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Apresentação da Proposta
Salvação da alma
Sob influência de seitas protestantes e do filósofo inglês Francis Bacon (1561-
1626), Comênio acreditava que a salvação da alma poderia ser alcançada
durante a vida terrena e que o caminho para isso poderia ter a ajuda da
ciência. Para ele, a criatura humana correspondia ao ideal de perfeição.
Comênio acreditava que, por ser dotado de razão, o homem pode entender a si
e a todas as coisas. Portanto, deve se dedicar a aprender e a ensinar.
Seguindo esse pensamento, Comênio conclui que o mais importante na vida
não é a contemplação e sim a ação, o "fazer".
Embora profundamente religioso, o pensador propôs uma ruptura radical com o
modelo de escola até então praticado pela Igreja Católica, aquele voltado
apenas para a elite e dedicado primordialmente aos estudos abstratos. Ainda
vigoravam as doutrinas escolásticas da Idade Média, pelas quais todas as
questões teóricas se subordinavam à teologia cristã.
A maior contribuição de Comênio para a educação dos dias de hoje é, segundo
o professor Gasparin, a idéia de "trazer a realidade social para a sala de aula,
fazendo uso dos meios tecnológicos mais avançados à disposição". De tão
fascinado pela invenção da imprensa e pela possibilidade de disseminação de
conhecimento que ela representava, Comênio criou a expressão "didacografia"
para designar o método universal de ensino que ele pretendia inaugurar.
, Comênio adotou o método empírico de explorar o mundo, em contraposição
às verdades impostas pelo ensino medieval. Pela experimentação, ele
acreditava que todos poderiam vir a enxergar a harmonia do universo sob o
caos aparente. "Comênio queria mudar a escola com a didática e a sociedade
com a educação", diz Gasparin. "Era um grande idealista."
Coménio - O reformador do mundo
É surpreendente descobrir na obra de Coménio a sua apurada visão de futuro,
a actualidade dos seus ensinamentos, a sua vontade intrépida de mostrar
como é possível “ensinar tudo a todos”, sem excepções, e de contribuir para a
reforma universal de todas as actividades humanas, opondo-se às divisões no
seio do ensino, da religião e da política.
Alguns conceitos hoje debatidos, como educação permanente, democratização
do ensino, aprendizagem global, diferenças individuais, inteligências múltiplas,
foram inicialmente apresentados por Coménio. Muitas propostas deste
“professor das nações” inspiraram a criação e a actuação de organizações
internacionais, como a Unesco mas, volvidos quase 4 séculos, algumas das
suas ideias-chave encontram-se ainda longínquas do nosso entendimento e do
nosso quotidiano!
É enorme o desafio de escrever sobre Coménio (1592-1670), de tentar resumir
os ensinamentos de um Homem que, em pleno século XVII, foi perseguido e
ameaçado pelo fanatismo religioso, censurado pela sua coragem e ousadia,
incompreendido, desprezado e mal amado por muitos do seu tempo… Mas
nada fez esmorecer a sua paixão pela educação, nem o demoveu na sua
aspiração de sabedoria universal e união de toda a humanidade, escrevendo
uma vastíssima obra que, apesar de muitos manuscritos (únicos) terem sido
criminosamente atirados às chamas, ascende a uma centena de títulos, entre
livros pedagógicos, teológicos, linguísticos, literário-filosóficos e tratados de
paz.
É hoje considerado o fundador da pedagogia moderna, sendo reconhecido o
seu precioso contributo também na área da cooperação internacional e da
linguística. O seu nome tem sido atribuído a vários centros e programas de
ensino, nomeadamente no Reino Unido e no âmbito da União Europeia.
Contudo, muitos de nós nunca ouviram falar de Comenius nem conhecem o
seu pensamento abarcante, edificante e revolucionário… As nossas escolas
tão pouco se referem a ele. Injustamente!
Humanizar o Homem
Didáctica Magna é, porventura, a obra mais conhecida de Coménio e “sem
dúvida, o primeiro tratado sistemático de pedagogia, de didáctica e até de
sociologia escolar”1. Numa altura em que o ensino era privilégio apenas de
alguns, em que as escolas rareavam e a maioria das crianças era usada como
força de trabalho imprescindível para garantir a subsistência da família,
Coménio ousou defender uma escola pública e democrática para “todos por
igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas”, inteligentes ou
débeis por natureza.
