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A idéia que existe uma vida coletiva, uma vida da nação, que condiciona
sua própria existência e que, por sua vez, depende da participação que eles querem
ter, parece para nossos contemporâneos totalmente estranha. A política, pouco a
pouco, nos deixou. Ela pareceu impotente frente ao aumento das desigualdades, da
precariedade e da pobreza, inclusive nos países ricos. Ela nos entregou a uma
competição cada vez mais áspera entre as nações assim como entre os indivíduos,
dizendo que era para nosso bem e que não tínhamos escolha. Qualquer que fosse a
cor ideológica do governo, fomos submetidos à lei da livre concorrência e obrigados
a assumir a prioridade da competitividade. Tivemos alternâncias sem alternativa
política.
A política se tornou desprezível por causa da multiplicação dos casos de
corrupção. Pode se temer que para as gerações que não conheceram o heroísmo
ou a utilidade social dos responsáveis políticos, a imoralidade, o egoísmo e o
desprezo do bem público constatados nas altas esferas de poder dêem mais
exemplo do que nojo.
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GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006
2
Ibid. capítulo 1
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suspensa ao bom prazer dos empreendedores que podiam decidir injetar sangue
contaminado ou servir bifes de vaca louca. Com as companhias de seguro,
conseguimos lidar com riscos previsíveis e ligados a causas externas evitáveis.
Somos, contudo, desamparados frente a riscos sistêmicos: as ameaças globais
geradas pela própria sociedade que Keynes chamou de “incerteza radical”, a que
escapa a qualquer cálculo de probabilidade porque não se sabe o que pode
acontecer ou não. Frente a tais incertezas radicais, a única garantia é a existência
de uma autoridade suficientemente preocupada com o interesse geral para impedir a
busca do lucro seja mais importante do que a segurança sanitária e o direito ao
trabalho, para sempre socorrer e indenizar as vítimas, para obrigar as empresas a
respeitar as normas ambientais e as companhias de seguros a honrar seus
compromissos. A intuição fundamental é que nossa única garantia contra as
violências do mundo, sejam elas visíveis ou simplesmente pressentidas, é a certeza
de viver ainda numa sociedade humana onde cada um tem direitos mínimos, a
começar pelo direito primeiro de permanecer membro dessa sociedade, quer dizer
de nunca ser abandonado pelos seus. Essa última certeza foi desestabilizada ou
destruída pela incapacidade das democracias em conter a grande crise social do
século XX, que levou a um ressurgência da pobreza e do desemprego em massa
nos países ricos. Todos os medos que seguiram foram mais destruidores da
confiança na política porque pegaram pessoas já angustiados pela perspectiva de
viver não numa sociedade mas no campo de batalha onde cada um devia ganhar e
defender o próprio lugar numa luta desigual. A crise do fator político se alimentou da
incapacidade das democracias de responder às mudanças tecnológicas, políticas e
sociais por uma reação ordenada e solidária que poderia ter evitado a exclusão das
minorias menos armadas para enfrentar os choques, que teria recusado um mundo
de competição generalizada onde cada um é condenado (mesmo os vencedores) à
angústia solitária e permanente da performance.
Não se aproveitou as lições trazidas pela crise de 29 e o conseqüente
crescimento do totalitarismo. Quando a crise ressurgiu nos anos 70, a reação dos
grandes paises democráticos foi o mesmo coquetel de covardia, de miopia e de
miséria social. De novo aconteceu uma guerra mundial: a guerra da economia
estendida ao conjunto do planeta pela livre concorrência e a desregulamentação.
Muitos paises aceitaram que o custo das mutações tecnológicas fosse pago pelas
vitimas: os operários e os profissionais pouco qualificados. As democracias tiraram
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as lições econômicas da Grande Depressão e não as lições políticas. Tudo foi feito
para evitar que uma nova crise mundial tenha efeitos catastróficos sobre a
economia: foi um sucesso.
