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CRITICA BIBLIOGRAFICA Instituigdes Totais e Clases Trabalhadoras: Um Balango Critico Michael Ignatieff (King's College, Cambridge) O'BRIEN, Patricia - The Promise of Punishment: Prisons in Nineteenth Century France. Princeton University Press, 1982. CROWTHER, M. A. - The Workhouse System, 1834/1929: the History of an English Social Institution. Batsford Acadernic, 1981. PERROT, Michelle (ed.) ~ L'lmpossible Prison: Recherches sur le systeme Penitentiaire au XIXe. sidcle. Seuil, 1980. ‘McCONVILLE, Sean ~ A History of English Prison Administration, volume I, 1750/1877, Reutledge and Kegan Paul, 1981. SCULL, Andrew ~ Museums of Madness: The Social Organization of Insanity in Nineteenth Century England. Allen Lane, 1979. A “instituigdo total” é 0 termo inventado pelo sociélogo americano Erving Goffman para descrever todas as formas de instituigdes nas quais a autoridade procura uma “total” regulamentagSo da vida diéria de seus habitantes. Em Asylums, publicado em 1961, seu relatério atento e imparcial sobre os hospfcios americanos, Goffman empregou o termo nao somente para asilos mas também para mosteiros, conventos, prisdes, reformatérios, escolas, um pouco menos razoavelmente para comunidades habitacionais turais de empregados, acampamentos de desmatamento e navios mercantes. Isto é, ele empregou o termo para institui¢6es com diferentes objetivos ¢ Porque acreditava que as rotinas institucionais tendiam a oprimir com os mesmos rituais de mortificagao ¢ despersonalizagfo, quaisquer que fossem seus objetivos. Muitos criticos do trabalho de Goffman, desde sua Publicacdo, acharam dificil ver os pontos em comum entre um campo de concentracao, um navio mercante € um acampamento para desmatamento. Na pratica, 0 conceito de “‘instituigSo total” ficou restrito as instituigdes do Estado ~ 0 asilo, a pristio, o Reformatério, a casa de trabalho (workhouse) ~ que atendiam a populagdes semelhantes — os pobres, os despojados, os desprotegidos e os estigmatizados — ¢ as fung6es andlogas — prisdo, detengao ¢ reabilitago. O trabalho de Goffman teve um impacto ébvio Rev. Bras. de Hist. |S. Paulo | v.7n*14 Tp. 185-193] mar /ago. 87_] sobre os historiadores sociais britAnicos e norte-americanos, habituando-os a iniciarem 0 estudo do aparecimento dessas instituigdes em suas formas modernas nas décadas de 1830 ¢ 1840, como um processo social interligado, David Rethman, cujo Discovery of the Asylum foi publicado na América em 1971, reconhece que foi Goffman quem Ihe deu a idéia de tentar estudar o surgimento do asilo, da casa de trabalho ¢ da penitencidria no periodo jacksoniano das décadas de 1820 ¢ 1830, Museums of Madness, de Andrew Scull, publicado em 1979, um estudo de organizagao da insanidade na Inglaterra do século XIX, foi outro trabalho trazendo a marca da pioneira sociologia do submundo dos asilos de Goffman. Na Franga; 0 trabalho de Goffman passou despercebido ou, como € 0 caso em geral, particularmente nos confrontos franceses com a sociedade americana, foi absorvido sem reconhecimento. A inspirac4o ostensiva para a maioria dos trabalhos europeus sobre a “instituigao total”, embora esse termo seja raramente evocado, foi, naturalmente, o trabalho de Michel Foucault Histéria da loucura na idade classica, publicado em 1961, um estudo do confinamento europeu da insanidade, e mais recentemente seu Vigiar e punir, um estudo do nascimento das prisdes, principalmente na Franga, entre 1750 e 1850. Em geral, o efeito de Foucault sobre os historiadores foi de uma provocac%o produtiva: ele trouxe & tona uma cascata de questionamentos, desafios para sua demonstragSo e criticas de seu método. Mesmo as mais veementes discordancias de seu trabalho tendem a admitir, entretanto, que suas provocag6es foram estimulantes, como se pode ver pelas reacdes dos historiadores aos seus trabalhos reunidos na excelente coletinea