O que hoje chamamos de ensino geral obrigatório - que existe há pouco mais
de 50 anos no Ocidente - deve-se, em boa medida, ao impulso dado por
Coménio. Apesar das crianças entrarem cada vez mais cedo nas escolas e dos
estudos se prolongarem até idades cada vez mais tardias, o sonho de Coménio
está ainda longe de ser croncretizado. “O homem tem necessidade de ser
formado para que se torne homem”, escreveu Coménio em Panpaedia; a
educação universal deve ser um direito de todos os povos: “deve-se desejar
que até as nações bárbaras possam ser iluminadas e arrancadas das trevas da
sua barbárie e, desse modo, porque são parte do género humano,
assemelhadas ao seu todo, pois, na verdade, o todo não é todo se lhe falta
alguma de suas partes”. Quem exclui alguém da educação, injuria toda a
humanidade. “Todos os homens são vivificados pelo mesmo espírito”. Porquê
beneficiar uns e negligenciar os outros?
Apesar dos esforços de algumas organizações internacionais e das actuais
facilidades dos meios de comunicação e de informação, a verdade é que o livre
acesso a bens essenciais como a educação, a saúde e a alimentação (!) está
vedado a grande parte da população mundial! As palavras de Coménio
alertam-nos para o egoísmo que, em todas as épocas, se mascara de tantas
formas: “se não quer ser acusado de espírito estulto e malévolo deve querer-se
que todos estejam bem e não apenas nós próprios, ou alguns dos nossos
próximos, ou somente o nosso povo”.
Nas suas obras, Coménio repete insistentemente a trilogia: omnes, omnia,
omnino - “educar todos, em todas as coisas, de uma forma total”, o que lhe
valeu críticas néscias e injustas, nomeadamente de Piaget, como sendo uma
“desconcertante pretensão”. Coménio estava ciente de que poderia ser mal
interpretado, advertindo na introdução da Didáctica Magna que “É lícito, foi
lícito e sempre será lícito procurar as coisas grandes (…) Por mais imperfeita
que seja a minha tentativa e não chegue a atingir o objectivo que eu me havia
proposto, o meu exemplo trará, todavia, ao menos, a prova de que foi
percorrida uma longa etapa que jamais havia sido percorrida e que o cume a
escalar está mais próximo do que até aqui”.
“A instrução superficial”
Porque desaprendemos tão depressa aquilo que supostamente nos ensinam?
Porque é que passados alguns meses, dias ou até escassas horas depois do
�teste�, os alunos já não são capazes de se lembrar da �matéria� e
limitam-se a gagejar vagas noções sobre o assunto que afincadamente haviam
estudado? Uma das causas tem a ver com o método de ensino, outra com a
falta de interesse que as matérias despertam, observava Coménio há 4 séculos
atrás! “Mas haverá remédio para este mal? Sem dúvida” se as escolas
deixarem de cometer “o erro de ensinar a olhar com os olhos dos outros e a
saborear com o coração dos outros”. Se tiverem “como objectivo habituar os
espíritos a irem buscar o vigor às próprias raízes, como fazem as árvores”.
Contudo, as escolas “têm-se esforçado, não tanto por cavar a fonte da
inteligência neles escondida, como por irrigá-la com águas alheias. Isto é, não
lhes têm mostrado as próprias coisas, como é que elas são por si e em si, mas
que é que, acerca disto ou daquilo, pensou ou escreveu este ou aquele, um
terceiro ou até décimo autor; a tal ponto que chegou a pensar-se que a máxima
erudição consistia em saber de cor opiniões discrepantes de muitos autores
acerca de muitas coisas. Daí que muitos não se ocuparam senão em respigar,
de vários autores, frases, sentenças e opiniões, construindo uma ciência que
não passava de uma manta de retalhos (…) Mas que interessa distrair-se com
as opiniões emitidas por vários autores acerca das coisas, quando o que se
procura saber é como são verdadeiramente as coisas em si mesmas? Será
que tudo o que fazemos na vida não consiste senão em andar atrás dos outros,
que correm de cá para lá, e em observar onde alguém se desvia, tropeça ou
perde o norte? (…) Porque é que havemos de servir-nos mais dos olhos dos
outros que dos nossos?”.
“Aprender solidamente”
“Se se quer alcançar o conhecimento, não de outras fontes, mas do próprio
arquétipo das coisas”, então as escolas devem, por lei: “I - Derivar tudo dos
princípios imutáveis das coisas. II - Nada ensinar apenas com argumentos de
autoridade, mas ensinar tudo por meio de demonstração, sensível e racional. III
- Nada ensinar com o método analítico somente mas, de preferência, tudo com
o método sintético”.
