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LA FATIGUE D'ÊTRE SOI

No seu livro sobre depressão, Alain Ehrenberg continua a reflexão sobre


alguns aspectos que influenciam o modo de ser do executivo moderno1. Embora o
livro seja escrito num contexto francês, ele pode trazer elementos interessantes de
análise para o nosso meio.
A depressão é uma zona mórbida particularmente privilegiada para
entender a individualidade contemporânea, principalmente seus dilemas. Não sendo
claramente definida, ela permite a combinação de elementos internos à psiquiatria e
de mudanças normativas profundas nos nossos modos de vida. Para que um
remédio mental como o Prozac possa encarnar o fantasma de livrar-se do sofrimento
psíquico e possa vir de encontro a uma aspiração social, é preciso que o dito
sofrimento tenha ocupado um papel central nas nossas sociedades.
A depressão começa a fazer sucesso no momento em que o modelo
disciplinar de gestão das condutas, as regras de autoridade e de conformidade às
proibições, que atribuíam às classes sociais ou aos dois sexos um destino, cederam
diante das normas que incitam cada um à iniciativa individual para tornar-se si
mesmo. Como conseqüência dessa nova normatividade, a responsabilidade inteira
de nossas vidas aloja-se não somente em cada um mas no entre-nos coletivo. Esse
modo de ser, a depressão, apresenta-se como uma doença da responsabilidade na
qual o sentimento de insuficiência domina. O deprimido não está à altura: está
cansado de ter que tornar-se si mesmo.
Mas o que significa tornar-se si mesmo? A questão não é simples porque
levanta problemas de fronteiras: entre o permitido e o proibido, entre o possível e o
impossível, entre o normal e o patológico. O íntimo, hoje, tem relacionamentos
instáveis entre culpabilidade, responsabilidade e patologia mental.
Suscitando a esperança de superar o sofrimento psíquico porque eles
estimulariam o humor (humeur, non humour) das pessoas que não são
verdadeiramente deprimidas, a nova classe de anti-depressivos confortáveis, como o
Prozac, encarna de qualquer modo a possibilidade ilimitada de turbinar o interior

1
EHRENBERG, Alain, La fatigue d'être soi,dépression et société, Paris, Odile Jacob, 1998,
introdução
2

mental para ser melhor do que si mesmo. Não se distinguiria mais curar-se ou
drogar-se. Numa sociedade em que as pessoas tomam em permanência
substâncias que agem sobre o sistema nervoso central e modificam assim
artificialmente seu humor, não se saberia mais nem quem é si mesmo nem quem é
normal. Um bem estar artificial tomaria insidiosamente o lugar da cura. Segue uma
seqüência de questões não resolvidas: o sofrimento é útil? Em caso de resposta
positiva, para que serve? Pode-se ainda distinguir entre as infelicidades e as
frustrações da vida ordinária, e o sofrimento patológico?

NADA É VERDADEIRAMENTE PROIBIDO NADA É REALMENTE POSSÍVEL

A partir dos anos 60, existe um sismo profundo: somos emancipados no


sentido próprio da palavra. O ideal político moderno, que faz do homem o
proprietário de si mesmo e não mais o dócil sujeito do Príncipe, estendeu-se a todos
os aspectos da existência. O indivíduo soberano, que somente é semelhante a si
mesmo, é daqui para frente uma forma comum de vida.
Essa nova soberania não nos torna todo poderoso ou livre de fazer o que
bem entendemos, ela não concretiza o reino do homem privado. É a ilusão
individualista. Duas modificações fundamentais acompanham essa soberania. A
modernidade democrática fez progressivamente de nos homens sem guias,
colocados na situação de julgar por nos mesmos e construir nossas próprias
referências. A fronteira entre o permitido e o proibido deixa lugar para a fratura entre
o possível e o impossível. A individualidade se transformou. Paralelamente a essa
relativização da noção do proibido, o lugar da disciplina nos modos de regulação
entre o indivíduo e a sociedade reduziu-se. Em vez da pessoa ser agida por uma
ordem exterior (ou uma conformidade com a lei), ela deve apoiar-se nos seus
recursos internos, recorrer a suas competências mentais. As noções de projeto, de
motivação, de comunicação são hoje as normas.
A medida do indivíduo ideal é menos a docilidade do que a iniciativa. Aqui
reside uma das mutações decisivas de nossas formas de vida, porque esses modos
de regulação não são uma escolha que cada um pode fazer de um modo privado,
mas uma regra comum, válida para todos sob pena de ser marginalizado da
sociabilidade. Eles fazem parte do espírito geral de nossas sociedades, são as
instituições do eu.
3

Daí uma primeira hipótese: a depressão instrui nos sobre nossa


experiência atual da pessoa, porque é a patologia de uma sociedade onde a norma
não é mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina, mas sobre a
responsabilidade e a iniciativa. O indivíduo é confrontado mais a uma patologia da
insuficiência do que a uma doença da culpa, mais ao universo da disfunção do que
ao da lei. O deprimido é um homem em pane. Existe uma mudança nas imposições
que estruturam a individualidade: do lado interno, elas não se apresentam mais em
termos de culpabilidade. Do lado externo, elas não se impõem mais em termos de
disciplina.
A depressão marca a impotência mesmo de viver, ela se expressa na
tristeza, a astenia (o cansaço), a inibição ou a dificuldade em iniciar a ação. O
deprimido está prisioneiro do "nada é possível".