L'Impossible Prison, organizada por Michelle Perrot. Como conseqtiéncia do trabalho de Goffman na América do Norte ¢ do trabalho de Foucault na Europa, uma nova hist6ria social da instituigao total comegou a ser escrita. Além de Rethman ¢ Scull, j4 mencionados, houve meu proprio trabalho A Just Measure of Pain: The Penitentiary in the Industrial Revolution (1978), The Workhouse System, de M.A. Crowthers (1981) e The Promise of Punishment, de Patricia O'Brien (1982), bem como The Prison and the Factory, de Melossi ¢ Pavarini (1981). Isto nao encerra, mas sugere a gama de novos trabalhos. Este talvez seja um momento t4o bom quanto qualquer outro para fazer uma pausa e considerar esta nova histéria social. A questo que eu quero colocar ao novo trabalho, & primeira vista, parece absurda. E uma hist6ria de qué? A primeira vista, a unica resposta possivel pareceria - de uma instituig#o: sua arquitetura, sua administracdo, as relagdes sociais entre quem captura ¢ quem € capturado e assim por diante. Mas esta resposta evidente, na verdade, é problematica. A histéria de uma instituigdo se 186 arrisca a tornar-se “histéria institucional”, aquela classificagdo que os historiadores sociais reservam para as narrativas burocrdticas desinteressantes. Dir-se-4 que a nova hist6ria das instituigdes deixou tudo isto para tras e que desde Foucault tem-se escrito no sobre batalhas burocraticas antigas, e sim sobre batalhas contemporaneas dos confinados contra seus sofrimentos e sobre as novas classes profissionais, como os médicos e governantes, que ligam sua ascensao social As novas instituigdes. Esta nova hist6ria tenta considerar as instituigdes nao como uma entidade administrativa, mas como um sistema social de dominagdo e resisténcia, ordenado pelos complexos rituais de troca e comunicag&o, Este novo ponto de vista é condensado no livro de Patricia O'Brien, que desvia a ateng4o para longe da logistica administrativa, dirigindo-a para os toques de recolher dos prisioneiros, para os sistemas de comunicagdo, as redes de contrabando as alteracOes no seu comportamento sexual. Todavia, mesmo em relagdo a esta nova histéria social nés podemos perguntar: “E uma histéria de qué exatamente?” Em virtude de sua fascinag&o pela vida do além-timulo entre quatro paredes, arrisca-se a se tornar prisioneira das mesmas paredes, como as histérias institucionais do tempo passado. O tema verdadeiro da histéria das instituigdes nao é, eu argumentaria, 0 que acontece dentro das paredes, mas a relacao histérica entre o dentro e o fora. Por si s6, estas entidades — prisdes, casas de trabalho, asilos e reformatérios — so somente de interesse arqueolégico. Elas somente se tornam objetos histéricos significantes quando nos mostram, no rigor de seus rituais de poder, os limites que governam o exercicio do poder na sociedade como um todo. Os trabalhos de Foucault irritavam os historiadores, mas pelo menos ele ousava tratar as prisdes ¢ os asilos n4o por eles mesmos, mas como locais para o estudo das relagdo poder/conhecimento, isto €, 0 impacto das concepges iluministas da natureza humana, racionalidade e corrigibilidade sobre 0 exercicio do poder institucional e o impacto recfproco do exercicio de poder sobre a constituigéo de uma ciéncia de ordem e divergéncia humana. Desde Foucault, a maioria dos trabalhos sobre a histéria da instituicdo total se abrigou num timido empirismo. Alguns novos trabalhos, p. ex., um estado de Sean McConville, exaustivamente pesquisado, mas estritamente administrativo, sobre as pris6es inglesas no século XIX, parece necessitar de um pouco mais de ambicdo piiblica do que duplicar e aperfeigoar a histéria institucional de sessenta anos atrés, de Sidney e Beatrice Webb. A maioria dos estudos empiricos da coletanea organizada por Michelle Perrot, exceto seu proprio fascinante relato da revolugo de 1848 nas pris6es de Paris e a critica engenhosa de Jacques