O grande paradoxo da nossa época foi de ver ressurgir os mesmos
flagelos sociais e o mesmo medo do que nos anos 30, sem a depressão econômica
que os causaram. É que, se tudo foi feito para preservar a economia de um colapso
brutal e destruidor, nada foi pensado ou feito para evitar uma partilha cada vez mais
desigual desse sucesso, para impedir que os choques derrubem a sociedade
provocando a secessão entre os ganhadores e os perdedores da competição.
Compreenderemos que neoliberalismo consiste em explorar a ameaça da crise
econômica para impor e justificar uma sociedade mais desigual. Tivemos a crise
social sem a crise econômica, e aqui está o primeiro fermento da crise política.
Somos confrontados ao paradoxo de uma riqueza exuberante e crescente que,
todavia, deixa as nações poderosas na incapacidade de evitar a miséria.
reivindica. Como levar a democracia até o fim de sua promessa – o poder do povo
soberano – se o começo da democracia não for assegurado: a vontade de
reivindicar esse poder, o desejo de exercê-lo. O paradoxo é que os cidadãos mais
conscientes fogem os partidos em vez de tentar reformá-los. O sentimento mais
comum é o sentimento misto, contraditório e angustiante de que uma alternativa é
necessária e inexistente.
Existe um circulo vicioso que gera resignação e solidão: no nível da
sociedade, o individuo não pode ter segurança de nada em relação ao
comportamento dos outros; ele pode somente apostar e fundamentar-se em
crenças. Para sair desse círculo, não basta que o individuo saiba que em teoria uma
mobilização coletiva melhoraria a sorte de todos. Ele precisa acreditar que, na
prática, os outros vão mobilizar-se. O individuo deve apostar que seu engajamento e
sua atitude cooperativa serão imitados por um grande numero de pessoas. Deve
apostar que seu desejo de um mundo comum mais cooperativo é largamente
compartilhado pelos outros, ele deve acreditar que vive numa verdadeira sociedade
humana onde o desejo de viver bem juntos é mais forte do que o medo do outro e a
rivalidade. Ora, a conseqüência maior da lógica de competição generalizada que
tomou conta do mundo é justamente destruir essa aposta e essa crença. De fato, a
lógica de guerra econômica degenera em “guerra incivil” que nos dissocia uns dos
outros e destrói o sentimento de pertença à sociedade, porque o lugar de cada um
na sociedade de competição generalizada não é mais um direito: é o resultado
incerto e vulnerável de um combate permanente. Todos devem se comportar como
guerreiros, em vencedores, para escapar à exclusão e ao estigma reservados aos
menos performers.
O que se chamou de “sociedade de mercado”, para designar a
colonização de todo o espaço social pela lógica mercante, nos conduz para uma
não-sociedade, ou mais exatamente uma “dissociedade”3 que justapõe os indivíduos
(ou sub-comunidades de indivíduos) rivais e fechados em si mesmos. Ora ninguém
pode tornar-se ou voltar a ser cidadão lá onde não existe uma cidade.
Esse livro é motivado pela convicção que, na época dos riscos globais,
dos riscos maiores, a mais iminente e a mais determinante das catástrofes que nos
ameaça é essa mutação antropológica, bem avançada, que pode transformar no
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prazo de uma ou duas gerações, o ser humano num ser dissociado, fazer bascular
as sociedades desenvolvidas na desumanidade de “dissociedades” povoadas por
indivíduos posicionados (dressés) uns contra os outros. Erradicar esse risco
comanda nossa capacidade de enfrentar os outros. Somente autenticas sociedades,
soldadas pela solidariedade e a primazia do bem comum sobre a performance
individual, estão em condição de atingir o nível considerável e inédito de cooperação
e de coesão indispensáveis, nas nações e entre as nações, para enfrentar os dois
grandes desafios do século XXI: evitar uma guerra de civilizações e assegurar de um
modo democrático a grande mudança de modos de vida e de produção sem a qual o
planeta torna-se inviável.