A DEPRESSÃO OU O DECLÍNIO DO CONFLITO NO ESPAÇO PSÍQUICO

O deslocamento da culpabilidade para a responsabilidade pode


perfeitamente ser identificado em psiquiatria, desde que se escolhe uma grade de
leitura adequada. Antes, é preciso formular uma segunda hipótese.
O individualismo, em democracia, tem essa singularidade de repousar
sobre um duplo ideal: ser uma pessoa por si mesmo – um indivíduo – num
agrupamento humano que tira de si mesmo o significado de sua existência – uma
sociedade. Não somos mais guiados pelo religioso nem submetidos a um soberano
que decide para todos. Duas noções substituíram: a de interioridade e a do conflito.
Nas sociedades democráticas, o espírito, mais ainda do que o corpo, é
objeto de controvérsias intermináveis, que se impõem porque nossas crenças
fundamentais estão sendo questionadas. No lugar de uma alma inseparável da
noção de pecado, uma nova categoria designa o interior da pessoa: o espírito, a
psique, o mental, enfim, a interioridade escondida, dissimulada, manifestando,
porém, sua existência por múltiplos sinais. Sagrada como a alma, é um tabu para os
modernos que não podem manipula-la sem risco. A interioridade é uma ficção que
eles fabricaram para dizer o que acontece no interior deles mesmos. Mas essa
ficção é também uma verdade: acreditamos nela como outros acreditam na
metempsicose ou no poder mágico dos ancestrais.
A institucionalização do conflito permite a confrontação livre de interesses
contraditórios e a obtenção de compromissos aceitáveis. É a condição da
4

democracia na medida em que ela permite representar num palco político a divisão
do social. Do mesmo modo, a conflituosidade psíquica é a contraparte da auto-
fundação que caracteriza a individualidade moderna. A noção de conflito é o meio de
manter um espaço entre o que é possível e o que é permitido. O indivíduo moderno
está em guerra contra si mesmo: para estar ligado a si mesmo, é preciso estar
separado de si. Do político até o íntimo, a conflituosidade é o núcleo normativo do
modo de vida democrático.
Daí uma segunda hipótese: o sucesso da depressão repousa sobre o
declínio da referencia ao conflito sobre o qual se construiu a noção de sujeito que o
fim do século XIX deixou para nos. A identificação das noções de conflito e de
sujeito aconteceu com a invenção da "psiconeurose da defesa" por Freud. Esse
ensaio queria mostrar que a história psiquiátrica da depressão é caracterizada pela
dificuldade em definir o sujeito dela. As adições encarnam a impossibilidade de um
domínio completo de si sobre si mesmo. O drogado é escravo de si mesmo, mesmo
que depende de um produto, de uma atividade ou de uma pessoa. A sua capacidade
de ser sujeito ou de ser sociedade está em causa. A liberdade de costumes, ou seja
o declínio da polaridade permitido/ proibido, e a superação dos limites impostos pela
natureza para o humano, graças ao progresso das ciências biológicas e da
farmacologia, fazem que tudo se torne concretamente possível. A adição é a
nostalgia de um sujeito perdido.
Assim como a neurose esperava pelo sujeito dividido pelos seus conflitos,
dilacerado entre o que é permitido e o que proibido, a depressão ameaça o indivíduo
aparentemente emancipado frente às proibições, mas certamente esfrangalhado
entre o possível e o impossível. Se a neurose é o drama da culpabilidade, a
depressão é a tragédia da insuficiência.

O "DÉFICIT" E O "CONFLITO", GRADE DE LEITURA PARA UMA HISTÓRIA DA DEPRESSÃO

A constituição da noção de neurose, no fim do século XIX oferece essa


grade de leitura esclarecendo os deslocamentos da culpabilidade para a
responsabilidade. À concepção de Freud, opõe-se a do seu grande concorrente:
Pierre Janet. Freud e Janet modernizaram o velho conceito de nervosidade pela
criação do conceito de psiquismo: tornaram aceitável a idéia que o espírito pode
estar doente sem que seja necessária um causa orgânica e eles "inventaram" a
psicoterapia integrando a velha hipnose dos charlatães na ciência médica. Entre os
5

pontos que os opõe, um deve ser notado porque ele permite interpretar as
metamorfoses da depressão, relacionando ela ao problema da individualidade.
Freud pensa a neurose a partir do conflito enquanto Janet refere-se a
uma insuficiência ou a um déficit. Enquanto a existência de um sujeito para os
conflitos é indubitável, porque o paciente é considerado como um agente, é muito
mais difícil identificar o sujeito de um déficit.
Um estudo histórico da depressão mostrará que, no início, a aliança sutil
entre o déficit e o conflito fornecerá para a psiquiatria a referencia para tratar a
depressão de um sujeito doente, paradigma de partida para a depressão
contemporânea. Quando essa aliança for rompida no decorrer dos anos 70, a
neurose começará seu declínio. A depressão sairá do campo médico num contexto
onde a emancipação conduz a uma mudança de lugar da proibição, a culpabilidade
sendo dissimulada pelo avanço da responsabilidade. Ela torna-se a doença da moda
bem antes do aparecimento do Prozac. A depressão aparecerá não como uma
patologia da infelicidade mas como uma patologia da mudança, a de uma
personalidade que busca simplesmente ser si mesma. A insegurança interior será o
preço dessa libertação. A partir dos anos 80, a depressão entra na problemática
onde domina não tanto a dor moral mas a inibição e a astenia. A antiga paixão triste
se transforma em pane na ação, num contexto em que a iniciativa individual torna-se
a medida da pessoa. A noção de cura entre paralelamente em crise na medida em
que a depressão é redefinida como uma doença crônica.

A SOCIALIZAÇÃO DE UM PATOLOGIA INDEFINÍVEL


Para nossa reflexão pode ser interessante lembrar alguns aspectos da
história da aparição e da definição da depressão2.
A partir da invenção dos antidepressivos e dos ansiolíticos, a cena médica
e social da depressão se alarga consideravelmente. A possibilidade de melhorar o
humor doloroso com moléculas permite a um número importante de psiquiatras de
instalar-se como profissionais liberais e aos clínicos gerais de responder a
problemas que seus pacientes expressavam havia muito tempo. A industria
farmacêutica e a mídia entram também no jogo: a depressão pode acontecer a
pessoas que estão com boa saúde. Ela não é nem doença mental nem doença