Leonard a Foucault, parecem felizes ao se refugiarem atrés das paredes ¢ trabalharem dentro dos confins dos dossiés 187 administrativos. Obviamente, 0 novo trabalho empirico detalhado é bem-recebido, mas sem novos questionamentos, o empirismo Provavelmente terminaré num beco sem safda. . ‘A questo essencial sobre a institui¢do total é qual o papel que ela representa na reprodugo da ordem social no mundo além de suas paredes. Esta fungdo nao € estética e imutével nem ¢ descartada simplesmente por aquilo que as institui¢des fazem, isto é, pela sua verdadeira eficdcia em detenc&o, reabilitag%io e incapacitagdo. As “instituigdes totais” produzem seus efeitos na sociedade através do peso mitico ¢ simbélico de suas paredes no mundo exterior, através de caminhos, noutras palavras, nos quais 0 povo fantasia, sonha e teme o arquipélago do confinamento, Com poucas exceg6es, como The Classic Slum, de Robert Roberts, nés precisamos de telatos sobre como os trabalhadores de fora daquelas paredes simbolizam o mundo de dentro delas. Para quem o confinamento representava uma desgraca? Para quem representava um destino a ser suportado? Para quem ele seria um terrivel lugar de sofrimento? Para quem ele seria simplesmente um dos movimentos constantes da vida? Se os historiadores comegassem a fazer perguntas sobre pris6es ¢ asilos, nés poderfamos no somente comegar a entender como as instituigées conseguem seus efeitos no dominio simb6lico ¢ imagindrio, mas também poderfamos comegar a aprender como as demarcagSes entre a classe trabalhadora “rude” e “respeitivel” e a “classe perigosa” foram constitufdas na consciéncia, Porque houve distingdes nas quais os efeitos rotulados do poder de Estado tiveram uma importante influéncia, Esta abordagem implica que o melhor ponto para consideragtio dessa instituiggo total é a partir do exterior, do mundo das classes trabalhadoras que suportaram a violéncia das prises do século XIX. Mas como podemos pensar sobre estas comunidades de classes trabalhadoras? E notério como as tornamos passivas quando pensamos sobre sua relacao com a pris&o, 0 asilo € a casa de trabalho. Elas se submetem, elas suportam, elas so as bigornas has quais 0 martelo bate em seu ritmo inexordvel. Atrds dessa suposigao de Passividade e tolerancia, existe outra — que o Estado é a agéncia central na reprodugao da ordem. As classes trabalhadoras so ordenadas: o Estado faz © ordenamento. Como o grande socidlogo da Alemanha guilhermina, Max Weber, coloca, 0 que se presume é que o Estado possui um monopélio dos instrumentos de legitimar a violéncia nas sociedades modernas. E esta idéia de monopélio — sobre punigao, repressao e reprodugao da ordem social — que os historiadores da “instituigSo total” devem comecar a questionar. Sabemos de fato que as sangSes punitivas do Estado alcangam somente uma miniiscula porgao da atividade ilegal conhecida hoje e em meados do século XIX. Historiadores ingleses do crime, como Vic Gatrel, t8m nos 188. tornado conscientes de uma enorme “imagem sombria” de crimes conhecidos pela policia sob a “imagem luminosa” de crimes que sio detectados, denunciados e levados as cortes. Ainda nao comegamos a pensar sobre 0 que essa “imagem sombria” significa para a nossa compreensfo do lugar do Estado ao elaborar a ordem social. Uma coisa que ela no significa, podemos dizer com certeza, é que esta ilegalidade ndo-detectada escapa totalmente da puni¢a0. Embora quase nada saibamos sobre isto, & Ppossivel que haja uma fungo punitiva na propria sociedade que compete com 0 “monopélio” do Estado. Para termos uma visio geral dessa fun¢fo punitiva dentro do que os socidlogos chamam de “sociedade civil”, temos de deixar as cortes de justiga e prisdes e penetrar nas vizinhancas das classes trabalhadoras para entender por que alguns “crimes” sfio entregues 2 policia © por que alguns sio manipulados dentro da famflia, do local de trabalho, dos bares, dos