O ensino deve inspirar-se na Natureza e à sua semelhança “proceder das
coisas gerais para as particulares” e “das coisas mais fáceis para as mais
difíceis”, “tudo gradualmente, nada por saltos”, “todas as coisas com nexos
contínuos” e “com “exercícios contínuos”. Deve-se ensinar a partir das causas,
“isto é, mostrar não só como é que alguma coisa é, mas também porque não
pode ser de outra maneira. Com efeito, saber significa conhecer as coisas por
meio das suas causas”.
Coménio defende o que hoje chamamos de �currículos em espiral�: iniciar
os assuntos e retomá-los em formas cada vez mais alargadas e profundas.
Mas o seu método preconiza que todas as ciências e artes devem proceder de
um único tronco comum - como as ramagens de uma frondosa árvore -,
consolidado desde os primeiros anos de ensino. Deve haver “uma tal
coordenação das matérias que os estudos que, pouco a pouco, se seguem,
pareçam nada trazer de absolutamente novo, mas sejam apenas um
desenvolvimento pormenorizado das coisas anteriores”. Por outras palavras,
“os estudos da vida inteira devem ser dispostos de tal maneira que constituam
uma enciclopédia, na qual nada se encontre que não tenha nascido da raiz
comum e que não esteja assente no seu devido lugar”.
Para que a aprendizagem seja mais rápida e eficaz deve-se utilizar “o mais que
se puder, os sentidos. Por exemplo: associe-se sempre o ouvido à vista”. “O
conhecimento deve necessariamente principiar pelos sentidos (…) Porque é
que o ensino há-de principiar por uma exposição verbal das coisas, e não por
uma observação real dessas mesmas coisas?” Para além disso, a experiência
sensitiva permite aos alunos verificarem por si mesmos aquilo que se pretende
transmitir, “imprimindo-se com verdade e com certeza” na memória.
Todo o conhecimento, uma vez adquirido, deve ser partilhado, discutido e
posto em prática pelos alunos: “logo que uma coisa seja entendida, difunda-se
de novo, comunicando-a a outros, para que nada se saiba em vão”, com
vantagens para todos. “Quem ensina os outros instrui-se a si mesmo, não só
porque, repetindo os próprios conhecimentos, os reforça em si mesmo mas,
também, porque encontra uma boa ocasião para penetrar mais fundo nas
coisas”.
Investigações recentes sobre recursos de ensino, têm comprovado a eficácia
das sugestões pioneiras de Coménio: ao comparar a retenção na memória de
um mesmo conceito, aprendido por diferentes vias, os estudantes conseguem
recordar: 10 % do que leram; 20 % do que escutaram; 30 % do que viram; 50
% do que viram e escutaram; 70% do que discutiram; 90 % do que explicaram
e realizaram na prática. Com a actual facilidade dos meios informáticos e
audiovisuais, os recursos de ensino podem ser francamente melhorados!
Pela Paz e Unidade
Coménio tinha uma visão abrangente e integradora, extremamente avançada
para o seu tempo. Esboçou planos para a criação de uma língua universal,
como meio de entendimento e de comunicação entre todos os povos, e de
diferentes (mas interligadas) instituições internacionais para zelar pela paz,
pela unificação das igrejas e pela partilha do conhecimento. Ao “conselho da
luz” ou “colégio didáctico universal” cabia a tarefa de “examinar as diversas
descobertas científicas e recomendar os meios de as difundir e de as fazer
aplicar, da maneira mais eficaz, em proveito de todos os homens”. A
coordenação e cooperação de todos os estudiosos e investigadores permitiria
“difundir a luz da sabedoria a todos os povos e espíritos para atingir um estado
cada vez mais elevado e melhor”.
As suas concepções humanísticas e universais revelam a influência da tradição
rosa-cruz, a cuja fraternidade Coménio terá pertencido, embora não assumisse
publicamente a sua filiação, por receio de graves represálias. Antes da sua
morte, Leibniz escreveu “há-de chegar o dia em que a multidão dos homens de
bem honrará, não só as tuas obras, mas também as tuas esperanças e os teus
desejos”. Realmente, as sementes lançadas por Coménio jamais se perderão,
muitas já floresceram, deram frutos e novas sementes… outras aguardam o
auxílio dos “jardineiros dos tempos modernos” para irromperem nos “campos
da inteligência” e da criatividade.
Gabriela Oliveira
Licenciada em Comunicação Social
1 … de acordo com Joaquim Ferreira Gomes, na introdução de “Didáctica
Magna” - 3o edição, Fundação Calouste Gulbenkian.