2
Ibid, primeira parte capítulo 3
6

imaginária. Nos anos 70, a depressão torna-se uma realidade do cotidiano da


medicina generalista. A depressão socializa-se e a vida psíquica sai do seu escuro
halo.
Enquanto a loucura é misteriosa e espetacular, a depressão é discreta,
sutil; sua presença é percebida, mas de leve, porque os pacientes deprimidos
conservam a razão. Os antidepressivos fazer surgir uma nova dificuldade, a das
relações entre neurose e depressão: diferenciar o distúrbio do humor que se tem da
personalidade perturbada que se é, eis um tema chave. A confusão que reina em
relação à depressão vem de uma heterogeneidade extrema, como a histeria, e uma
universalidade máxima, como a ansiedade, sintoma tão facilmente reconhecível.
O que significa ceder a um distúrbio mental? Em quais condições uma
consciência anormalmente perturbada pode ser considerada curada? Acalmara a
angústia sem fazer dormir, estimular sem euforizar, e nos dois casos, sem riscos de
habituar-se a eles, eis a revolução permitida pelos neurolépticos e os
antidepressivos. Pela primeira vez na história das doenças mentais, foram
inventados remédios verdadeiros, quer dizer moléculas que restituem à pessoa uma
liberdade de pensamento, de emoção e de movimento corporal suficientes para
aproximar-se de uma normalidade comportamental. A molécula pode gerar uma paz
do espírito (ataraxia) e diminui a intensidade da agitação nervosa: a consciência
recupera seus poderes – a vigilância, a inteligência e o afeto não são mais alterados.
Existe porém uma consciência nos psiquiatras que os neurolépticos agem
simplesmente sobre os síndromes e que os antidepressivos têm uma ação
suspensiva. A ação química modifica os mecanismos mas não suprime as causas: é
patogênica, não etiológica.
Os sintomas da tristeza e da dor moral são o núcleo do humor depressivo.
Ela produz um sentimento de desvalorização de si mesmo que colore todos os
outros aspectos, comportando redução e lentidão no curso das idéias e da incitação
à ação. A relação entre a ansiedade e a depressão é difícil de ser definida. As
moléculas comercializadas atraíram, porém, a atenção para uma distinção: algumas
agem mais particularmente sobre a ansiedade enquanto outras são mais
estimulantes.
Os remédios levam menos suspeitas porque, numa sociedade bem estar,
"se passa de medicamentos para doentes a medicamentos para pessoas normais
em dificuldade e, depois, para medicamentos que facilitam a vida das pessoas
7

normais "3. Em nenhum momento, existe a preocupação de saber se de pode curar


o mal de viver.
O tema da vida moderna participa do mesmo movimento. O homem
moderno submetido a muitas ambições contraditórias e a civilização ocidental não
comporta somente vantagens: ela cobra um preço caro.
O conjunto desses elementos contribui a dar um lugar social para a vida
interior e instituir uma linguagem própria para a psique. Para curar-se, inclusive
usando uma molécula, é preciso que o paciente se interesse à própria intimidade.
Ele não pode ficar reduzido à própria doença: ele precisa ser o sujeito dos seus
próprios conflitos.

O CREPÚSCULO DA NEUROSE4

No fim dos anos 60, pode se classificar a depressão em três grandes


conjuntos: a depressão endógena, a depressão neurótica e a depressão reacional,
necessariamente exógena. A primeira tem por origem o mais profundo somático,
seus mecanismos são biológicos, afetam as sensações, as emoções, os
sentimentos, em breve a experiência psíquica e subjetiva. A segunda é a que traz
mais a tona a noção de personalidade: está mais próxima da desordem
psicopatológica. A terceira frisa o acontecimento externo que a motiva: pode atingir
os mais equilibrados no plano psicológico. Embora os antidepressivos são
recomendados, não existe dúvida que o tratamento recomendado é a psicoterapia.
Nas discussões sobre a etiologia, o diagnóstico e a eficácia terapêutica de tal
produto, o conjunto o mais fraco e o mais diagnosticado é a depressão neurótica.
Neurose é a palavra importante: o conflito intra-psíquico manifesta-se por
sintomas depressivos e é esse conflito que é o objeto da ação terapêutica. Nessa
classe patológica, as noções de sujeito e de conflito confundem-se tanto que elas
são equivalentes: um sujeito é sujeito dos seus conflitos.
A psiquiatria encontra duas grandes soluções classificatórias para colocar
um pouco de coerência no diagnóstico. Cada um contribui de modo diferente para o
declínio da neurose enquanto expressão do conflito psíquico.

3
FOUGÈRE, P., les médicaments du bien être, citado em EHRENBERG, Alain, La fatigue d'être
soi,dépression et société, Paris, Odile Jacob, 1998, p. 127
4
EHRENBERG, Alain, La fatigue d'être soi,dépression et société, Paris, Odile Jacob, 1998, segunda
parte
8

1. A primeira solução é proposta por psiquiatras de orientação


psicanalítica. Ela coloca o acento na noção de personalidade
depressiva. A síndrome depressiva não psicótica nem neurótica: é
um "estado limite". O neurótico é um homem conflituoso porque é
aquele que deixa aparecer o conflito inconsciente. A personalidade
depressiva é incapaz de deixar aflorar seus conflitos e de
representa-los; ela se sente logo vazia, frágil e tem dificuldades em
suportar suas frustrações. Daí a tendência em adotar
comportamentos dependentes e buscar sensações. Na linguagem
psicanalítica, tal personalidade situa-se menos no registro do
conflito do que no registro dito clivado, caracterizado por uma
espécie de dilaceramento interno onde os elementos não estão
nem em conflito nem relacionados. A pessoa é dominada por um
sentimento de insuficiência. Existe uma mudança na figuração de si
mesmo. A brecha intima transforma-se em vácuo interior.
2. A segunda solução evacua a noção de personalidade e a
competência clínica do psiquiatra. Já que os psiquiatras não
conseguem entrar em acordo sobre as causas e, por
conseqüência, sobre as doenças subjacentes às síndromes, basta
pular a pergunta: a qual patologia subjacente remetem as
síndromes? O meio técnico consiste em elaborar critérios
diagnósticos estandardizados que descrevem claramente as
síndromes e podem ser bons guias para o diagnóstico.
Essas duas soluções selam o divórcio entre o modelo deficitário e o
modelo do conflito. Na versão médica, o homem deficitário é antes de tudo objeto da
própria doença, no sentido que ele é definido como o que padece (não importando
se ele padece por falta do amor da mãe ou por causa de uma taxa de serotonina
insuficiente). O deprimido não precisa confrontar-se com seus conflitos porque ele
tem uma patologia da qual ele pode ser libertado. Na versão psicanalítica, ele não
consegue ser sujeito de seus conflitos. Sujeito deve ser entendido como sujeito da
ação – um agente – que se estrutura na possibilidade de representar a si mesmo
seus conflitos e, em conseqüência, ser melhor armado para reencontrar "a liberdade
9

