aspecto secular da cultura nas reas centrais também permitiu a mistura de costumes africanos e portugueses, ¢ eles fornecem outros exemplos de como acultura crioula emergiuem Angola. A forma de nomeag6es, comum entre alguns segmentos da populacao em cidades portudtias ¢ presidios, salienta essa questao. Um documento do final do século xvi contendo o nome de mais de 27 brancos, mesticos ¢ moradores afticanos em Benguela demonstra alguns padroes interessantes. Datado de 1798, o documento revela queamaioria dos escravizados tinha nomes cristaos. Alguns dos nomes mais populares eram: Jacinto, Lourengo e Juliao, para homens, enquanto Maria, Rita, Theteza, Luzia, Cararina e Rosa lideravam a lista para as escravizadas. ‘Todavia, escravos nao batizados (a maioria da populagao) tinham mais liberdade para reter seus nomes otiginais ¢ freqiientemente acrescentavam um nome cristo a seus nomes afticanos. Como foi o caso de Antonio Equimbe. Outros mantinham o nome original, como Canjombo Itanda, enquanto as mulheres carregavam nomes afticanos como Miganja Ganja, Quiganda, Quiongo, Catacoto ¢ Quifongo. Todos os mestigos ¢ afticanos livres e batizados tinham nomes portugueses, mas também mantinham nomes africanos, assim “s como alguns afro-lusitanos € portugueses. ‘A adogio de nomes cristios ¢ outros elementos da religiéo catdlica nao estavam limitados aos afticanos livres esctavizados em cidades portudrias e presidios também era comum entre oficiais afticanos, que faziam parte da guerra preta (unidades militares africanas das quais os portugueses dependiam para manter postos estratégicos no interior), e soberanos africanos que se tornaram vassalos dos portugueses. Os que se incorporaram na cultura mista afro-catélica em Angola tinham nomes que refletiam a interpenetragao dos costumes afticanos ¢ ctist4os. Por exemplo, nao era incomum para um quimbari, no intetior, ver um nome como “Manuel Francisco da Costa Canzamba”, costume combinando um nome totalmente portugués com sobrenome africano.** Individuos com titulos tinham nomes como Quintendele Quiaacababa Antonio Joao, Quilamba Cangongo Caquiluange Francisco da Costa, ou Quilaba Gongue a Camucala Antonio Pedro, que combinavam titulos africanos com nomes portugueses, ou que continham os dois primeiros nomes cristios, habito comum entre africanos W jaw, lata 32, pasta 2, “Noticias de Benguela e seus distritos 1798”. Ver John Thornton, “Names”, John K. ‘Thornton, “Central Afticans Names and African-American Naming Patterns”, The Wiliam and Mary Quarterly, 3 Serie, vol. L, n° 4 (outubro de 1993): 727-742. uc, lata 32, pasta 2, “Noticias do Presidio de Ambaca do Reino de Angoli’, fol. 4. 113 Diéspora negra no Brasil convertidos ¢ agentes afticanos da guerra preta. Aqui, outra vez, os escravizados carregavam consigo para as Américas esses padrées crioulos de nomeacao. A linguagem cra também uma drea que estava aberta a transformagées sob a articulacao africana, Nos primeiros anos do século, 0 quimbundo, uma lingua do umbundo (ambundu do século xvi portugués), era a mais falada por portugueses livres ¢ escravizados, afto-portugueses ¢ afticanos no reino de Angola. Mesmo antes do século xvitl, os portugueses reconheceram a importincia do quimbundo como a lingua franca da populagéo, e jd em 1642 os jesuftas publicavam um catecismo em quimbundo. A aceitacao oficial dessa lingua durante o século xvii permitiu uma mistura semantica ainda maior. A forma pela qual isso ocorreu € reveladora. Embora os missiondrios usassem 0 quimbundo quando lidavam com a populacio africana, foi o seu uso em lugares permitidos pelos oficiais portugueses que o tornou a lingua franca. O governador Rodrigo Cézar de Menezes, em suas orientagées de 1737, ao ctiar 0 cargo de intérprete ¢ inquisidor judicial para lidar com multas ¢ petigdes de liberdade a favor de escravizados, estipulou que cle fo: ocupado por pessoa de alto cardter moral ¢ que fosse “conhecedora da lingua ambundu”. Mesmo a tentativa por oficiais da Coroa, em 1760, de banir sermao em quimbundo substituindo-o pela lingua portuguesa, quando suprimiram a ordem jesufta (que naquele tempo possufa um total de 1.060 escravos), nao conseguiu impedir o uso do quimbundo.