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história e loucura:

saberes, práticas e narrativas


universidade federal de uberlândia

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Yonissa Marmitt Wadi
Nádia Maria Weber Santos
Organizadoras

história e loucura:
saberes, práticas e narrativas

2010
Editora da Universidade Federal de Uberlândia

Copyright © Edufu – Editora da Universidade Federal de Uberlândia/MG


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total sem permissão da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H673l História e loucura : saberes, práticas e narrativas / Yonissa Marmitt


Wadi, Nádia Maria Weber Santos, organizadoras. - Uberlândia :
EDUFU, 2010.
368 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7078-235-9

1. 1. Psiquiatria - História. 2. Loucura - História. I.


Wadi, Yonissa Marmitt. II. Santos, Nádia Maria
Weber. III.Universidade Federal de Uberlândia.

CDU: 616.89(091)

Elaborados pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação – MG

Equipe de realização

Revisão gramatical Graciana Marie Oliveira


Revisão ABNT Maira Nani França
Assistente editorial Gabriela Silva Garcia
Projeto gráfico e diagramação Ivan Lima
Capa Alexandre Carvalho
Foto capa “Taia” - Edy das Graças Braun
Sumário

7 Apresentação

I – Saberes e práticas: medicina, instituições


psiquiátricas e direitos

Capítulo 1
15 Um sistema instável: as teorias ginecológicas sobre o corpo
feminino e a clínica psiquiátrica entre os séculos XIX e XX
Ana Paula Vosne Martins

Capítulo 2
51 Política assistencial psiquiátrica e o caso da Colônia Juliano
Moreira: exclusão e vida social (1940-1954)
Ana Teresa Acatauassú Venancio e Janis Alessandra Cassilia

Capítulo 3
85 Misticismo e doença mental em Xavier de Oliveira
Artur Cesar Isaia

Capítulo 4
105 A loucura sob um outro olhar: reorganização dos serviços de
atendimento em saúde mental (Uberlândia-MG, 1984-2005)
Maria Clara Tomaz Machado e Riciele Majori Reis Pombo

Capítulo 5
143 A ordem psiquiátrica e a máquina de curar: o Hospício Nossa
Senhora da Luz entre saberes, práticas e discursos sobre a loucura
(Paraná, final do século XIX e início do século XX)
Maurício Noboru Ouyama

Capítulo 6
177 A loucura entre dois mundos: práticas de intervenção
médica e assistencialismo no Sanatório Espírita de
Uberlândia (1932-1970)
Raphael Alberto Ribeiro

II – Narrativas: literaturas, escrituras ordinárias,
escritos médicos e outras narrativas

Capítulo 7
217 Narrativas da loucura em Dyonélio Machado
Mauro Gaglietti

Capítulo 8
253 Psiquiatria e história cultural: a literatura como fonte e a
loucura como objeto
Nádia Maria Weber Santos

Capítulo 9
287 “Quem senta na pedra fica doente, vadio e com preguiça”:
a invenção do trabalho numa colônia agrícola gaúcha
(1972-1982)
Viviane Trindade Borges

Capítulo 10
307 A cura em saúde mental: história e perspectivas atuais
Vládia Jucá

Capítulo 11
331 Um lugar (im)possível: narrativas sobre o viver em espaços
de internamento
Yonissa Marmitt Wadi

363 Sobre os autores


apresentação

O livro História e loucura: saberes, práticas e narrativas


foi organizado visando suprir uma lacuna na publicação da
produção sobre a temática da loucura, tão cara aos pesquisa-
dores de diversas áreas do conhecimento, especialmente das
Ciências Humanas e das Ciências da Saúde.
A ideia do livro surgiu após contatos estabeleci-
dos pelas organizadoras com colegas – da História, da
Antropologia, da Psicologia, da Psiquiatria, etc. – que se
encontraram pelos caminhos da formação ou do interesse
acadêmico pelo tema em destaque. Encontros em eventos
científicos, bancas de avaliação de dissertações e teses ou
bate-papos informais nos fizeram conhecer um conjun-
to de trabalhos interessantes, fruto de produção recente e
oriunda, em sua maioria, de pesquisas acadêmicas ainda não
publicadas. O convite a alguns destes pesquisadores deu
origem a este livro, ora apresentado, que está dividido em
dois grandes eixos, contemplando discussões variadas, ricas
e instigantes, organizadas a partir de dois subtemas propos-
tos aos autores.
No primeiro eixo, intitulado Saberes e práticas: medi-
cina, instituições psiquiátricas e direitos, consta um conjunto
de seis artigos que redimensionam o estudo sobre o espaço
institucional, bem como discutem a prevalência de algumas
práticas exercidas sobre os ditos loucos, em determinadas
épocas e cidades brasileiras.

7
O artigo Um sistema instável: as teorias ginecológicas
sobre o corpo feminino e a clínica psiquiátrica entre os séculos
XIX e XX, de Ana Paula Vosne Martins, analisa as contri-
buições teóricas da ginecologia para a clínica psiquiátrica,
considerando a relação entre feminilidade e loucura com-
partilhadas pelos médicos das duas especialidades. Nesta
análise, a autora chama atenção para a centralidade da cate-
goria gênero na formulação do pensamento psiquiátrico e
para o estabelecimento de terapêuticas associadas às distin-
ções de gênero.
Política assistencial psiquiátrica e o caso da Colônia
Juliano Moreira: exclusão e vida social (1940-1954), de Ana
Teresa Acatauassú Venâncio e Janis Alessandra Cassilia, co-
loca-nos frente à história desta colônia, apresentando, em
primeiro lugar, as linhas gerais da articulação entre a assis-
tência psiquiátrica e as políticas de saúde dos anos 1940 e, a
seguir, a constituição de um espaço institucional, ao mesmo
tempo produtor de isolamento dos internos e construtor
de um núcleo urbano de vida social que envolvia estes inter-
nos, funcionários e famílias.
O artigo de Artur Cesar Isaia, Misticismo e doença
mental em Xavier de Oliveira, estuda o posicionamento
deste médico, herdeiro de Juliano Moreira, frente a este bi-
nômio. O autor destaca a posição do médico cearense que,
no primeiro quartel do século XX, ao denunciar o misticis-
mo e detectar a misticopatia indicava a periculosidade e a
subversão da ordem urbana por indivíduos adeptos de tais
práticas, concatenando-se com a então fase da Psiquiatria
voltada para a classificação social e ação preventiva frente
aos indivíduos considerados perigosos.
O texto A loucura sob um outro olhar: reorganização
dos serviços de atendimento em saúde mental (Uberlândia-
MG, 1984-2005), de Maria Clara Tomaz Machado e
Riciele Majori Reis Pombo, analisa as práticas de cuida-

8
dos com os portadores de sofrimento psíquico a partir
do advento da reforma psiquiátrica no Brasil. As auto-
ras centram-se na análise do processo de organização de
uma rede de atendimento em saúde mental na cidade de
Uberlândia-MG, a partir da década de 1980, consideran-
do os recursos políticos, humanos e materiais investidos
neste processo específico.
A ordem psiquiátrica e a máquina de curar: o Hospício
Nossa Senhora da Luz entre saberes, práticas e discursos sobre
a loucura (Paraná, final do século XIX e início do século XX),
de Maurício Noboru Ouyama problematiza o processo de
constituição da primeira grande instituição psiquiátrica para-
naense – o Hospício Nossa Senhora da Luz –, num período
histórico situado entre o final do século XIX e o início do sé-
culo XX, em que uma tecnologia asilar específica toma conta
das práticas exercidas sobre a loucura, evidenciando a com-
plexa teia de relações de poder que marcam tal constituição.
Por fim, neste primeiro eixo, encontra-se o artigo
de Raphael Alberto Ribeiro, A loucura entre dois mundos:
práticas de intervenção médica e assistencialismo no Sanatório
Espírita de Uberlândia (1932-1970), que retrata a institu-
cionalização da loucura nesta cidade do Triângulo Mineiro,
a partir de uma especificidade: sua relação direta com o
Espiritismo kardecista. O autor destaca, por meio da análise
e dos discursos e práticas dos praticantes desta religião na re-
gião, os significados desta relação desde os seus primórdios.
No segundo eixo, intitulado Narrativas: literatura, es-
crituras ordinárias, prontuários e outras narrativas, há cinco
trabalhos que centrados na análise de diferentes narrativas,
oriundas do campo literário, do saber médico, da experiên-
cia da internação psiquiátrica, ressignificam nosso entendi-
mento sobre a loucura, em seu aspecto histórico, abrangen-
do algumas vias de reflexão, bastante contemporâneas no
estudo sobre a temática.

9
No artigo intitulado Narrativas da loucura em
Dyonélio Machado, Mauro Gaglietti tem como objetivo
examinar as narrativas acerca da loucura presentes em al-
guns textos do médico/escritor Dyonélio Machado. O
autor aponta, por meio de um diálogo estabelecido entre
o pensamento de Dyonélio Machado e uma releitura das
ideias de Michel Foucault, para a relativização dos conceitos
de loucura e lucidez, evidenciada tanto nos escritos científi-
cos do primeiro, quanto em sua literatura, mais especifica-
mente em O louco do Cati, de 1942.
Psiquiatria  e história cultural: a literatura como fonte
e a loucura como objeto, de Nádia Maria Weber Santos, dis-
cute a contribuição da História Cultural na construção de
um novo olhar sobre a questão da saúde e da doença, es-
pecialmente sobre a loucura e a história da Psiquiatria, seu
foco específico de análise. Considerando textos literários,
a autora problematiza a noção de loucura, evidenciando a
perda da autonomia do indivíduo e da cidadania dos ditos
loucos, questão esta que perpassa a história da Psiquiatria
no Brasil e no mundo.
Em “Quem senta na pedra fica doente, vadio e com pre-
guiça”: a invenção do trabalho numa colônia agrícola gaúcha
(1972-1982), Viviane Trindade Borges analisa o discurso
médico que instituiu visibilidades e dizibilidades a respeito
do trabalho realizado pelos internados do Centro Agrícola
de Reabilitação, localizado no Hospital Colônia Itapuã, em
Viamão-RS. O objetivo principal da autora foi perceber
como, numa trama discursiva que perpassou a instituição,
sujeitos tidos como loucos tornaram-se trabalhadores aptos
a reabilitação.
O texto A cura em saúde mental: história e perspectivas
atuais, de Vládia Jucá, remete o leitor a uma discussão ori-
ginal sobre o problema da cura, fazendo uma breve viagem
pelo tempo, pelas noções surgidas e perpetradas de cura da

10
doença mental. A autora chega até o momento da reforma
psiquiátrica na década de 80 do século XX, quando ressig-
nificações do conceito são exigidas, a fim de que um novo
modelo se instale, perpetuando a ética nos cuidados aos pa-
cientes.
O artigo de Yonissa Marmitt Wadi, Um lugar (im)
possível: narrativas sobre o viver em espaços de internamento,
fecha o segundo bloco de artigos. Por meio da análise de
narrativas orais e escritas de mulheres que viveram a experi-
ência da internação, a autora problematiza os processos de
construção de subjetividades nos locais de internamento,
bem como o fato destes se constituírem como espaços pa-
radoxais, ou seja, são ao mesmo tempo lugares de exclusão
e violência e lugares onde sujeitos acreditam encontrar um
lugar para si.
Desejamos uma ótima leitura e esperamos que o lei-
tor encontre nesta obra questões que o estimulem a (re)
pensar conosco as questões históricas acerca da loucura e,
consequentemente, a compreender que, cada vez mais, os
tabus surgidos ao longo de tantos séculos precisam ser re-
movidos, para que estes indivíduos loucos tenham sua cida-
dania resgatada e seus anseios respeitados.

As organizadoras

11
I - saberes e práticas: medicina,
instituições psiquiátricas e direitos
Capítulo I

um sistema instável: as teorias


ginecológicas sobre o corpo
feminino e a clínica psiquiátrica
entre os séculos xix e xx

Ana Paula Vosne Martins1

A partir das últimas duas décadas do século XIX, a


Psiquiatria passou a ser uma especialidade médica reco-
nhecida e institucionalizada. As transformações da clínica
psiquiátrica em curso desde meados do século XX foram
consideradas pelos contemporâneos como responsáveis por
uma nova compreensão das patologias mentais, assentadas
na observação dos comportamentos, como também nas
Ciências Biológicas, em particular nos estudos anátomo-
fisiológicos do cérebro. Cada vez mais intervencionista, a
Psiquiatria não se contentava com o controle dos internos
dos asilos, procurando desenvolver terapias que fossem
além, ou seja, que efetivamente convertessem à normalida-

Professora do Departamento de História da Universidade Federal do


1

Paraná e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero. Doutora em


História Social pela Unicamp, com pós-doutorado na Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz.

Um sistema instável • 15
de o estado patológico, seguindo uma tendência presente
no conhecimento médico finissecular e que só se intensifi-
cou ao longo do século XX.
Esta mudança epistemológica que visava à erradica-
ção da doença mental por meio de terapias intervencio-
nistas e de cirurgias está registrada nas páginas das cen-
tenas de publicações especializadas que divulgaram o co-
nhecimento médico psiquiátrico da época, especialmente
em língua francesa, alemã e inglesa. Apesar de tratarem
dos mais diferentes tipos de doenças mentais é notável
como a experimentação de novas terapias na Psiquiatria
atingiam mais certos grupos de indivíduos do que outros.
Também se percebe que algumas doenças em particular
estimularam a curiosidade médica, propiciando não só as
condições para o desenvolvimento de novas terapêuticas,
como a comunicação dos casos clínicos nas publicações
médico-científicas o que possibilitou a interlocução en-
tre médicos de especialidades diferentes.
Esta seletividade de doentes e de doenças mentais
não pode ser explicada por um aumento quantitativo de
patologias que exigiram maior atenção dos psiquiatras. A
historiografia que analisa as relações entre a medicina e a
sociedade demonstrou como determinados grupos sociais
foram transformados em objeto dos saberes e das práticas
médicas não por alguma especificidade patogênica – como
os portadores do vírus da varíola ou da gripe, por exemplo
–, mas porque estavam inseridos em determinadas relações
de poder que os definem por uma alteridade que é percebida
como impura, perigosa, contagiosa, enfim, como ameaça à
normalidade e à ordem.2

2
CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial.
1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; COSTA, J. Ordem médica,
norma familiar. 1. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979; DONZELOT, J. A
polícia das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986; EHRENREICH,

16 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


No que diz respeito à tipologia dos doentes mentais
a historiografia também revelou como as categorias de raça
e de gênero estão fortemente presentes na formulação do
discurso médico oitocentista não como variáveis da no-
sografia, mas como condições determinantes dos quadros
patológicos. A classe social também era uma categoria pre-
sente neste quadro explicativo, mas o pensamento médico
e científico voltado para as diferenças humanas tinha pro-
fundos alicerces assentados no determinismo naturalista.
Como construções categoriais naturalizadas, o gênero e a
raça foram recorrentemente utilizados para explicar as di-
ferenças, mas também para sustentar teorias deterministas
tanto na ciência racial quanto na ciência sexual, ambas con-
temporâneas e articuladas entre si.3
Neste capítulo, procuramos analisar como o gênero
foi uma categoria central na formulação do pensamento
médico psiquiátrico e das terapêuticas desenvolvidas para
tratar das doenças mentais associadas à feminilidade.4

B.; ENGLISH, D. Para o seu próprio bem. 150 anos de conselhos de espe-
cialistas para as mulheres. 1. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2003;
MACHADO, R. Danação da norma: medicina social e constituição da
Psiquiatria no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1978; ROHDEN, F.
Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. 1. ed. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
3
JORDANOVA, L. Sexual visions: images of gender in science and medi-
cine between the eighteenth and twentieth centuries. 1. ed. London:
Harvester Wheatsheaf, 1989; SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente
como invenção do Ocidente. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1996; STEPAN, N. L. Raça e gênero: o papel da analogia na ciência. In:
HOLLANDA, H. B. (Org.) Tendências e impasses: o feminismo como
crítica da cultura. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
4
Gênero é uma categoria de análise para pensar relações sociais e de poder.
De acordo com a historiadora Joan Scott o gênero é um elemento consti-
tutivo das relações sociais fundadas na percepção das diferenças sexuais,
mas é também um primeiro modo de dar significado ao poder. Desta for-
ma, entendemos que esta categoria não só organiza e significa as relações
sociais, mas é uma categoria de percepção, de conhecimento e de ação
que legitima práticas, representações e saberes. SCOTT, J. Gênero: uma
categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.

Um sistema instável • 17
Para tanto é preciso entender qual era a definição de fe-
minilidade estabelecida pelos psiquiatras. Contudo, nesse
exercício epistemológico e político, eles compartilharam
com outro grupo de especialistas os mesmos conceitos,
definições e valores ideológicos de gênero. Trata-se dos
ginecologistas, os especialistas da natureza sexual da mu-
lher. Nosso objetivo é analisar as contribuições teóricas
da ginecologia para a clínica psiquiátrica, especialmente
no que se refere à teoria sobre a natureza essencialmente
sexual das mulheres e às correspondências entre os órgãos
sexuais e o cérebro.
Recorremos aos escritos médicos produzidos no
século XIX e no início do XX para demonstrar como o
gênero fundamentou as teorias e as práticas destes dois
importantes especialistas do corpo e da mente das mu-
lheres. Da mesma forma, discutimos como a contribui-
ção da ginecologia foi além da formulação teórica da
natureza feminina. As terapias e a cirurgia ginecológica
– esta bastante desenvolvida a partir de 1880 – tiveram
um papel preponderante na Psiquiatria. Como a etiolo-
gia sexual estava na origem de todas as doenças mentais
das mulheres, os ginecologistas e os psiquiatras não só
encontraram nos corpos femininos as causas de manias,
psicoses, histeria, melancolia e tantas outras patologias,
como também defenderam que a cura, ou pelo menos a
amenização dos sintomas para os casos mais graves, de-
mandava terapêuticas ginecológicas. Compartilhando
da mesma definição sexual da feminilidade, psiquiatras
e ginecologistas desempenharam um importante papel
nas estratégias de normalização e de marginalização das
mulheres, mesmo que para isto precisassem alterar seus
corpos e dobrar suas vontades.

16, n. 2, p. 5-22, jul/dez. 1990; BOURDIEU, P. A dominação masculina.


Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.

18 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


O sexo nervoso

Desde meados do século XVIII, as Ciências Biológicas


vinham desenvolvendo modelos explicativos para as dife-
renças humanas, em particular as diferenças sexuais e as
raciais. O pensamento político liberal e seus desdobramen-
tos na filosofia das Luzes encontraram dificuldades em ar-
ticular o modelo naturalista de organização política e social
com as realidades histórico-sociais, em particular aquelas
colocadas pelo gênero e pelas relações entre os europeus e
outros povos no contexto da expansão colonial. Por mais
que se sustentasse filosoficamente que os homens nasceram
livres e iguais, a organização das relações de poder exigia
uma explicação para a não uniformidade deste princípio na-
turalista. Argumentava-se que a mesma natureza produzira
diferenças na espécie humana, tornando alguns mais aptos
não só para o entendimento, mas também para definir o que
era melhor para os outros considerados menos aptos.
Tanto o liberalismo racionalista quanto o iluminismo
compartilharam esta visão de uma natureza humana cindida
em diferenças físicas observáveis e mensuráveis que come-
çaram a ser encontradas pelos anatomistas, craniologistas,
naturalistas, viajantes e também pelos médicos. É neste
contexto que começaram as investigações científicas sobre
duas das mais importantes diferenças humanas, o sexo e a
raça, sustentando os discursos e as práticas sociais de domi-
nação e de exclusão de mulheres ocidentais e de homens e
mulheres de outras culturas considerados racialmente infe-
riores.5
As ideias emancipacionistas em curso na época da
Luzes não eram extensivas, portanto, a todos os indivídu-
os. Ser livre para agir e se expressar, exercer direitos e ser

SAID, 1996; STEPAN, 1994.


5

Um sistema instável • 19
reconhecido como um cidadão partícipe da construção de
uma nação soberana, eram atributos para poucos no século
XVIII e, principalmente, no século XIX. Alguns homens
e mulheres esclarecidos perceberam estas contradições do
pensamento político e filosófico, reivindicando direitos de
participação social e política para todos os cidadãos, bem
como condenaram a escravidão, entre outras formas de ex-
clusão e exploração que foram alvo do pensamento crítico e
radical do final do século XVIII.6
No entanto, as contradições do liberalismo não fo-
ram superadas pela crítica social e política, sendo fortale-
cidas pelo conhecimento científico que então começava a
se institucionalizar e conquistar reconhecimento social e
político. Os filósofos que defendiam a igualdade e apon-
tavam para a origem histórica e social das desigualdades
constituíram uma minoria frente àqueles que defendiam a
naturalidade das diferenças entre homens e mulheres, sus-
tentando hierarquias sociais e a exclusão das mulheres das
esferas públicas de decisão, do debate político e de todas as
possibilidades de autonomia.
Os discursos da diferença sexual recorreram ao ar-
gumento da determinação natural e apoiados nas investiga-
ções sobre a anatomia dos corpos femininos reforçaram a
ideia da inferioridade física e intelectual das mulheres. Para
além das querelas de fundo moral e religioso que sustenta-
ram os argumentos da tradição misógina no Ocidente, o
determinismo naturalista encontrou um lugar para elas na
nova ordem social e política que se configurava no final do
século XVIII: a maternidade. Para este discurso naturalista

6
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. 1. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985; HOFFMAN, P. La femme dans la
penseé des Lumières. 1. ed. Paris: Edition Ophrys, 1976; SCHIEBINGER,
L. Nature’s Body: sexual politics and the making of modern science. 1. ed.
London: Pandora, 1994.

20 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


as mulheres não foram criadas como uma versão defeituo-
sa dos homens, conforme a antiga tradição filosófica sus-
tentara por séculos. Pelo contrário, a natureza criara seres
irredutivelmente diferentes dos homens para exercer uma
função cujo corpo era dotado de capacidades e órgãos espe-
cificamente adequados para tal função, as mamas lactíferas
e o útero.7
Mesmo que mais frágeis e menos racionais, o discurso
naturalista encontrara um lugar para as mulheres no exer-
cício exclusivo da maternidade e teve muitos defensores,
inclusive entre as próprias mulheres que viram nesta defi-
nição natural da feminilidade uma forma de reabilitação e
enaltecimento que as protegeriam da violência dos maridos
e também da maledicência cultural. Faca de dois gumes, esta
definição contribuiu, sem dúvida, para a elevação moral das
mulheres num momento de valorização dos sentimentos e
do fortalecimento da família e dos laços entre pais e filhos.
Mas esta valorização tinha um alto preço, ou seja, o discurso
naturalista operava com categorias binárias e complementa-
res; à razão se opunha a emoção, o masculino ao feminino,
o público ao privado, a mente ao corpo, os homens às mu-
lheres; contudo não se excluíam, pelo contrário, encontra-
vam-se numa relação hierárquica que fora estabelecida pela
ordem natural das coisas. Ir contra esta ordem significava
opor-se à natureza e instaurar a desordem e o desequilíbrio.
As mulheres foram incluídas neste quadro ideológico da
normalidade natural e social se cumprissem o que delas era
esperado: casar, ser mãe e cuidar do marido e dos filhos.
É neste contexto iluminista de valorização moral das
mulheres pela maternidade que os médicos passaram a ter um

HOFFMAN, 1976; BERRIOT-SALVADORE, E. O discurso da me-


7

dicina e da ciência. In: FARGE, A.; DAVIS, N. Z. (Org.) História das


mulheres. Do Renascimento à Idade Moderna. 1. ed. Porto: Edições
Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1994; SCHIEBINGER, 1994.

Um sistema instável • 21
papel cada vez mais importante, pois o bom exercício desta
função social e natural dependia das noções de normalidade
e de saúde. Era imperioso, portanto, conhecer a mulher, não
a partir de aforismos e de generalizações que tanto a cultura
das classes superiores quanto a cultura popular difundiam
por meio de provérbios e ditados que contribuíram para
as representações preconceituosas sobre o feminino, mas
a partir da verdade que somente o conhecimento dos fatos
observados poderia produzir. Tal necessidade de conhecer e
de responder à pergunta o que é a mulher é o que explica a
expressiva produção de tratados de Obstetrícia ainda no sé-
culo XVIII, voltados para os fenômenos pouco conhecidos
da gravidez e da parturição. É também neste contexto que
tais fenômenos começam a interessar aos cirurgiões, que
passam a entrar na cena do parto, primeiro para intervir em
situações difíceis que as parteiras não conseguiam resolver,
depois nos chamados partos naturais até se instituir a figura
do cirurgião parteiro e do obstetra já no século XIX.8
Se a Obstetrícia se constituiu como a especialidade
médica voltada para a mulher no exercício das suas funções
reprodutivas para que ela bem cumprisse suas determina-
ções naturais, no século XIX outra especialidade médico-
cirúrgica passou a enunciar a verdade sobre a natureza fe-
minina. Mais ambiciosa do que a Obstetrícia, a ginecologia
foi constituída como a ciência da mulher, retomando o fio
ideológico da alteridade feminina. Explicar o que era a mu-
lher demandava um aprofundamento na complexidade da
sua natureza e esta era percebida então com sendo essen-
cialmente sexual, portanto, os ginecologistas se voltaram
para a pélvis feminina, para o locus da sua definição; lugar
instável e responsável pelo destino da mulher, seja na reali-

8
EHRENREICH; ENGLISH, 2003; MOSCUCCI, O. The science of
woman: gynecology and gender in England: 1800-1929. 1. ed. London:
Cambridge University Press, 1993.