de decidir para isso ou aquilo" como diz Freud em relação à cura5. Nessa segunda
parte, o fio condutor é que estamos assistindo ao declínio da referencia ao conflito e
à culpabilidade em proveito de figuras que acentuam o déficit e o bem estar.
Essa transformação da noção de depressão acontece no contexto de
mudança normativa que torna-se sensível no decorrer dos anos 60. As regras
tradicionais de enquadramento dos comportamentos individuais não são mais
aceitas e o direito de escolher a vida que se quer levar começa a ser, senão a norma
da relação indivíduo-sociedade, pelo menos a entrar nos costumes. As relações
entre o público e o privado modificam-se notavelmente: o primeiro aparece como o
prolongamento do segundo. Em vez da disciplina e da obediência, a independência
em relação às imposições sociais e o erguimento sobre si mesmo; em vez da
finitude e do destino ao qual é preciso adaptar-se, a idéia que tudo é possível; em
vez da velha culpabilidade burguesa e da luta para libertar-se da lei dos pais (Édipo),
o medo de não estar a altura, a vazio e a impotência que disso resultam (Narciso). A
figura do sujeito sai de tudo isso modificada: trata-se daqui para frente de ser
semelhante a si mesmo. A partir do momento em que tudo é possível, as doenças
da insuficiência colocam, dentro da pessoa, dilacerações que lembram para ele que
nem tudo é permitido.
A depressão sai do raciocínio que consiste em buscar a patologia sub-
jacente. Por que levar os pacientes a confrontar-se com os próprios conflitos na
medida em que a assistência médica compensa o sentimento de insuficiência? O
continente do permitido deixa lugar para o continente do possível.

NEM LOUCO, NEM PREGUIÇOSO: A VIDA INTERIOR NÃO É PROBLEMA DE


PSICOLOGIA
A idéia que cada um possa trilhar o próprio caminho democratiza-se. O
homem de massa coloca-se pessoalmente em movimento: daí novos receios. A
depressão difundiu-se nas nossas sociedades como uma patologia da mudança e
não da miséria econômica ou social: ela é gerada pela abundância e não pela crise
econômica. O alongamento da esperança de vida aumentaria as depressões
(ligadas às doenças associadas ao envelhecimento), a mudança constante do
ambiente psicossocial produziria os estresses suscetíveis de transformar-se em

5
Em Nouvelles conférences sur la psychanalyse, citado por EHRENBERG, ibid. p. 136
10

depressão (desintegração da família, solidão etc.), as doenças cardiovasculares,


cerebro-vasculares, gastrintestinais suscitam reações depressivas assim como o
aumento de consumo dos remédios que podem tornar-se fontes de depressão. A
urbanização, a mobilidade geográfica e as rupturas afetivas que ela implica, o
crescimento da anomia social, as mudanças nas estruturas familiares, a fragilização
dos papéis sexuais tradicionais aumentaria o teor da depressão nas nossas
sociedades.
Na esteira de uma melhoria considerável das condições materiais produz-
se simultaneamente um desencravamento social dos pobres e uma nova
consciência de si, da qual os magazines e os livros de psicologia popular formam a
linguagem. As regras de obediência a cânones morais ou religiosos recuam
progressivamente diante de modelos fornecendo uma ferramenta interpretativa para
resolver ou superar problemas íntimos. A mídia desculpabiliza os leitores e facilitam
a emergência de uma demanda, fornecendo as palavras para formulá-la. Abrem um
espaço público para colocar em forma uma realidade psíquica e modelam o estilo de
uma psicologia para as massas. A interioridade não está na cabeça das pessoas
que inventariam por si mesmos uma linguagem, ela está no mundo e em nós
simultaneamente: ela supõe atores que formulam significados comuns que cada um
pode entender e apropriar-se pessoalmente para dizer o que ele sente dentro de si.
Sem instituições da interioridade, não existe socialmente falando interioridade. A
percepção do íntimo muda. Não é mais simplesmente o lugar do segredo ou da
liberdade de consciência, ele torna-se o que permite de libertar-se de um destino
para ter a liberdade de escolher a própria vida.
Nos anos 70, prospera a idéia que cada um é o proprietário da própria
vida começa a se impor sociologicamente. O homem de massa está se tornando o
próprio soberano, conforme anunciado por Nietzsche. Nada acima dele pode indicar
quem ele deve ser, porque pretende ser o único proprietário de si mesmo. Um tipo
de sujeito, menos disciplinado e conforme, mais "psíquico", quer dizer obrigado a
decifrar-se a si mesmo, torna-se mais comum. No conselho de vida tradicional, a
grande pergunta era: o que fazer? Hoje, a nova retórica leva a responder a esse
questionamento com uma outra pergunta: quem sou eu? Uma gramática da vida
interior torna-se disponível para as massas: ela permite à dona de casa a mais
ignorante sobre os problemas do inconsciente uma ferramenta reflexiva que lhe
permite interessar-se à própria vida íntima porque pessoas como ela expressam-se
11