*” A lingua sobreviveu, levando criticos da metrépole nacol6niaase queixarem de que “nada pode ser feito sem 0 intermédio de um intér- prete que é sempre um “negro ladino” (crioulo afticano).* A tentativa de Sousa Coutinho, a partir de 1765, de suprimir o quimbundo, ordenando que as criangas ndo aprendessem essa lingua ¢ exigindo que fosse substitufda no interior (sertdes) pelo portugués, teve pouco efeito em controlar a forca da afticanizacao dos lusitanos que viviam entre o grande numero de falantes do quimbundo além de Luanda.” Um comentario bastante revelador do crescente uso do quimbundo entre a populacao nas regides centrais vem do governador de Benguela em 1800. Lamentando o triste estado da vida religiosa dos naturais da terra, observou que muitos nao haviam aprendido a lingua lusitana ¢ conseqiientemente eram * ‘ap, lata 81, pasta 2, *Vdtios documentos relativos ao governo de Angola 1677 a 1797”, carta de Sousa Coutinho, 13 de setembro de 1769. © Sacarrado, Congo ¢ Angola, 2: 315, 321. * Couto, Os CapirdessMores, p. 164. © Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, Cédice 8354, carta de Sousa Coutinho, 1765, fols, 27-28. l4 De portugues a africano incapazes de participar das missas faladas em portugués ou fazerem confissbes aos capelaes de navios portugueses quando estes visitavam Bengucla.* © uso crescente do quimbundo, em 4reas centrais, explica por que essa lingua influenciou de maneira significativa a escrita do portugués. Também demonstra por que tantas palavras em quimbundo foram incorporadas ao portugués angolano ¢ por que express6es portuguesas se infiltraram no quimbundo.* Mais importante ainda nesse processo de afticanizagao da l{ngua portugue- sa foi o grande numero de africanos que serviram como escreventes aos capi- tdes-mores nos presidios e os soberanos afticanos que utilizavam, nas corres- pondéncias oficiais 4 Coroa lusitana, tanto o quimbundo quanto o portugués. O papel desses africanos em facilitar a forma escrita da lingua afto-portuguesa era significativo.” Algumas petigSes geradas localmente ¢ testamentos de liti- gantes, que falavam quimbundo, escritos em portugués nas décadas de 1760 e 1770, revelados por Eva Sebastyen em 1988, mostraram evidéncias da fonologia quimbundo e da incorporagao de mutitas palavras daquela lingua. Isso pode ser visto no uso irregular das letras L, B ¢ Re das numerosas palavras em quimbundo que aparecem nos textos.** O processo de crioulizagio, que ocorreu no século xvii em Angola, nao estava confinado as relagdes sociais, aos rituais religiosos, as nomeagSes ¢ a0 idioma; também se estendiam a outras areas. Elas inclufam celebragées ptiblic: praticas médicas, modo de cozinhar, musica e danga. Por exemplo, na area da culindria, portugueses livres, africanos ¢ afro-portugueses, assim como escravizados que permaneceram em Angola e aquelesselecionados para exportagao ao Brasil, compartilhavam o mesmo “milho cozido ou queimado, rafzes de mandioca, ginguba, acola, frutas das florestas, cana-de-aguicar, sardinhas € savelhas”.* Assardinhas, assim como o “pungo esavelha”, constitufam a variedade mais barata de peixes que, quando secos esem sal, eram especialmente solicitados entre os escravizados e africanos do interior que nao pescavam em rios locais.°> As dangas ¢ musicas que observadores notaram nos casamentos e outras celebracdes de portugueses nascidos em Angola eram todas influenciadas pelos padres dominantes de miisicacdanga afticanas.°* Além disso, as mdscaras coutras 5 autv, ox. 95, Angola 1800, n° 18, govetnador Vasconcelos 20 ministro de Estado. “1 © mesmo processo ocorseu com o umbundu na regiso de Benguela. * sunxa, Governo de Angola, Oficios para Angola, A-17-5, abril 1777-dezembro 1779, carta para lzodore José de Alexandre, capitio-mor do presidio de Sao Jose de Engoge de Antonio E. Lencastro, fol. 102. 