É um problema de consciência política: a dissociedade não é uma
disfunção técnica cuja correção chamaria a invenção de políticas inéditas. Trata-se
de uma doença social degenerativa que altera as consciências inoculando nelas
uma cultura falsa mas auto-realizadora. As sociedades de mercado são
contaminadas por uma cultura neoliberal: individualista, “mercadista” e anti-política.
A partir de um limiar critico de contaminação dos espíritos, ela se torna auto-
realizadora: convencidos de viver já e para sempre num campo de batalha, os
indivíduos se comportam como guerreiros e não como cidadãos. Em vez de construir
uma sociedade, eles geram um mundo hostil onde é cada vez mais racional
comportar-se como guerreiro. Trata-se de um processo cumulativo, onde cada fase
de dissolução da sociedade e dos vínculos de solidariedade justifica e reforça a
debandada solitária dos indivíduos no medo e na aversão dos outros, debandada
que acentua a regressão coletiva e torna mais árdua toda ação para inverter o senso
das políticas e das crença sociais.
O diagnóstico clinico pode ter um efeito determinante em termos de
patologia social. Se cada um, ou cada cidadão militante, toma consciência que
somos coletivamente vitimas e atores de uma cultura errônea portadora de um vírus
social mortal, é um passo suficiente em direção da cura. A política pode fazer o
resto, desde que uma maioria de cidadãos está convencida de que a via em direção
de uma sociedade humana é não somente preferível à de uma dissociedade, mas é
uma questão de vontade coletiva. Essa é a primeira convicção que a cultura
neoliberal consegue destruir.
3
Transfiro para o português o neologismo criado pelo autor ibid. p. 28 e o usarei todas as vezes que
6
6
Ibid. p.43 ss
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sociedades, embora certificadas por grandes empresas de auditoria, são tanto mais
falsas quanto mais a situação da empresa é complicada. A razão encontra-se numa
das grandes virtudes do mercado que consiste em agradar sempre o cliente. Os
auditores fecham os olhos sobre a falsificação das contas e emitem relatórios
satisfatórios para conservar os clientes e satisfazer sua hierarquia que deve poder
mostrar bons resultados financeiros da própria empresa.
Mesmo sem malversação, o uso dos capitais não é espontaneamente
ótimo. Sempre se prefere investir capitais na renovação do parque de telefonia
celular dos paises ricos do que na erradicação da AIDS na África. O dinheiro vai lá
onde pode se reproduzir e não onde ele é necessário. Que a livre circulação dos
capitais seja um excelente meio de selecionar as oportunidades as oportunidades de
lucro imediato, ninguém duvida. Contudo, é evidente que a taxa de rendimento
financeiro não é o bom indicador para saber onde a humanidade julga que ele é o
mais útil, o mais urgente e o mais justo de investir.
Finalmente, a desregulamentação mundial dos movimentos de capitais e
dos mercados financeiros gerou crises financeiras internacionais repetidas. Todos os
especialistas, liberais ou não, reconhecem nessa instabilidade financeira o efeito da
desregulamentação anárquica dos mercados financeiros. A desregulamentação
financeira não se justifica pela pretensa busca de uma otimização econômica ou
social. Sua verdadeira razão de ser fica clara quando se descobre quem encontra aí
seu interesse.
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GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006
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Assim como nos anos 30, a crise econômica e social do fim do século XX
desemboca numa guerra mundial de um novo tipo, aparentemente mais inofensiva,
mas, na realidade, mais nociva para a sociedade e a democracia: a guerra
econômica geral. Esta não opõe mais simplesmente os estados, mas principalmente
e sobretudo os indivíduos dentro das fronteiras nacionais; ela não contribui mais a
fazer sair da crise social pela mobilização geral contra um inimigo comum: pelo
contrario, ela amplifica a crise social e se alimenta dela, porque o desgaste dos
vínculos sociais constitui ao mesmo tempo a conseqüência e a condição necessária
para a extensão de uma competição generalizada. Essa guerra teve efeitos
devastadores sobre a capacidade e a vontade de uma comunidade humana de viver
juntos e escolher coletivamente seu destino, quer dizer constituir uma comunidade
política. Essa diferença não é sempre percebida por duas razões:
1. a competição generalizada distila um veneno insidioso: ela não
ataca a sociedade frontalmente, mas sim um setor depois do outro;
seus efeitos psicológicos permanecem muito tempo confinados na
intimidade dos indivíduos.