em público. A mídia reduz a vergonha ou culpabilidade que cada um poderia sentir


falando dos seus problemas pessoais (a depressão pode acontecer a pessoas com
boa saúde): ela dá uma legitimidade social. O equilíbrio interior começa a tornar-se
um imenso mercado heteróclito: a auto-estima propicia o nascimento de uma
verdadeira indústria de serviços relacionais com sua linguagem (auto-ajuda), suas
tecnologias (medicamentosas, psicológicas), suas profissões (sexólogos,
psicoterapeutas de grupo etc..).
A religião entra nesse movimento porque ela recebe como função de
proporcionar um bem estar interior que facilite a relação com o outro. O objetivo é
obter uma realização pessoal, impregnando a relação com Deus de psicoterápico. A
religião responde a demandas terrestres e Deus torna-se o horizonte de uma auto-
realização. As técnicas de cura repousam sobre um princípio oposto à noção de
sujeito conflituoso: como multiplicar as capacidades de bem estar das pessoas que,
mesmo não tendo dificuldades de viver, pelo menos buscam viver sua vida na
plenitude mais autentica? Forma a logística do indivíduo emancipado, porque seu
objeto não consiste em tornar praticáveis as proibições mas em apagar qualquer
sofrimento. O terapeuta deve compensar as frustrações que a vida infligiu a seus
pacientes, liberá-los dos quadros artificiais que os impedem de ser eles mesmos.
Daqui para frente, todo mundo poderá ser normal qualquer que seja sua
diferença; o importante é poder expressá-la e assumi-la. Essa pluralização que
permite que cada um escolhe a própria vida sem risco de estigma, resulta do fato de
que se institui sociologicamente o indivíduo puro, quer dizer um tipo de pessoa que é
o próprio soberano. E esse indivíduo não tem mais "lado de fora" que possa indicar-
lhe uma conduta porque é ele mesmo que deve elaborar as próprias regras. As
normas de hoje impelem as pessoas de tornar-se elas mesmas como as de ontem
comandavam de ser disciplinados ou de aceitar a própria condição; contudo, nada
permite afirmar que existe menos experiência subjetiva na imposição disciplinar do
que na da realização pessoal. O "pessoal" é um artigo normativo e, como qualquer
norma, torna-se perfeitamente impessoal.
As novas terapias revelam uma recomposição das noções do normal e do
patológico. São a tradução clínica de uma normatividade que relaxou seus vínculos
com a culpabilidade e a disciplina. Do lado social, a possibilidade de construir as
próprias regras, do lado clínico, os dispositivos levando menos a levar a pessoa a
12

reencontrar um estado de equilíbrio do que a desinibi-la e permitir que ela multiplique


suas próprias possibilidades.
Surgem, então, novas patologias mentais onde o conflito intra-psíquico é
inexistente e onde domina o sentimento de perda do próprio valor. Baixa da auto-
estima, sentimento de inferioridade, existe aí algo que se parece muito com déficit.
Se o conflito está ligado à culpabilidade, o déficit seria mais grudado ao narcisismo.
É a grande lição que a depressão vai infligir ao homem que creu instituir-se como
seu próprio legislador. As técnicas de auto-melhoria desinibem o indivíduo mas não
lhe permitem estruturar-se. Um novo modo de encarar a depressão difunde-se nos
ambientes analíticos. Ela define um estilo de desespero que as gerações anteriores
não conheciam. Enquanto a ansiedade ou a angústia ligadas à neurose são sempre
suscitadas por um perigo ou pelo desrespeito a uma proibição, o afeto depressivo é
gerado por uma perda6.
"A personalidade depressiva parece incapaz de livrar-se da problemática da
perda. As estruturas depressivas vivem cronicamente sob o signo do problema
não resolvido de perda constante, do sentimento fundamental de ser
perdedores, decepcionados."7
Uma grande diferença entre a neurose a manifestação depressiva e esse
sistema patológico depressivo é que, no primeiro caso, a pessoa consegue
estruturar mecanismos de defesa estável enquanto, no segundo, ela vive em
permanência uma insegurança identitária que se manifesta por uma depressão
crônica.
Essas patologias são chamadas narcisistas. O narcisismo não é o amor
de si que é uma das alavancas da alegria de viver. É o fato de ser prisioneiro de uma
imagem tão ideal de si mesmo que ela torna impotente, paralisa a pessoa que
precisa em permanência ser animado por alguém e pode tornar-se dependente – as
técnicas de grupo podem compensar essa fragilidade. Nessas patologias, existe um
super-investimento no Eu que torna toda frustração muito difícil de suportar. O
paciente nunca obtém uma satisfação total: sente-se vazio e reage com
agressividade. O neurótico caracteriza-se pelo conflito psíquico. O narcisista não
consegue estabelecer o conflito: é vazio.

6
FREUD, Sigmund, Inhibition, symptôme et angoisse, citado por EHRENBERG, ibid. p. 161
7
HAYNAL, A., le sens du désespoir, comunicação ao XXXVI congresso dos psicanalistas de língua
romana, citado por EHRENBERG, ibid. p. 162
13

A neurose é conseqüência de um conflito onde se é culpado enquanto a


depressão é vivida como um defeito que envergonha. O deprimido está mergulhado
numa lógica onde a inferioridade domina, enquanto o neurótico está numa lógica de
transgressão. O desaparecimento da força reguladora da proibição e da camisola da
conformidade abre uma auto-estrada para a depressão? A personalidade depressiva
permanece num estado de adolescência permanente, porque não consegue aceitar
as frustrações. O resultado são uma fragilidade, um sentimento permanente de
precariedade ou de instabilidade. Esse tipo de depressão manifesta-se não pela
culpabilidade mas pela vergonha.
Na psicanálise francesa, a depressão apresenta-se como um
desabamento simbólico: a dificuldade de fazer a experiência da conflituosidade
enfraquece os mecanismos de identificação indispensáveis para estruturar uma
identidade capaz de viver com os próprios conflitos. O estilo do desespero muda em
paralelo com o estilo da esperança. A angústia de ser si mesmo vira um cansaço de
ser si mesmo.