8 “Arquivos de Sobada de Caxinga, municipio de Samba Cajd, Cuanza Provincia do Norte, Angola. Ver também ‘Thornton, “Central African Names and African-American Naming Patterns”. % Comtéa, Histéria, vol. 1, p. 117 5 Cortéa, Histévia, vol. 1, p. 134 % Conta, Histiria, vol. 1, pp. 87-88 5 Diaspora negra no Brasil interpretagGes artisticas que vinham & tona durante os festejos puiblicos, em que escravizados ¢ afticanos nascidos livres participavam, também mostravam evidéncias das influéncias nativas. Finalmente, os intmeros praticantes de medicina (curandeiros), que combinavam remédios ¢ plantas medicinais locais com rituais catélicos ao socorrer os necessitados em Luanda e outras reas centrais, ilustraram outras dimensées das interpenetracoes das duas culturas.”” MANIFESTACOES NA PERIFERIA A interpenetragéo de elementos culturais africanos ¢ europens nao estava limitada as comunidades das Areas centrais de interface cultural, tais como Luanda ¢ Benguela, mas também se evidenciava nas regides africanas que eram subordinadas aos portugueses ¢ em algumas areas vizinhas independentes. Estas inclufam os pequenos estados de “Dembos” e os reinos de Congo, Kassanje, Bailundu, Matamba e Bié. Em todo 0 século, o ritmo dessa associacao espalhou- se para além dessas areas, como quando os portugueses estabeleceram um presidio ao norte, em Encoje, ou como ocorreu nas areas em que as misses tabeleceram postos missiondrios. Por volta de 1820, a maior parte das regiGes, que seria eventualmente incluida na Angola dos dias de hoje, tinha sido exposta & cultura que emanava de Luanda e Benguela. catélicas Missiondrios, comerciantes, oficiais reais portugueses, africanos livres € escravizados das zonas centrais, todos tomavam parte na disseminagao da cultura ctioula para as regides além de Luanda e Benguela. Além disso, em vircude dos lacos culturais, militares e comerciais que a coldnia portuguesa tinha com os grandes reinos africanos independentes das dreas vizinhas, estas foram igualmente expostas & cultura afro-lusitana.* Por volta de 1700, os aspectos politicos ¢ militares do relacionamento entre acolénia e as populagoes africanas independentes das teas vizinhas jé existiam por quase dois séculos e moldaram a forma pela qual essas culturas afticanas e portuguesas interagiam. A instituiggo conhecida como guerra preta oferecia muitas oportunidades para os africanos influenciarem a cultura portuguesa. A guerra preta cra constitufda de milhares de soldados de infantaria (grosso modo), Jjiagas (unidades de mercendrios militares temidos por sua pratica de canibalismo), empacageiros (cagadores africanos cujo conhecimento da geografia local tornava- Luis Mott, “A Calundu Angola de Luzia Pinto 1739”, Revista do Instituto de Artes e Cultura, UFOP, 1, 1994. ® Joseph Miller, em Way of Death: Merchant Capitalicm and the Angolan Slave Trade, 1730-1830 (Madison: The University of Wisconsin Press), pp. 245-313, fornece uma anilise completa dessas relagdes sociais. N6é De portugues a africano os titeis para os portugueses em suas guerras pelo interior), mosqueteiros e quilambas (capitaes afticanos assalariados que assistiam os portugueses na expansio de seu controle no interior ou executavam obrigagoes civis, tais como fornecer servigo postal ou de seguranga nos varios presidios). Embora servissem sob a tutela de comandantes africanos, e, portanto, nao estivessem totalmente integrados ao dominio da cultura afro-lusitana nas cidades portudrias ¢ presidios, os africanos integrados na guerra preta patticipavam da cultura crioula.” Com o passar dos anos, os africanos dessas regiées independentes desenvolveram uma série de relacées complexas oficiais ¢ nao oficiais com as dreas centrais controladas pelos portugueses. Por exemplo, a regido de Dembos 08 reinos de Matamba estavam intimamente envolvidos com a cultura crioula, enquanto os que viviam em Kasanje, Kisama e regides altas centrais tinham arranjos politicos mais formais. No decorrer do século xvu, entretanto, os soberanos € povos dessas regides foram