2. o projeto neoliberal avança mascarado atrás de uma expansão do
Estado que, num primeiro momento, mantém a ilusão de que a
guerra econômica reforça o político. Isso acontece mas não na
direção da democracia.
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GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006, capítulo 3
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depende dos contratos privados e dos mercados; trata-se de uma restrição drástica
do campo aberto para a deliberação democrática e as escolhas políticas. A
finalidade dos neoliberais não é enfraquecer o Estado, mas de dispor de Estados
suficientemente poderosos para impor, dentro como fora, uma ordem conforme a
seus interesses e a sua visão de mundo. Num primeiro momento, portanto, não se
assiste a uma redução das despesas publicas mas a sua reestruturação. Por isso,
taxa-se mais os menos ricos e menos os mais ricos!
O MITO DA GOVERNANÇA
9
Ibid. p. 102 ss
19
10
Ibid. capítulo 4
21
pelos seus vínculos com os outros e o grande negocio da vida dele, o que comanda
todos os outros, é de conciliar seus vínculos e sua liberdade, de saber como ser si
mesmo e com os outros, para si e para os outros, como existir neles sem se
dissolver neles. Frente a essas duas beiras da vida, estamos em tensão perman,
iente, buscamos o equilíbrio e o compromisso necessário, necessário porque não
somos nada sem os outros, mas não existimos se os outros são tudo para nós.
A capacidade de cada um de achar o caminho de uma sinergia positiva
entre suas duas aspirações a vínculos e à liberdade é afetada pela historia singular
de suas relações pessoais. Mas essa historia singular não acontece num laboratório
isolado do resto do mundo. Ela acontece no contexto de uma sociedade com suas
instituições, suas regras, suas políticas publicas, sua cultura e esse contexto social e
cultural afeta diretamente ou indiretamente a elaboração do compromisso pessoal
entre ser si mesmo e ser com os outros. A sociedade pode ajudar cada um a viver
em ser plenamente humano, quer dizer inteiro como um “eu social”, livre e vinculado,
crescendo e andando sobre suas duas pernas que autorizam o bom funcionamento
do ser. Pode também contrariar esse crescimento equilibrado e levar os indivíduos a
cambalear numa perna só: tudo social privado de si mesmo, tudo a si mesmo
privado dos outros. Tratamento desumano que nos coloca no encalço do que
constitui ou não uma sociedade verdadeiramente humana.
O QUE É A DISSOCIEDADE?
Primeira proposição: a ideologia e as políticas neoliberais tendem a
dissociar as duas aspirações ontogenéticas e a inflar a primeira (ser si mesmo e
para si) ao ponto que ela sufoca a segunda (ser com e para os outros). É um
processo de dissociação pessoal.
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Neologismo do próprio autor.
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sociabilidade: a família pode virar uma dissociedade em miniatura, o bando pode ser
uma escola do ódio mais do que o último refugio do amor. Então, eventualmente, a
rivalidade e a indiferença estão por toda parte, e a fraternidade em lugar nenhum: a
verdadeira pessoa capaz de me amar por mi mesmo, sou eu mesmo! Depois do
fechamento sobre a comunidade, sobre a família ou a tribo, vem o fechamento sobre
si mesmo.
A dissociedade aparece assim como uma força centrifuga que isola e
decompõe em elementos cada vez mais restritos o que constituía o todo
indissociável de uma sociedade humana.