22 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


zação socialmente esperada de esposa e mãe, seja nos seus
desvios patológicos.
A descoberta da sexualidade feminina e a sua coloca-
ção em discurso por diferentes saberes não admitia qual-
quer margem de confusão na definição dos sujeitos.9 Os
médicos exerceram o importante papel de peritos nesta
subjetivação sexual, mas não foram os corpos masculinos,
nem a sexualidade masculina que estimularam a investiga-
ção médico-científica e mesmo a escrita e a imaginação li-
terária e artística no século XIX. A sexualidade masculina
foi problematizada pelos saberes médicos e pelos peritos
judiciais somente nos casos de homossexualismo, herma-
froditismo e todas as outras classificações que a ciência se-
xual estabeleceu como anomalias em relação ao corpo e ao
sexo masculinos.10
No contexto oitocentista de redefinição dos saberes e
das práticas de subjetivação, foram os corpos das mulheres e
a sexualidade feminina que se tornaram mais problemáticos
para médicos, escritores e artistas oitocentistas. Para uns,
fonte da beleza, do mistério, do desejo e do amor; para ou-
tros, senão para a maioria, o corpo e o sexo femininos eram
compreendidos como sinônimos e vistos como ameaça à
integridade física e moral masculina. De qualquer forma é
possível afirmar que independente do lado que aqueles ho-
mens estivessem tanto o conhecimento médico-científico
quanto a imaginação artística não separavam a mulher do
sexo, como até os dias de hoje podemos verificar. Portanto,
9
FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. 3. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1980.
10
BLEIR, R. Science and gender: a critic of biology and its theories on
women. 1. ed. Nova York: Pergamon, 1984; DARMON, P. Médicos e as-
sassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. 1. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1991; KELLER, E. F. Reflections on gender and science. 1.
ed. Nova York: Yale University Press, 1985; LAQUEUR, T. Making sex:
body and gender from the greeks to Freud. 1. ed. Cambridge: Harvard
University Press, 1992.

Um sistema instável • 23
entender o que era a mulher requeria entender o que era o
sexo feminino, tendo em vista que para os especialistas e
para a cultura masculina de maneira geral, a mulher depen-
dia muito mais do seu sexo do que os homens. Muitos au-
tores oitocentistas defendiam que se para os homens o sexo
era importante em alguns momentos de suas vidas, especial-
mente quando era premente a reprodução, para as mulheres
ele era determinante ao longo de toda a sua vida, tanto para
o bem quanto para o mal.
A partir desta definição da natureza sexual feminina
uma teoria ganhou sustentação e adeptos entre os ginecolo-
gistas. Conhecida como teoria da ação reflexa, fundamenta-
va-se nos conhecimentos anátomo-fisiológicos produzidos
nos laboratórios de patologia sobre as relações entre úte-
ro, ovários e o cérebro. Estudos desenvolvidos por Claude
Bernard e outros fisiologistas do século XIX buscavam
compreender como funcionava o sistema nervoso ao reali-
zarem experiências com animais e com os corpos humanos
autopsiados. Os fisiologistas já estavam familiarizados com
a noção de simpatia, ou seja, da relação que existiria entre
dois ou mais órgãos, mesmo que distantes entre si, sendo a
vitalidade de um modificada pela do outro, tanto no estado
fisiológico quanto no patológico.11
O experimentalismo nas Ciências Biológicas refor-
çou estas ideias que, por sua vez, sustentavam o raciocínio
que a ideologia formulara: as mulheres eram mais instáveis
porque eram mais nervosas; eram mais nervosas porque es-
tavam mais sujeitas à excitabilidade sexual; eram mais exci-
táveis porque estavam mais submetidas às impressões e ao
império de seus órgãos sexuais. As experiências anátomo-
patológicas levaram à conclusão que as simpatias entre os
órgãos sexuais e o cérebro nada mais eram do que relações
11
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1995; MOSCUCCI, 1993.

24 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


estabelecidas por uma rede nervosa que ligava ovários e úte-
ro através de gânglios e de uma complexa ramificação de
nervos ao eixo cérebro-espinhal. Portanto, uma excitação
de origem sexual, mesmo que fraca, mas contínua, poderia
exercer uma ação simpática ou reflexa sobre o cérebro.
Por que esta teoria da ação reflexa não foi utilizada
para explicar patologias que acometiam os homens? A me-
lhor resposta para esta pergunta encontramos numa tese de
um médico brasileiro que também se debruçou sobre a es-
pecificidade sexual das patologias femininas e seu interesse
para a Medicina Legal e a Psiquiatria. Segundo Hildebrando
José Baptista, era preciso considerar a excitação nervosa se-
gundo o indivíduo sobre a qual ela se exerce:

Se o homem é a parte muscular do gênero humano, a mu-


lher é a parte nervosa. Este estado nervoso particular que
constitui o fundo mesmo de seu temperamento, não é um
terreno admiravelmente preparado para a eclosão de todas
as perturbações de ordem reflexa?12

Amparada nas observações de experimentalistas
como Claude Bernard, Pierre Flourens e outros fisio-
logistas que estudaram as chamadas irritações reflexas
de origem útero-ovariana, a resposta dada por Baptista
é exemplar do funcionamento ideológico do gênero na
ciência sexual. Como bem demonstraram Jordanova e
Moscucci,13 os médicos e os cientistas encontravam o que
procuravam, pois suas observações nas salas de autópsia,
nos hospitais de mulheres ou nos manicômios não eram
neutras e descomprometidas ideologicamente. As teorias

12
BAPTISTA, H. J. A mulher e a medicina legal. 1909. p. 21. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Medicina da Bahia, Salvador, 1909.
13
JORDANOVA, 1989; MOSCUCCI, 1993.

Um sistema instável • 25
e os conceitos foram formulados a partir das categorias da
diferença sexual e elas eram dadas pelo determinismo. A
frase de Baptista poderia ter sido enunciada por qualquer
outro contemporâneo, pois ela se sustenta nos pares di-
cotômicos que a ideologia de gênero formulou na cultura
científica ocidental. Desta forma, a teoria da ação reflexa
não poderia ser utilizada para explicar a fisiologia/pato-
logia masculina, pois se existiam simpatias entre órgãos
do corpo masculino elas eram menos pronunciadas e não
tinham a mesma origem na excitabilidade sexual como na
fisiologia feminina.
A teoria da ação reflexa teve muitos adeptos não só
na ginecologia, mas entre outros especialistas e também
entre o público leigo que se interessava pelas descobertas
da medicina e da ciência sobre a natureza feminina. O im-
pacto destas explicações foi imediato na vida e nas repre-
sentações das mulheres, pois contribuíram para o forta-
lecimento das imagens de instabilidade emocional, fragi-
lidade física e debilidade moral. Como franquear a seres
tão instáveis uma educação superior, o exercício da cida-
dania, o acesso a espaços racionais da cultura e da ciência?
Os estreitos limites colocados pela ideologia de gênero se
fundamentavam, portanto, nos estreitos limites colocados
pela natureza que parecia ter destinado as mulheres a uma
fisiologia reprodutiva ou a um imenso território patológi-
co. Neste terreno, as doenças de origem ginecológica ga-
nharam grande visibilidade, não só entre os médicos, mas
também na literatura e na escrita leiga ensaística.
Conforme vamos nos aproximando do final do século
XIX, notamos que diferentes especialidades médicas passa-
ram a compartilhar interesses, e mesmo espaços científicos
e institucionais; e a etiologia sexual para diferentes doenças
que acometiam mulheres começou a ser não só do conheci-
mento dos ginecologistas, mas de outros especialistas, como

26 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


é o caso dos psiquiatras. Se a teoria da ação reflexa contribuiu
decisivamente para a definição nervosa do sexo feminino,
para a Psiquiatria de finais do século XIX e começo do sécu-
lo XX os conhecimentos produzidos pela ginecologia foram
muito bem-vindos à clínica. Comportamentos associados às
manifestações mórbidas do psiquismo feminino encontra-
ram explicação compatível com os valores ideológicos sobre
as diferenças sexuais, mas a ginecologia poderia ser ainda
mais útil para a Psiquiatria ao fornecer modelos terapêuticos
localizados ou cirúrgicos para o tratamento das manias e de
outras doenças mentais das mulheres.

O sexo e a loucura feminina



Ao estudar a natureza feminina e sua especificidade
sexual, os obstetras e ginecologistas do século XIX constru-
íram um modelo de normalidade extremamente restrito para
as mulheres. Todos os fenômenos fisiológicos relacionados à
sexualidade feminina e à capacidade reprodutiva foram con-
siderados por eles como predisponentes às condições pato-
lógicas. A fisiologia feminina seria de tal forma determinante
na vida das mulheres que mesmo nas condições de normali-
dade as alterações físicas, mas principalmente as comporta-
mentais, poderiam evoluir para estados patológicos.
Deste modelo, surgiu uma questão comum para
ginecologistas e psiquiatras: como os fenômenos fisiológi-
cos se transformavam em fenômenos patológicos no corpo
feminino? Paradoxalmente, os médicos afirmaram que nas
mulheres a linha que separava a fisiologia da patologia era
tênue, quase imperceptível, ou seja, mesmo na normalida-
de de suas funções o corpo feminino era doente ou poten-
cialmente doente. O fatalismo deste modelo também sus-
tentava que certos fenômenos fisiológicos exerciam maior
império sobre a vontade das mulheres, ou seja, justamente

Um sistema instável • 27
aqueles fenômenos que estavam relacionados à definição
sexual da feminilidade eram os responsáveis pelas maiores
e mais profundas transformações no corpo e no psiquismo
das mulheres. Era para o sexo que os médicos oitocentistas
voltavam sua atenção e seus maiores temores.
Os obstetras e ginecologistas que escreveram sobre
esta questão foram unânimes em afirmar que fenômenos
como a menstruação, a gravidez, o parto e a menopausa
mesmo que não evoluíssem para estados patológicos es-
tavam na origem de perturbações físicas e intelectuais.14
Coerentes com a teoria da ação reflexa e sustentados nas
observações clínicas e nos dados estatísticos, os médicos e
fisiologistas do século XIX defenderam que a íntima rela-
ção entre fisiologia e patologia no corpo feminino se mani-
festava com mais frequência e de forma mais acentuada nas
doenças mentais. Os tratados de medicina legal, de gineco-
logia e de Psiquiatria trazem vários capítulos sobre as altera-
ções de comportamento e doenças mentais, demonstrando
o fatalismo da natureza e reforçando a necessidade de se
conhecer as condições dos órgãos sexuais das mulheres no
estabelecimento dos diagnósticos psiquiátricos e nos exa-
mes periciais sobre a responsabilidade criminal.
A teoria da ação reflexa encontrou adeptos entre
os alienistas desde a primeira metade do século XIX. Os
principais nomes da história da Psiquiatria como Esquirol,

14
A produção sobre o assunto é extensa e publicada principalmente em
inglês, francês e alemão. BERTHIER. Des névroses menstruelles ou la
menstruation dans ses rapports avec les maladies nerveuses et mentales.
Paris: Adrien Delahaye, 1874; BUMM, E. Précis d’Obstétrique. Lausanne:
Librairie Payot, 1914; DEPAUL, J. A. H. Leçons de clinique obstétricale.
Paris: V. Adrien Delahaye Libraires-Éditeurs, 1876; LEBLOND, A. Traité
élementaire de chirurgie gynécologique. Paris: H. Lauwereyns Libraire-
Éditeur, 1878; SIMPSON, J. Clinique obstétricale et gynécologique. Paris:
J. B. Baillière et Fils, 1874; TAIT, R. L. Diseases of Women. Birmingham:
Cronish Brothers, 1887; WEST, C. Leçons sur les maladies des femmes.
Paris: F. Savy, 1870.

28 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Ball, Icard, Viray, Berthier, referiram-se às simpatias entre
órgãos sexuais e o cérebro, mas foi após a publicação do
livro de Adam Raciborski15 que a teoria da ação reflexa
encontrou maior aplicabilidade. Este especialista no estu-
do da menstruação e de seus estados mórbidos tornou-se
uma autoridade bastante citada, uma referência obrigató-
ria pelo menos até o início do século XX. Seu livro está
dividido em três grandes partes, sendo que a última trata
da patologia e da terapêutica relacionadas à menstruação,
abordando detalhadamente o seu papel nas doenças ner-
vosas. Exemplo de como um fenômeno fisiológico podia
ser ao mesmo tempo patológico, a menstruação foi consi-
derada como uma das principais fontes de perturbações e
doenças nervosas.
Embora os médicos recorressem às metáforas poé-
ticas para descrever o aparecimento da menstruação na pu-
berdade e para afirmar que este era o principal indício de
que o corpo feminino havia despertado para cumprir o pa-
pel para o qual a natureza o havia preparado, não esqueciam
da linha tênue que separava o botão em flor da loucura.16
Quase todas as perturbações mentais e as manias tinham
sua origem na menstruação, segundo os médicos. Uma al-
teração orgânica no útero e nos ovários, mesmo de natureza
fisiológica, causava uma irritabilidade nervosa intensa. Para
algumas mulheres esta alteração podia ser passageira, mani-
festada em dores de cabeça ou outras sensações físicas mais
ou menos perceptíveis. Contudo, os médicos estavam con-

15
RACIBORSKI, A. Traité de la menstruation. 1. ed. Paris: J. B. Baillière et
Fils, 1868.
16
Os médicos aos quais nos referimos nesta discussão abrangem obste-
tras, ginecologistas, alienistas e posteriormente psiquiatras, higienistas e
médicos legistas. Como de uma forma ou de outra estas especialidades
acabavam se cruzando na produção de seus saberes sobre as diferenças se-
xuais e raciais preferimos manter a categoria profissional sem especificar
a especialização a não ser quando se fizer necessário tal discriminação.

Um sistema instável • 29
victos de que a maioria das mulheres era afetada de forma
intensa por esta irritabilidade nervosa de origem menstrual,
evoluindo para patologias mentais graves.
Os dados recolhidos das observações clínicas pa-
reciam se multiplicar assustadoramente. Os médicos afir-
mavam que sob a influência da menstruação as mulheres
podiam ficar loucas, chegando a cometer os atos mais
insensatos, até mesmo o suicídio. A observação das mu-
lheres alienadas levou médicos famosos como Esquirol a
sustentar que a época da menstruação era um tempo ter-
rível para elas, agravando os sintomas da doença mental.
Comentando estas observações Hildebrando José Baptista
afirma:

todos os autores que têm escrito sobre a alienação mental


são de acordo que as mulheres alienadas apresentam fre-
quentemente perturbações da menstruação e que na imi-
nência e durante o curso de suas regras, mesmo quando
estas são normais, elas experimentam um aumento mais ou
menos forte dos sintomas que caracterizam a moléstia.17

Também a gravidez e o parto foram considerados
fenômenos predisponentes de doenças mentais. Tanto os
obstetras quanto os médicos legistas observaram que da
mesma forma que a menstruação, os fenômenos fisiológi-
cos da gravidez e do parto podiam se transformar em fe-
nômenos patológicos devido à intensidade da irritabilida-
de nervosa dos órgãos sexuais. Apesar de reconhecerem a
extensão das transformações físicas da gravidez em outros
sistemas como o digestivo e o circulatório, os tratados de
Obstetrícia e de medicina legal dispensaram mais atenção
para as relações entre gravidez, parto, lactação e doenças

17
BAPTISTA, 1909, p. 22.

30 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


mentais. Estas relações receberam a denominação de loucu-
ra puerperal, abrangendo todos os tipos de alterações psico-
lógicas até as manias.
Da mesma forma que na menstruação, os médicos
encontraram uma frequência muito alta de perturbações
psíquicas causadas pela gravidez e pelo parto. Espécie de
loucura temporária, a loucura puerperal era uma patologia
que demonstrava de forma inequívoca as simpatias entre
útero, ovários e o cérebro. Se uma mulher nestas condi-
ções cometia algum ato criminoso deveria ser considerada
irresponsável judicialmente, pois os médicos afirmavam que
sendo as mulheres de natureza mais frágil e menos capazes
de sobrepor sua vontade ao império dos fenômenos fisio-
patológicos, não poderiam ser responsabilizadas por atos
que foram praticados involuntariamente.
A menopausa também foi considerada uma fonte
de perturbações psíquicas. Embora a ginecologia não tenha
associado a menopausa às condições patológicas os trata-
dos e manuais produzidos a partir da segunda metade do
século XIX observavam que o desaparecimento fisiológico
da menstruação poderia desempenhar um papel desesta-
bilizador no sistema nervoso, da mesma forma que o seu
aparecimento por ocasião da menarca. De qualquer forma,
ginecologistas e psiquiatras atribuíram à menopausa a ori-
gem de distúrbios psicológicos ou de manias e psicoses nos
casos mais graves, como também a consideraram fonte do
agravamento de quadros psicóticos e maníacos entre as in-
ternas de asilos que chegavam ao climatério, confirmando a
aplicabilidade da teoria da ação reflexa também nesta simpa-
tia entre os órgãos sexuais e o cérebro.
O modelo determinista da natureza feminina cria-
do pela ciência e pela medicina da mulher sustentava que
todos os comportamentos e as funções do corpo feminino
estavam sob a dependência dos órgãos sexuais. No entanto,

Um sistema instável • 31
não só os fenômenos fisiológicos relacionados diretamente
a eles foram vistos como predisponentes às doenças men-
tais. A maior parte dos transtornos psíquicos em mulheres
foi interpretada como de etiologia sexual e grande parte dos
ginecologistas e dos psiquiatras atribuiu um caráter pato-
lógico para a sexualidade feminina, muito mais do que para
a masculina. Desta forma, exames ginecológicos na clíni-
ca e no hospital psiquiátrico passaram a ser aceitos pelos
médicos por volta das décadas de 1880 e 1890, porque os
comportamentos femininos considerados inadequados pas-
saram a ser vistos concomitantemente como sintomas de
doença mental e ginecológica.
Em seu livro sobre a ninfomania a historiadora Carol
Groneman18 explica que quase todos os comportamentos
femininos associados à autonomia e à manifestação livre do
desejo sexual foram tratados pelos médicos como sintomas
de doença e de perversão. Categorias como hiperssexual,
ninfomaníaca, masturbadora, delinquente sexual, psicopata
sexual, entre outras, eram recorrentes tanto na formulação
de diagnósticos quanto na casuística. São vários os casos
narrados em publicações médicas da segunda metade do sé-
culo XIX e de boa parte do século XX que sustentam a ima-
gem de uma sexualidade feminina mórbida, de um desejo
feminino insaciável, descontrolado e ameaçador para a so-
ciedade por ser capaz de disseminar vícios e perversões. Daí
a necessidade de controlar as mulheres, pois, potencialmen-
te, qualquer mulher poderia desenvolver patologias sexuais
por ter uma constituição frágil e estar submetida ao império
de seus órgãos sexuais.
Até meados do século XIX, os alienistas ainda defen-
diam que doenças como a histeria e a ninfomania tinham
etiologia nervosa causada por alguma inflamação no cére-
18
GRONEMAN, C. Ninfomania: história. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
2001.

32 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


bro, pelo esgotamento dos nervos, pela excitação de causa
exterior como o consumo de álcool, ou então a leitura de
romances e conversas sobre paixões que pudessem des-
pertar a imaginação. Segundo Groneman os alienistas mais
progressistas defendiam o tratamento moral para as loucas
do sexo, ou seja, acreditavam que o internamento nos asilos
associado a uma terapêutica que visasse à transformação do
comportamento era o mais adequado para as insanas:

embora incertos sobre as causas de distúrbios femininos


como a histeria, a histeromania e a ninfomania, os alienis-
tas permaneceram confiantes, até o final do século, de que
uma mudança positiva poderia ser alcançada através deste
método novo e humano.19

Contudo, conforme o modelo experimental das ciências


biológicas foi se impondo ao longo do século XIX e contri-
buindo para a transformação dos diagnósticos e terapêuticas
das doenças mentais, a teoria da ação reflexa ganhou adeptos
também entre os psiquiatras do final daquele mesmo século.
Embora nem todos os psiquiatras concordassem com esta te-
oria, da mesma forma como os ginecologistas não eram unâ-
nimes sobre esta questão, desde as últimas décadas do século
XIX nota-se o abandono do modelo alienista de tratamento
moral e a adesão à teoria da ação reflexa e da terapêutica gine-
cológica para as loucas do sexo.20
Estes tratamentos foram muito diversificados, mas
quase todos se fundamentaram na intervenção no corpo ou
mais diretamente nos órgãos sexuais das mulheres e para
tanto encontraram na ginecologia os seus fundamentos
teóricos e clínicos. A medicina da mulher ou ginecologia
se constituiu tendo como referência uma imagem hipers-
19
GRONEMAN, 2001, p. 28.
20
GRONEMAN, 2001; MOSCUCCI, 1993.

Um sistema instável • 33
sexualizada da mulher. No entanto, a maioria destes novos
especialistas defendia que a mulher normal era anestesiada
para o sexo e que o exercício da sua sexualidade visava tão
somente à reprodução. Lombroso, um dos autores mais ci-
tados no final do século XIX sobre a natureza feminina, re-
correu a este modelo interpretativo da ginecologia ao dizer:

O amor feminino nada mais é do que um aspecto secun-


dário da maternidade e todos os sentimentos de afeto que
ligam a mulher ao homem não nascem do impulso sexu-
al, mas são instintos de sujeição e devoção adquiridos por
adaptação.21

Para os ginecologistas, qualquer manifestação de de-


sejo sexual ou de inadequação das mulheres à vida conjugal
era sintoma de algo errado com as suas pacientes, pois elas
não se encaixavam nos estreitos limites da normalidade mé-
dica. O debate em torno da sexualidade feminina na segunda
metade do século XIX ocorreu no terreno da patologia; daí
a proliferação das anomalias que requeriam a intervenção mé-
dica. Qualquer sinal era indicativo de uma anomalia sexual:
corrimentos, doenças uterinas e ovarianas, dores menstruais
excessivas ou ausência de menstruação, enfim, qualquer sin-
toma de alterações no trato genital feminino era interpreta-
do como sinal de excesso ou de abstinência sexual. Como os
exames ginecológicos também passaram por aperfeiçoamen-
tos no sentido de retirar qualquer obstáculo que impedisse o
olhar investigador do médico, o corpo passou a ser inquirido
em cada detalhe.22 Seios flácidos, pigmentação da pele, o ta-
manho do clitóris e dos lábios vaginais, a posição do útero e o

21
LOMBROSO, C.; FERRERO, G. La donna deliquente: la prostituta e la
donna normale. 4. ed. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1923. p. 92.
22
MARTINS, A. P. V. Visões do feminino. A medicina da mulher nos sécu-
los XIX e XX. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.

34 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


que os médicos chamavam de pudor feminino – algo que era
interpretado pela maior dificuldade em se realizar os exames
ginecológicos devido à vergonha das mulheres – eram indi-
cativos do comportamento sexual, sinais de uma sexualidade
excessiva e patológica.23
Alguns médicos defenderam os tratamentos morais
para a sexualidade feminina patológica, como a proibição
da leitura de romances, o controle sobre as companhias e
amizades e em alguns casos a vigilância restrita do compor-
tamento, especialmente para aquelas que foram diagnos-
ticadas como ninfomaníacas. Este tipo de tratamento não
dispensava algumas formas de terapêuticas mais localizadas,
como o uso de purgantes, escalda-pés, banhos frios, aplica-
ção de sanguessugas nos genitais e o uso de ventosas. No
entanto, a fama da ginecologia está associada à sua trans-
formação em uma especialidade cirúrgica, especialmente
entre as décadas de 1860 e 1870. Várias patologias de difícil
tratamento até então começaram a ceder graças à cirurgia
ginecológica, como é o caso do câncer uterino e ovariano e
as fístulas vésico-vaginais. Para além dos benefícios que este
tipo de intervenção trouxe à saúde das mulheres, a cirurgia
ginecológica teve um importante papel na definição médica
de normalidade sexual, ampliando significativamente o con-
trole que os médicos, as famílias e as instituições hospitala-
res exerciam sobre os corpos e comportamentos femininos.
Talvez em nenhum outro terreno o controle e o po-
der fundamentados na ideologia de gênero tenham tido
maior aplicabilidade sobre os corpos e as mentes femini-

23
Há que se ressaltar que nem todos os indícios resultavam da observação
nos exames, mas da imaginação médica e dos seus preconceitos. Alguns
se referiam aos “olhares lascivos”, aos comportamentos pouco condizen-
tes com o “natural pudor feminino”. Outros, como o próprio Lombroso
encontravam indícios de precocidade e excesso sexual associados ao tipo
feminino, entrecruzando diferenças físicas como a cor dos cabelos e da
pele com categorias sociais e raciais. MARTINS, 2004.