gradualmente influenciados pelos desenvolvimentos culturais e politicos das areas centrais.” Esta situagao pode explicar por que os soberanos africanos nas regides fora do centro tornaram-se agentes culturais da disseminagao da cultura afro-lusitana. Acarta de um oficial de Dembos ao governador portugués Sousa Coutinho, em 1767. ilumina o papel dos grupos dominantesafricanos na disseminagao da cultura afro-lusitana. No documento, ele reiterava o propésito de manter sua vassalagem acolhendo a religiao catélica, supervisionando a disseminacao da Santa Fé, continuandoa batizarseu povo celiminando 0s “fdolos eos costumes barbaros”.°! Embora os dembos nunca tivessem sido totalmente aceitos como bons catélicos, as iniciativas oficiais portuguesas, assim como as dos soberanos, ajudaram a criar o ambiente favordvel para a disseminagio ¢ afticanizagao adicional da cultura afro-lusitana. Nao raro, soberanos africanos solicitavam padres, como as rainhas de Matamba fizeram em varias ocasides nas décadas de 1700. O fato de que trés ordens missiondrias na colénia— carmelitas descalcos, ‘os capuchinhos ¢ a terceira ordem franciscana — nunca terem sido capazes de atender a demanda de padres nascidos na Europa significou que os catequistas afro-lusitanos, transmissores da cultura mista, preenchiam tais posigées. Africanos, com os quais trabalhavam, adotaram elementos da cultura desses catequistas, como aconteceu em Holo em 1766. ® Cou, Os Cape Mores, p.260. 6 Soba histéria da administracio portuguesa em Angola no século xvi, ver Couto, Os Capitdes-Mores. ana, Offcios para Angola, 7 corr. do procurador com as autoridades da Coldnia 176; de D. Alvaro Filho ¢ 2 pessoas de Dembo Ambuella a Sousa Coutinho], 28 de fevereiro de 1767. Saccardo, Congo Angola, pp. 296-97: 357. 7 Diéspora negra no Brasil Além da guerra preta, os soberanos vassalos ¢ as comunidades africanas, em geral, ajudaram a africanizar ainda mais a cultura afro-lusitana e facilita- ram sua disseminago para regides fora das 4reas de contato. Decretos especi- ais, que os governadores portugueses emitiam, criavam os incentivos para muitos homens livres, em algumas areas fora das comunidades centrais, afas- tarem-se das autoridades tradicionais e ficarem mais diretamente sob 0 con- trole administrative portugués.® Na segunda metade do século xvin, os milhares de afticanos que viviam separados de seus “sobas, sovetas, quilambas ¢ quimbares” foram responsdveis pela africanizagao da cultura portuguesa. Muitos individuos das 4reas centrais, que viviam em distantes unidades politicas africanas independentes, praticavam sua prépria versio afticanizada da cultura afro-lusitana. Hé exemplos evidentes entre os que viviam em Matamba ou em volta de varios postos missiondrios em dreas como os de Mbwila ¢ Kahenda. Também nas regides centrais, alguns aspectos da cultura — tais como as priticas de dar nomes ¢ rituais religiosos — tevelam mais do que outros as evidéncias de como a africanizagio da cultura portuguesa estava ocorrendo. A pratica de dar nomes se destaca. O historiador Corréa, que escreveu sua histéria de Angola com base em suas experiéncias no pais nos tiltimos anos do século xvi, achou necessario alertar seus leitores para © fato de que, muito embora o afticano Matheus Caetano, da drea de Dembos, tivesse um nome totalmente portugués, cle nao cra portugués. Observou que nomescomo esse “ilustravam distingées [sociais]” porque os africanos que tinham tais nomes “vestiam calgas, possuiam escravos € eram, portanto, respeitados por serem considerados brancos”. ‘Todavia, ele acrescentou que as diferencas entre esse tipo de africano ¢ um branco eram como as da noite e do dia. Uma lista de contrabandistas da regido de Dembos, que 0 governador Lencastro aprisionara em Luanda em 1774, revelou em que extensio essa pré- tica da mistura de nomes atingira dreas além das regides centrais. A lista inclufa nao somente um grupo de brancos com nomes tipicos portugueses, mas tam- bém uma familia de negros cujo sobrenome era Cordial de Sd. Os escravos do soberano de Dembos tinham uma variedade de nomes africanos ¢ portugue- ses, entre os quais estavam Gungo, Ana Sebastiao, Sambo, Igrécia Matheus ¢ Quibocu. © grupo também incluia um ntimero de moradores (pessoas reco- nhecidas como residentes nas cidades portuguesas préximas ou nos presidios), todos africanos. Tinham uma variedade de nomes portugueses € afticanos, © Couto, Or Capitdes-Mores, p. 140. “ Corréa, Histéria, vol. 2, p. 197. 