O INDIVÍDUO INSUFICIENTE8

No nível patológico, a clínica, principalmente analítica, desloca sua


atenção de um território onde o conflito, a culpabilidade e a angústia dominavam
para um espaço onde a insuficiência, o vazio, a compulsão ou a impulsão desenham
os traços do homem patológico. Na nova normatividade e na nova psicopatologia,
trata-se menos de identificação (com imagens parentais bem desenhadas ou com
papeis sociais bem definidos) do que de identidade. A identidade é o primeiro vetor
de redefinição da noção de pessoa hoje. No decorrer dos anos 80, a afirmação de si
entrou tanto nos costumes que uma dona de casa de 50 anos não hesita em contar
todos os detalhes de sua vida privada na televisão.
Nessa época, existe uma inovação num segundo plano. Não se trata
simplesmente de tornar-se si mesmo, de buscar a própria autenticidade; é preciso
agir sobre si mesmo, apoiar-se nos próprios recursos internos. O segundo vetor da
individualidade no fim do século XX é o da ação individual.
A questão da identidade e da ação combinam-se assim: no aspecto
normativo, a iniciativa individual junta-se à libertação psíquica; no lado patológico, a

8
EHRENBERG, ibid., terceira parte
14

dificuldade em iniciar a ação associa-se à insegurança identitária. A culpa em


relação à norma consiste menos em ser desobediente do que ser incapaz de agir. É
outra concepção da individualidade.

A PANE DEPRESSIVA
No fim do século XX, a depressão encarna não só a paixão de ser si
mesmo e a dificuldade em sê-lo, mas igualmente a exigência de iniciativa e a
dificuldade em tomá-las. A falta de iniciativa é o distúrbio fundamental do deprimido.
A dor moral vê-se substituída pelo tema do enfraquecimento afetivo: este tipo de
indiferença é para o humor o que a apatia é para a ação.
Duas dimensões principais aparecem: a inibição e a impulsividade, uma
sendo o reverso da outra. São as duas faces da patologia da ação. Na inibição, a
ação é ausente; na impulsividade, ela não é controlada. O território da apatia cobre o
da depressão. A individualização da ação gera novas pressões sobre a
individualidade que deve assegurar em permanência lá onde ela se contentava de
obedecer.
A ação hoje individualizou-se. Ela não tem outra fonte a não ser o agente
que a realiza e que é dela o único responsável. A iniciativa dos indivíduos passa no
primeiro plano dos critérios que medem o valor da pessoa. Assim o empreendedor
passa a ser modelo de ação para todos e serve de referencia para dinamizar o
conjunto sócio-político. As empresas-cidadãs devem aliar-se a administrações que
funcionam como empresas.
Ao acréscimo do grau de engajamento pedido se acresce uma nítida
diminuição das garantias de estabilidade. O estilo das desigualdades se modifica: às
desigualdades sociais se adicionam desigualdades internas nos próprios grupos.
As regras mudaram, independentemente do lugar considerado (escola,
empresa, família). Não são mais obediência, conformidade à moral, disciplina, mas
sim flexibilidade, mudança e rapidez de reação. Domínio de si, flexibilidade psíquica
e afetiva, capacidades de ação fazem que cada um deve suportar a carga de
adaptar-se em permanência a um mundo que perde precisamente sua permanência,
um mundo instável e provisório, feito de fluxos e de trajetórias cheias de altos e
baixos. A legibilidade do jogo social e político ficou embaçada. Essas
transformações institucionais dão a impressão de que cada um, inclusive os mais
humildes e frágeis, deve assumir a tarefa de escolher e decidir tudo. Mudamos mas
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não temos o sentimento de progredir: é o individuo trajetória. Combinada a tudo o


que incita a interessar-se pela própria intimidade, a “civilização da mudança”
estimula uma atenção maciça ao sofrimento psíquico.
A pane depressiva acompanha o indivíduo - trajetória como sua sombra.
Categorias psiquiátricas, meios terapêuticos e normas sociais re-configuram a
individualidade. A onipotência dos antidepressivos esconde uma doença incurável
porque enquanto se perde de vista o conflito, a vida transforma-se numa doença
identitária crônica.

O SUJEITO INCERTO DA DEPRESSÃO DA INDIVIDUALIDADE NO FIM DO


SÉCULO
A capacidade de agir por si mesmo é o núcleo fundamental da
socialização, a ação em pane o distúrbio fundamental da depressão. A partir daí,
existem dois modos de apreciar a situação: uma só diz respeito ao sujeito, a outra
que não dá importância a esse sujeito. A controvérsia entre Janet e Freud recomeça
um século depois num contexto normativo e psiquiátrico diferente. Se a depressão
for mesmo a dupla manifestação patológica da libertação psíquica e da iniciativa
individual, desenvolvem-se dilacerações internas diferentes das do conflito.
Quando se dispõe de medicamentos aplicáveis tanto a graves patologias
quanto a pequenos mal-estares, a inutilidade do diagnóstico faria que seria
realizável praticamente o pesadelo de uma sociedade composta de indivíduos
“fármacos-humanos”, quer dizer uma categoria de pessoas que não seria mais
submetida às condições habituais da finitude.
A crise da cura e o declínio da referencia ao conflito sugerem que a
individualidade contemporânea não está mais no horizonte da cura: é acompanhada
e transformada de vários modos na longa duração. Simultaneamente, nossa
sociedade saiu politicamente da idéia da boa solução (daí a dialética direita /
esquerda). O conflito não estrutura mais a unidade da pessoa e do social, suas
mensagens não fornecem orientações adequadas para guiar a ação.
A depressão torna-se uma doença da transmissão neuro-química, mas
ela resiste. É hoje redefinida como uma doença que recidiva e a tendência crônica.
Tratar melhor a depressão significa reduzir a intensidade dos sintomas e a duração
de um episódio depressivo, mas certamente não significa progredir na cura.
16