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Ibid. capítulo 5
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serviços. É preciso porém reconhecer que a livre concorrência reserva essa fartura
para uma minoria no planeta e que, mesmo nos paises ricos, ela exclui do festim
uma parte não pequena da população. Mas, num sistema de livre concorrência, todo
mundo pode tentar a chance e conseguir vencer pelo próprio esforço; cada um é,
portanto, responsável pela própria sorte e a concorrência obriga precisamente cada
um a se assumir. É o principio da “responsabilidade individual”: a sociedade não
pode fazer nada para a sorte dos humanos. Isso supõe aceitar algumas hipóteses
muito precisas em relação à natureza humana. Um individuo é o único responsável
do que ele faz se ele for livre de toda determinação exterior pela educação, pela
cultura, pelas convenções, pelos vínculos afetivos, sua posição social, em breve se
ele constituir um centro de decisão perfeitamente autônomo.
Surge uma outra pergunta: por que os indivíduos autônomos e
responsáveis desejando maximizar seu consume devem despender suas energias e
seus recursos na competição de uns contra os outros? Não deveriam eles
concentrar seus esforços unicamente na produção, limitando a competição e
desenvolvendo a cooperação solidária em vista do bem comum? Aí viria uma nova
hipótese sobre a natureza humana: a cooperação solidária é problemática e
necessariamente limitada porque os indivíduos são egoístas e naturalmente
inclinados para a competição para obter mais do que os outros. A competição
mercante é um mal menor em relação à “lei da selva” e o mercado ajuda a viver
juntos canalizando a violência potencial de toda relação humana.
Daí viria a seguinte proposta: se os neoliberais crêem na superioridade do
mercado de livre concorrência, é porque eles supõem que cada individuo é motivado
unicamente pelo seu interesse próprio. É a motivação egoísta que torna o
trabalhador e o empreendedor particularmente produtivos, num sistema em que
cada um pode apropriar-se uma vantagem ligada a sua performance. Se os
indivíduos fossem mais interessados pelo resultado coletivo ou pelo bem estar dos
outros do que por eles mesmos, a livre concorrência seria inútil e nociva. Inútil
porque se obteria a produtividade ótima dos indivíduos sem colocá-los em
competição máxima: um sistema de cooperação coletiva bem organizada seria
eficaz. Nociva porque a competição tem um custo (despesas de publicidade, tempo,
estresse, investimentos múltiplos e redundantes dos competidores para conquistar
as mesmas fatias do mercado); consequentemente a concorrência reduz inutilmente
o bem estar coletivo desde o momento em que a performance produtiva equivalente
30
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As referencias são “O cidadão” de Hobbes e “Do contrato social” de Rousseau
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física. No lugar disso, eles postularam sem hesitar que a sociedade devia ser
estudada como um conjunto de “átomos” independentes (os indivíduos) regidos por
“forças” mecânicas, chocando ou associando-se para produzir um estado de
“equilíbrio”, ou não, segundo leis estáveis que as ciências sociais teriam por objeto
de descobrir. Esta é a concepção transmitida por Hobbes dois séculos antes.
As novas ciências sociais não só reproduziram os postulados
antropológicos do século XVII; elas os transmitiram para o século XX e os
imunizaram contra a critica colocando um termo ao debate do modo mais radical:
raciocinando como se o problema antropológico não existisse mais. Assim,
aceitando sem debate uma certa concepção do ser humano, a metodologia
dominante nas ciências sociais enfiou essa concepção num inconsciente coletivo.
Contrariamente a tudo que caracterizava todos os tratados políticos e filosóficos dos
séculos XVII, a discussão sobre a “natureza humana” desaparece quase da literatura
sobre as sociedades humanas! O problema já está resolvido!