18 De portugues a africano entre os quais Anténio Soloma, Matheus Anténio, Rodrigo André, Belchior Francisco, Lourenco Paula, Ambrésio Mubica, Pedro Musunda, Gracio Muyaya, Anténio Muginga, Sebastiio Joao ¢ Biondi Camia. Os nomes que os membros das classes dominantes nesses estados carregavam também tinham evidéncias da africanizagao de nomes portugueses. As im, por exemplo, a maioria dos soberanos da regiio independente de Dembos (que haviam sido expostos & cultura crista crioula pelos contatos com o reino do Congo) portava titulos honorificos portugueses e nomes cristéos juntamente com titulos africanos ¢ nomes de nascimento. Nessa regiao, os carmelitas haviam fundado missdes em 1659, mas os missiondrios ainda consideravam os nativos “pagaos”, durante o século xix. Em sua correspondéncia ao governador portugués em Luanda, um soberano de Dembos registrou scu nome como Dom André Muginga Bunga Mane Mucosse. Isso comprova que atos de undamento (uratado de vassalagem que os soberanos africanos concordavam em obedecer ao se submeterem & Coroa) revelam nao somente as praticas comuns de dar nomes entre os soberanos africanos, mas também a extenséo que suas obrigagées militares ¢ politicas para com os portugueses os expunha as convengoes culturais ¢ lingiifsticas de Luanda e dos povos afro-portugueses. A maioria dos soberanos que concordou com os tratados de vassalagem assumiu 0 compromisso para si ¢ scus povos de viver sob a fe catélica, assistir missas nos dias santos e garantir a seguranga dos missiondrios. Ha exemplo desses acordos em 1770 com dois sobas: Cacula Cahango Dom Anténio e Ucosso agongo Dom Sebastido Diogo Francisco.” O undamento da soba Dona Anna de Dembos, realizado no mesmo ano, requeria que ela garantisse o batismo de sua populagao e erradicasse “ritos primitives”, a fim de que a Santa Fé catélica pudesse se expandir.* Como 0s portugueses nao estavam em posigao polftica ¢ cultural dominance que reforgasse a obediéncia dos soberanos africanos ¢ suas populagoes, estes estavam livres para adotar elementos da cultura portuguesa que nao alterassem radicalmente seus préprios valores. Por tado 0 século, os oficiais condenaram as pracicas culturais mistas que emergiam e criaram leis que visavam elimind-las Enderegavam as criticas mais pesadas contra as prati s de religiées mistas. Porexemplo, em 1768, Sousa Coutinho tornou publico que “negros de Ingolome fizeram cruzes para os cemitérios”, mas que nenhum deles compreendiao sentido © uu, “Lista dos Contrabandidos....,"17 de maio de 1777, © pw, Codex 8742, Coutinho para a rainha de Huando, 28 de novembro de 1766. anu, Angola, ex. 58, carta de Sousa Coutinho, 3 de outubro de 1773. Anu, carta de Coutinho, 22 de novembro de 1770, 119 Diaspora negra no Brasil do que haviam feito, uma vez que “eles estao agora como sempre estiveram, primitivos”. Também argumentou que nenhum dos sobas casou-se ¢ que eles ignoravam suas obrigagées religiosas. Complementou suas criticas acusando os missiondrios de nao instrui-los na verdadeira fé, mas apenas batizé-los para poder coletar as taxas que recebiam por cada batismo.” Assim como em areas sob o controle oficial portugues, esforgos para ertadicar as priticas africanas nas regides vizinhas semi-independentes pouco fizeram para avangar a versio oficial ortodoxa do cristianismo ou da cultura portuguesa. As observacoes de Silva Corréa revelam como os elementos afticanos dominavam a religiéo. Em conexéo com a coleta do dizimo (requerida por lei de soberanos batizados), escreveu que essa obrigagao nao tinha ligagdo com a piedade