Um sistema instável • 35
nas do que no tratamento ginecológico para as doenças
mentais. Conforme a terapêutica cirúrgica se consolidava
e os médicos ganhavam mais segurança e determinação no
desenvolvimento das técnicas e no aperfeiçoamento do
instrumental, a prescrição da cirurgia e de outras terapêu-
ticas ginecológicas eram recomendadas para atenuar ou
mesmo curar doenças mentais. Como vimos, se a natureza
feminina era essencialmente sexual; se os órgãos sexuais
controlavam o regime fisiológico e patológico no corpo
feminino; se a medicina experimental havia comprovado a
íntima relação entre o sexo feminino e o sistema nervoso,
os fatos levavam a uma conclusão: os tratamentos morais
para as doenças mentais entre as mulheres não eram sufi-
cientes. Fazia-se necessário enfrentar o mal na sua origem
e esta fora encontrada pelo saber médico ginecológico nos
órgãos sexuais, portanto a terapêutica adequada deveria
voltar-se para eles.
Os periódicos psiquiátricos do final do século XIX di-
vulgaram artigos nos quais se defendia o uso das terapêuticas
ginecológicas para tratar de mulheres diagnosticadas como
doentes mentais. Os dados estatísticos apresentados pelos
autores apontavam para uma grande frequência de doenças
ginecológicas entre as alienadas e são vários os casos narra-
dos de cura de doença mental pela cura das doenças gine-
cológicas.24 Contudo, nem sempre os médicos tratavam das
doenças ginecológicas. Há vários relatos que indicam que as
terapêuticas ginecológicas foram utilizadas para mudar com-
portamentos, ou seja, para curar as mulheres diagnosticadas
como hiperssexuais, histéricas e as masturbadoras.
De acordo com Masson25 tais relatos e as práticas mé-

24
TELLES, A. L. Importância dos exames ginecológicos em medicina men-
tal. 1930. Tese (Doutorado) – Faculdade de Medicina da Bahia, Salvador,
1930.
25
MASSON, J. M. A dark science. Women, sexuality and psychiatry in the

36 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


dicas que são narradas heroicamente por seus autores reve-
lam um território escuro e pouco conhecido da Psiquiatria.
As abordagens históricas feministas da medicina da mulher
também apontaram para o caráter punitivo das terapêuticas
que visavam curar a sexualidade feminina considerada anor-
mal e patológica pelos médicos. Como bem demonstraram
Smith-Rosenberg & Rosenberg e Showalter26 as teorias e as
práticas médicas desenvolvidas no século XIX desempenha-
ram importante papel na exclusão social e política das mu-
lheres não apenas por meio das prescrições dos limites aos
quais deveriam se restringir para cumprir seu papel natural
e manter a saúde física e mental. Aquelas que por qualquer
motivo não se adequaram às normas sociais e às prescrições
médicas foram trancafiadas nos quartos sob os cuidados vi-
gilantes da família ou nos hospitais psiquiátricos. Contudo,
não bastava confiná-las. A medicina dos séculos XIX e XX
é intervencionista e se empenhou numa verdadeira luta
contra o mal e a doença, estejam eles presentes num agente
patógeno microscópico ou numa configuração patológica
do corpo que poderia ser alterada por medicamentos, por
agentes físico-químicos, pela eletricidade ou pela cirurgia.
Cada vez mais seguros de que a intervenção podia
trazer resultados mais imediatos e permanentes do que o
tratamento moral, os psiquiatras e os ginecologistas usa-
ram diferentes terapêuticas ginecológicas visando curar
o sexo nervoso. Nas décadas de 1880 e 1890, um trata-
mento médico para doenças nervosas em mulheres ob-
teve grande repercussão. Trata-se da cura pelo repouso

Nineteenth Century. 1. ed. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1986.
26
SMITH-ROSENBERG, C.; ROSENBERG, C. E. The female animal:
medical and biological viewa of woman and her role in Nineteenth-
Century America. In: LEAVITT, J. W. (Org.). Women and health
in America. 1. ed. Madison: University of Wisconsin Press, 1999;
SHOWALTER, E. The female malady: women, madness, and English
Culture, 1830-1980. 1. ed. Nova York: Penguin, 1987.

Um sistema instável • 37
absoluto (rest cure) desenvolvida pelo médico neurolo-
gista norte-americano S. Weir Mitchell. Este tratamento
podia ser realizado na casa da doente, sendo uma variante
do tratamento moral com a utilização de outras técni-
cas terapêuticas como a dieta alimentar, as massagens e
o uso da eletricidade. O tratamento pelo repouso abso-
luto ficou famoso também pela publicação do livro The
yellow wallpaper, da escritora norte-americana Charlotte
Perkins Gilman, em 1892. Submetida a este tratamento,
Gilman escreveu um relato do impacto causado por ele,
pois tinha que ficar completamente isolada no quarto,
sem poder levantar-se da cama, sendo proibida a leitura,
a escrita e mesmo a pintura. Ela narra como o tratamen-
to agravou seu quadro de depressão, motivo que a levou
procurar Mitchell, famoso na época por tratar das do-
enças nervosas, em particular aquelas que acometiam as
mulheres, como a neurastenia e a histeria. Mitchell com-
partilhava das ideias em voga entre seus contemporâneos
de que a vida moderna e as ambições femininas em que-
rer se igualar aos homens estavam na origem das doenças
nervosas que podiam evoluir para a demência. Portanto,
seu tratamento visava eliminar qualquer estímulo e con-
tato com o mundo, confinando as suas pacientes em
quartos fechados, submetidas a uma alimentação frugal e
sem nenhum movimento físico e intelectual.27
Embora a rest cure fosse ainda muito próxima ao tra-
tamento moral, trata-se de um aperfeiçoamento, pois não se
restringe ao isolamento e aos bons hábitos que deveriam ser
incutidos nas doentes. Mitchell queria acalmar os nervos das
mulheres e para tanto acreditava que as afastando do mun-
do, bem como fazendo-as literalmente parar, recobrariam

27
ABELSON, E. S. The invention of kleptomania. In: LEAVITT, J. W.
(Org.). Women and health in America. 1. ed. Madison: University of
Wisconsin Press, 1999.

38 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


a saúde e poderiam voltar para a condução de seus lares. O
uso de outras técnicas como a dieta, as massagens e os estí-
mulos nervosos pelo uso da eletricidade são indicativos da
transição deste tipo de tratamento para uma intervenção de
maior intensidade nos corpos e nas mentes femininas.
Recorrer às terapêuticas intervencionistas para os
casos de ninfomania e de algumas outras formas de pato-
logias mentais associadas à sexualidade feminina passou a
ser mais frequente a partir das últimas décadas do século
XIX. Começando pelos medicamentos, os médicos psi-
quiatras prescreviam drogas já conhecidas pelos alienistas
como a beladona, o ópio e o clorofórmio para acalmar os
estados de alucinação e de euforia. Desde 1857, as mulhe-
res diagnosticadas como epilépticas e masturbadoras co-
meçaram a ser medicadas com sais, especialmente o bro-
meto de potássio (KBr). Estes medicamentos calmantes
deixavam as mulheres num estado de torpor, pois as do-
ses eram elevadas, tendo em vista que os médicos visavam
ao aquietamento e, principalmente, ao controle sobre os
comportamentos e a excitação sexual.28
Contudo, a terapêutica medicamentosa não esteve
associada aos maiores desenvolvimentos da Psiquiatria
nem da Ginecologia no tratamento das doentes mentais
como ocorreu posteriormente, a partir de meados do sé-
culo XX. No final do século XIX, foram as terapêuticas
físico-químicas e cirúrgicas que deram aos médicos mais
confiança na capacidade curativa daqueles tipos de inter-
venção, tendo em vista que eram mais agressivas no que
então consideravam a origem orgânica das patologias
mentais de etiologia sexual. Algumas destas terapias já
eram conhecidas como a hidroterapia ou tratamento com
jatos ou imersão em água fria, geralmente. Contudo, ao

28
MASSON, 1986.

Um sistema instável • 39
lermos os relatos médicos de então nota-se que frente a
um comportamento considerado inadequado ou intolerá-
vel por parte dos familiares ou dos médicos, recorria-se à
combinação de diferentes terapêuticas.
Esta combinação foi bastante frequente nos trata-
mentos para conter as masturbadoras e as ninfomaníacas,
independente da idade das pacientes. O relato que o médico
Démétrius Alexandre Zambaco publicou no famoso perió-
dico francês L’Encéphale, em 1882, mostra claramente como
o internamento, o uso de drogas e de terapêuticas mais
agressivas, inclusive a cirurgia ginecológica, foram combi-
nados, revelando o esforço do médico em extirpar qualquer
sinal de uma sexualidade indomada.
Zambaco conta que tratou de duas crianças do sexo
feminino que se entregaram ao vício terrível da masturbação
de forma vergonhosa e incontida. As meninas eram irmãs e
tinham dez e seis anos. Ele começou o tratamento prescre-
vendo medicamentos, em especial o brometo de potássio e
de ferro. Não houve melhorias, pelo contrário, ao exami-
nar os genitais das meninas Zambaco notou que os abusos
continuavam e o comportamento da menina mais velha foi
descrito pelo médico como indecente e revoltante. Para tão
reticente paciente os tratamentos mais suaves não faziam
efeito, então foi necessário mudar de tática e usar tratamen-
tos mais severos, “mesmo [aqueles] mais cruéis e brutais”.29
Estes tratamentos severos incluíram o uso de camisa
de força, amarrar as pernas e os pés mantendo as crianças
no leito, hidroterapia, medicamentos de efeito calmante
e por fim, como narrou Zambaco, quando todos os trata-
mentos falharam no controle da masturbação, ele decidiu
experimentar no corpo da menina mais nova um novo trata-
mento: a cauterização do clitóris. Ele fez três cauterizações,
29
ZAMBACO. Masturbation and psychological problems in two little girls
apud MASSON, 1986, p. 65.

40 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


apesar dos soluços, das lágrimas e gritos e para puni-la pela
desobediência em voltar a se masturbar, cauterizou também
as nádegas e a região lombar. Segundo Zambaco a menina
mais nova “voltou a ser uma criança novamente”.30
Os mesmos tratamentos foram prescritos para a me-
nina mais velha, também mais resistente às tentativas curati-
vas e punitivas de Zambaco. Segundo ele, a menina era mais
inteligente e sagaz, bem como mais perversa e indecente,
demonstrando por meio de seu comportamento o quanto
era uma neurótica depravada. Apesar de todas as tentativas
de Zambaco a menina continuou resistente, mesmo com as
cauterizações no clitóris e na entrada da vagina. Apesar de
não ter curado as duas crianças, pois elas foram afastadas
do médico e ele narra não saber o que aconteceu posterior-
mente às suas pacientes, nas reflexões finais Zambaco con-
firma que ambas eram neuróticas. Diz que mesmo frente ao
fracasso dos diferentes tratamentos empregados acreditava
que nos casos de masturbação o tratamento mais eficaz era
a cauterização para reduzir a sensibilidade e com a aplicação
repetida do mesmo se poderia

destruir totalmente o clitóris. Finalmente, o medo desper-


tado pela visão do instrumento de tortura e as imagens que
o ferro quente produz na imaginação das crianças podem
ser considerados efeitos benéficos da cauterização elétrica.31

Nem todos os médicos são tão sinceros na explicita-


ção de seus valores, na denominação de suas práticas e na
determinação em punir as pacientes recalcitrantes quanto
Zambaco. Contudo, a bibliografia especializada explica que

30
ZAMBACO. Masturbation and psychological problems in two little girls
apud MASSON, 1986, p. 83.
31
ZAMBACO. Masturbation and psychological problems in two little girls
apud MASSON, 1986, p. 88.

Um sistema instável • 41
tais práticas punitivas se tornaram muito comuns na segunda
metade do século XIX. Nota-se em Zambaco e nos textos
de alguns contemporâneos a consciência da assimetria que
o saber e a prática médica estabelecem entre médicos e pa-
cientes, especialmente quando estes são mulheres. Portanto,
os tratamentos considerados pelos próprios médicos como
crueis e brutais foram prescritos e encontraram defensores
renomados e de prestígio porque viam as mulheres que esta-
vam sob seus cuidados por meio dos preconceitos de gênero.
As lentes da ideologia de gênero e da misoginia não podem
ser subestimadas, muito menos as relações de poder que
sustentam a produção do saber sobre os corpos e as mentes
femininas, como se pode notar nas afirmações seguras de-
monstradas por Zambaco frente à sexualidade e ao corpo de
duas crianças. Destruir o clitóris significava muito mais do
que colocar fim na excitabilidade sexual: significava colocar
fim na sexualidade feminina, tornar as meninas e as mulheres
recalcitrantes indivíduos dóceis e vergados pelo saber que de-
veria reconduzi-las à normalidade do sexo reprodutivo.
Mas foi no terreno da cirurgia que os médicos gineco-
logistas e depois os psiquiatras realmente inovaram e se di-
ferenciaram dos tratamentos mais conservadores.32 Embora
o debate sobre a cirurgia ginecológica, em meados do sé-
culo XIX, mostre que não havia uma posição homogênea
entre os médicos sobre as suas indicações, este tipo de ci-
rurgia passou a ser largamente praticada, tanto que muitos
médicos começaram a questionar a transformação da gine-
cologia numa especialidade cirúrgica e a criticar os exces-
sos. Apesar das divergências e das polêmicas, a ginecologia
encaminhou-se para o aperfeiçoamento das técnicas cirúr-
gicas especialmente na Inglaterra, na França e nos Estados

32
Conservador significa aqui os tratamentos menos intervencionistas,
como o tratamento moral, o uso de medicamentos calmantes associados
às dietas alimentares e ao repouso, como também a homeopatia.

42 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Unidos. Porém, a cirurgia não foi utilizada para tratar so-
mente de problemas ginecológicos como os tumores ou as
fístulas, mas para tratar das patologias femininas de maneira
mais geral, ou seja, de outras doenças que por ação reflexa
tivessem origem nos órgãos sexuais. É neste contexto que
algumas cirurgias em particular devem ser analisadas, assim
como deve ser analisado o interesse que elas suscitaram en-
tre os cirurgiões, como é o caso da histerectomia, da ovario-
tomia e da clitoridectomia, realizadas para curar a ninfoma-
nia, a histeria, a masturbação e algumas doenças mentais.33
Interessa-nos compreender porque estas cirurgias fo-
ram consideradas apropriadas para o tratamento de doentes
mentais. Conforme apontamos, os médicos psiquiatras no-
taram que muitas de suas pacientes tinham algum distúrbio
ginecológico, ao mesmo tempo em que alguns ginecologis-
tas perceberam que muitas das mulheres que os procuravam
com alguma queixa ginecológica apresentavam sintomas de
doenças mentais. Esta articulação entre sistema nervoso e
órgãos sexuais levou ginecologistas e psiquiatras a desen-
volverem terapêuticas mais agressivas e intervencionistas
visando à cura dos problemas psíquicos das mulheres.
As cirurgias mais polêmicas foram aquelas desenvol-
vidas pelos médicos que se tornaram especialistas nas do-
enças nervosas das mulheres: a ovariotomia e a clitoridec-
tomia.34 O recurso à extirpação dos ovários nos casos de

33
Lombroso comentou em seu livro que os cirurgiões europeus acredita-
vam que as mulheres resistiam mais à dor que os homens: “Bilbroth disse
que tendo que fazer uma operação nova tentava pela primeira vez numa
mulher, porque é menos sensível e mais resistente, porque, acrescentava
ele, a mulher é como os selvagens, um ser inferior e por isso apresenta
maior resistência aos ferimentos”. LOMBROSO; FERRERO, 1923, p.
49; MARTINS, 2004; MOSCUCCI, 1993.
34
Na história da cirurgia ginecológica narrada nos livros de história da
medicina destacam-se os nomes de Ephraim McDomwell, Charle Clay,
Charles Péan, Wilhelm Freund e James Marion Sims como responsáveis
pelas inovações desta terapêutica. Contudo, o debate em torno da indica-

Um sistema instável • 43
diagnóstico de histeria e ninfomania era bem conhecido na
literatura médica do século XIX, embora fosse muito polê-
mico e não contasse com a aprovação de muitos cirurgiões,
pois além de duvidarem da eficácia da cirurgia no tratamen-
to das doenças nervosas havia também a questão moral que
a castração suscitava tanto entre os profissionais da medi-
cina quanto entre os leigos. O que significava remover os
ovários de uma mulher? Ela não se tornaria mais masculina
sem os órgãos definidores de sua feminilidade? Apesar das
oposições, muitas mulheres internadas em asilos para do-
entes mentais tiveram seus ovários retirados pela cirurgia
ginecológica, pois segundo a teoria da ação reflexa, fazia-se
necessário remover a origem da irritação nervosa.35
A clitoridectomia foi outra cirurgia bastante prati-
cada entre as internas de asilos nos Estados Unidos e na
Inglaterra. Diferentemente da ovariotomia, esta cirurgia
não suscitou, no início, reações, pois o clitóris não era con-
siderado uma estrutura anatômica importante para as mu-
lheres, segundo médicos como Isaac Baker Brown e Gustav
Braun. Sua extirpação em casos de doenças mentais não tra-
ria maiores inconvenientes, pelo contrário, livraria as mu-
lheres da fonte do vício da masturbação e do longo cortejo
de doenças associadas a esta prática.36 O debate em torno da

ção da ovariotomia e da clitoridectomia para curar outras doenças, como


é o caso das doenças mentais, dividiu os médicos e se restringiu mais aos
Estados Unidos e à Inglaterra.
35
MITCHINSON, W. Gynecological operations on insane women. The
Journal of Social History, London, Ontário, 1895-1901, Spring, 1982.
36
Na década de 1860 o debate sobre a clitoridectomia foi bastante in-
tenso, especialmente após a expulsão do médico Isaac Baker Brown da
Obstetric Society de Londres em 1867. Brown publicou um livro no
qual defendia ter encontrado a cura para a epilepsia, a histeria e outras
formas de doenças mentais em mulheres através da extirpação do cli-
tóris. Sobre esta polêmica ver Sheehan. SHEEHAN, E. Victorian cli-
toridectomy: Isaac Baker Brown and his harmless operative procedure.
Medical Anthropology Newsletter, New York, v. 12, n. 4, p. 9-15, Aug.
1981; BRASLOW, J. Mental ills and bodily cares: psychiatric treatment

44 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


clitoridectomia ocorreu mais motivado por tensões inter-
nas à profissão médica do que pelos motivos e fundamentos
desta prática, como explicou Sheehan em seu artigo sobre
a questão que envolveu os cirurgiões obstetras e ginecolo-
gistas na Inglaterra na década de 1860. A clitoridectomia
continuou a ser praticada até a década de 1940 nos hospi-
tais psiquiátricos e na clínica ginecológica, pois o modelo
explicativo que a sustentava manteve-se intacto, ou seja, a
sexualidade feminina continuava a ser interpretada como a
fonte da maioria dos distúrbios psicológicos e psiquiátricos.
Ginecologistas e psiquiatras escreveram um capítulo
sombrio da medicina entre os séculos XIX e XX, conforme
observou o psicanalista Jeffrey Masson. Mulheres que procu-
raram voluntariamente seus serviços ou que foram levadas a
eles por seus familiares ou pelas autoridades, porque elas agiam
de forma inadequada ou indecente segundo os padrões cultu-
rais, quase sempre desconheciam os tratamentos a que foram
submetidas, especialmente aquelas que estavam nos asilos.
Desconfiados da sexualidade feminina, muitos médicos acre-
ditavam que a origem dos males que acometiam as mulheres se
encontrava no que paradoxalmente as definia, ou seja, na sua
própria natureza, que se não podia ser alterada, podia ser con-
trolada ou (talvez pudéssemos dizer) domada. Nesse sentido,
compreender este capítulo sombrio da história da Psiquiatria
e da Ginecologia nos leva para o território da apropriação
cultural dos valores da ideologia de gênero pela ciência e pela
medicina, processo este que nos ajuda a entender não só a for-
mulação de teorias deterministas, mas também o voyeurismo,
ansiedade e de misoginia presentes nas ideias e nas práticas mé-
dicas sobre o corpo e a mente das mulheres.

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Um sistema instável • 45
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Um sistema instável • 49
Capítulo 2

política assistencial psiquiátrica e


o caso da colônia juliano moreira:
exclusão e vida social (1940-1954)

Ana Teresa Acatauassú Venancio1


Janis Alessandra Cassilia2

A história da Colônia Juliano Moreira (CJM) nos


anos 1940 e início da década seguinte, deu-se no contexto
da formulação de uma assistência à doença mental, articu-
lada a uma política de saúde voltada para o planejamento e
implantação de diretrizes modernizadoras de organização
do próprio Estado. Neste período, a partir da criação do
Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), em 1941,
observa-se uma expansão quantitativa e qualitativa da assis-
tência ofertada na Colônia, com o incremento de seus mé-
todos de tratamento originais e o uso de novas terapêuticas

1
Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, pesqui-
sadora do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz (COC/
Fiocruz) e professora do Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz).
2
Graduanda em História pelo IFCS/UFRJ e bolsista de iniciação científi-
ca CNPq/Fiocruz na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Política assitencial psiquiátrica • 51


que produziram, ao mesmo tempo, um quadro de exclusão
e de vida social. Nesse sentido este artigo visa apresentar as
linhas gerais da articulação entre a assistência psiquiátrica e
as políticas de saúde dos anos de 1940, demonstrando como
a Colônia neste período foi, paradoxalmente, lugar produ-
tor de isolamento e de relações sociais.
Do ponto de vista historiográfico, trata-se de investi-
gar um momento da Psiquiatria brasileira pouco estudado.
As pesquisas históricas sobre a Psiquiatria no Brasil têm se
detido, principalmente, no período entre a criação do pri-
meiro hospício brasileiro (1852) até meados dos anos 1930.3
A década de 1940 aparece mais citada em outros conjuntos
bibliográficos que podem ser caracterizados de dois modos
distintos.
O primeiro deles pode ser identificado em trabalhos
ainda hoje publicados, majoritariamente, em periódicos da
área psiquiátrica, de autoria de médicos-psiquiatras interes-
sados na construção da história de sua disciplina (e, portan-

3
Como exemplo destes trabalhos, desenvolvidos, sobretudo, a partir
de 1980, podemos citar: AMARANTE, P. Psiquiatria social e colônia
de alienados no Brasil (1830-1920). 1982. Dissertação (Mestrado) –
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1982; CARRARA, S. Crime e loucura. O aparecimento
do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Editora
UERJ, 1998; COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil: um corte
ideológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989; CUNHA, M. C. P. O
espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz
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hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2001; ODA, A. M. G. R. A teoria da degenerescência na fundação da
Psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues
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<http://www.polbr.med.br/arquivo/wal1201.htm>. Acesso em: 14 jun.
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e a descontinuidade histórica da Psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2002; WADI, Y. M. Palácio para guardar doidos: uma história
das lutas pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS,
2002.

52 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


to, de sua própria história). Nestes artigos, as referências à
década de 40 têm o mérito de registrar a memória de perso-
nagens e de seus feitos pontuados pelo registro das datas re-
levantes. As citações à década de 1940 são traduzidas numa
certa cronologia muitas vezes divergentes nos diferentes
textos e sem citação das fontes primárias originais de re-
ferência. Na maior parte dos casos trata-se de uma história
que não prioriza o modo pelo qual esta se processou, dei-
xando de analisar tanto a multiplicidade de elementos que
a conformam quanto o contexto, sempre contingente e de-
terminante, em que se deu cada evento, a partir da posição
pessoal dos diferentes atores que dela fizeram parte.
No entanto, um breve registro cronológico presente
nesses trabalhos às vezes nos serve como pista para o esta-
belecimento de elos interpretativos. Na realização de nossa
pesquisa, a única referência encontrada sobre a mudança de
nome, em 1935, de Colônia de Psicopatas (Homens) para
Colônia Juliano Moreira (CJM) – nos parece indicativo de
que, à época, estavam sendo geradas ali algumas das con-
dições de possibilidade e de comprovação de um projeto
de fortalecimento e expansão da assistência psiquiátrica no
contexto das políticas públicas de saúde da época. A mu-
dança de denominação resulta de um olhar diferenciado
que certos atores passaram a ter de seu objeto – no caso a
CJM –, explicitando-se aí um alargamento dos significados
e práticas passíveis de conformar a instituição. Portanto, a
partir de 1935 se tornava plausível pensar o projeto dessa
colônia mista em que a construção dos novos núcleos, para
mulheres, aparece como uma das expressões do processo de
expansão qualitativa e quantitativa da assistência psiquiátri-
ca prestada que se efetivará na década de 1940.
Um outro modo pelo qual são citados a década de
1940 e o início dos anos 50 é como parte de um amplo pe-
ríodo homogêneo da história da Psiquiatria, que serve de

Política assitencial psiquiátrica • 53


base para a apresentação e afirmação de uma genealogia do
movimento de transformação da assistência psiquiátrica
brasileira,4 promovido por profissionais do campo. Esses
trabalhos, ao tomarem a reforma psiquiátrica desenvolvi-
da a partir de fins dos anos 70 como objeto, resumem os
períodos precedentes a ela como expressão do processo de
mercantilização da loucura, ao qual a mudança proposta se
opõe. Essa razão prática que embasou tais trabalhos trouxe
como consequência um olhar muitas vezes anacrônico so-
bre os diferentes momentos da história da Psiquiatria no
contexto brasileiro, considerada em última instância, ape-
nas como a implantação de um modelo de exclusão social
a ser superado, destinado à população menos favorecida e
reunida sob a rubrica de doentes mentais. Não sem razão,
tais trabalhos fundamentaram-se, sobremaneira, no pres-
suposto de que a Psiquiatria foi seguidamente expressão
paradigmática do poder disciplinador de corpos e mentes,
embora, muitas vezes, a partir de uma leitura reducionista
das contribuições foucaultianas.
Mesmo considerando-se inegável o grau de isolamen-
to e de maus-tratos produzido pelas instituições psiquiátri-
cas asilares, cumpre entender que essa história de exclusão
foi produzida pari passu a outros processos sociais entre-
cruzados; pesquisá-los é explorar, em parte, o modo como
tais instituições existiram na história. Dentre esses proces-
sos sociais destacamos o de constituição e consolidação de
uma política assistencial e de uma ciência psiquiátrica que
em diferentes períodos esteve articulada às discussões so-

4
LOUGON, M. Os caminhos da mudança: alienados, alienistas e a de-
sinstitucionalização da assistência psiquiátrica pública. 1987. Dissertação
(Mestrado) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
rio de Janeiro, 1987; SAMPAIO, J. J. C. Hospital psiquiátrico públi-
co no Brasil: a sobrevivência do asilo e outros destinos possíveis. 1988.
Dissertação (Mestrado) – Instituto de Medicina Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988.