O tema de qualidade de vida do paciente substituiu o tema da cura do


paciente. A qualidade de vida é um meio de tornar autônomo o paciente na
cronicidade, assim como em qualquer tipo de doença crônica. O ideal da aliança
terapêutica consiste em transferir as competências medicais do médico para o
paciente. O problema é que existe um possível dilema: de um lado, uma melhor
qualidade de vida para o paciente que melhorou, do outro lado o medo da
dependência; esses dois fenômenos estão intimamente ligados. A cura não supõe
um fim de tratamento em algum momento? A cronicidade pode ter virado regra. O
antidepressivo sai da categoria dos remédios assim como a depressão sai da
categoria doença. O acompanhamento de longa duração substitui a cura
precisamente porque os antidepressivos são também remédios anti-neuróticos:
colocam os conflitos a distancia.
Quando se vai para um modelo de conflito, o bem estar não representa a
cura: sarar significa ser capaz de sofrer, de tolerar o sofrimento. Ser curado não
significa ser feliz, é ser livre, reencontrar um poder sobre si permitindo decidir. A
visão da cura relativiza a parte do bem estar (animal) em relação à liberdade
(humana).
O homem patológico de hoje é mais um traumatizado do que um
neurótico. É empurrado, vazio e agitado. Nas condições de precariedade, ele
preenche dificilmente as condições materiais, sociais e psicológicas para aceder ao
registro do conflito. As novas ameaças interiores e seus tratamentos desenham um
individuo cuja identidade interna é cronicamente fragilizada, mas que é
perfeitamente acompanhável na duração. O individuo de hoje é nem doente nem
curado: está inscrito em múltipos programas de manutenção.
A depressão é o mediador histórico que faz recuar o homem conflituoso,
ameaçado pela neurose, a favor do homem fusionado na busca de sensações para
superar uma intranqüilidade permanente. Tendo de um lado o evangelho da
realização pessoal e do outro lado o culto da performance, o conflito não desaparece
mas perde sua evidencia e não é mais um guia seguro.
O conflito estruturava a relação em dois níveis. No nível político, ele se
encontra no entre-nos coletivo. A invenção do social (seguro para os trabalhadores e
a assistência para os que não podiam trabalhar), sua formalização pela
representação política (parlamentos e partidos) e as organizações de massa
(sindicatos, movimentos da juventude) permitiram superar um risco que a luta de
17

classes carregava: o da guerra civil. Esse estilo de formalização oferecia ao conflito


um pacto – político – que lhe dava um sentido, desenhando as linhas de
enfrentamento e de acordos entre os atores. A divisão do social condiciona a
unidade da sociedade, o conflito permite de sustentar o agrupamento humano sem
que ele precise justificar seu sentido referindo se a uma referencia externa ou sem
que um soberano decide para todos. É o núcleo da política numa democracia.
No nível da pessoa, o conflito preenchia a mesma função simbólica:
estruturar uma relação entre si e si mesmo onde os elementos estão ao mesmo
tempo relacionados e em conflito, relacionados porque em conflito. A divisão de si é
constitutiva da unidade da pessoa. Essa divisão nasce nas margens do sujeito da
loucura e torna-se o centro do sujeito da neurose. É sua dimensão, não privada (não
é escolhida) nem intersubjetiva (não é negociada), mas ela institui. “A satisfação do
desejo não faz parte do programa de reprodução da humanidade, mas, sem o
desejo, a reprodução não aconteceria. É impossível escapar dessa contradição.”9
Esta lei pode ser transgredida, mas não abolida.
A impregnação recente da sociedade pela depressão cobre exatamente o
processo do declínio da noção de sujeito que se tinha imposto a partir do fim do
século XIX. Freud, e não Janet, tinha dado ao sujeito moderno sua forma ideal. Ideal
por duas razões:
1. A primeira razão tem um caráter universal para a modernidade.
Freud integrou a animalidade humana (id) com a civilização
(superego). Somos feitos de pulsões, como todo mamífero, mas
nossa particularidade é que a lei moral nos divisa e gera, para falar
como Freud, essa variável tópica da culpabilidade que é a
angústia. A experiência do conflito estrutura a identidade do sujeito
cuja unidade ela mantém; contudo, a intensidade do conflito pode
ser tão grande que a pessoa se fragmenta na psicose e que a
identidade do Ego se dissolve na esquizofrenia.
2. A segunda razão é que ele considerou o humano a partir de sua
indeterminação. No uso francês da psicanálise, a culpabilidade é
central e é um meio de colocar em forma essa indeterminação. A
noção de culpa e de conflito mórbido moldam a introdução do

9
LEGENDRE citado por EHRENBERG, ibid. p.272
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pensamento de Freud na França. A psicanálise francesa é uma


ciência do homem culpado enquanto a psicanálise americana é
uma ciência do desenvolvimento pessoal. Ela utiliza as tendências
naturais do homem para seu próprio bem e o bem da sociedade.
A depressão é a manifestação da democratização da exceção. Vivemos
com a crença e a verdade de que cada um deveria ter a possibilidade de criar por si
mesmo sua própria história em vez de padecer a própria vida como um destino. O
homem colocou-se em movimento pela abertura dos possíveis e pelo jogo da
iniciativa individual, até o mais profundo da própria intimidade. Essa dinâmica
aumenta a indeterminação, a dissolução da permanência, multiplica a oferta de
referencias e os confunde simultaneamente.
O individuo que, libertado da moral, fabrica a si mesmo e tende para o
super-humano (agir sobre a própria natureza, superar-se, ser mais do que si mesmo)
é nossa realidade mas, em vez de possuir a força dos mestres, é frágil, é carente de
ser, está cansado da própria soberania e se queixa dela. A depressão é assim a
melancolia mais a igualdade, a doença por excelência do homem democrático. É a
contraparte inexorável do homem que é o próprio soberano. Não do que agiu mal:
do que não pode agir. A depressão não se pensa nos termos do direito: se pensa
nos da capacidade.
O indivíduo não está mais no horizonte de uma natureza nem de uma lei
superior e impessoal. Ele está projetado em direção de um futuro cujos desafios e as
provas ele precisa enfrentar, carregando essa responsabilidade interior. Ele está
menos na imposição da renuncia (permitido/proibido) do que na do limite
(possível/impossível): quando é possível agir sobre a natureza, sobre síndromes
afetivas, é permitido fazer isso? Em nome de que? Se tudo for possível, tudo é
normal? Tudo é permitido? Essas questões são políticas na medida em que elas se
referem a princípios fundadores de uma sociedade, quer dizer ao horizonte de um
mundo comum. Da dificuldade em responder resulta nossa preocupação com a
dependência. O individuo soberano é ao mesmo tempo deprimido e dependente.
A dependência, essa relação patológica com um produto, com uma
atividade ou com uma pessoa, é, com a depressão, a outra grande obsessão da
psiquiatria. Para nossas sociedades, ela se tornou algo de mais essencial porque o
que está em jogo é menos medical e mais simbólico. O drogado é o homem do qual
convém pensar que ele passou a fronteira entre o tudo é possível e o tudo é
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permitido. Ele radicaliza a figura do individuo soberano. A dependência é o preço de