crista dos soberanos ou de suas populagdes, uma vez que a maior parte das pessoas vivia em reinos nao catélicos ¢ seguia suas crengas antigas. Ele deduzia que, por serem vassalos da Coroa portuguesa e estarem sob o comando dos capities-mores portu- gueses, estes “davam-lhes a honra de incluf-los no mundo do cristianismo para acostumé-los a pagar impostos”.”” Embora 0 objetivo real dos portugueses no interior nao fosse inculcar hébitos catdlicos entre a populagao, mas justificar a coleta de uma taxa absurda, a incorporagao das comunidades afticanas pelas estru- curas administrativas resultou na interpenetragio de crencas e rituais religiosos portugueses ¢ afticanos, embora os praticantes pudessem considerar-se cristios. Isso pode explicar por que, em areas do interior, numerosos altares secretos pontilhayam os caminhos e colinas e por que simbolos religiosos catélicos eram também encontrados entre os paramentos religiosos desses altares. Na verdade, um relatério de 1788 do bispo de Angola observou que, no interior da colénia, os objetos santos que haviam cafdo em mfos afticanas foram incorporados aos idolos locais ou serviram para ornamentar esposas, ou ainda foram usados como “{dolos profanos para propésitos diabélicos”.” Os soberanos simplesmente seguiram as mesmas praticas com os objetos cristos que usavam para com os simbolos religiosos locais, tornando-os simbolos politicos poderosos. Muitos desses soberanos incorporavam simbolos religiosos catélicos em seus paramentos politicos. Isso pode explicar por que em 1793 os soberanos de Dembos, Mbwila ¢ Mbwela, foram instados, pelos capitaes-mores de Encoje, a responder as acusagdes de que seus povos estavam abusando dos portugueses. Embora eles ndo houvessem se convertido, exibiam orgulhosamente uma imagem de um © suv, Oficios para Angola, 79-A-7-2, carta de Sousa Coutinho, 22 de outubro de 1768. ® Couto, Os Capitaer-Mores,p. 130. 7 anu, Angola, relatério do bispo de Malaca, 20 de junbo de 1788. 120 De portugues aafricano crucifixo feito de latéo quando encontravam os oficiais. Os africanos tinham entendido muito bem que os portugueses acreditavam que a cruz era um grande ¢ poderoso mediador da paz. Além disso, quando os portugueses capruraram e condenaram 4 morte Dembos Muene-Zambaxe por ter molestado e assassinado moradores portugueses, ele solicitou o batismo antes de sua execugdo, para morrer como um catélico.” Sem duvida alguma, o condenado acreditou que o batismo lhe oferecia uma jornada segura para o outro mundo. No final do século xvi, os portugueses condenavam rigorosamente as misturas religiosas, especialmente o modo como os africanos estavam usando 0s rituais e os ornamentos religiosos para propésitos pessoais de ascensao. Eles estavam especialmente preocupados que as comunidades distantes no interior estivessem desenvolvendo centros competitivos de cultura mista que refletiam mais o dominio africano do que portugués. Por esta a razio, descreviam freqiientemente os povos em areas como a de Dembos como “catdlicos iddlatras” que adoravam altares que continham “uma quantidade enorme de {dolos de madeira, outros com figuras humanas de ambos 0s sexos [...] ¢ com esses deuses havia muitos fetiches ridfculos associados com suas crengas ¢ costumes”.7* Um exército portugués que invadiu a regiao de Quingungo em fevereiro de 1794 deixou um exemplo vivido dessa mistura. Os oficiais descreveram um altar encontrado na tumba de Dembos da localidade que continha nao somente uma imagem de Sao Francisco de Assis, mas “um idolo de dois corpos unidos nas costas com a figura de um homem e uma mulher”.” Osincrerismo cultural e religioso nao estava limitado as areas de vassalagem tradicional; evidenciava-se também nas regides sem atividades missiondrias regulares ou alvo de aliangas politicas. Em 1766, por exemplo, quando um exército portugués invadiu o pals Soso e destruiu os fortes, encontraram entre os objetos religiosos africanos uma estétua de Nossa Senhora da Conceigio. E muito improvavel que esse tenha sido 0 tinico objeto que as pessoas (que haviam se convertido seis décadas antes, mas que nunca mais viram um padre) tivessem mantido desde o tempo de suas exposig6es a religiao catélica.”