54 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


bre um projeto nacional para o país. Em trabalhos anterio-
res, já tivemos oportunidade de demonstrar como, nas duas
primeiras décadas do século XX, a ciência psiquiátrica no
Brasil, liderada pelo psiquiatra baiano Juliano Moreira, re-
lacionou-se ao desenvolvimento de um projeto civilizatório
para a jovem República, ancorado, em grande medida, em
propostas de saúde pública que tomavam a capital federal ao
mesmo tempo como laboratório e modelo.5
Nosso argumento, neste sentido, é de que, duran-
te a década de 1940, as ações assistenciais psiquiátricas
também participaram do projeto de construção de uma
identidade nacional pautado pelo fortalecimento de um
Estado modernizador, o qual incluía as ações relativas à
saúde pública. Partindo da constatação de que os resulta-
dos dessa assistência geraram um processo social de exclu-
são de indivíduos e de grupos amplos de pessoas, entende-
mos que essa política assistencial psiquiátrica foi também
produtora do próprio Estado brasileiro e de instituições
cujas histórias são marcadas pelas relações sociais que lá
se formaram. Observar essas produções nos remete a ou-
tras questões que estiveram articuladas a essa realidade de
exclusão social: a conformação de um Estado nacional, a
realização de um planejamento da União, a construção de
uma lógica terapêutica que pudesse operar um imaginário
sobre a loucura observada em suas diferentes fases, mas
também a vida cotidiana daqueles que moravam na CJM e
ali criavam suas famílias. Por meio da consulta a fontes se-

VENANCIO, A. T. A.; CARVALHAL, L. Juliano Moreira: a Psiquiatria


5

científica no processo civilizador brasileiro. In: DUARTE, F. D.; RUSSO,


J.; VENANCIO, A. T. A. (Org.). Psicologização no Brasil: atores e au-
tores. 1. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005. p. 65-83; VENANCIO,
A. T. A.; CARVALHAL, L. A classificação psiquiátrica de 1910: ciên-
cia e civilização para a sociedade brasileira. In: JACÓ-VILELA, A. M.;
CEREZZO, A. C.; RODRIGUES, H. de B. C. (Org.). Clio-Psyché
ontem: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Relume/Dumará, 2001. p. 151-160.

Política assitencial psiquiátrica • 55


cundárias e primárias, como registros médicos, documen-
tos do Ministério da Educação e Saúde, relatórios, legis-
lação e artigos e notícias em periódicos, visamos discutir
esses diferentes processos sociais envolvidos na história
da Colônia no período referido.

Assistência psiquiátrica e políticas públicas


de saúde na década de 1940

A assistência psiquiátrica nacional começou a ser


reorganizada em 1927, a partir dos serviços existentes no
Distrito Federal (vale ressaltar que o Distrito Federal, até
década de 60 situava-se no Estado do Rio de Janeiro).6 Para
tanto, eram prescritas as situações próprias ao internamen-
to, o atendimento por manicômios judiciários, as condições
adequadas aos hospitais, o pessoal necessário para tal fim
e o modo de provimento dos cargos, definindo-se como
suas unidades o Instituto de Psicopatologia, o Hospital
Nacional, o Manicômio Judiciário e as colônias especiais
para homens e mulheres, dentre as quais a Colônia de
Psicopatas (Homens), futuramente renomea-da CJM.

6
Decretos n° 5.148-A de 10 de janeiro de 1927 e n° 17.805 de 23 de maio
de 1927. No documento do Departamento Nacional de Saúde, intitu-
lado Plano Hospitalar Psiquiátrico (s/d), é feita menção ao Serviço de
Assistência a Psicopatas do Distrito Federal (SAP-DF), embora a legisla-
ção analisada mencione apenas a reorganização da assistência a psicopatas
no Distrito Federal, sem citar a existência de um órgão de planejamento
e centralização das ações empreendidas e referindo que “ao Governo da
União incumbe manter a assistência a psicopatas no Distrito Federal,
dependente direta e exclusivamente do Ministro da Justiça e Negócios
Interiores” (Decreto nº 5.148 A, 1927, artigo 16). DEPARTAMENTO
NACIONAL DE SAÚDE. Plano Hospitalar Psiquiátrico. Sugestões
para a Ação Supletiva da União. Localizado no Centro de Pesquisa e
Documentação Histórica Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas
(CPDOC/FGV). Rio de Janeiro. In: Arquivo Gustavo Capanema, série
Ministério da Educação e Saúde – Saúde e Serviço Social, GCh 34.08.03
II–14, 22 pp, s/d.

56 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Este quadro manteve-se até 1930, quando o pri-
meiro governo Vargas (1930-45) deu nova configuração
às instituições políticas e à estrutura do sistema de saú-
de pública, no contexto das disputas políticas presentes
no cenário nacional: a crise de hegemonia decorrente do
processo de industrialização do país, com queda signifi-
cativa da relevância econômica do setor agroexportador;
e a tensão entre os projetos políticos de centralização ou
de dispersão do poder para as localidades; em ambos os
casos implicados por disputas entre as oligarquias.7 O
campo da saúde pública expressava o quadro de nego-
ciação política daí decorrente, com a pasta do Ministério
da Educação e Saúde Pública (Mesp) – criado em 1930
– sendo ocupada até 1934 por três ministros diferentes
(Francisco Campos, Belisário Penna e Washington Pires)
até 1934, quando então Gustavo Capanema foi nomeado
para o cargo.
A criação do Mesp instituiu uma diferenciação entre
as ações de saúde promovidas pelo Estado. As ações rela-
cionadas aos trabalhadores, à força de trabalho formal e às
entidades corporativas da área previdenciária ficaram sob
cuidado do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio
(MTIC), que priorizava a assistência médica individua-
lizada ao cidadão trabalhador, caracteristicamente urba-
no. Os pobres, desempregados, trabalhadores informais,
aqueles que não podiam contribuir para as caixas e institu-
tos previdenciários passaram a ser objeto das diretrizes do
Mesp, correlacionando-se saúde e educação. Desse pano-
rama emergem duas perspectivas para o âmbito das ações
de saúde pública:

FONSECA, C.; HOCHMAN, G.; TRINDADE, N. L. A saúde na cons-


7

trução do Estado Nacional no Brasil: Reforma Sanitária em Perspectiva


Histórica. In: LIMA, N. T. et al. (Org.) Saúde e democracia: história e
perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p. 38 et seq.

Política assitencial psiquiátrica • 57


a associação entre assistência médica previdenciária e tra-
balhadores urbanos e a ênfase das ações de saúde pública
como políticas e modelos de serviços voltados predomi-
nantemente para a população rural.8

Esta organização pode ser vista como a consolida-


ção do processo de centralização que advinha da Primeira
República, corroborado pela intelectualidade que despreza-
va os valores localistas das oligarquias, pois eram entendi-
dos como um obstáculo à civilização no país.
O Mesp era encarregado dos assuntos relativos ao
ensino, saúde pública e assistência hospitalar. Era formado
pelo Gabinete do Ministro, Diretoria de Contabilidade e
os Departamentos Nacionais de Ensino, de Saúde Pública,
de Medicina Experimental e de Assistência Pública. Sob a
alçada do Departamento de Saúde Pública ficaram os ór-
gãos que já o integravam, incluindo, dentre suas finalidades,
ações de prevenção e combate aos males como a febre ama-
rela, enquanto que o Departamento de Assistência Pública
ficava responsável pelos serviços destinados a psicopatas e
pela assistência hospitalar.
Em 1937, o Departamento Nacional de Saúde,
do então Ministério da Educação e Saúde substitui o
Departamento Nacional de Saúde Pública, buscando me-
lhorar a fiscalização e a execução das políticas de saúde
pública. Por contraste à área da educação, e sob a ru-
brica mais geral da saúde, todos os órgãos relacionados
à saúde passam a integrar o Departamento Nacional de
Saúde (DNS), incluindo-se aqueles relativos à assistência
a psicopatas. O DNS seria então composto de quatro di-
visões: Divisão de Saúde Pública, Divisão de Assistência
Hospitalar, Divisão de Amparo à Maternidade e à Infância

8
FONSECA; HOCHMAN; TRINDADE, 2005, p. 42.

58 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


e a Divisão de Assistência a Psicopatas. Esta última ficaria
encarregada

dos serviços relativos à assistência a psicopatas e à profi-


laxia mental, de caráter nacional, bem como dos que, de
caráter local, sejam executados pela União, competir-lhe-á
ainda promover a cooperação da União nos serviços locais,
por meio de auxílio e da subvenção federais fiscalizando o
emprego dos recursos concedidos.9

O que se observa nesse período, no campo da saúde, é


um processo tanto de centralização política quanto de des-
centralização no que se refere à implantação efetiva dessas
políticas, buscando uma interação entre as esferas federal,
estadual e municipal de governo. Essas novas ações seguiam
as diretrizes de políticas de saúde pública que vinham sen-
do discutidas internacionalmente em eventos e congressos
patrocinados principalmente pelos Estados Unidos. Entre
1930 e 1945, a Organização Pan-Americana de Saúde havia
promovido várias reuniões preconizando o modelo de cen-
tralização normativa e descentralização executiva,10 criando
distritos sanitários que compreendiam grupos de municípios.
Através destes distritos é que seria feito o controle das ações
de saúde. A intenção era de instituir a fiscalização dos mu-
nicípios sob responsabilidade dos estados, garantindo hie-
rarquicamente o controle federal sobre todas as instâncias,
sem, entretanto, deixar de dialogar com os poderes locais que
detinham, dessa forma, alguma relevância no jogo do poder.
João de Barros Barreto, primeiro diretor do DNS,
que se manteve no cargo até 1956, observava as dificulda-
des em controlar devidamente as ações de saúde passan-
do a regulamentar as atividades relativas a essa área, por

Artigo 17° da Lei n° 378 de 13 de janeiro de 1937.


9

FONSECA; HOCHMAN; TRINDADE, 2005, p. 45.


10

Política assitencial psiquiátrica • 59


meio de uma intensificação do caráter centralizador do
órgão. Em abril de 1941, a reforma do DNS promovida
por Barros Barreto foi institucionalizada, segmentando as
ações de saúde relativas às doenças determinadas. A re-
alização da I Conferência Nacional de Saúde, de 10 a 15
de novembro de 1941, confirmava as novas diretrizes ao
expor como agenda:

(a) a organização sanitária estadual e municipal; (b) am-


pliação e sistematização das campanhas nacionais contra a
lepra e tuberculoses; (c) ações para o desenvolvimento de
serviços básicos de saneamento; (d) plano de proteção à
maternidade, à infância e à adolescência.11

As ações de saúde do DNS passaram a ser então


implantadas por meio dos seguintes órgãos específi-
cos: Serviço Nacional de Lepra, Serviço Nacional de
Malária, Serviço Nacional de Peste, Serviço Nacional
de Tuberculose e Serviço Nacional de Febre Amarela.12
Nesse contexto foi criado também o Serviço Nacional de
Doenças Mentais (SNDM),13 o qual reunia a Divisão de
Assistência a Psicopatas (DAP) de abrangência nacional
e a assistência a psicopatas prestada no Distrito Federal.
O DNS ampliava sua ação na área psiquiátrica, até en-
tão nitidamente mais centrada na atuação no Distrito
Federal. A tarefa de formulação de uma política assisten-
cial psiquiátrica de âmbito nacional saía fortalecida.

11
FONSECA, C.; HOCHMAN, G. A I Conferência Nacional de Saúde:
reformas, políticas e saúde pública em debate no Estado Novo. In:
GOMES, A. de C. (Org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio
de Janeiro: Ed. FGV, 2000. p. 181.
12
Decreto-Lei n° 3.171 de 2 de abril de 1941.
13
O SNDM permaneceu ativo até 1970, quando foi substituído pela Divisão
Nacional de Saúde Mental (Dinsam), conforme Decreto n° 66.623 de
22/05/1970.

60 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


É expressiva, nesse sentido, a realização, pelo DNS,
do inquérito sobre a situação da assistência aos psicopatas
no país, do qual decorreria em 1941, a elaboração do Plano
Hospitalar Psiquiátrico, intitulado como um conjunto de
sugestões para a ação supletiva da União na área psiquiá-
trica.14 O inquérito, iniciado em 1937, tinha por finalidade
obter um diagnóstico da assistência psiquiátrica, resultando
na demonstração de sua diversidade nos diferentes estados
brasileiros, classificados como: os estados que não presta-
vam assistência a seus doentes (Sergipe, Goiás e território
do Acre); os que ofereciam uma assistência rudimentar,
sem tratamento diferenciado e especializado (Mato Grosso,
Espírito Santo e Piauí); os que prestavam alguma orientação
especial, ainda que a assistência fosse considerada bastante
deficiente (Amazonas, Maranhão, Ceará, Rio Grande do
Norte, Alagoas e Santa Catarina); os que ofereciam assis-
tência especializada, mas ainda reduzida (Paraíba, Pará, Bahia
e Rio de Janeiro); os que assistiam seus doentes com base
nos métodos psiquiátricos considerados mais modernos e
preocupados com a prevenção (Paraná, Rio Grande do Sul,
Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais).15
Com base nesse inquérito, a partir de 1941, o SNDM
passaria a gerenciar a expansão da assistência psiquiátrica em
todo o território nacional. Em 13 de junho de 1941, Barros
Barreto enviou ao ministro Gustavo Capanema os regimen-
tos dos Serviços do DNS, incluindo-se aí o do SNDM, o
qual teria como principais objetivos:
superintender os estabelecimentos oficiais de assistência a

14
DEPARTAMENTO NACIONAL DE SAÚDE. Plano Hospitalar
Psiquiátrico..., op. cit. Este documento em papel timbrado do DNS ao
Ministro da Edcuação e Saúde, sem data, foi produzido após 1938 (pois
cita legislação deste ano) e antes de 1941 dadas as referências a DAP e ao
SAP.
15
DEPARTAMENTO NACIONAL DE SAÚDE. Plano Hospitalar
Psiquiátrico..., op. cit., p. 13.

Política assitencial psiquiátrica • 61


psicopatas no Distrito Federal; [...] planejar, para todo o
território nacional, os serviços de assistência e proteção a
psicopatas, orientando, coordenando e fiscalizando as res-
pectivas atividades dentro de normas unificadas, relativas
também às instalações e ao funcionamento.16

O regimento do SNDM só seria aprovado em 1944,


embora desde 1941 já funcionasse sob a direção de Adauto
Botelho, que se manteve no cargo até 1954. O Decreto
17.185, de 18 de novembro de 1944, manteve os objetivos
centrais citados anteriormente, estabelecendo a organiza-
ção do SNDM na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto,
em órgãos centrais (administrativos) e em órgãos locais de
caráter assistencial. Neste caso estavam incluídos o Centro
Psiquiátrico Nacional (CPN), a CJM e o Manicômio
Judiciário.
Implantando as diretrizes para a área da saúde, em 1946,17
o Ministério da Educação e Saúde ficava autorizado a celebrar
acordos com os estados visando intensificar a assistência psi-
quiátrica nas regiões em que os estudos realizados pelo órgão
especializado do DNS tivessem revelado deficiências. A inten-
sificação se faria pela construção, instalação e funcionamento
de hospitais e serviços psiquiátricos nos estados.
Nas propostas contidas no Plano Hospitalar Psiquiátrico
a estrutura privilegiada como padrão pela então Divisão de
Assistência Psiquiátrica do DNS foi o hospital-colônia; dire-
triz que a “futura ação – como a que agora se projeta – não se
16
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA
CONTEMPORÂNEA DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
(CPDOC/FGV). Regimento do Serviço Nacional de Doenças Mentais.
9 p. Rio de Janeiro. In: Arquivo Gustavo Capanema, série Ministério da
Educação e Saúde – Saúde e Serviço Social, GCh 34.08.03 III – 1.Este
documento é precedido de carta do diretor do DNS, Barros Barreto, ao
Ministro Gustavo Capanema encaminhando os regimentos dos orgãos
que integravam o DNS.
17
Decreto 8.550 de 03 de janeiro de 1946.

62 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


vê na contingência de abandonar o que até aqui foi realizado”.18
O formato do hospital-colônia expandia-se nos moldes de um
complexo hospital. Ocupava área física considerável e, portan-
to, nos casos por nós conhecidos, afastado dos núcleos mais
urbanizados dos estados, formado por pavilhões e por outras
estruturas assistenciais que passavam a incluir o tratamento
com modernas técnicas biológicas – como as psicocirurgias –
associadas à praxiterapia voltada para o trabalho agrícola e ao
isolamento. Desse panorama, cumpre ainda destacar as cate-
gorias classificatórias que informavam a separação das popu-
lações internadas em tuberculosos, crônicos, homens, alcoo-
listas, sub-agudos, ressaltando-se, em vários casos, pavilhões
específicos para mulheres e crianças.
Durante a gestão de Adauto Botelho (1941-1954) no
SNDM a instituição padrão hospital-colônia foi largamente
implantada em diferentes estados brasileiros. Dentre os 20
estados (incluindo-se o Distrito Federal) 14 deles são cita-
dos como contemplados com a construção ou ampliação de
hospital-colônia ou colônia. Para os seis estados restantes
(Amazonas, Pará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Bahia e
Paraná) é mencionada a construção de hospitais ou de pavi-
lhões no interior destes.19
De um modo geral, portanto, as ações político-assis-
tenciais iniciadas na década de 1940 para a área psiquiátrica
foram organizadas no contexto de um processo de moder-
nização, centralização e nacionalização da assistência mais
ampla em saúde. Nesse contexto, o tipo padrão proposto
e executado foi o de grandes estruturas hospitalares: sob
a alcunha de hospital-colônia essas estruturas buscavam

18
DEPARTAMENTO NACIONAL DE SAÚDE. Plano Hospitalar
Psiquiátrico..., op. cit., p. 14.
19
BRASIL. Ministério da Saúde. DNS. SNDM. Noticiário. Realizações do
Serviço Nacional de doenças Mentais. Arquivos do Serviço Nacional de
Doenças Mentais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 4, p. 287-288, 1955.

Política assitencial psiquiátrica • 63


ao mesmo tempo modernizar a assistência e reproduzir o
modelo institucional centrado na praxiterapia e na assistên-
cia hetero-familiar, já planejado no Brasil desde os anos de
1910 e implantado a partir dos anos 20.

Histórias da Colônia Juliano Moreira

Instalada na área de um dos mais antigos engenhos


de cana de açúcar de Jacarepaguá, a Colônia foi inaugurada
em 1924, mas já em 1912 o Governo do Marechal Hermes
da Fonseca desapropriara o Engenho Novo,20 seguindo as
recomendações do dr. João Augusto Rodrigues Caldas, de
se buscar um novo espaço para as atividades das colônias de
alienados situadas na Ilha do Governador – Colônia Conde
de Mesquita e Colônia S. Bento – já consideradas em con-
dições inadequadas. A partir da liberação das terras para a
União em 1918, tem início o processo de construção da en-
tão Colônia de Psicopatas (Homens).21
Documentos relativos aos primeiros anos de
funcionamento da CJM22 demonstram os investimen-
tos necessários e solicitados ao Ministério de Justiça e
Negócios Interiores para a implantação da Colônia em
Jacarepaguá e para o trabalho de aparelhamento da mes-
ma, que iam desde aquisição de material elétrico e telefô-
nico, conservação de carros de bois, caminhões, adubos e
sementes, até a necessidade de drogas, reativos e material
de pesquisas para laboratório. Quando de sua inaugu-
20
Decreto nº 9.743 de 31 de agosto de 1912.
21
ALMEIDA, A. G. de. Colônia Juliano Moreira: sua origem e um pou-
co de sua trajetória histórica (1890-1946). Revista Brasileira de Saúde
Mental, Rio de Janeiro, ano 13, v. 11, p. 162-163, 1967.
22
CALDAS, J. A. R. Relatório de 1924. Colônia de Alienados em
Jacarepaguá, 30 de março de 1924. Cadernos do NUPSO, Rio de Janeiro,
ano 1, n. 1, maio 1988; CALDAS, J. A. R. Proposta orçamentária para
1926. Colônia de Alienados em Jacarepaguá, 12 de fevereiro de 1926.
Cadernos do NUPSO, Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, nov. 1988.

64 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ração, a Colônia já possuía redes de luz, água e esgoto,
15 pavilhões construídos, além de lavanderia, refeitório,
cozinha, casas para empregados, farmácia, laboratórios,
necrotério e enfermaria.
A nova instituição estava apoiada em dois alicer-
ces básicos: a praxiterapia e a assistência hetero-familiar.
A praxiterapia para o universo masculino que formava a
instituição seria montada por meio de atividades voltadas,
principalmente, para a lavoura. O tratamento hetero-fa-
miliar, por sua vez, fundamentava-se na proposta, de 1910,
de Juliano Moreira, relativa à construção de uma colônia
de alienados em Jacarepaguá que previsse o contato siste-
mático dos doentes com pessoas normais e sadias, com a
instalação de funcionários que ajudassem a inserção dos
pacientes numa vida social mínima, e propiciassem um
convívio doméstico:

anexo ao hospital-colônia, em seus limites, deve o gover-


no construir casinhas hygiênicas para alugar as famílias dos
empregados que poderão receber pacientes susceptíveis de
serem tratados em domicílio. Far-se-há assim assistência fa-
miliar. Se nas redondezas da colônia houver gente idônea
a quem confiar alguns doentes, poder-se-há ir estendendo
essa assistência hetero-familiar e até tentar a homo familiar.23

Preconizado, originalmente, pela Psiquiatria europeia


no século XIX, esse modelo inspirava-se na experiência vi-
vida pela aldeia de Geel, na Bélgica, que desde o século XVII
recebia romarias de alienados. Esta afluência de doentes
para a pequena aldeia acabou fazendo com que muitos cam-
poneses, mediante pagamento, recebessem em suas casas os

23
MOREIRA, J. Quaes os melhores meios de assistência aos alienados.
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, Rio de
Janeiro, v. 6, n. 3/4, p. 19, 1910.