cortigos ou das vielas. Quem se sente protegido ou nfo da Policia? Quando a famflia se entrega ao Estado e quando o pai tira seu cinto, ‘ou a mie ergue o seu rolo para massa? Numa luta, num bar ou numa esquina de rua, qual é a divisio de trabalho entre o guarda ¢ a platéia observadora a0 separar 0s que brigam? Que espécies de argumentos, disputas ¢ conflitos sio levados para as cortes de justigas e quais seriam julgados nas préprias vizinhangas? Dos trabalhos de Jennifer Davis sobre cortes de justiga de Londres na década de 1850 ¢ de David Phillip na polfcia em paises negros, sabemos que as classes mais pobres “processaram” seus senhores em disputas de aluguel, seus patrSes quanto a argumentos sobre atrasos de saldrios e condigdes de trabalho e seus vizinhos em conflitos sobre barulho, criangas, roubos insignificantes, até mesmo sobre divisio de trabalho vinculada & limpeza das calgadas dos bairros residenciais. Os croquis de George Crikshank sobre as cortes de justiga de Londres na década de 1830 tornaram claro que os pobres de Londres confiaram em Magistrados” para obterem justiga. Eles aflufram as cortes de justia em tal numero que Ppodemos supor que ocasionalmente atingiram a justiga que mereceram. Eles ndo foram vitimas passivas nem objetos da lei: usavam-na Para seus Propésitos, quando podiam, Contudo, as cortes de justiga devem ser entendidas, acredito, como apenas 0 ponto final vidvel ¢ oficial de um processo de justica popular que comegou dentro das comunidades da classe trabalhadora. Rothschild Buildings, de Jerry White, tornou possivel pensar no cortigo como um sistema moral e social onde zeladores ¢ moradores conjuntamente forjaram regras duras e imediatas contra vandalismo, indecéncia, barulho ¢ perturba¢ao. Rothschild Buildings provavelmente nfo foi excepcional: qualquer vizinhanga, comunidade, lugar de trabalho ou hospedaria é um local com regras técitas de decéncia, propriedade, solidariedade ¢ 189 fraternidade. E no forjar quase impalpdvel dessas regras que a “justica popular” comega. Nao sabemos como estas regras funcionaram e deveriamos ter muito cuidado com a nostalgia que satura os termos que usamos: justiga popular, comunidade, vizinhanga, etc... Ainda deveriamos tentar entender a familia, a rua, o bar, a fabrica, o clube, mesmo o bando criminal como lugares de regras determinadas implicitamente preocupadas com a reprodugdo de alguma ordem moral, mesmo se ela significar somente “honra entre ladres”. Implicita em qualquer comunidade disciplinada est a idéia de punig&o, um método rude ¢ imediato de talhar através de estigma, ridiculo, ostracismo ou violéncia. Precisamos, noutras palavras, de uma antropologia da punigao das classes trabalhadoras para compreender a mutvel divisio de trabalho entre as fungdes punitivas da sociedade civil e do Estado. Isto exige uma reaproximago entre a histéria social das classes trabalhadoras ¢ a histéria do crime ¢ da punigéo. Seu contetido comum deveria ser o profundo e complexo relacionamento entre os cédigos morais das classes trabalhadoras ¢ 0 c6digo penal. Algumas vezes, estes cddigos se sobrepdem: usualmente, assassinato é assassinato em ambas as linguas morais, ¢ um assassino pode esperar ser entregue justiga mesmo por sua familia ¢ seus amigos. Este nao € sempre o caso, entretanto, como o Royal Ulster Constabulary tem ocasiio de saber sempre que tenta registrar a cooperagaéo das comunidades das classes trabalhadoras protestante ou catélica. Individuos que a policia chama de “terroristas” s4o sempre chamados pela comunidade de “patriotas” ou “revolucionarios”. Mesmo em casos muito menos extremos, a lei e 0 sentimento moral popular podem estar em desacordo. No século XIX, como hoje, a lei concemnente a expulso dos inquilinos discordava das concepgdes populares do direito dos habitantes € das reivindicagdes dos necessitados: do mesmo modo, na puni¢do da apropriag&o de materiais no