* Mesmo a regio do Congo, onde os soberanos ¢ os povos eram politicamente independentes, tendo desenvolvido sua prépria versio de cultura afro-lusitana 10 de que se sustentou por cerca de dois séculos, nao escapou da ratifica ‘orréa, Histéria, vol. 2, pp. 194-195. 7% Corréa, Histiria, vol. 2, p. 197. ™ Conta, Histéria, vol. 2, p. 202. * Corréa, Histéria, vol. 2, p. 210. 76 px, Codex 8742, carta de Sousa Coutinho, 31 de janeiro de 1766. D1 Diaspora negra no Brasil representantes politicos metropolitanos e alguns missiondrios.” Os padres metropolitanos que visitaram 0 Congo durante aquele perfodo tornaram ptiblica a cultura crioula que havia emergido li, sendo que um desses missiondrios chegou a ridicularizar os congoleses por sua atragio por “nomes pomposos de infantes, com titulos de fidalgos, sem entenderem como funcionava a concessio de titulos ¢ sem tentarem imitar as nagées civilizadas, o que nao contribufa em nada para fazé-los cristéos”.” Embora o autor possa ter simplesmente repetido tendéncias angolanas contra 0 Congo (outros missiondrios ficaram bastante impressionados com a cultura ¢ o catolicismo nessa tegiao), outra razio para a condenagao pode ter-se originado pelo fato de a cultura e a religiio congolesa serem muito mais africanas do que os criticos locais € estrangeiros accitavam. CULTURA CENTRO-AFRICANA E O COMERCIO ESCRAVO PELO ATLANTICO Durante o século xvin, os africanos que faziam parte da cultura afro-lusitana em desenvolvimento, ¢ que eram vendidos como escravos, levaram elementos dessa cultura para as fazendas, minas e centros urbanos das Américas. A cultura crioula que emergiu entre as sociedades escravistas nas Américas tinha rafzes profundas na Africa Central. Essa contribuigao centro-africana foi especialmente dominante durante os séculos xvii e xIx, quando povos dessas regides representavam significativa maioria dos escravizados que vieram paraas Américas. O pais que mais recebeu influéncia da cultura crioula angolana foi o Brasil. Para o territério brasileiro foram importados de Angola cerca de 68% de todos os escravizados durante o século xvi. A Carolina do Sul nao ficava muito atrds, com 60%, e centro-africanos representavam nada menos do que 51% dos africanos nas vésperas da Revolugéo do Haiti.” Em outras regides das Américas, os centro-afticanos representavam minoria significativa da popullagso escrava durante aquele século. Embora no comego do século muitos dos africanos escravizados que foram para as Américas safssem de regides bem no interior da Aftica Central e tivessem ” Ver John K, Thornton, “The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491- 1750”, Journal of African History, 25 (1984); 147-167; John K. Thornton, The Kangolese Saint Anthony: Dona Beatriz. Kimpa Vila and the Antonian Movement, 1684-1707 (Cambridge: Cambridge University Press, 1999). * ast, Offcios para Angola, 6 janeiro de 1787-2 de maio de 1788, earta ao Padie José ¢ Torres do barao de Mossamedes, 12 de agosto de 17 Ver Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census (Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1969), p. 207; David Geggus, “Sex Ratio, Age and Ethnicity in the Adancic Slave Trade: Data from French Shippings and Plantation Records”, em Patrick Manning, ed., Slave Trades, 1500-1800: Globalization of Forced Labour (Brookfield, VI: Variorum, 1966), pp. 257-278. 122 De portugues a africana tido pouca exposigao a cultura mestica que emergira em Luanda, nas colénias portuguesas vizinhas ¢ reinos africanos independentes, gradualmente, no final do século vill e comego do XIX, a situagéo estava mudando. Como Joseph Miller mostrou consistentemente no capitulo anterior, a dindmica do capitalismo mercantil havia deslocado pessoas do interior mais longinquo da Africa Central para o sorvedouro do redemoinho Adlintico.