Política assitencial psiquiátrica • 65


alienados e seus parentes, na época das festas religiosas, ou
passassem a cuidar dos doentes que ali eram deixados pelas
famílias até o ano seguinte.24
Essas diretrizes centrais – a praxiterapia e o trata-
mento hetero-familiar – estariam presentes também nas
ações terapêuticas levadas a efeito na CJM durante a dé-
cada de 1940. A proposta de regimento do SNDM apre-
sentada em 1941, reproduzida no artigo 37 do Decreto de
1944, destacava a CJM como instituição destinada àque-
les que pudessem se beneficiar da praxiterapia, havendo
menção explícita à oferta de assistência hetero-familiar e
confirmação da construção de casas para tal fim iniciada
nos anos de 194125 e 1945.26 Mantinha-se a ideia de que o
tipo hospital-colônia expressava um dos mais modernos
e humanizados tratamentos psiquiátricos, pois o contato
com uma vida bucólica, com uma vila residencial e as ofi-
cinas da praxiterapia ajudaria muito mais à recuperação do
doente crônico do que o sistema asilar, que vinha sendo
caracterizado pela superlotação, a exemplo do hospício da
Praia Vermelha.
A vocação original da instituição para o atendimento
aos crônicos era destacada em 1935 quando da destinação
de crédito para a construção de novos pavilhões na referi-
da Colônia, para onde seriam transferidos os doentes des-
te tipo advindos da Praia Vermelha. No entanto, em julho
de 1942, o então Ministro da Educação e Saúde Gustavo
Capanema expedia um aviso ministerial,27 prescrevendo
24
AMARANTE, 1982, p. 52.
25
SERVIÇO NACIONAL DE DOENÇAS MENTAIS. Relatório do
Serviço Nacional de Doenças Mentais de 1941. Arquivos do Serviço
Nacional de Doenças Mentais, Rio de Janeiro, p. 129, 1943.
26
SERVIÇO NACIONAL DE DOENÇAS MENTAIS. Relatório do
Serviço Nacional de Doenças Mentais de 1945. Arquivos do Serviço
Nacional de Doenças Mentais, Rio de Janeiro, p. 33, 1949b.
27
AVISO MINISTERIAL nº 367, 16 de julho de 1942. Diário Oficial
(Secção l), Segunda-feira, 20 de Julho de 1942. Ano LXXXI, nº 167,

66 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


que a Colônia deveria receber não só os pacientes do antigo
hospício, em processo gradativo de extinção, mas todos os
que fossem remetidos pela polícia, inclusive os agudos. Dois
anos mais tarde, em maio de 1944,28 ficava a Colônia Juliano
Moreira desobrigada de receber doentes agudos, fato que
seria confirmado pelo Decreto de novembro de 1944 que
aprovava o regimento do SNDM.
Naquele momento, processava-se uma reorganização
das instituições psiquiátricas existentes no Distrito Federal,
com a criação em 1944 do Centro Psiquiátrico Nacional
(CPN), no Engenho de Dentro, que tinha como uma de
suas unidades o Hospital Pedro II (anteriormente denomi-
nado Hospital Psiquiátrico), que também deveria acolher
os pacientes antes existentes no antigo hospício da Praia
Vermelha. Nessa nova organização, estabelecia-se uma di-
visão entre doentes agudos e crônicos a serem tratados, res-
pectivamente, pelo Hospital Pedro II e pela CJM. No en-
tanto, as opiniões da Colônia e do Hospital Pedro II sobre
a execução desta partilha não seriam unívocas; tal execução
foi considerada responsável por consequências indesejáveis
nas duas instituições.
O relatório de 1945, que expõe a situação do Hospital
Pedro II referente ao ano de 1944, informa que o referido
hospital, a partir de março de 1944, deveria acolher em suas
instalações no Engenho de Dentro os pacientes advindos
da Praia Vermelha. Apesar de superlotado, também estaria
recebendo doentes agudos remetidos pela polícia, antes in-
ternados na Colônia, e mesmo pacientes crônicos, ainda que
transferisse para a CJM apenas estes últimos.

p. 11.396. Biblioteca do Ministério da Fazenda, Rio de Janeiro apud


SERVIÇO NACIONAL DE DOENÇAS MENTAIS, 1949b, p. 119.
28
OFÍCIO n. 00322 de 24 de maio de 1944 apud SERVIÇO NACIONAL
DE DOENÇAS MENTAIS, 1949b, p. 128.

Política assitencial psiquiátrica • 67


A quase totalidade de enfermos transferidos para Colônia
Juliano Moreira é constituída de casos crônicos; apenas um
pequeno número de pacientes com perturbações mentais
agudas tiveram que se transferidos para lá por motivo de
tuberculose, de estado adiantado de gravidez e de afecções
cirúrgicas que exigiam cuidados urgentes. A grande massa
de enfermos crônicos que é internada no Hospital Pedro
II, para onde não deveriam ir, de enfermos que tem que ser
examinados e. não raro, medicados antes de serem trans-
feridos para a Colônia Juliano Moreira, rouba aos médicos
do estabelecimento o precioso tempo que deveriam dedi-
car a observação e ao tratamento dos psicopatas com per-
turbações mentais agudas.29

Contrariando tais informações, a Colônia informava


que continuava a receber pacientes agudos, provenientes
da polícia ou do próprio CPN,30 como confirma a consulta
às fichas de observações do pacientes para lá enviados após
1944. O discurso da direção da Colônia refletia um desejo
de retorno à finalidade inicial da instituição de cuidar ape-
nas dos doentes crônicos, o qual também era manifesto em
ofícios e notas dirigidos a instâncias jurídicas que para lá
encaminhavam pacientes. Segundo essa direção, a institui-
ção estava destinada a “recolher doentes tranquilos-crôni-
cos e curáveis a longo prazo – que se beneficiassem com
o regime de liberdade semi-vigiada, gozando as vantagens
da vida campestre, ao ar livre”.31 Entretanto, há muito esta
29
SERVIÇO NACIONAL DE DOENÇAS MENTAIS. Situação anterior.
Relatório do Hospital Pedro II de 1945. Arquivos do Serviço Nacional de
Doenças Mentais, Rio de Janeiro, p. 100-101, 1949c.
30
SERVIÇO NACIONAL DE DOENÇAS MENTAIS. II – Colônia
Juliano Moreira. Relatório do Serviço Nacional de Doenças Mentais de
1945. Arquivos do Serviço Nacional de Doenças Mentais, Rio de Janeiro,
p. 19, 1949a.
31
OFÍCIOS de 1948 entre o diretor da CJM Heitor Peres e o Juiz das
Execuções Criminais. “A Colônia Juliano Moreira não pode nem deve

68 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


instituição já se encontraria com lotação inadequada, per-
manecendo sem estrutura assistencial-terapêutica e quadro
de funcionários para atender tal demanda. A CJM já não
seria mais apenas uma colônia voltada para a recuperação
de crônicos, mas também uma instituição para os chamados
agudos e mesmo para os criminosos.
Esse debate se articulava também à discussão sobre os
tipos de internação realizados pela CJM. O tipo serviço fe-
chado fazia referência, principalmente, às transferências de
pacientes de outras unidades do SNDM ou da polícia, que
incharam quantitativamente a instituição e, muitas vezes,
enviavam para lá muitos pacientes agudos. O tipo serviço
aberto, por sua vez, definia a internação de um indivíduo
que não tivesse passado por outras instituições, podendo
ser internado pela própria família ou por autorização do
diretor da Colônia. As opiniões sobre a importância do
serviço aberto não foram uníssonas durante este período.
Em relatório do SNDM sobre o ano de 1941,32 o diretor
da Colônia, Carlos Matoso Sampaio Corrêa, avaliava o ser-
viço aberto como benéfico, entendendo que os pacientes
internados por essa via eram os que mais se reajustavam
socialmente. Já em 1948,33 o diretor Heitor Péres, afirmou
que este serviço teria contribuído em larga medida para uma
superlotação da instituição, fato que procurava sanar desde
o início de sua gestão em 1946.
O modelo hospital-colônia previa também grandes
áreas que serviriam para abrigar mais adequadamente um
número significativo de doentes, como acontecia com a

ser considerada como ‘Casa de Custódia e Tratamento’”. Memorial en-


viado pelo Diretor da C.J.M. ao Juiz das Execuções Criminais. Boletim
da Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, set./out. 1948.
32
SERVIÇO NACIONAL DE DOENÇAS MENTAIS, 1943, p. 50.
33
MEMORIAL enviado pelo Diretor da C.J.M. ao Juiz das Execuções
Criminais. Boletim da Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2,
p. 12-17, set./out. 1948.

Política assitencial psiquiátrica • 69


Colônia a partir da década de 1940. Ampliada em sua es-
trutura assistencial e física, essa instituição receberia um
quantitativo cada vez maior de pacientes, já previsto no
regimento do SNDM de 1941: “a CJM terá seus doentes
distribuídos em um bloco médico cirúrgico e quatro nú-
cleos coloniais, cada um destes com um mínimo de 600
(seiscentos) leitos”.34 As fichas de observações produzidas
quando da entrada dos internos35 demonstram também que
foi durante a década de 1940 que houve maior afluxo de no-
vos doentes para tratamento na Colônia. Em nossa pesquisa
pudemos contabilizar 122 fichas de pacientes masculinos na
década de 1920, 1.602 fichas de pacientes homens na déca-
da de 1930, enquanto que na década de 1940 este número
subiu para 2.805, decaindo na década seguinte para 1.054.
Segundo nosso levantamento, a entrada de pacientes mu-
lheres na instituição também demonstrou ser maior na dé-
cada de 1940 se comparada às décadas anterior ou posterior.
Nesse projeto para abrigar os diversos pacientes en-
viados para a CJM, a seção de obras do SNDM ficou encar-
regada da construção de novos pavilhões, inaugurados com
a presença de várias autoridades.

34
Artigo 10º, Parágrafo 1º, Regimento do Serviço Nacional de Doenças
Mentais. 9 p. Arquivo Gustavo Capanema, série Ministério da Educação
e Saúde – Saúde e Serviço Social, GCh 34.08.03 III–1. Rio de Janeiro:
CPDOC/FGV, 1941. Destaque nosso.
35
As fichas de observações contabilizadas encontram-se no acervo da CJM
existente no Núcleo de Documentação e Pesquisa do atual Instituto
Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMAS-JM) da
Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro.

70 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Figura 1 – “Visitando a CJM, o presidente Getúlio Vargas
com um enfermo ali internado”.36  

36
Anais da Assistência a Psicopatas, 1941.

Política assitencial psiquiátrica • 71


Figura 2 – O presidente Getúlio Vargas e o Ministro
Gustavo Capanema percorrem as novas enfermarias
da CJM, acompanhados pelo dr. Waldemiro Pires, diretor
da Divisão de Assistência a Psicopatas.37

Observa-se ao longo da década de 1940 e início dos


anos 50, a solicitação de construção de diversas unidades,
muitas delas realizadas: o bloco médico-cirúrgico Álvaro
Ramos, Pavilhão de Tisiologia para Tuberculosos, Clínica
Psico-cirúrgica Egaz Muniz, dois pavilhões para adolescen-
tes de ambos os sexos, dois pavilhões de admissões e re-
formatório para alcoolistas, residências para o tratamento
hetero-familiar e para o diretor, pavilhão da administração,
forno de incineração, novo necrotério, Núcleo Teixeira
Brandão (para mulheres), centro desportivo, entre outras.
Em 195138 a Colônia abrigava cerca de 3.800 enfermos

Anais da Assistência a Psicopatas, 1941.


37

As informações a seguir foram coletadas de Informe Publicitário de março


38

de 1951, intitulado “Algo sobre a Colônia Juliano Moreira”, encontrado


dentro do exemplar de Boletim da Colônia Juliano Moreira: COLÔNIA
JULIANO MOREIRA. Algo sobre a Colônia Juliano Moreira: informe
publicitário. Boletim da Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1,

72 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


de ambos os sexos e tinha como principais unidades hospi-
talares 4 clínicas psiquiátricas (dois nos núcleos masculinos
Ulysses Viana e Rodrigues Caldas e dois nos núcleos femininos
Teixeira Brandão e Franco da Rocha), bloco médico cirúrgico
(de clínicas especializadas), dois pavilhões de tisiologia (fe-
minino e masculino), a pupileira e o ambulatório de higiene
mental, situado fora da área física da Colônia, com endereço
na então Avenida Taquara. O ambulatório de higiene mental
da CJM tinha como objetivo o diagnóstico do paciente agu-
do e encarregava-se da triagem dos pacientes que entravam na
Colônia. Localizado fora dos terrenos da instituição, o ambu-
latório certamente produzia uma maior proximidade da assis-
tência psiquiátrica com os moradores das áreas vizinhas.
No que se refere aos recursos terapêuticos utilizados
ao longo da década de 1940, a Colônia mantinha como mé-
todo básico a praxiterapia, empregando também a convul-
soterapia (elétrica e química), o choque insulínico, o eletro-
narcose e a psicocirurgia. As atividades do trabalho tera-
pêutico eram, principalmente, lavoura (cereais e hortaliças),
pecuária e pequenas indústrias, destacando-se entre estas
as de artefatos de vime e de colchões, com cerca de 1.600
doentes, “classificados em trabalho”.39 Segundo o próprio
diretor da Colônia à época, Heitor Peres,

os esportes, os exercícios coletivos, as recreações modernas


como o rádio e o cinema, a música desenvolvida que se faz
dentro da terapêutica ocupacional, a musicoterapia ou melo-
terapia, o teatro, são ainda de grandes possibilidades humani-
zadoras, a leitura, bem dirigida e bem dosada, a biblioterapia
etc.40

mar. 1951. Biblioteca Nacional, Seção de Periódicos.


39
COLÔNIA JULIANO MOREIRA, 1951.
40
PÉRES, H. Praxiterapia integral. Boletim da Colônia Juliano Moreira,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 8/9, p. 6, mar./abr. 1949.

Política assitencial psiquiátrica • 73


Paralelamente ao trabalho, a praxiterapia era então re-
alizada por meio de atividades voltadas para o cinema, os
esportes (futebol, basquete, voleibol, peteca etc.), a rádio
(rede de autofalantes em toda a Colônia) e as artes apli-
cadas, inclusive a pintura, com a exposição em 1950 de
trabalhos de pacientes resultantes dessa atividade. Já em
1951, o Boletim da Colônia Juliano Moreira noticiava a
“Instalação Definitiva do Sistema de Amplificação Sonora e
Autofalantes da CJM”, afirmando que a rádio servia como
meio de fixação temporal e espacial dos pacientes, não os
deixando desambientados de seu tempo. Inicialmente pre-
visto para funcionar apenas em um pavilhão, o serviço de
rádio se estendia por toda a área da instituição, sendo con-
siderado como benéfico tanto para os doentes quanto para
os servidores e suas famílias.
Como já mencionado, além da população hospitalar,
vivia na Colônia considerável número de funcionários do
estabelecimento cujas famílias serviam à normalização do
convívio dos doentes, dando ao ambiente a vida de uma ver-
dadeira cidade. A própria instituição tinha um papel central
neste desenvolvimento. As reivindicações para construção
de novas casas para o tratamento hetero-familiar, de me-
lhoria das estradas internas da Colônia e do transporte para
seu acesso, que aparecem no relatório do SNDM de 1945,
refletem os anseios para a comunidade que se desenvolvia.
Soma-se a isso a criação pela Colônia de órgãos au-
xiliares destinados à assistência à sua população normal:
a Escola Primária Municipal e o posto de puericultura
Maria Solange Pinto destinados aos filhos dos servido-
res, a Cooperativa de Consumo, o Curso de Educação de
Adultos e o Clube Atlético da CJM. Desde 1946, a insti-
tuição criara também A Pequena Ação Social, entidade não
governamental, subvencionada pela prefeitura do Distrito
Federal e reconhecida como órgão de utilidade pública

74 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


a partir da proposta de projeto de autoria do vereador
Álvaro Dias, apresentada na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro. Sob os auspícios da direção da Colônia, a Pequena
Ação Social tinha por objetivos,

velar pelo bem-estar dos doentes internados na Colônia


Juliano Moreira; elaborar com a direção da Colônia o am-
paro e assistência aos referidos enfermos, seus filhos e
suas famílias; pugnar pela recuperação social e proteção ao
egresso da Colônia; associar-se a todos os movimentos ofi-
ciais ou particulares, que visem à reabilitação do psicopata,
em geral; cooperar no auxílio médico-social aos servidores
Colônia Juliano Moreira e suas famílias.41

A nova entidade era composta em sua maioria por


mulheres, muitas delas esposas dos médicos e psiquiatras
da instituição, reforçando a importância e valorização das
relações familiares na sociabilidade que conformava a his-
tória da Colônia: as famílias dos servidores para a assistên-
cia hetero-familiar e as dos próprios médicos para ajudar na
reinserção social do doente e na assistência aos funcionários
e seus familiares.
A vida da instituição expressava assim não apenas
uma política assistencial psiquiátrica, mas também a pro-
dução de toda uma rede de relações sociais, ancoradas na
família e na Igreja.

41
COLÔNIA JULIANO MOREIRA. Boletim da Colônia Juliano
Moreira, Rio de Janeiro, v. 9, p. 2, 1954.

Política assitencial psiquiátrica • 75


Figura 3 – Vida Religiosa – Aspecto da procissão de N.S. dos
Remédios na Colônia, uma das várias cerimônias deste tipo, que se
realizaram em 1954, em que compareceram as famílias
dos servidores-residentes, habitantes das proximidades e os
nossos hóspedes como se pode ver na foto.42

No que se refere à família, cumpre ainda destacar as


ações voltadas para os filhos dos funcionários da institui-
ção, como o Parque Infantil, inaugurado em 23 de dezem-
bro de 1954.

Sob uma tarde maravilhosa de verão, um magnífico espetácu-


lo vermos cerca de 1.000 crianças brincando álacres e felizes,
dando vida e alegria ao Parque. Com isso a colônia devolve
aos servidores – na felicidade de seus filhos – um pouco do
muito que eles dão à instituição e aos seus hóspedes.43

42
COLÔNIA JULIANO MOREIRA, jan./jun. 1954.
43
COLÔNIA JULIANO MOREIRA, jan./jun. 1954, p. 86.

76 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Conforme é relatado no Boletim da Colônia Juliano
Moreira, o Parque Infantil ficava situado junto ao Posto
de Puericultura e consistia numa praça com aparelhos es-
pecializados (gangorras, voadores, balanços, deslizadores
etc) cuja recreação era orientada por uma funcionária “para
tal designada, pois as finalidades do mesmo são recreati-
vas-educacionais, dentro das modernas técnicas dos play-
grounds”.44
A Igreja, por sua vez, incrementava os espaços cole-
tivos com a realização de cerimônias religiosas relatadas no
Boletim da Colônia Juliano Moreira de 1954 pelo novo cape-
lão: a novena da Imaculada Conceição, a primeira comunhão
dos alunos da Escola “Juliano Moreira”, assim como de alguns
“hóspedes”,45 as festas de Natal e Ano-Novo, a celebração de
missas no bloco médico-cirúrgico, nos pavilhões de tisiologia
masculino e feminino em um dos núcleos e, regularmente
aos domingos, na igreja Nossa Senhora dos Remédios.
Esse retrato da instituição no início da década de 1950
nos informa, portanto, que a implantação da Colônia vol-
tada para a assistência hetero-familiar produzia, juntamen-
te com as ações assistenciais propriamente ditas, toda uma
vida social na instituição que incluía outros atores sociais,
além dos pacientes e funcionários, os quais era também po-
pulação alvo dos objetivos da instituição.

Considerações finais

A assistência psiquiátrica prestada na Colônia Juliano


Moreira no período em questão corrobora análises já feitas

44
COLÔNIA JULIANO MOREIRA, jan./jun. 1954, p. 86.
45
Termo utilizado pelo capelão para designar os pacientes internados na
CJM e também presente notícia sobre a inauguração do parque infantil,
mencionada a seguir.

Política assitencial psiquiátrica • 77


sobre a prática de internamento nos asilos e manicômios,46
o abandono e a despersonalização a que os internos são sub-
metidos e a consequente perda dos vínculos sociais.47 No
caso da CJM, entretanto, a percepção que podemos ter des-
se processo de internamento e isolamento dos pacientes,
caminhou pari passu a dois outros movimentos que engen-
draram a instituição em questão.
O primeiro movimento foi o de constituição de uma
política assistencial psiquiátrica empenhada no planejamen-
to e implantação de diretrizes modernizadoras de organi-
zação do próprio Estado. Vale acrescentar que esta política
visava constranger o afluxo de pacientes de outros estados
para os grandes centros urbanos da região sudeste, em par-
ticular o Distrito Federal, o qual historicamente por muito
tempo, acolheu os então alienados de diferentes regiões do
país. O que estava em jogo era a possibilidade de gestão de
um acordo entre as unidades da federação, tendo-se em vis-
ta a implantação de uma política pública em âmbito nacional
e que considerasse as especificidades assistenciais regionais.
No planejamento dessa política para a área psiquiátrica, co-
locava-se a diferenciação entre o que, ao menos a partir de
então, seria considerado como distintivo para a execução da
assistência a ser prestada: de um lado os pacientes crônicos
e de outro os chamados agudos.
Na justificativa para as ações terapêuticas a serem
implantadas nas novas instituições e na ampliação daquelas
como a Colônia, encontramos menção as mais modernas
técnicas de tratamento: sejam as mais científicas, ancoradas
numa visão orgânica do paciente e balizada por estudos e
análise de casos clínicos (como os diferentes tipos de tra-

46
FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo:
Perspectiva, 1978; CUNHA, 1986.
47
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva,
1974.

78 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


tamento por choque); sejam as de cunho mais socializante,
como a praxiterapia, então caracterizadas como o cinema, a
rádio (sistema de alto-falantes), entre outras.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a implanta-
ção das novas políticas assistenciais psiquiátricas na Colônia
implicou de fato, em isolamento, acabou por desenvolver
também uma vida social envolvendo pacientes, moradores,
funcionários e suas famílias. Este segundo movimento foi
engendrado pelos tratamentos mais socializantes que, in-
dependente do êxito dos mesmos, acabaram por produzir
um ambiente que em certa medida diluía os sentidos de
isolamento e internamento próprios dos lugares asilares.
Constituía-se uma vida social em que os doentes eram cha-
mados de hóspedes, em que o lugar de cura dos enfermos e
de trabalho para os profissionais passava a ser também locus
de moradia dos funcionários, e onde diversos equipamen-
tos sociais – o clube, o cinema, o rádio por autofalantes,
a igreja, o parque infantil, a escola – eram providenciados
e mantidos pela instituição. A CJM passa assim a ter uma
outra função social que não apenas a do tratamento e da ex-
clusão social decorrente do internamento prolongado dos
pacientes e do afastamento geográfico do centro urbano;
ela passa, paradoxalmente, a reproduzir um núcleo urbano,
tomando como população alvo dessa empreitada as pessoas
consideradas comuns e sadias.

Política assitencial psiquiátrica • 79


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Política assitencial psiquiátrica • 81


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82 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


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Política assitencial psiquiátrica • 83


Capítulo 3

misticismo e doença mental


em xavier de oliveira

Artur Cesar Isaia1

Na primeira metade do século XX uma tendência


bastante clara passou a caracterizar a atuação dos médicos
psiquiatras brasileiros: ao mesmo tempo em que aprofun-
davam a tendência à medicalização da loucura, passaram
a arvorar-se legítimos intérpretes da realidade social. Por
um lado os psiquiatras aprofundaram uma produção cien-
tífica com explícitas interfaces com as ciências sociais, por
outro, passaram a credenciar a Psiquiatria como disciplina
capaz de uma intervenção preventiva na sociedade, auxi-
liando o estado no afã de construir uma sociedade sã e um
homem apto ao trabalho e à cidadania. Essa valorização
do médico psiquiatra fazia-se, ao mesmo tempo, com ten-
sões e acomodações. Tensões frente a outros profissionais
como os juristas, que conflitavam nesses propósitos e aco-
modações com os mesmos, acordando todos na necessi-

Professor associado, Universidade Federal de Santa Catarina,


1

Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História.

Misticismo e doença mental • 85


dade de extirpar a anormalidade e instaurar a tão almejada
norma no meio urbano. Engel2 mostra como médicos e
juristas, ao mesmo tempo em que disputavam a priorida-
de da disciplinarização da sociedade, partiam para alianças
estratégicas, quando o mais importante era livrar o espaço
urbano de indivíduos indesejáveis, internando o considera-
do delinquente no hospício e não na prisão.
Entre os médicos brasileiros que desenvolveram uma
obra reveladora de um olhar interventor e com interfaces
com as ciências sociais sobre os dramas urbanos e rurais bra-
sileiros, salienta-se o nome de Antônio Xavier de Oliveira.3
Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
esse cearense de Juazeiro preocupou-se com as manifes-
tações do que detectava como misticismo. Sua percepção
do que nomeia como fenômenos místicos está relacionada,
tanto com a formação médica por ele recebida, quanto com
sua condição de católico e com os preconceitos sociais que
impregnavam o discurso médico-psiquiátrico brasileiro da
época. Os místicos urbanos e rurais aparecem em sua obra
como evidências de um Brasil ainda não civilizado, de um
país que necessitava da intervenção da ciência médica a fim
de libertar-se do atraso, da superstição e de toda a sorte de
patologias físicas e mentais.

A periculosidade dos místicos

O olhar de Xavier de Oliveira sobre os fenômenos


místicos não pode ser analisado desconhecendo-se a forma-
ção por ele recebida na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. No primeiro quartel do século XX a influência do

2
ENGEL, M. G. Os delírios da razão. Médicos, loucos e hospícios (Rio de
Janeiro, 1830-1930). 1. ed. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, 2001. p. 98.
3
Até o presente momento não possuímos informações mais detalhadas
sobre a biografia de Xavier de Oliveira.