É portanto o modo pelo qual a questão foi tratada na ignorância há três
séculos que modelou inconscientemente o modo de pensar do ser humano e as
sociedades até o fim do século XX, numa época onde o acúmulo das descobertas
cientificas começava a desvendar a verdadeira historia da nossa espécie, do nosso
cérebro, do nosso nascimento, dos nossos ancestrais etc. A especialização e a
profissionalização das ciências contribuíram para essa negligencia. As separações
entre as várias disciplinas limitou a capacidade dos economistas para integrar os
desenvolvimentos da antropologia, como a dos sociólogos a levar em conta os
progressos da neurobiologia. A competição entre os pesquisadores de uma mesma
disciplina os incitou a uma hiper-especialização, fonte de excelência num campo de
conhecimento, em vez de pensar numa cultura geral. A competição entre as ciências
humanas e sociais favoreceu a pretensão estéril de cada uma tentar impor-se como
a ciência da homem fundamental, em vez de cooperar numa dimensão
interdisciplinar suscetível de constituir uma ciência do homem, integrando vários
saberes. Assim, muitos pesquisadores desenvolvem com muito refinamento modelos
que repousam implicitamente sobre uma concepção não cientifica da natureza
humana, concepção que se acha a fortiori compartilhada pelo senso comum, porque
quase ninguém a debate.
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ação mas sim às normas que guiam o pensamento e a ação. Ela coloca um
problema de identificação porque nenhuma de suas manifestações visíveis autoriza
a inferi-la. O fato que alguém expressa ou cumpre o que ele quer sem sofrer o
mínimo constrangimento exterior não basta para estabelecer que ele age em nome
de uma norma interior independente de normas fixadas por qualquer tipo de
sociedade. Inversamente, alguém que é fisicamente impedido de exercitar sua
liberdade pode ser perfeitamente autônomo. O indivíduo autônomo, no sentido
estrito, constitui um centro de pensamento independente de tudo que não é ele, que
não segue nenhuma outra norma a não ser a que ele determina para si.
OUTROS
a empatia, a compaixão, o amor, o ódio etc. Uma pessoa que vivencia todos esses
sentimentos não pode ser considerada como um centro de decisão separado e
independente dos outros. O que ela pensa e deseja depende de sua relação com os
outros, do que decidem os outros e do modo pelo qual eles reagirão às suas
decisões: ela seria somente parte interessada de um complexo processo de
interação, de co-decisão, de co-determinação (como os participantes de uma
ciranda), onde suas preferências são ao mesmo tempo determinadas por e
determinadas para as dos outros.
A racionalidade só não implica o egoísmo. O altruísta pode agir
racionalmente, quer dizer buscar os meios os mais eficazes para atingir seus
objetivos: o bem estar do outro. É unicamente a associação da racionalidade e da
independência que implica o egoísmo. Um indivíduo estritamente independente em
nada é afetado pelo outro; se for racional, ele só age por ele mesmo e para ele
mesmo: é egoísta. Se não tiver um comportamento egoísta, é ou porque ele perdeu
a razão, ou porque seu comportamento tem unicamente a aparência do altruísmo e
reflete em verdade seu “interesse bem entendido”.
14
HOBBES, O cidadão, citado por GÉNÉREUX, Ibid p. 218, de quem reproduzo as passagens
sublinhadas
43
15
ROUSSEAU, Jean Jacques, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les homes
(1755), citado por Généreux Ibid p.233
50
16
GÉNÉREUX, ibid. p. 345ss
51
modernos não inventam a liberdade do ser humano, mas sua solidão; eles o
emancipam do Outro, mas não de uma lei sem a qual sua vida não seria mais do
que um vagar sem sentido. A urgência não é mais emancipar os indivíduos contra
um superego social (moral ou religioso) alienante. O indivíduo é as vezes tão
emancipado, assim como o mostra Alain Ehrenberg, de todo significado imposto de
fora que ele sofre do não sentido, da necessidade de ser tudo sozinho, do “cansaço
de ser si mesmo” que o mergulha na depressão. A urgência é crescer: deixar a
infância do pensamento moderno para aceder a um pensamento adulto e
consciente; cessar de recalcar e maquiar todos os fatos que desenham uma
humanidade mais complexa.