*° Varias condig6es contributram para levar a cultura affo-lusitana de Angola para as Américas. O caso de uma mulher escrava brasileira, Luiza Pinto, nao foi atipico. Escrava de Manuel Lopes de Barros de Luanda, Luiza viveu durante a infancia (até os 13 anos) no ambiente afro-lusitano de Luanda antes de ser vendida para senhores de escravos em Sabard, no Brasil. Ela crouxe para o pals © conhecimento que havia adquirido em Luanda de curar pessoas com a combinagao de rituais catélicos com raizes africanas. Seu repertorio inclufa também adivinhagao e contato com o “outro mundo”. Foi presa pela Inquisiczo no Brasil em 1739, acusada de feiticaria e alvo de inquérito, em 1743, por suas atividades de curandeira durante os trinta anos que viveu no Brasil.*! Outros afticanos escravizados que trouxeram a cultura afro-lusitana de Angola nao receberam a notoriedade de Luiza, Muitos eram prisioneiros de guerra. Em alguns casos, os capitaes-mores portugueses conduziam expediges Punitivas contra os soberanos vassalos, os quais “pelo seu senso de superiorida- de, animosidade e atos de rebelido contra nés e agitago em scus estados” desa- fiavam o status portugués. Tais guerras freqiientemente levavam & captura e transferéncia secreta para Luanda e exilio desses lideres afticanos para o Bra- sil Outros podem ter sofrido o destino que abateu um grupo africano de uma regigo vassala de Cuanza, cujo capitio de uma regido préxima de Massangano os vendeu para 0 comércio brasileiro. Mais tarde ¢ possivel que tenham encontrado aquele que os vendeu para o Brasil, pois os soberanos vassalos ¢ 0 povo de Cuanza sentiram-se téo ultrajados com 0 incidente que marcharam para Massangano e condenaram o soba ao mesmo destino. Ainda outros podem ter feito parte de um grupo a que se referia a carta de 1787 do governador barao de Mossamedes ao capitio-mor de Golungu. No documento, o governador observava que eleestava enviando os prisioneiros sobas Carita, seu oficial (macota Cabassa) a Pernambuco no préximo navio a deixar © Ver sua contribusicio nesta colegao. Ver também Miller, Way of Death, ® Luis Morr, “A Calundu Angola de Luiza Pinta 1739", Revista do Instituto de Artes e Cultura, UrO?, 1, 1994, % Contéa, Historia, val. 2, p. 62. % Ibid, vol. 2, pp. 69-71. 123) Diaspora negra no Brasil Luanda. Muitos mais fariam parte da guerra preta, se tornariam cativos nos combates em que os portugueses perderam eseriam vendidos como escravos pelos vencedores africanos. Ainda outros podem ter sido escravos ladinos dos portugueses e afto-lusitanos que foram capturados pelos exércitos independentes de soberanos africanos e vendidos para a escravidao. CoNCLUSAO Quaisquer que tenham sido as circunstancias de suas captutas ¢ escravizagio, 0 que a maioria dos afticanos escravizados tinha em comum era alguma exposicio a cultura afro-lusitana. Sobretudo aqueles que vieram através das costas portuarias de Luanda e Benguela no século xvi, controladas pelos portugueses. Esse eta, especialmente, 0 caso dos afticanos escravizados que chegaram a0 Brasil, e conforme os relatérios teriam vindo de “toda Angola e seus sertées”. Aqueles cativos oriundos das dreas centrais trouxeram prdticas culturais mais lusitanas. Ao contrério deles, seriam aqueles semelhantes aos cem ou mais subordinados que acompanharam Dembo Gombea-Moqueama ao Brasil. Feitos prisioneiros em 1790 e algemados como punigao pelos insultos contra os portugueses, eles foram exilados em Pernambuco. Levavam consigo priticas culturais que eram mais africanas, mas com alguns elementos portugueses.® Como a cultura afto-lusitana mudou-se para o interior de Angola ¢ Benguela por meio de agentes portugueses, afro-lusitanos e afticanos, os escravizados vindos do interior distante trariam nao somente a cultura de scus respectivos grupos étnicos, mas também varios elementos da cultura afro-lusitana. *© ants, A-17-5, governador geral bario de Mossamedes ao capitao-mor do Gobungu Felix da Cunha de Almeida, 2 de outubro de 1787. © Corréa, Histéria, vol. 2, p. 173, 124

Das könnte Ihnen auch gefallen