86 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


baiano Juliano Moreira se fez sentir na formação de toda
uma geração de médicos psiquiatras. Juliano Moreira trouxe
da Alemanha as análises de Emil Kraepelin. Fiel ao modelo
de Kraepelin, Juliano Moreira insistia em um trabalho clas-
sificador da doença mental, ao mesmo tempo em que bus-
cava relações entre as mesmas e as patologias físicas. Juliano
Moreira ao trazer o modelo de Kraepelin, longe estava de
reduzir a etiologia da doença mental a causas simplesmente
físicas. A partir do modelo alemão, Juliano Moreira batia-
se pela interação entre causas fisiológicas e psicológicas na
explicação e classificação dos considerados anormais. O
psiquiatra deveria, então, conhecer, tanto as especificidades
fisiológicas do paciente, quanto a dimensão moral e social
do mesmo. Especificidades fisiológicas e conhecimento de
todo um em torno sócio-cultural informariam ao psiquiatra
os dados fundamentais para o diagnóstico. Essa nova leitura
do doente e da doença mental possuía interfaces políticas
bem claras em uma sociedade de gritantes desigualdades
físicas e sociais. Fatores como raça e hereditariedade dei-
xavam de aparecer como o fundamento determinante da
doença mental e da chamada anormalidade. Ao contrário
do pessimismo racista, a contribuição de Juliano Moreira
mostrava a viabilidade do povo brasileiro, não condenado
ao atraso por suas especificidades genéticas. Ao contrário
do que afirmava Raimundo Nina Rodrigues não pairava no
Brasil uma anormalidade constitucional, nem a raça apre-
sentava-se como chave explicativa para o homem e a so-
ciedade. Comentando a obra de Juliano Moreira e Afrânio
Peixoto, escrevem Venâncio e Carvalhal:

não tínhamos com certeza o mesmo grau de civilização das


sociedades européias. Mas isso não devia significar que es-
taríamos atrelados a condições da ordem da natureza, irre-
versíveis, que nos tornassem irredutivelmente mais afeito

Misticismo e doença mental • 87


às doenças mentais do que outros povos. Bastaria inves-
tirmos na higiene e na educação da população brasileira, a
fim de alcançarmos os mesmos padrões civilizatórios: um
indivíduo com condições de vida higiênicas e profiláticas,
bem-educado, em nada ficaria a dever a seus pares euro-
peus, independente da raça a que pertencesse.4

Contudo, a contribuição de Juliano Moreira não


conseguiu apagar totalmente a presença da raça como im-
portante fator explicativo da doença mental na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Integrante de um círculo
próximo a Juliano de Moreira, o catedrático de Psiquiatria
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Henrique
Belford Roxo, ainda vai apresentar uma produção científica
na qual a raça aparecia, se não como fator determinante da
anormalidade, pelo menos com um peso ainda considerável.
Professor de Xavier de Oliveira, Roxo apresenta ainda os
ecos de uma visão racista. Para Roxo, os negros, se não apa-
recem como naturalmente predispostos a patologias físicas
e mentais, se não trazem a marca genética da degeneração,
aparecem como retardatários no processo de evolução men-
tal, física e cultural. Roxo remetia a condição negra, tanto
para inferioridade física quanto cultural. Herdando um cé-
rebro não desenvolvido, carecia aos negros, condições de
credenciarem-se à plena vivência da cidadania, presos às ori-
gens atávicas, às doenças oportunistas, a uma herança cul-
tural eivada de superstição e incultura. Para chegarem ao es-
tágio do branco seria necessário não apenas transformações
mesológicas, conducentes à extirpação do atraso cultural,
mas também transformações físicas, advindas da evolução:

4
VENANCIO, A. T. A.; CARVALHAL, L. A classificação psiquiátrica de
1910: ciência e civilização para a sociedade brasileira. In: JACÓ-VILELA,
A. M. et al. (Org.). Clio-Psyché. Fazeres e dizeres psi na história do Brasil.
1. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: FAPERJ, 2001. p. 154.

88 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Suponhamos, porém, que um negro, com esta má tara
hereditária, se transportasse para um centro adiantado e
com sua congênere viesse a ter descendência. Imaginemos,
demais, que esta fosse pouco a pouco progredindo e que
de pai a filho se fosse legando, cada vez mais um cérebro
exercitado, ativo. Dentro de um certo número de descen-
dentes, chegaria, finalmente um com o cérebro tão evoluí-
do quanto de um branco. Seria tão inteligente quanto este.
Vê-se que o meio é o agente por excelência. Vai aprimoran-
do pouco a pouco a raça e o indivíduo e consegue nivelar,
após progressão crescente, lenta e laboriosa, os extremos
da série.5

As ideias de inferioridade racial serão criticadas por


Xavier de Oliveira ao desenvolver estudos sobre a presen-
ça do misticismo no meio rural e urbano brasileiro. Nessas
ocasiões vai romper com a tradição de Nina Rodrigues, ain-
da claramente referenciada na explicação racial desses fenô-
menos. Um dos momentos mais explícitos dessa oposição
à Nina Rodrigues aparece na crítica que faz ao diagnóstico
deste sobre a morte de Antônio Conselheiro. Ao lado de re-
afirmar sua filiação às ideias de Kraepelin, Xavier de Oliveira
rechaçava a relação apresentada por Nina Rodrigues entre
misticismo e mestiçagem. Assim, criticava o diagnóstico
de Nina Rodrigues, para o qual o misticismo de Antonio
Conselheiro aparecia como delírio crônico de evolução siste-
mática, caracterizado pela involução contínua na capacidade
de perceber lucidamente a realidade, terminando por embar-
car em alucinações místicas, que o apartavam totalmente do
meio circundante. Xavier de Oliveira contestava totalmente
este diagnóstico, mostrando que o Conselheiro enquadra-

ROXO, H. B. Moléstias mentais e nervosas. Aulas professadas durante o


5

ano letivo de 1905 pelo dr. Henrique de Brito Belford Roxo. 1. ed. Rio de
Janeiro: [s.n.], 1906. p. 190.

Misticismo e doença mental • 89


va-se como um típico paranoico, na noção de Kraepelin. O
Conselheiro não era um alucinado, totalmente fora de reali-
dade. Ao contrário, seus delírios mantinham uma certa co-
erência, unidos em um contexto lógico, capaz de tornar ve-
rossímil sua pregação.6 Por outro lado, sua misticopatia não
encontrava fundamento, conforme queria Nina Rodrigues,
na sua condição de mestiço. Para corroborar esse posicio-
namento Xavier de Oliveira socorria-se de Jean Finot, que
havia negado estatuto de veracidade à raça como critério de
análise social.7 Xavier de Oliveira compara a descrição de
Finot sobre os chamados irmãos da boa morte, que chegam
ao suicídio coletivo na Rússia do final do século XIX, leva-
dos por um misticismo exacerbado, com a narrativa de Nina
Rodrigues sobre a Hecatombe de Pedra Bonita, ocorrida em
Pernambuco, na primeira metade do mesmo século e que,
igualmente, acabou em uma sucessão de mortes por suicí-
dio. Por outro lado, comparando o Conselheiro a Rasputin,
escreve Xavier de Oliveira:

se compararmos o que se passa nos sertões nordestinos,


habitados por mestiços, com o que sucede na Rússia dos
brancos eslavos, nenhuma diferença encontraremos. Não
há inverter os fatores de uma questão, que, em matéria de
Psiquiatria comparada, deve ter por termos a cultura, a ci-
vilização e o meio, e não a cor branca, preta ou parda da
pele dos indivíduos. Visto o Conselheiro, tal como no-lo
descreve o sábio mestre brasileiro,8 e vista a sua cultura e o
seu meio, comparemo-lo com Rasputin, a sua com a cultu-
ra e o meio onde agiu o monge russo, e nenhuma diferença
fundamental se pode notar num ou noutro, além da que,

6
KRAEPELIN, E. Introduction à la psychiatrie clinique. Paris: Vigot-
Frères, 1907. (1905).
7
FINOT, J. Le préjugé des races. 1.ed. Paris: Alcan, 1905.
8
Refere-se a Nina Rodrigues.

90 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


naturalmente, existia entre o arraial de Canudos e a corte
de São Petersburgo.9

A análise de Xavier de Oliveira sobre os fenômenos


místicos estava estribada no reconhecimento de uma opo-
sição abissal entre os últimos e a religião. O que chama de
misticismo aparecia em sua obra com um sentido restriti-
vo, de deturpação da vivência da religião. É mister que se
diga que o termo misticismo está intimamente relacionado
à possibilidade de uma união direta entre o homem e a
divindade. Nesse sentido, começou a ser usado a partir do
século V por Dionísio, o Aeropagita, tendo o neoplato-
nismo como ponto de referência básico. No sentido em
que o cristianismo entendeu o termo, o mesmo opõe-se
totalmente a ideias ocultistas, ou com práticas mágicas,
que refletem um diferente uso do termo.10 Em Xavier de
Oliveira, o termo foi usado sempre com o sentido de uma
busca do transcendente, da divindade, totalmente fora da
igreja,11 da sua hierarquia, do seu magistério. Nesta acep-
ção, o termo místico refere-se em sua obra, tanto a um ser
carente da verdade ensinada pela igreja, quanto a um dese-
quilibrado, portador de um primitivismo mental, passível
de tratamento adequado. Incluía-se nesta categoria, tan-
to os profetas que estudou no Pavilhão da Assistência aos
Psicopatas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
ou os beatos do sertão nordestino, os quais biografou.
Católico convicto (uma de suas obras é dedicada à me-
mória de Jackson de Figueiredo), Xavier de Oliveira via

9
XAVIER DE OLIVEIRA. Espiritismo e loucura. 1. ed. [S.l.]: GEEM,
1930. p. 50.
10
ABBABNANO, N. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000; GRENA, S. J. et al. Dicionário de teologia. São Paulo: Vida,
2000.
11
O IV Concílio de Latrão, no século XIII firmou o ensinamento agosti-
niano sobre a impossibilidade de salvação fora da igreja.

Misticismo e doença mental • 91


o sucesso dos místicos e do misticismo no Brasil direta-
mente vinculado à situação de miserabilidade e incultu-
ra do povo brasileiro. A essa situação somava-se a pouca
presença do estado no esforço civilizador das populações.
Notadamente no nordeste brasileiro, a ausência do estado
contrastava, na sua visão, com a presença da igreja católica.
A igreja aparecia como instituição, cujo trabalho civiliza-
dor deveria ser seguido pelo estado brasileiro:

A Igreja brasileira, em todos os tempos há trazido um


grande contingente de benefícios à nossa civilização. Seja
nas selvas, aos indígenas dos ínvios sertões brasileiros,
naquelas paragens onde, a não ser o missionário evange-
lizador, só chegam a coragem indômita e o patriotismo
ardente de Cândido Rondon; seja na zona rural do Brasil,
semi-civilizada e semi-bárbara ainda, lá vai ela, carinho-
sa e audaz na sua nobre missão evangelizadora, levar um
pouco de luz ao espírito rude da humilde e boa gente
sertaneja. Sejamos coerentes: no Nordeste, ainda foi a
Igreja que chegou primeiro, precedendo do Estado. Na
região dos tormentos já ela ergueu, corajosa as fortalezas
da fé, nos pontos estratégicos do campo a conquistar [...]
Cumpre, pois, que os governos, ao menos, secundem a
ação do clero, neste de ponto de vista. E com os elemen-
tos deste, que lá estão espalhados por toda parte, fundem
Colégios, para instrução secundária dos moços, e Escolas
Normais oficializadas, onde a mulher sertaneja se pos-
sa habilitar para exercer com proveito a nobre missão de
dar a instrução e educação primárias à infância desvalida e
desprezada daquelas regiões.12

12
XAVIER DE OLIVEIRA. Beatos e cangaceiros. História real, observação
pessoal e impressão psicológica de alguns dos mais célebres cangaceiros
do Nordeste. 1. ed. Rio de Janeiro: [s.n.], 1920. p. 20.

92 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


A impossibilidade de a igreja atuar mais efetivamente,
somada ao descaso do estado estava para Xavier de Oliveira
na raiz social do problema da proliferação do misticismo e
dos místicos:

Lá onde a justiça e a Lei primam pela ausência, quando falta


a Igreja verdadeira, começa o perigo. À falta desta, certa-
mente, é que o Conselheiro edificou a sua em Canudos.
Tipo de fanático, astucioso e audaz, revoltado e egoísta,
delirante e paranóico, formou sectários. No sertão nada
mais natural. Esses fanáticos são, comumente, do mesmo
nível intelectual e moral que o povo, em geral, e, por isso,
as suas idéias e as usas palavras estão ao alcance de todos.
Ademais, a sua vida simples, de fingida humildade, a en-
cobrir o seu egoísmo doentio; as aparentes penitências
que fingem fazer, a bondade calculada com que procuram
reviver a vida do Cristo, que todos conhecem através da
bíblia, tudo isso impressiona as multidões de uma maneira
estonteante. Um “milagre”, quase sempre a cura de uma
histérica, é o selo de santidade do psicopata.13

Tanto Antônio Conselheiro quanto os beatos nor-


destinos e os místicos urbanos que estudou eram portado-
res, para Xavier de Oliveira, da chamada misticopatia. Esta
seria caracterizada como uma psicose de feitio religioso e
de caráter claramente contagioso quando desenvolvidas em
um caldo de cultura próprio, como o sertão nordestino. As
misticopatias não são, para Xavier de Oliveira, caracteriza-
das simplesmente como loucuras religiosas. Como católico
convicto, o autor não aceitava que a vivência da verdadeira
religião pudesse levar à patologia. Encarando a religião ca-
tólica como portadora da verdade, esta não poderia levar

13
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 62.

Misticismo e doença mental • 93


ao erro e à doença. Havia, isto sim, vivências mórbidas da
religião, em tudo opostas à verdade revelada e à tradição da
igreja:

Se não há uma loucura religiosa, sintomatologicamente


individualizada, na patologia mental, existem, entretanto,
psicoses de feitio religioso, que se podem generalizar como
uma verdadeira epidemia em certas coletividades, muitas
vezes, acarretando, nesses casos, as mais funestas conse-
quências.14

As epidemias místicas deveriam levar à ações preven-


tivas do estado, capitaneadas, obviamente, pela autoridade
médica, nunca à pura e simples repressão:

É um crime pretender dominar pelas armas, indivíduos


ou coletividades atacados dessas modalidades clínicas da
Psiquiatria; devem ser tratados como doentes, que são,
e, uma vez comprovado o seu mal, o quanto antes, in-
ternados num Asilo-Colônia de Alienados, onde fiquem
em tratamento e em segurança, para o seu próprio bem,
para resguardo da sociedade, e, até, pra tranquilidade
dos governos.15

Afrânio Peixoto (a quem Xavier de Oliveira dedica


Beatos e Cangaceiros) tinha a mesma opinião. Na introdução
do seu romance Maria Bonita, refere-se a um personagem,
um velho de longas barbas brancas, um santão do sertão, nas
suas palavras, que à maneira de Antônio Conselheiro e Padre
Cícero, contagiava as multidões de todo o Brasil, levando-as
ao fanatismo coletivo. Ao contestar o diagnóstico de Nina
Rodrigues sobre o Conselheiro, Afrânio Peixoto reafirma-
14
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 185.
15
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930.

94 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


va a necessidade de combater essas manifestações, não pela
repressão, mas pela educação e condução das populações in-
cultas. Nesse trabalho educador e condutor, logicamente, a
medicina credenciava-se como elemento de proa:

Talvez o diagnóstico de loucura que lhe fez Nina Rodrigues,


ou de crime, a que aludiu Euclides da Cunha, seja indevido
e injusto, salvo transpondo os termos: loucos e criminosos
serão aqueles, representantes de uma civilização incapaz,
que não souberam ou não puderam esclarecer e governar
essas rudes massas populares, largadas pela ignorância a
todos os impulsos, e no momento do perigo destroem,
brutalmente, o que não conseguiram educar e conduzir,
quando não transigem, vergonhosamente à força maior
deles. Canudos e Juazeiro são as duas soluções, que ambas
depõem contra nós.16

Na sua análise dos casos de misticopatias, Xavier de


Oliveira permanece fiel ao modelo classificatório propos-
to por Juliano Moreira. Este, a partir de Kraepelin, buscava
classificar os doentes mentais, chegando mesmo ao consi-
derado inclassificável pela ciência médica do século XIX: os
anormais. Para Portocarrerro,17 a concepção de anormalida-
de como psicopatologia é a grande novidade da Psiquiatria
do século XX, manifestando-se o comportamento anormal
nas chamadas personalidades psicopáticas, incluídos nesta
categoria os criminosos, instáveis, querelantes. Os mistico-
patas estudados por Xavier de Oliveira, enquadravam-se
totalmente na noção de anormalidade enquanto psicopa-
tologia. A partir do seu diagnóstico, só restava aos misti-

16
PEIXOTO, Afrânio. Maria Bonita. 1. ed. [S.l: s.n.], 1914.
17
PORTOCARRERO, V. Arquivos da loucura. Juliano Moreira e a des-
continuidade histórica da Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora da
Fiocruz, 2002. p. 39.

Misticismo e doença mental • 95


copatas submeterem-se à autoridade do médico, capaz de
submetê-los à disciplina. Daí o porquê do autor justificar a
internação dos mesmos, invocando o resguardo da sociedade
e a tranquilidade dos governos. É interessante que a análise
de Xavier de Oliveira sobre as misticopatias, se contestava
as teses de Nina Rodrigues, coincidia com as mesmas em
um ponto: no reconhecimento da periculosidade e no reco-
nhecimento do caráter subversor dos místicos. Os mesmos
eram encarados como anormais, portadores de um com-
portamento antissocial e extremamente contagioso quan-
do tinham como cenário um meio sócio-cultural atrasado.
Faziam parte de todo um repertório de reivindicadores,
querelantes, que infestavam o meio rural e urbano brasilei-
ro. Esses reivindicadores apresentavam um comportamen-
to com explícitas interfaces com a negação da república e
da cidadania. Os misticopatas apresentavam, para Xavier
de Oliveira, delírios no qual imaginavam, interpretavam e
reivindicavam. Imaginavam coisas relacionadas à religião,
ao sobrenatural, interpretavam a seu modo, portanto, he-
terodoxamente, os ensinamentos religiosos que receberam
e reivindicavam um lugar proeminente para o divino numa
ordem política a ser constituída, já que a atual era julgada
oposta à vontade de Deus. Nina Rodrigues, anteriormente,
já admitia um comportamento político totalmente anti-re-
publicano em Antônio Conselheiro e seus seguidores. Com
isso, Nina Rodrigues propunha uma explicação do com-
portamento dos povos considerados primitivos baseado
no estágio de evolução mental apresentado pelos mesmos.
Endossava uma linearidade universal entre o primitivo e o
civilizado, no qual o primeiro movia-se por um horizon-
te intelectual claramente apartado dos códigos lógicos que
norteavam os últimos. Daí por que Nina Rodrigues referir-
se aos alienados como primitivos institucionalizados e ante-
cipar, para Marisa Correa, o conceito de mentalidade pré-

96 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


lógica de Levy-Bruhl.18 A Vendéia brasileira que Euclides da
Cunha propalava no início de sua cobertura jornalística a
Canudos coincidia com a narrativa de Nina Rodrigues. Para
ele as provas da psicose progressiva de Antônio Conselheiro
tornavam-se mais consistentes à medida que as terras sob
a sua autoridade passavam a representar a alternativa mo-
nárquica à república que condenava. As leis eram as da mo-
narquia, a moeda aceita somente a que ostentasse a esfinge
de D. Pedro II, o povo era incitado contra o pagamento de
impostos ao governo republicano e não reconhecia validade
nos atos de um estado que julgava opressor e usurpador do
poder religioso. Todas essas evidências corroboravam o pri-
mitivismo mental do Conselheiro e seus seguidores:

Para acreditar que pudesse ser outro o sentimento político do


sertanejo, era preciso negar a evolução política e admitir que
os povos mais atrasados e incultos podem, sem maior pre-
paro, compreender, aceitar e praticar as formas de governos
mais liberais e complicadas. A população sertaneja é e será
monarquista por muito tempo, porque no estágio inferior da
evolução social em que se acha, falece-lhe a precisa capacidade
mental para compreender e aceitar a substituição do repre-
sentante concreto do poder pela abstração que ele encarna,
– pela lei. Ela carece instintivamente de um rei, de um chefe,
de um homem que a dirija, que a conduza, e por muito tempo
ainda o presidente da República, os presidentes dos Estados,
os chefes políticos locais serão o seu rei, como, na sua inferio-
ridade religiosa, o sacerdote e as imagens continuam a ser os
seus deuses. Serão monarquistas como são fetichistas, menos
por ignorância, do que por um desenvolvimento intelectual,
ético e religioso, insuficiente ou incompleto.19

18
CORREA, M. As ilusões da liberdade. A escola de Nina Rodrigues e a
antropologia no Brasil. 1. ed. Bragança Paulista: Edusf, 1998.
19
NINA RODRIGUES, R. A loucura epidêmica de Canudos. Antônio

Misticismo e doença mental • 97


Por outro lado, no relato de Nina Rodrigues sobre
a Hecatombe da Pedra Bonita, referenciado por Xavier de
Oliveira, aparece a figura de João Santos, que consegue le-
var a população de Flores, situada no centro de Pernambuco
a cultuá-lo como rei. O rei João Santos pregava que naquele
lugar existia um país encantado, fabulosamente rico, onde
um outro rei, d. Sebastião, viria trazendo fortuna e felicida-
de aos seus seguidores: “os negros e os mestiços se torna-
riam brancos, os velhos rejuvenesceriam, os pobres ficariam
imediatamente milionários poderosos e imortais”.20
Os ecos do posicionamento de Nina Rodrigues apa-
recem, sem dúvida, em Xavier de Oliveira, ao coincidirem
ambos quanto à periculosidade e subversão dos místicos
frente às instituições republicanas. Os místicos aparecem,
não apenas como à margem da civilização, como em íntima
conexão com o crime. Assim, o autor via um círculo vicio-
so, que unia o jagunço de Canudos ao romeiro de Juazeiro
em uma comum galeria terrorista. Na introdução de Beatos
e Cangaceiros, escrevia Xavier de Oliveira, fazendo menção
a duas figuras emblemáticas deste círculo vicioso, marcado
pela ausência de civilização e descaso do estado: Pedro Pilé
e o Beato Vicente.

desde a figura macabra de Pedro Pilé, o jagunço baiano que


defendeu, do princípio ao fim, o reduto do Conselheiro,
seu Bom Jesus de Canudos, até a individualidade, essen-
cialmente fanática do Beato Vicente, o pernambucano de
origem holandesa, que, de quando o conheço, só deixou
o machado de lenhador, para pegar no bacamarte boca de
sino, com que defendeu heroicamente o lugar santo de seu
“padrinho” Cícero de “sua Mãe das Dores! Sem o querer,

Conselheiro e os Jagunços. In: RAMOS, A. (Org.). As coletividades


Anormais. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939. p. 70.
20
NINA RODRIGUES, 1939 apud XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 55.

98 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


caí num círculo vicioso: vim do jagunço de Canudos ao
romeiro de Juazeiro. Mas, é nesses dois extremos que se
acha a galeria terrorista, que me proponho movimentar.21

Os delirantes do sertão nordestino não esgotavam,


para Xavier de Oliveira, as possibilidades de desenvol-
vimento das chamadas misticopatias. Ele relata casos de
pacientes diagnosticados como misticopatas, entrados na
Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro (Instituto Teixeira Brandão). O que diferia de um
caso a outro era o meio social, capaz, o sertão, de represen-
tar o caldo de cultura ideal para a contaminação da patolo-
gia e a cidade, de dificultar a ação contagiosa dos místicos.
Assim, comparando o Conselheiro com Teófilo Conceição,
um interno que se dizia amante de Deus e profeta de Santo
Inácio, escreve:

Estou que o Conselheiro não lhe levaria vantagem ponde-


rável como fanatizador de gente inculta, crédula e belicosa
dos sertões. E assim, bem se compreende o perigo de uma
incursão sua àqueles lugares de onde veio e para onde, aca-
so, volte... Atualmente, seu campo de ação é o subúrbio de
Inhaúma, a cujo cemitério chama “Vale de Josafá, Terra da
Promissão” para onde hão de vir todos os povos do mundo
a escutar a palavra de Deus por sua voz.22

Na descrição que fez de Teófilo Conceição e sua se-


guidora, a italiana Cecília Paniche, tida como profetisa e
capaz de manter contato direto com Santo Inácio, Xavier
de Oliveira mostrava o colorido monárquico dos delírios à
dois por eles revelados. Por intermédio de Cecília Paniche,

21
XAVIER DE OLIVEIRA. O magnicida Manço de Paiva. Rio de Janeiro:
Benedito de Souza, 1928. p. 14.
22
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 105.

Misticismo e doença mental • 99


Santo Inácio teria previsto o assassinato do rei D. Carlos de
Portugal, tendo, inclusive a profetisa escrito à rainha dona
Amélia, relatando o aviso.23 Por outro lado, na descrição
do comportamento de outro interno, Laureano Ojeda, o
Profeta da Gávea, Xavier de Oliveira relata que o mesmo
dizia-se pertencer a uma família privilegiada com contatos
com a divindade. Seus irmãos, já falecidos estariam, atual-
mente, na corte celeste, à sua espera.24
Os místicos figuravam, para Xavier de Oliveira, en-
tre os reivindicadores que poderiam chegar aos compor-
tamentos mais radicais e antissociais, podendo suas ideias
fixas de missão, eleição, contato com o sobrenatural, trans-
formá-los em lideranças perniciosas, difusoras da doença
mental. Imersos em uma estrutura de pensamento primiti-
va (a aproximação com Nina Rodrigues é evidente, apesar
da contestação a suas teses), Xavier de Oliveira associava
sempre a presença da monarquia nos delírios megaloma-
níacos dos místicos. Assim, sempre haveria uma tendência
a aparecer delírios com associações monárquicas, girando
em torno, não só de reis, rainhas, como de símbolos reais,
como coroas, cetros. Xavier de Oliveira cita como exemplo
de magnicidas místicos, Aimée-Cecile Renault, acusada de
conspirar contra a vida de Robespierre e o monge Jacques
Clément, assassino de Henrique III. A primeira, apresen-
tada como uma fanática, capaz de expor sua vida pela vol-
ta da monarquia e o segundo, como um regicida, mas que,
apesar disso, apresentava visões noturnas reveladoras de
delírios de colorido explicitamente monárquicos. Nessas
visões, um anjo lhe apresentava uma clava, prometendo-lhe
atributos reais em troca da morte do rei: “pensa, pois em
ti, como te irá bem a coroa do martírio que te está sendo

23
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 109.
24
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 164.