lugar de trabalho, que era desfalque no cédigo civil ¢ era um direito e costume dos trabalhadores no cédigo popular. Nestes casos onde a legalidade oficial e a moralidade popular divergiam, sabemos que 0 suposto monopdlio do Estado sobre detencao ¢ punicdo podia ser quebrado pela barreira de siléncio impassivelmente mantida pelas testemunhas. O siléncio é tal que revela 0 racha entre a lei ¢ a moralidade popular — e é esta quebra e a divisdo social da fung&o punitiva entre Estado e sociedade civil, cujos resultados deveriam constituir-se em novo objeto de estudo dos historiadores. Os mesmos tipos de pontos podem ser estabelecidos junto a histéria social da “casa de trabalho” no século XIX. Nenhuma instituig&o era certamente tdo detestada pela classe trabalhadora, € os historiadores que simpatizavam com sua experiéncia escreveram inconscientemente como se a tinica reag4o acess{vel da classe trabalhadora fosse resisténcia evidente ou 190 Tessentimento passivo. Nao tem sido enfatizado que, embora muitas das “casas de trabalho” tenham sido detestadas, elas também foram formadas e conformadas pelos padrdes varidveis da familia da classe trabalhadora em Tela¢ao ao cuidado do idoso ou doente. O perspicaz livro The Workhouse System, de M. A. Crowther, ajudou-nos a ver como a hist6ria das casas de trabalho foi modelada pelas exigéncias da classe trabalhadora, em Particular pela consignagao crescente para a “casa” de idosos e dependentes através dos filhos casados. Se a hist6ria das casas de trabalho do século XIX € um capitulo na institucionalizagao progressiva de velhice e morte, ela €é uma hist6ria em que a famflia da classe trabalhadora desempenha uma parte ativa. Isto seria 6bvio ndo fosse pela énfase convergente em ambas as teorias de institucionalizacao — a inspirada em Foucault e a do controle social de Marx — em que as classes trabalhadoras so sempre vistas como os objetos dos processos e nunca como seus Participantes. Como Crowther, de forma esclarecedora, aponta, “‘quiio desconfiados eram os pobres quanto as institui¢des € entretanto as suportavam: novos leitos de hospital eram ocupados logo que possfvel, a pressfo nos asilos e casas de caridade continuava a crescer. Mesmo a casa de corre¢do respondia a esta nova crenga no cuidado institucional” (p, 66). Isto ndo deveria significar que o sistema das casas de trabalho desenvolveu um Suporte consensual entre as classes trabalhadoras, mas que a institucionalizacdo crescente da velhice e morte foi um processo onde Estado, classes dominantes e classes dominadas participaram. : : Argumentos andlogos poderiam ser elaborados sobre a institucionalizagao do pobre demente no século XIX. Em quase todas as explicagdes disponiveis, especialmente nas de Foucault, este 6 um processo no qual médicos, filésofos, diretores de asilo, politicos ¢ advogados desempenham uma parte principalmente dirigente — mas nunca as familias dos préprios dementes fazem 0 mesmo. Um novo “discurso” na corrigibilidade do demente, em utopias’ carcerarias de disciplina reformativa, aparece no princfpio do século XIX e abrange tudo que the antecedeu. Nao obstante, o processo pelo qual as pessoas sfio primeiramente definidas, estigmatizadas e marginalizadas como loucas sempre deve comegar ou no lar, ou no trabalho, ¢ desde que a grande maioria de lundticos era pobre, deve-se comecar com a familia da classe trabalhadora, Sabemos, através do excepcional trabalho de Andrew Scull, que havia um constante aumento na populagdo dos sanatérios britinicos, de 226 pessoas para uma Populacao de 10.000 em 1896. Ele argumenta que era a propria construgao do asilo que tornava possfvel o constante aumento na populagao institucionalizada. De fato, a oferta criou sua prépria demanda. Nao 6 que a propria insanidade estivesse aumentando: 6 que as novas instituigdes 191 emergem, tornando possivel construir tal categoria em uma subclasse institucionaliz4vel. Uma