uma liberdade sem limite que daria a si mesmo o sujeito: a dependência equivale a
uma forma de escravidão. Ela é com a loucura a segunda maneira de dizer o que
acontece quando a parte da liberdade vacila no sujeito. Todavia, a loucura e a
dependência o dizem de um modo oposto: se a primeira é reveladora do lado
sombrio do nascimento do sujeito moderno, a segunda coloca maciçamente em
evidencia seu declínio. A dependência representa para a libertação psíquica e a
iniciativa individual o que representou a loucura para a lei da razão: um si mesmo
que nunca si é o suficiente (a insegurança identitária) e uma exigência de ação para
a qual nunca se responde à altura.
A loucura era o lado reverso de um sujeito racional, a neurose freudiana o
de um sujeito conflituoso, a depressão o de um individuo que é somente si mesmo e,
por conseqüência, nunca bastante si mesmo, como se corresse atrás da própria
sombra, da qual ele se tornou dependente. Se a depressão for a patologia de uma
consciência que é somente ela mesma, a dependência é a patologia de uma
consciência que nunca é si mesma o bastante, nunca suficientemente preenchida
por uma identidade, nunca suficientemente em ação – por demais indecisa e
explosiva.
A depressão é mediadora que torna visíveis os processos pelos quais o
homem doente do conflito, que arriscava a loucura, sofre hoje de uma insuficiência
que atiça a dependência. A loucura é algo que acontece, a droga é uma ação que
faz acontecer. Eu me torno louco, mas eu me drogo. A droga é um comportamento:
ela implica uma intenção e uma ação. Contrariamente à loucura, ela implica a
vontade da qual ela constitui uma patologia. As drogas não são meios que usamos
para multiplicar nossas capacidades pessoais, quando se trata de aumentar nossa
resistência, nossa concentração, nossa imaginação ou nossos prazeres? Ora a
vontade, para nos os modernos, como diz Vernant,
“é a pessoa vista no seu papel de agente, o Eu considerado enquanto fonte de
atos dos quais ele não é somente responsável diante dos outros, mas onde ele
se sente pessoalmente engajado.(...) A vontade supõe uma preeminência
reconhecida na ação, do sujeito humano posto como origem, causa produtora
de todos os atos que emanam dele mesmo.”10

10
VERNANT, Jean Pierre VIDAL-NAQUET, Pierre, Mythe et tragédie dans la Grèce ancienne, Paris,
La Découverte, 1974, p. 44 citado por EHRENBERG, ibid. p.280
20

A questão da ação não é: tenho direito de fazer? mas: sou capaz de


fazer? Estamos engajados numa experiência comum onde a referencia ao permitido
está encaixada numa referencia ao possível.
Isso gera um duplo movimento. Primeiro, uma fascinação tecnológica
sobre a constante remodelagem de si mesmo, uma vaga ciberhumana. Ao mesmo
tempo, se assiste ao um deslumbramento moral. Assim, se investe pesadamente na
lei penal quando se trata dos limites que o sujeito não deveria ultrapassar para
permanecer um sujeito. As fronteiras dentro da pessoa e as que distinguem as
pessoas são objeto de uma preocupação ao ponto que não se sabe mais quem é
quem. Uma sociedade de iniciativa individual e de libertação psíquica, na medida em
que conduz cada um a decidir em permanência, encoraja as praticas de modificação
de si e cria simultaneamente problemas de estruturação de si mesmo que não
existiam numa sociedade disciplinar. A absorção do continente do permitido no do
possível faz que ninguém não pode mais ignorar a lei.
A atenção dada ao sofrimento nas questões sociais levou à colocação de
acompanhamento psicológico para os mais diversos traumatismos. Mas o que tem a
ver a política com o sofrimento? A preocupação com o sofrimento participa do
declínio das dimensões conflituosas do social. Em vez da lutas entre grupos sociais,
concorrências individuais afetam as pessoas. Assiste-se a um duplo fenômeno de
universalização crescente (a globalização), mas abstrata, e de uma personalização
crescente, mas ressentida muito concretamente. Pode se combater coletivamente
um patrão ou uma classe adversa, mas como fazer com a globalização? É difícil de
reclamar por justiça nesse contexto, mais difícil de atribuir a um adversário
designado a responsabilidade de uma situação da qual nos sentimos vitima. Se
diferencia cada vez mais dificilmente sofrimento e injustiça, compaixão e
desigualdade, conflitos legítimos que visam repartir mais justamente a riqueza
produzida e conflitos ilegítimos, que resultam de corporativismos. Existe ainda uma
ação política no horizonte de um mundo comum, mas esse horizonte passa hoje
pela individualização da ação. A ação política consiste, hoje, menos em resolver
conflitos entre adversários do que em facilitar coletivamente a ação individual. Tende
mais a fabricar autonomia do que resolver conflitos.
A relação social hoje seria “psicologizante”, consistindo em estabelecer
um vinculo entre um Eu (uma subjetividade) e um outro Eu (a relação entre os dois
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formando uma inter-subjetividade) numa espécie de contratualismo generalizado que


teria por finalidade a realização mútua de si.

CONCLUSÃO

A depressão ameaça o individuo semelhante a si mesmo assim como


pecado ameaçava a alma voltada para Deus, ou a culpabilidade o homem
dilacerado pelo conflito. Mais do que uma miséria afetiva, ela é um modo de vida. O
fator capital para a individualidade hoje é a confrontação entre a noção de
possibilidade ilimitada e a que é impossível de ser dominada.

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