100 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


preparada”.25 Como em todos os reivindicadores místicos,
Xavier de Oliveira identifica nos atos de Jacques Clément
um conteúdo claramente avesso à noção de cidadania repu-
blicana: “há sempre uma aproximação entre os místicos e os
monarquistas”.26
Na atualidade, o médico via persistir o caráter pa-
tológico e primitivo desses “reivindicadores místicos”, no
espiritismo, “visto como uma nova epidemia de loucura re-
ligiosa, igual a tantas outras que a tem castigado em épocas
diversas de sua evolução, e no só domínio do sentimento
religioso”. O mesmo primitivismo mental dos sertanejos, a
mesma periculosidade social, o mesmo caráter contagioso
a exigir uma pronta ação do estado. O sucesso do espiritis-
mo no século XX é visto como prova da sobrevivência, da
“mesma mentalidade do totem e do tabu”.27
O olhar de Xavier de Oliveira é típico de uma nova fase
da Psiquiatria, voltada para a classificação social e ação pre-
ventiva frente aos considerados perigosos. Esquadrinhando
a população, a Psiquiatria classificava, não só o desvio da
norma, como passava a prever o próprio comportamento
anormal. A obra de Xavier de Oliveira integra, com a de
outros psiquiatras do período, uma tendência ao alarga-
mento na ação da Psiquiatria, que passa a ocupar-se com a
medicalização da sociedade como um todo. Nesse sentido,
é importante atentarmos para medidas como a criação da
Liga Brasileira de Higiene Mental, com funções claramente
preventivas e interventoras. Assim, ao denunciar os místi-
cos e detectar a misticopatia, ao avaliar a periculosidade e o
caráter subversor dos mesmos, Xavier de Oliveira cumpria
as funções interventoras e preventivas, com as quais se ar-
mou a Psiquiatria a serviço da disciplina.

25
XAVIER DE OLIVEIRA, 1928, p. 70.
26
XAVIER DE OLIVEIRA, 1928, p. 66.
27
XAVIER DE OLIVEIRA, 1930, p. 12.

Misticismo e doença mental • 101


referências

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(Rio de Janeiro, 1830-1930). 1. ed. Rio de Janeiro: Editora da Fio-
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102 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


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XAVIER DE OLIVEIRA. O magnicida Manço de Paiva. Rio de Ja-


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Misticismo e doença mental • 103


Capítulo 4

a loucura sob um outro olhar:


reorganização dos serviços de
atendimento em saúde mental
(uberlândia-mg, 1984-2005)

Maria Clara Tomaz Machado1


Riciele Majori Reis Pombo2

Pedaços

Meu primeiro pedaço


que ficou para trás e esvanece
na memória que tento recordar.
Olho em mim e sinto saudade dele,
entretanto consegui prosseguir
minha caminhada,
sentindo sua falta,
remendando o que restou,

1
Doutora em História Social, professora do Instituto de História da
Universidade Federal de Uberlândia e do Programa de Pós-Graduação de
História da Universidade Federal de Uberlândia.
2
Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Uberlândia.

A loucura sob um outro olhar • 105


achando-me feliz e
dando-me por satisfeita.
Havia muitos pedaços intactos.
O tempo se alonga, se arrasta e
brinca de esconder com a gente e
nossas delongas e arrastar do tempo
fui desfalecendo como se
feita de barro mal amassado e
não cozido.
Perdendo pedaços, buscando-os e
muitas vezes sem achá-los,
sem conseguir saber os porquês
de tantas perdas continuo
andando sem rumo, sem vontade,
sem certeza,
com medo... perdendo pedaços3

Quando pensamos na experiência da loucura, uma das


primeiras imagens que surgem em nosso imaginário é a de
instituições superlotadas, de cor cinza, que transmitem uma
morbidade estanque, congelada no tempo e no espaço, e as
pessoas que ali encontramos são partícipes de um enredo
de miséria, solidão e descaso. Outra imagem recorrente é
a loucura poética, com personagens pertencentes ao outro
mundo, ao outro lado do espelho, com o dom de revelar se-
gredos do aqui e do além.4

3
VALÉRIA, A. Pedaços. Notícias do Caps, Informativo do Centro de
Atenção Psicossocial do Distrito Sanitário Sul, Uberlândia, n. 4, p. 1,
jan./mar. 2004.
4
Sobre a História da loucura conferir: COSTA, J. F. História da Psiquiatria
no Brasil: um corte ideológico. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Xenon,
1989; FOUCAULT, M. A história da loucura na idade clássica. 6. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1999; FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991; FOUCAULT, M. Nascimento da
clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003; FOUCAULT, M. Os
anormais: Curso do Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins

106 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Entretanto, esta realidade modificou-se desde os úl-
timos anos da década de 1980 no país e, de forma gradual,
permitiu a milhares de pessoas que sofrem do adoecer psí-
quico saírem da lógica de eternas internações em hospitais
psiquiátricos sombrios, com a possibidade de receber tra-
tamento em outros moldes, de forma mais humanizada e
complexa.
Partindo deste marco, este trabalho discute e apre-
senta alguns pressupostos fundamentais que modificaram
o tratamento médico da loucura, principalmente a partir de
reinvindicações do movimento de reforma psiquiátrica. Tal
situação, apoiada em outros paradigmas, propunha rom-
per as grades que enclausuravam o louco, possibilitando
sua convivência com a família e outros grupos sociais. Essa
foi uma luta política travada no âmbito da saúde pública,
cujos sujeitos sociais (médicos, psicólogos, psiquiatras, as-
sistentes sociais, entre outros) se envolveram em debates,
congressos e exposição pública por mais de duas décadas,
enfrentando conflitos, incompreensão e críticas. Neste
contexto, pretende-se analisar quais foram os aspectos que
compuseram esta nova realidade e quais os principais entra-
ves e deficiências para sua implementação.
Este texto parte de um trabalho interdisciplinar, con-
tudo, respeita os limites de cada campo do saber e propõe
o diálogo com disciplinas como a Psiquiatria, a Psicologia,
a Assistência Social, que contribuem de forma profícua não
só ao debate, como também à articulação do movimento de
reforma psiquiátrica no país. A intenção é que o viés histo-
riográfico apresente um novo olhar sobre a temática, por

Fontes, 2001; MACHADO, R. Danação da norma. Rio de Janeiro: Graal,


1978; PORTER, R. Uma história social da loucura. Rio de Janeiro: Zahar,
1991; PEREIRA, J. F. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1993;
PESSOTTI, I. A loucura e as épocas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34,
1995.

A loucura sob um outro olhar • 107


meio de pressupostos teóricos diferenciados que permitam
desvelar aspectos complexos desta trama, colaborando, as-
sim, com a discussão de outros campos de saber.
As análises referentes ao processo de desarticulação
do sistema asilar no país, que apresentam os avanços logra-
dos pelo movimento de reforma psiquiátrica são, em grande
parte, elaboradas por profissionais de saúde ou militantes
deste movimento, sujeitos intimamente envolvidos nesta
trama. A meta é que este trabalho traga à tona novas inda-
gações e suscite debates, ao se revelar os meandros dessa
luta social. De antemão, vale a pena ressaltar que a defesa de
um projeto parte dos interesses de um determinado grupo
social, que demarca sua participação na realidade em que
vive, constituindo-se enquanto sujeito histórico.
Para compor o cenário e o roteiro desta trama social,
a pesquisa travou um diálogo com os vários sujeitos sociais
que participaram ou participam ativamente do processo de
reforma psiquiátrica, que trabalham com saúde pública, pri-
vilegiando recortes analíticos diferenciados para a compre-
ensão das várias teias de relações estabelecidas neste pro-
cesso, desvendando os diversos aspectos sociais, políticos e
culturais nele envolvidos.
A articulação e as conquistas alcançadas pelo movi-
mento de reforma psiquiátrica permitiram modificar, de
forma significativa, o cotidiano de pessoas com sofrimento
psíquico. Atualmente, estes sujeitos em todo o país têm a
possibilidade de realizar diversas atividades de forma mais
autônoma, concomitante ao tratamento recebido em ins-
tituições na modalidade de serviços substitutivos de saúde
mental.5 Este fato transpõe a lógica manicomial que con-

5
Os serviços substitutivos oferecem atendimento em saúde mental a partir
de parâmetros de abordagem que comportam equipes com profissionais
diversos, como por exemplo: psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais,
enfermeiros, terapeutas ocupacionais, entre outros, desenvolvendo práti-

108 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


denava seus pacientes a uma vida de isolamento e anulava
qualquer possibilidade de cura e retorno às suas atividades.
O psiquiatra argentino Alfredo Moffatt descreve, em linhas
gerais, em quais condições se vivia, geralmente, em um ma-
nicômio:

uma vez que se deve permanecer aí durante vinte e quatro


horas por dia, ou seja, por não existir um tempo a ser vivido
fora do hospício, todo o seu ambiente tem um peso psico-
lógico enorme pois não há mudança, são sempre os mesmos
lugares, os mesmos detalhes; com o passar dos anos chega-
se a conhecer cada cantinho desse túmulo de vivos.6

Os vários asilos implementados tinham, entre seus


principais objetivos, esquadrinhar e excluir do espaço ur-
bano sujeitos que atentassem à ordem social, atendendo
a interesses diversos da sociedade – entre eles, afastar os
sujeitos que perpetrassem contra a ordem, ou mesmo que
não se adaptassem às exigências do sistema de produção –,
escamoteando mazelas sociais para a manutenção da ordem
vigente. Como demonstra Luz:

a preocupação com a loucura é maior do que com o lou-


co. Ao louco, com o hospício, atribui-se um status, uma
identidade institucional. À ordem, subtrai-se o problema
de discutir a loucura, sua origem. Subtrai-se, portanto, à
sociedade, a discussão das condições sociais do distúrbio
psíquico.7

cas terapêuticas diferenciadas e utilizando o recurso da internação psiqui-


átrica como última alternativa para o tratamento do sofrimento psíquico.
6
MOFFATT, A. Psicoterapia do oprimido: ideologia e técnica da Psiquiatria
popular. São Paulo: Cortez, 1983. p. 20.
7
LUZ, M. T. A história de uma marginalização: a política oficial de saúde
mental. In: AMARANTE, P. D. de C. (Org.). Psiquiatria social e reforma
psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994. p. 92.

A loucura sob um outro olhar • 109


Entretanto, este processo foi permeado por avanços
e inovações em suas práticas enclausuradoras, quase sem-
pre sofisticando a forma de abordagem, o que legitimou o
nascente saber médico psiquiátrico. Os primeiros grandes
manicômios foram implementados pelo Estado como, por
exemplo, o Asilo Juquery8 criado em 1898 em São Paulo,
um dos baluartes do tratamento psiquiátrico no Brasil.
Vários trabalhos historiográficos analisaram a proposta
destas primeiras instituições psiquiátricas, que refletiam di-
versos aspectos do imaginário social desta doença. O que se
observa é que diversos padrões de normalidade da sociedade
da época eram levados em consideração para a realização de
diagnósticos nestas instituições.9

8
Cf.: PEREIRA, L. M. de F. Os primeiros sessenta anos de Terapêutica
Psiquiátrica no Estado de São Paulo. In: ANTUNES, E. H.; BARBOSA,
L. H. S.; PEREIRA, L. M. de F. (Org.). Psiquiatria, loucura e arte.
Fragmentos da história brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2002. p. 33-53.
9
Entre os trabalhos historiográficos que contribuem para desvelar os me-
andros que envolviam o estigma da loucura no país merecem destaque:
BOFF, A. B. Espiritismo, alienismo e medicina: ciência ou fé? Os sabe-
res publicados na imprensa gaúcha da década de 20. 2001. Dissertação
(Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001; CUNHA, M.
C. P. O espelho do mundo: Juqueri, a história de um asilo. 2. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1998; CUNHA, M. C. P. Cidadelas da ordem. São
Paulo: Brasiliense, 1990; POMBO, R. M. R. A loucura sob novo pris-
ma: políticas de Saúde Pública em Uberlândia. Implantação dos CAPS.
(1983-2004). 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2005;
POMBO, R. M. R. A nova política de saúde mental: entre o precipí-
cio e paredes sem muros. (Uberlândia 1984-2006). 2007. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2007; POMBO, R. M.
R. História e loucura: práticas e terapêuticas do Sanatório Espírita de
Uberlândia. (1940-1970). Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia,
n. 33, p. 292-300, 2005; RIBEIRO, R. A. Almas enclausuradas: práti-
cas de intervenção médica, representações culturais e o cotidiano do
Sanatório Espírita de Uberlândia. (1932-1970). 2006. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2006; SANTOS,

110 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Todavia, desde o final da década de 1970, sob a égide
do governo militar, várias foram as denúncias contra os qua-
dros de negligência, falta de cuidados terapêuticos e super-
lotação de diversos manicômios em todo o país, feitas por
diversos profissionais de saúde, com o intuito de reivindicar
mudanças na estrutura asilar do país, além de denunciar o
descaso aos quais os pacientes psiquiátricos eram mantidos
em manicômios – públicos e privados. Ao questionar e re-
pudiar essas formas de abordagem e gestão, colocava-se em
xeque a eficácia de seu tratamento, criticando vários pressu-
postos do saber psiquiátrico e, consequentemente, de suas
práticas terapêuticas.
O movimento de reforma psiquiátrica brasileiro foi
influenciado por diversas experiências desenvolvidas em
outros países,10 que pautavam suas discussões na crítica ao
modelo manicomial e apresentavam, em seu cerne, o ques-
tionamento de práticas psiquiátricas tradicionais caracte-
rizadas pela extrema violência física e simbólica, as quais
cerceavam seus pacientes de qualquer possibilidade de cura.
Tal espaço institucional era essencialmente marcado pela
impossibilidade de qualquer tipo de manifestação, não se
preocupando em promover a melhora do quadro clínico de

N. M. W. A tênue fronteira entre a saúde e a doença mental: um estudo de


casos psiquiátricos à luz da nova História Cultural (1937-1950). 2000.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2000; WADI, Y. M. Palácio para guardar doidos. Uma história das lutas
pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.
10
O movimento de reforma psiquiátrica brasileiro foi muito influenciado
pelas experiências de Psiquiatria comunitária implementadas na Itália
por Franco Basaglia, que apresentava um viés progressista e que entre
suas propostas inscreviam-se a (co) participação da sociedade no pro-
cesso de cura de pacientes psiquiátricos. Sobre esta experiência confe-
rir: BASAGLIA, F. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985;
BASAGLIA, F. A Psiquiatria alternativa. Contra o pessimismo da razão,
o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979.

A loucura sob um outro olhar • 111


seus pacientes, baseando-se, antes de tudo, no isolamento
que rechaçava qualquer possibilidade de inclusão social.
Concomitante às diversas críticas ao sistema manico-
mial, estes movimentos apresentavam em comum a elabo-
ração e a implementação de novas formas de abordagem do
adoecer psíquico que atentassem ao respeito, à diversidade
e à subjetividade de pacientes psiquiátricos. Várias foram as
propostas e experiências desenvolvidas por movimentos de
reforma psiquiátrica em diversos países, como destaca Luz:

A partir da Segunda Guerra Mundial, surgem também


variadas experiências de reformas psiquiátricas, dentre as
quais destacam-se as comunidades terapêuticas, de psico-
terapia institucional, de Psiquiatria de setor, de Psiquiatria
preventiva e comunitária, de anti-Psiquiatria, de Psiquiatria
democrática, para ficar apenas nas mais importantes.11

Estas propostas se amparavam em uma abordagem


voltada ao aspecto social, incentivando a participação e en-
volvimento da comunidade no processo de cura, e a des-
construção de aspectos negativos ligados à experiência da
loucura. Este tipo de prática também criticava o modelo
social excludente, e inseria nesta discussão a defesa da cida-
dania e da autonomia deste grupo, considerando-os como
sujeitos políticos e participativos.
O movimento de reforma psiquiátrica brasileira, in-
fluenciado por estes pressupostos, propunha a criação de
instituições de tratamento construídas sob novos moldes,
repelindo práticas violentas como eletrochoques, uso de ce-
las fortes e tratamento com altas doses de medicação. Neste
viés, ampliavam-se as formas de abordagens a partir de di-
ferentes experiências concretas em todo o país, agregando

11
LUZ, 1994, p. 79.

112 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


profissionais de diversos campos do saber, que vinham ela-
borando práticas terapêuticas mais complexas.
Foi no seio destas discussões que se forjou o proje-
to de organização de uma rede de atendimento em saúde
mental na cidade de Uberlândia-MG, e a partir da década de
1980 diversas modificações foram adotadas na infraestrutu-
ra de atendimento e na forma de abordagem desta enfermi-
dade. Para tal, elaborou-se novos paradigmas para o cuidado
do adoecer psíquico e o principal agente propulsor foi o
setor público municipal que, sob influência de discussões
realizadas no âmbito do movimento de reforma psiquiátrica
nacional, constituiu gradualmente formas diferenciadas de
abordagens para esta questão na cidade.
A cidade, desde 1940 até meados da década de 1970,
contava com o Sanatório Espírita de Uberlândia – insti-
tuição assistencial – como espaço de abrigo e controle da
loucura, idealizada por um grupo ligado ao Centro Espírita
Fé, Esperança e Caridade. Este associava sua imagem reli-
giosa à caridade e ao assistencialismo, o que contribuiu para
o reconhecimento da religião espírita na cidade, legitiman-
do suas ações no sanatório como de utilidade pública. Esta
instituição contou, para sua criação e funcionamento, com
a mobilização de setores da classe média intelectualizada da
cidade: industriais, médicos, jornalistas, entre outros.
O projeto de pesquisa Almas Enclausuradas: Práticas
de intervenção médica, representações culturais e cotidiano
no Sanatório Espírita de Uberlândia (1932-1970),12 ana-
lisou o período de implantação do Sanatório Espírita de
Uberlândia, que teve início no ano de 1942, apreendendo

12
Este projeto de pesquisa foi coordenado pela professora dra. Maria Clara
Tomaz Machado, desenvolvido junto a um grupo de alunos do Instituto
de História da Universidade Federal de Uberlândia, durante o perío-
do de outubro de 2001 à outubro de 2003, contando com a parceria da
Fapemig/CNPq.

A loucura sob um outro olhar • 113


quais foram os elementos e os personagens que tornaram
possível este processo bem como quais foram as modifica-
ções em relação ao cuidado da loucura desde então.
Contou-se, nesta pesquisa, com uma quantidade ines-
timável de fontes documentais, uma vez que representantes
do Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade disponibiliza-
ram 29 livros de registros de fichas médicas do Sanatório
Espírita de Uberlândia, que datavam do período de 1942 a
1959. Foi realizado um trabalho de catalogação de aproxi-
madamente 877 fichas médicas. Estas contêm diversas in-
formações sobre os pacientes da instituição, como idade,
estado civil, etnia, religião, cidade de origem, diagnóstico,
prognóstico, nomeclatura de remédios e práticas terapêuti-
cas utilizadas à época, além de históricos de doença, fotos e
mensagens psicografadas.
A análise destas fichas demonstrou práticas e tera-
pêuticas utilizadas na instituição, diagnósticos mais fre-
quentes, e possibilitou a percepção de qual era a interferên-
cia da doutrina espírita no cuidado de seus pacientes. Nos
históricos de doença encontramos relatos de parentes ou
responsáveis que narram comportamentos desviados dos
pacientes, como sintomas de sua enfermidade. Estes esta-
vam permeados na atmosfera dos valores da época, que pri-
mavam, sobretudo, pelo ideal do trabalhador dedicado e da
mulher casta e dedicada à família.
O Sanatório Espírita de Uberlândia atendia aproxi-
madamente cem pacientes, contando com um quadro de
funcionários composto por médicos, enfermeiros práticos
e voluntários, e várias de suas práticas terapêuticas revela-
vam o uso de celas fortes, eletroconvulsoterapia e choques
de cardiazol, que eram de uso comum em diversos manicô-
mios do país. Com um caráter essencialmente assistencia-
lista, esta instituição era administrada por representantes da
religião espírita local, que interferiam em vários aspectos

114 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


da gestão do sanatório, definindo e proibindo, em alguns
momentos, a aplicação de determinadas terapêuticas, como
por exemplo, a eletroconvulsoterapia. A concepção e defi-
nição do fenômeno da loucura do sanatório estava imersa
na acepção da doutrina espírita, concebendo-a como obses-
são13 e a partir dela aplicando práticas espíritas de tratamen-
to juntamente ao tratamento médico ministrado, tais como
sessões de desobsessão, água fluidificada, leitura de evange-
lho, entre outras.
Desta forma, o atendimento psiquiátrico da cidade
foi relegado ao setor filantrópico até meados da década
de 1970, momento em que foi implantado no Hospital de
Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia o setor de
Psiquiatria, uma das últimas especialidades a ser criada pela
instituição, devido, em parte, à falta em seu quadro profis-
sional de especialistas nesta área. Tal fato também impedia o
oferecimento desta disciplina pela Escola de Medicina – li-
gada ao Hospital de Clínicas. O setor de Psiquiatria iniciou
suas atividades principalmente com a chegada da psiquiatra
Mirian Andraus14 à cidade, pioneira na organização do saber
médico psiquiátrico em Uberlândia.
Contudo, devido à falta de infraestrutura, as primei-
ras aulas práticas desta especialidade foram realizadas na clí-
nica particular desta psiquiatra. Somente em 1983 foi orga-

13
A doutrina espírita define a loucura como obsessão, interferência de es-
píritos encarnados e desencarnados no comportamento de pessoas obse-
diadas, que pode ser resultado de vingança destes espíritos ou devido a
uma conduta deSr.egrada do obsediado, o que faz com que esteja na mes-
ma sintonia energética que estes espíritos decaídos. A obsessão pode ser
tratada, segundo a doutrina espírita, a partir do processo de evangelização
do obsediado.
14
A dra. Mirian Andraus foi uma das primeiras psiquiatras da cidade de
Uberlândia e criou em 1977, a primeira unidade de estudo da especia-
lidade psiquiátrica da cidade em sua clínica particular, onde ministrava
aulas práticas. Somente em 1983 foi inaugurado o setor de Psiquiatria do
Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia.