conseqtiéncia involuntéria desta vis&o, entretanto, € negar qualquer papel a populacdo britanica na construgio da categoria de insanidade. Uma vez que os médicos j4 disseram, uma vez que os asilos j4 foram construidos, da mesma farma o argumento procede, a familia da classe trabalhadora e a vizinhanca obediente apresentam seus casos de loucos para ocuparem os leitos disponfveis. Mas 0 que aconteceria se a urbanizag4o ¢ a superpopulac4o, se as mudangas na natureza do trabalho de mulheres ¢ um aumento global na duragfio e na intensidade de trabalho para homens e criangas durante a industrializagio realmente tornassem mais dificil para as famflias de trabalhadores combinarem emprego e cuidado e alimentagSo de dementes no lar? Quase nada sabemos sobre isto, mas € razodvel supor, p. €x., que 0 evidente declinio da produgdo doméstica nas indiistrias com trabalhos externos, do setor artesanal e da economia rural tornava mais dificil para as familias mais pobres, particularmente para as mulheres, proporcionarem atengio doméstica a idosos ¢ doentes mentais. E possivel também que uma economia agricola fosse capaz de proporcionar emprego ocasional para dementes ou criangas defeituosas de modo que as formas de trabalho urbano ‘ou industrial no proporcionaram. Obviamente, essas so suposigdes abruptas mas podem esclarecer novas questOes acerca da demanda vinda da classe trabalhadora para as instituicdes do Estado, para a protego do dependente. O que sugiro é que é a crescente separaco entre trabalho e lar, no decurso da industrializagaio, que conduz a um novo esbogo dos limites da obrigagio da famflia para com os dependentes e que, por sua vez, encoraja 0 pobre a se responsabilizar pelo abastecimento da casa de trabalho como uma maneira de se confrontar com cargas que, pela primeira vez, parecem insuportdveis. Este € um modelo cruel e pode suscitar suposigdes questiondveis sobre a industrializac&o e um modelo nostdlgico acerca da familia pré-industrial. Mas pelo menos ele tem a virtude operacional de nos desobrigar da suposicao de que a institucionalizag4o progressiva do marginal e dependente no século XIX era um processo no qual o Estado era o martelo ¢ a classe trabalhadora, somente e sempre, a bigorna. O que é debatido aqui ¢ algo mais otimista que uma agenda de novas questOes sobre a “‘institui¢o total”. A real objec3o a maioria dos trabalhos existentes sobre o tema, inclusive o meu, é que eles comegam com uma suposigdo reflexiva e inquestiondvel sobre a centralidade do Estado.na criagiio da ordem social. Todos os usos do termo “controle social” estabe- lecem uma semelhante suposi¢ao e, conseqiientemente, todos negligenciam © papel crucial que as classes dependentes ¢ dominadas desempenham nas suas prdprias sujeigdes, mas também, e mais crucialmente, na criaglo de 192 novas formas de poder de Estado para satisfazer as suas exigéncias. Isto nao torna a ordem social consensual como o oposto ao conflitual: ndo requer uma concepgao voluntarista da ordem das sociedades de classe. Simplesmente confia uma delas & proposi¢A0 empirica de que novas formas de Estado sao parcialmente criagdes daquelas classes que eles pretendem controlar. Isto seria Sbvio se nao fosse pelos preconceitos estatisticos que se movem na dire¢io em que a histéria social recente compreendeu a ordem das sociedades modernas. Podemos comegar a escrever uma nova histéria social que parta da suposi¢éo de que uma sociedade é um denso tecido de permissées, proibigdes, obrigacées e regras, sustentadas e forjadas em milhares de pontos, ao invés de uma piramide de poder nitidamente organizada? Nessa teia de processos ¢ sistemas de crencas compartilhadas, esse tecido de habitos de rentincia, possibilidades de satisfacdo ¢ repressdo explicita, a “institui¢ao total” é somente um trago, um fio, (Tradugao de Eliana Leite Meireles) 193

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