A loucura sob um outro olhar • 115


nizado uma pequena infraestrutura de atenção psiquiátrica
no Hospital de Clínicas da UFU com a criação de uma ala
psiquiátrica. O viés de então era essencialmente acadêmi-
co, legitimando a abordagem médico-psiquiátrica em uma
instituição federal de ensino, voltada para a formação de
profissionais. Entretanto, mesmo com a ampliação do aten-
dimento psiquiátrico na cidade, disponibilizado por estas
duas instituições, não foi possível suprir de forma eficiente
a demanda de atendimento local, uma vez que a infraestru-
tura oferecida era reduzida, inclusive em termos de leitos.
Uma das alternativas encontradas pelo poder público
municipal frente a essa falta de infraestrutura foi disponi-
bilizar um veículo para o transporte de pacientes psiqui-
átricos graves a outras cidades como Uberaba, Goiânia,
São Paulo, onde eram internados em asilos e manicômios.
Esta medida, insuficiente e deficitária sob vários aspectos
– tanto terapêutico quanto econômico – nos leva a recor-
dar, de forma perversa, a experiência medieval da “Nau dos
Loucos”,15 analisada por Michel Foucault, na qual um barco
recolhia loucos das cidades pelas quais passava, enviando-os
a uma viagem eterna, sem identificação com lugar algum,
tornando-os errantes, limpando as cidades de seu estigma
e loucura.
Esta forma de lidar com o fenômeno da loucura so-
freu lentas modificações a partir da metade da década de
1980, principalmente na primeira gestão do prefeito Zaire
Rezende (1983-1986), médico remanescente do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), grupo polí-
tico que apresentava várias propostas sociais progressistas
frente ao conservadorismo político local.16

15
Cf. FOUCAULT, 1999.
16
Tal administração carregava como insígnia de governo a frase que marca-
ria a sua atuação: “Democracia Participativa”. Esse slogan, como explicita
Chauí, teve suas raízes na política social-democrata italiana, cujo viés de

116 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Entre as propostas de ação do governo Zaire Rezende,
inscrevia-se a de organização do setor de saúde pública, a
partir da criação de uma Secretaria Municipal de Saúde, a
qual posteriormente criaria um setor de saúde mental, im-
plementando abordagens com práticas terapêuticas mais
complexas e regionalizadas. A organização desta secretaria
teve início em 1984 e dispunha de profissionais de saúde
diretamente envolvidos nas discussões promovidas pelo
movimento de reforma sanitária nacional17 que, à época, já
se caracterizava por um viés mais social e propunha a orga-
nização de um sistema de saúde pública que contemplasse
toda a população e oferecesse serviços de forma gratuita.

esquerda foi inaugurado no Brasil por Franco Montoro, que apresentava


como solução para a crise democrática que o país atravessava na época
a participação dos cidadãos nos diversos conselhos públicos. Tal teoria
pressupunha, fundamentalmente, uma maior participação na vida cole-
tiva: de espectador, o homem contemporâneo deveria atuar como agen-
te transformador de sua realidade social. Cf.: CHAUÍ, M. A questão
democrática. In: ______. Cultura e democracia: o discurso competente
e outras falas. São Paulo: Moderna, 1982. p. 137-162. Sobre o governo
Zaire Rezende conferir: ALVARENGA, N. M. Movimento popular,
democracia participativa e poder político local: Uberlândia 1983/88.
Revista História & Perspectivas: Poder local e representações coletivas,
Uberlândia, n. 4, p. 103-129, jan./jun. 1991; PACHECO, F. P. Mídia e po-
der: representações simbólicas do autoritarismo na política. Uberlândia
– 1960/1990. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Programa
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia. 2001.
JESUS, V. F. Poder público e movimentos sociais. Aproximações e dis-
tanciamentos. Uberlândia – 1982-2000. 2002. Dissertação de (Mestrado
em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2002;
CARDOSO, H. H. P.; SANTOS, C. M. S. Uberlândia nas linhas de
enfrentamento: a democracia participativa nas páginas da imprensa.
Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, n. 33, p. 231-241, 2005.
17
O movimento de reforma sanitária propunha, desde o final de década
de 1970, a modificação na forma de gestão da saúde pública, criticando e
apontando a ingerência do sistema previdenciário, caracterizado por sua
alta complexidade e custo que, em contrapartida, não atendia às neces-
sidades básicas de grande parte da população. Sua proposta voltava-se
essencialmente a implantação de ações básicas de saúde, como programas
de prevenção, vacinação, vigilância sanitária entre outros.

A loucura sob um outro olhar • 117


Uma das primeiras ações desta instância foi a descen-
tralização de unidades de atendimento em saúde, com a cria-
ção e expansão de Centros de Saúde localizados em bairros
periféricos. Em suas equipes de profissionais, incluía-se a
participação de psicólogos e assistentes sociais, que voltaram
suas ações ao trabalho realizado com a comunidade. Esta prá-
tica criava uma demanda para o atendimento psicológico e
social de forma regionalizada, lançando as bases da rede de
atendimento em saúde mental municipal à posteriori.
Data desta época a elaboração do plano de saúde men-
tal da rede municipal, idealizado por sua equipe técnica, sob
a coordenação da psicóloga Lucina Giffoni,18 e entre suas
diretrizes se destaca a proposta de atendimento em saúde
mental oferecida de forma regionalizada e descentralizada,
a partir dos Centros de Saúde. Concomitante a estas medi-
das, salientou-se a necessidade de aproximação e busca por
diálogo com as demais instituições psiquiátricas da cidade:
o Hospital de Clínicas da UFU e o Sanatório Espírita de
Uberlândia. Foi a partir deste período que, gradualmente, o
setor municipal tomou a frente na organização do serviço
de saúde mental da cidade.
Contudo, este processo forjou-se de forma lenta,
modificando a infraestrutura das instituições, assim como
as práticas terapêuticas de abordagem do sofrimento psí-
quico, muitas vezes implementadas a partir de experiências
cotidianas, inserindo elementos diferenciados na estrutura
vigente da época por meio de outros paradigmas técnico/
científicos e políticos. Esta readequação foi essencialmente
influenciada pelos pressupostos do movimento de reforma
psiquiátrica nacional que, a partir da década de 1990, ga-

18
Luciana Giffoni é psicóloga, com formação sanitarista e teve uma impor-
tância fundamental na elaboração de propostas diferenciadas de atendi-
mento em saúde mental da cidade de Uberlândia. Foi eleita pela equipe
profissional a primeira coordenadora de Saúde Mental do município.

118 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


nhou força política em suas reivindicações, desarticulando
vários entraves e práticas retrógradas do sistema asilar. Uma
de suas conquistas foi o encaminhamento de um projeto de
lei ao Congresso Nacional, em 1989, pelo deputado federal
Paulo Delgado (PT-MG), que trazia em suas linhas a pro-
posta de reorganização do atendimento psiquiátrico no país
e a desarticulação progressiva da estrutura asilar.
Este fato incitou o surgimento de diferenciadas expe-
riências na abordagem do adoecer psíquico, em instâncias
municipais e regionais em todo o país, legitimadas pela san-
ção de várias portarias do Ministério da Saúde que as regula-
mentavam. Sua aprovação como projeto de lei nacional – Lei
10.21619 – tornou concreta a diretriz de atendimento que já
vinha sendo implementada, servindo como ferramenta de
defesa dos direitos dos portadores de sofrimento psíquico,
pautando-se em princípios básicos de atenção e cuidado,
como é possível observar nos seguintes parágrafos:
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de
transtorno mental:

I – ter acesso ao melhor tratamento de sistema de saúde,


consentâneo às suas necessidades;
II – ser tratada com humanidade e respeito no interesse
exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua re-
cuperação pela inserção na família, no trabalho e na comu-
nidade;
III – ser protegida contra qualquer forma de abuso ou ex-
ploração;
IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para
esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização in-
voluntária;

19
A Lei 10.216 é conhecida como Lei Paulo Delgado, nome do parlamentar
que encaminhou o projeto à Câmara dos Deputados.

A loucura sob um outro olhar • 119


VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII – receber o maior número de informações a respeito de
sua doença e de seu tratamento;
VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios
menos invasivos possíveis;
IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitá-
rios de saúde mental.20

A mobilização pela aprovação do projeto ocorreu


concomitante às experiências concretas, que traziam em seu
bojo formas de tratamento mais complexas e humanizadas.
Estas se concretizaram nas práticas terapêuticas que envol-
viam os aspectos sociais, culturais e subjetivos da doença,
com equipes de profissionais diversificadas que atuavam em
outros espaços de tratamento, muitas vezes extrapolando a
abordagem do patológico e do normativo. Tenório dá o tom
desta mudança de abordagem:

A intensificação do debate e a popularização da causa da
reforma desencadeadas pela iniciativa de revisão legislativa
certamente impulsionaram os avanços que a luta alcançou
nos anos seguintes. Pode-se dizer que a lei de reforma psi-
quiátrica proposta pelo Deputado Paulo Delgado protago-
nizou a situação curiosa de ser uma “lei” que produziu seus
efeitos antes de ser aprovada.21

Entre as medidas do Ministério da Saúde que vi-

20
Lei n° 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo as-
sistencial em saúde mental. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-
Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde mental.
1990-2004. Brasília, DF, 2004. p. 17. (Série E. Legislação de Saúde).
21
TENÓRIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos
dias atuais: história e conceitos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 36, jan/abr. 2002.

120 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


savam realizar mudanças na abordagem do adoecer psí-
quico, destaca-se a portaria 22422 aprovada em 1992,
que apresentava entre suas diretrizes a proposta de fun-
cionamento de instituições na modalidade de serviços
substitutivos, como os Núcleos de Atenção Psicossocial
(Naps) e os Centros de Atenção Psicossocial (Caps),23
delimitando sua estrutura, equipe profissional e aborda-
gem terapêuticas. Estas disposições encontram-se da se-
guinte forma:

1.1 O atendimento em saúde mental prestado em nível


ambulatorial compreende um conjunto diversificado de
atividades desenvolvidas em unidades básicas/centros de
saúde e/ou ambulatórios especializados, ligados ou não a
policlínicas, unidades mistas ou hospitais.
1.2 Os critérios de hierarquização e regionalização da rede,
bem como a definição da população referência de cada uni-
dade assistencial serão estabelecidas pelo órgão gestor local.
1.3 A atenção a pacientes nestas unidades de saúde deverá
incluir as seguintes atividades desenvolvidas por equipes
multiprofissionais:
– atendimento individual (consulta, psicoterapia e outros);

Portaria n° 224, de 29 de janeiro de 1992. In: BRASIL, 2004, p. 243.


22

Os Naps e os Caps são unidades de tratamento de saúde mental, que


23

apresentam diferenciados níveis de complexidade, contando ou não com


leitos psiquiátricos; Dispõe de equipe e tratamento terapêutico complexifi-
cado. Os Naps atendem a demanda de saúde mental da região de referência
e sua estrutura e funcionamento é de alta capacidade de resolução em ter-
mos de atendimentos externos, articulando-se com diferenciados dispo-
sitivos e atendimento de emergência, sendo que algumas destas unidades
oferecem atendimento de emergência durante 24 horas a partir de uma es-
trutura mínina de leitos. Os Caps são preferencialmente regionalizados em
termos de descrição da clientela e não têm necessidade de oferecer a mesma
capacidade de resolução para as emergências e dar conta da totalidade de
demanda de saúde mental, geralmente atendem uma clientela inscrita no
serviço e às triagens, funcionando durante o dia, restringindo-se aos dias
úteis e não possuem leitos de internação psiquiátrica.

A loucura sob um outro olhar • 121


– atendimento grupal (grupo operativo, terapêutico, ativi-
dades socioterápicas, grupos de orientação, atividades de
sala de espera, atividades educativas em saúde);
– visitas domiciliares por profissional de nível médio ou
superior;
– atividades comunitárias, especialmente na área de refe-
rência do serviço de saúde.24

Uberlândia, nesta época, contava com uma rede de


atendimento em saúde mental razoavelmente organizada
que tinha à frente o setor municipal, dispondo de várias
unidades de atendimento. Contudo, este setor não era
organizado para atender a demanda específica de cada ní-
vel de complexidade, não havendo clareza na definição
de terapêuticas, clientela específica e organização da in-
fraestrutura das unidades de saúde. Desta forma, houve
dificuldades na concretização das diretrizes apresentadas
pela portaria 224.
Foi necessário a adequação desta rede às prerrogativas
do Ministério de Saúde, visando ao atendimento de necessi-
dades específicas. Um dos principais entraves foi a falta de
capacitação da equipe profissional, que até então não traba-
lhava no acolhimento de pessoas portadoras de sofrimento
psíquico grave ou severo, como relata a ex-coordenadora de
saúde mental Marisa Alves Santos:

Aí você cria um impasse aqui: o ambulatório, os psicólo-


gos do ambulatório de UAI e UBS, da rede, já estavam
assustadíssimos de ter que atender o grave, e aí eu só posso
mandar para o Naps se estiver em crise, e quando ele não
estiver em crise, o que eu faço com ele? Outras vezes, o
psicólogo falava o seguinte: “– Tá! Eu acho que está em

24
Portaria n°. 224. In: BRASIL, 2004, p. 243.

122 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


crise, vou mandar para o Naps”. E o Naps dizia: “– Não
está em crise”, devolvia. Então criou-se um impasse que é
o seguinte: qual tipo de assistência dar? O que mais esse
paciente precisa?25

Este relato pontua a falta de instrumentais e referen-


ciais de abordagem da equipe profissional à época. Tal situ-
ação se devia, em grande parte, a deficiências das instâncias
de formação de profissionais de saúde, que não ofereciam
disciplinas acerca da temática de saúde mental em áreas
de saber como a Psicologia, a Enfermagem e a Assistência
Social. Uma vez constatada esta deficiência na prática tera-
pêutica, a Secretária Municipal de Saúde de Uberlândia pro-
moveu uma série de congressos e seminários como forma
de suprir esta lacuna, realizando discussões e apresentando
métodos de abordagem segundo as diretrizes das portarias
ministeriais.
As dificuldades enfrentadas por este setor também
eram resultado de sua prática cotidiana, uma vez que, an-
teriormente, o setor público disponibilizava atendimento
essencialmente aos portadores de sofrimento psíquico
mais leves, atendidos em unidades básicas de saúde. Em
contrapartida, os pacientes que necessitavam de atendi-
mento mais complexo, maior acompanhamento terapêu-
tico ou mesmo aqueles propensos à internação psiquiá-
trica eram encaminhados diretamente ao Ambulatório de
Saúde Mental ou às outras unidades integradas a esta rede
– como o Hospital de Clínicas da UFU e a Clínica Jesus
de Nazaré. Neste período, a rede de saúde mental da cida-
de estava dimensionada da seguinte forma:

25
SANTOS, M. A. dos. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005. Psicóloga, foi
coordenadora do setor de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde
de Uberlândia de 2001 a 2003.

A loucura sob um outro olhar • 123


Existia a Jesus de Nazaré, que era um hospital-dia na épo-
ca, mas a gente não sabia direito nem encaminhar, a gente
encaminhava para o Pronto-Socorro da UFU e lá eles ti-
nham que articular... Mas com a Reforma (Psiquiátrica) o
que a Coordenação da época fez: existia um Ambulatório
de Saúde Mental, isso existia, um Ambulatório de Saúde
Mental. Então tinha psicólogo em todas as UAI e um psi-
quiatra em cada UAI. Quando montou as UAI, a equipe
de Saúde Mental conseguiu fazer uma mini-equipe em cada
UAI, então com duas psicólogas e uma assistente social e
um psiquiatra em cada UAI. Mas mesmo o psiquiatra, ele
atende os crônicos sim, egressos alguns, mas o psicólogo
não, só o psiquiatra, e os moderados e graves, ele atendia.
Então, a gente tinha uma mini-equipe de Saúde Mental nas
UAI e tinha o Ambulatório Central. Esse Ambulatório
atendia egressos, os egressos de internação psiquiátrica.
Tinha uma equipe interdisciplinar no Ambulatório.26

A partir da redefinição da estrutura dos serviços em


saúde mental, assim como os constantes processos de capa-
citação, foi possível redimensionar as necessidades especí-
ficas em meio a um processo envolto em diversas deficiên-
cias e dificuldades de gestão, criando-se, de forma gradual,
atendimento a partir de diferentes graus de complexidade,
diferenciando-se a função e a capacidade de cada unidade de
saúde mental. Neste contexto, o poder público municipal
tomou a frente no processo de articulação da rede de saúde
mental, contando com outras instâncias que foram primor-
diais ao funcionamento desta complexa rede.
Uma das protagonistas deste processo foi a Clínica
Jesus de Nazaré, criada em 1994 a partir do projeto de um
grupo de mocidade espírita da cidade – a Juventude Espírita

26
SANTOS, M. A. dos. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005.

124 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


de Uberlândia, que apresentou a proposta de atendimento
psiquiátrico em todos os níveis de complexidade –, nas mo-
dalidades de tratamento ambulatorial e internação psiqui-
átrica. Visava, especialmente, ao cuidado de portadores de
sofrimento psíquico grave ou severo, principalmente, egres-
sos de internações psiquiátricas, que na maioria das vezes,
contavam em seu histórico com experiências permeadas de
sofrimento e exclusão, às quais eram submetidos em mani-
cômios que ministravam terapêuticas violentas e invasivas.
Esta clínica, organizada segundo parâmetros estabelecidos
pelo Ministério da Saúde, desde sua implantação agregou-se
à rede de serviços em saúde mental da cidade, trabalhan-
do em parceria com unidades do poder público municipal
e o Hospital de Clínicas da UFU. Neste sentido preen-
chia, em parte, a lacuna deixada pelo Sanatório Espírita de
Uberlândia, totalmente desativado em 1992.27
Definida como Núcleo de Atenção Psicossocial
(Naps), esta clínica agregava diferenciadas modalidades de
atendimento, como Naps I, Naps II, Naps 24 horas, defini-
das segundo sua infraestrutura, equipe técnica e terapêuticas
ministradas, atendendo aproximadamente 200 usuários por
mês entre todas as modalidades listadas. Dispunha, para tal,
de 44 leitos psiquiátricos para internação e acompanhamento
de pacientes graves. O diferencial desta instituição inscreve-
se no caráter de sua gestão, reconhecida como filantrópica,
oferecendo maior diversidade de modalidades de tratamento.
O diretor e fundador da instituição nos apresenta a estrutura:

27
O Sanatório Espírita de Uberlândia sofreu grande pressão principalmen-
te por parte da Secretaria Municipal de Saúde e outras instâncias de fisca-
lização, como o setor de Vigilância Sanitária, para que readequasse sua in-
fraestrutura e equipe profissional aos parâmetros exigidos pelas portarias
ministeriais. Contudo, era sustentada por doações da comunidade local,
não conseguindo atender às prerrogativas a ela impostas (principalmente
devido a sua falta de recursos), o que levou a sua total desativação no ano
de 1992.

A loucura sob um outro olhar • 125


Então nós tínhamos Naps I, Naps II e o ambulatório. O
Naps I é o que o paciente vem meio período, Naps II vem
no período da tarde, um de manhã e um à tarde. E tem o
Naps integral que fica oito horas, para aquele que é mais
grave. E nós conseguimos também o ambulatório. A nossa
sorte é eles terem dado o Naps e o ambulatório, pois nós
tínhamos muitos pacientes. Eles vieram aqui e nós tínha-
mos muitos pacientes. Porque o Naps, só atendia quarenta
e cinco pacientes e como nós tínhamos duzentos, tinha que
ter ambulatório. Então eles puseram Naps e ambulatório.28

Outros protagonistas se inscrevem no quadro de


modificação da estrutura de atendimento psiquiátrico da
cidade, como o Hospital de Clínicas da UFU, que a partir
da década de 1990 sofreu inúmeras reformas em sua for-
ma de abordagem, várias delas prerrogativas impostas pelo
Ministério da Saúde. A partir de então, desenvolveu experi-
ências que agregaram novos setores profissionais como psi-
cólogos e terapeutas ocupacionais. O objetivo era moder-
nizar e ampliar práticas terapêuticas, explorando elementos
sociais e subjetivos em sua abordagem. Estas modificações
são apresentadas por Dantas:

Segundo a psicóloga Maria José de Castro Nascimento, o


serviço hospitalar e o extra-hospitalar foi organizado pela
Portaria 224 de 1992, em relação ao tipo de profissional,
tipo de atividade que deveria ser executada pelos pacien-
tes, número de pacientes e as características dos locais de
tratamento. Essa lei proibiu práticas abusivas em hospi-
tais psiquiátricos, como as celas fortes, e definiu-se como
co-responsáveis em seu cumprimento os níveis estadual e

28
MORAIS, M. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005. Radialista, liderança
do grupo de mocidade Juventude Espírita de Uberlândia, idealizador e
diretor da Clínica Jesus de Nazaré desde sua fundação, em 1994.

126 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


municipal do sistema de saúde. Também foram definidos
os profissionais específicos para atendimento nos Naps/
Caps: médico psiquiatra, enfermeiro, profissionais de nível
superior e profissionais de nível médio e elementar. Já os
leitos/unidades em hospital geral, como é o caso da enfer-
maria de Psiquiatria no Hospital de Clínicas da UFU, deve-
riam contar com médico psiquiatra, psicólogo, enfermeiro,
profissionais de nível superior (psicólogo, assistente social
e/ou terapeuta ocupacional) e profissionais de nível médio
e elementar para o desenvolvimento das atividades.29

Na década de 1990, estas três instâncias compunham


a rede de atendimento em saúde mental em Uberlândia,
e cada uma delas forjou seus pressupostos de forma dife-
renciada. Porém, todas agregavam ao seu funcionamento
e infraestrutura princípios da reforma psiquiátrica, obede-
cendo a interesses políticos e sociais diversos em busca da
legitimação de suas práticas e abordagens. Em várias opor-
tunidades, houve embates e lutas simbólicas pela definição
de qual conceito de saúde mental seria o hegemônico na
cidade. Estas sutilezas são desveladas pelo psiquiatra Sérgio
Maldi, que elenca nestes posicionamentos reflexos de prá-
ticas assistencialistas, cientificistas, algumas delas pautadas
nos princípios do movimento de reforma psiquiátrica:

A Prefeitura tem a noção diretamente ditada pelo mo-


vimento de reforma psiquiátrica, a noção de que não é
apenas a doença mental que deve ser pensada, mas como
se dá a inserção deste paciente na sociedade. A noção da
Universidade é mais científica, mais médica e menos social,

29
DANTAS, V. de F. Arte, loucura e terapias: uma reflexão contemporâ-
nea (O Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia e as
Oficinas Terapêuticas). 2006. p. 146. Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2006.

A loucura sob um outro olhar • 127


vamos dizer assim. Então, lá na Universidade, o doente é
visto realmente como uma pessoa que está passando por
problemas de saúde. Lá na Prefeitura a visão do doente
mental é de uma pessoa que tem problemas de saúde, mas
que o maior problema dele não é a saúde, e sim o modo
como ele convive com a sociedade na qual ele está inserido,
entendeu? E a Clínica Jesus de Nazaré tem uma noção do
doente que mistura as duas, entende, a dimensão médica
e tenta abordar também uma questão social. Prova disso
é aquilo que eu comentei, dos pacientes que permanecem
aqui a despeito da alta médica. Então são três unidades
que, independentes da auto-suficiência, da auto-afirmação,
são três unidades que disputam o nome que vão dar aos
seus usuários. É uma questão conceitual, o nome que a
Prefeitura dá, o nome que a Universidade dá e o nome que
a Clínica Jesus de Nazaré dá para aquele problema, isso é a
essência da coisa. Poderia ter um diálogo? Poderia ter, mas
é muito complicado.30

A proposta de reorganização dos serviços de saú-


de mental apresentada pelo Ministério da Saúde, a par-
tir da aprovação da Lei 10.216, em 2001, deparou-se em
Uberlândia com uma infraestrutura de atendimento com-
posta pela rede municipal – com UAI, UBS, Naps Adulto
e Infantil, três Centros de Convivência –, Hospital de
Clínicas da UFU e a Clínica Jesus de Nazaré – que mes-
mo oferecendo psicoterapia e internação psiquiátrica não
atendia às necessidades da população local, pois apresenta-
vam diversas deficiências:

30
MALDI, S. A. G. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005. Médico psiquia-
tra. Atua nas três instâncias de atendimento em saúde mental da cidade
de Uberlândia (Clínica Jesus de Nazaré, Caps e Hospital de Clínicas da
Universidade Federal de Uberlândia).

128 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


A partir de todos esses dados, procede a seguinte análise:
– Os 3 (três) Naps (Adulto, Infantil e da Clínica Jesus de
Nazaré) realizavam somente, conforme definição da por-
taria GM/MS 336/02, o atendimento intensivo;
– Os 3(três) Centros de Convivência davam cobertura as-
sistencial somente a 3 (três) regiões específicas do municí-
pio (Distrito Sul, Oeste e Central Norte) e contando com
equipe técnica de nível superior composta somente por
assistentes sociais e psicólogas “itinerantes”, já realizava o
atendimento semi-intensivo proposto para Caps;
– Não era oferecida modalidade de atendimento intensivo
e nem semi-intensivo para pacientes de faixa etária de 12 a
18 anos.
– Era inviável viabilizar projetos arquitetônicos para o pro-
cesso de credenciamento, de um imóvel alugado de alto
custo que mesmo assim teria que ser ajustado segundo exi-
gências da resolução SES/MG 793/93, onde funcionava o
Naps adulto e do imóvel onde funcionava o Naps Infantil
por total inadequação.
– Volume populacional dos Distritos Sanitários comporta-
va até um Caps II por distrito;
– Com pequeno investimento em recursos humanos e com
baixa nos custos de aluguel seria possível a realização de
projetos de Caps II regionalizados e pelo menos um Caps
III (para infância e adolescência);
– Não se teria recursos necessários para implantação ime-
diata de Caps III e Caps ad II.31

A partir da análise destes dados percebe-se que a


rede de saúde mental municipal necessitava realizar uma
infinidade de adequações, principalmente no setor pú-
blico, já que contava com embriões de organização, sem

31
UBERLÂNDIA. Prefeitura Municipal de Uberlândia. Secretaria
Municipal de Saúde. Relatório de gestão 2002. Uberlândia, 2002. p. 84-85.

A loucura sob um outro olhar • 129


apresentar uma estrutura clara de cada uma de suas uni-
dades, definição de clientela-alvo e terapêuticas disponi-
bilizadas para seus usuários. Contava entre suas unidades
com o Ambulatório de Saúde Mental Infantil32 – que apli-
cava práticas terapêuticas específicas para crianças no cui-
dado ao sofrimento psíquico –, assim como os Centros de
Convivência33 – que se inspiraram na experiência da cida-
de de Belo Horizonte –, mas apresentava limitações, pois
estes se restringiam aos espaços de psicoterapia com uma
equipe profissional itinerante.
Desta forma, o poder público municipal adequou suas
unidades de atendimento, principalmente os Naps Adulto e
Infantil e os Centros de Convivência para o credeciamento
como Caps. Todavia, somente duas unidades apresentaram
os parâmetros exigidos pelo Ministério da Saúde, recebendo
a partir de então recursos diretamente da instância nacio-
nal. As outras unidades, organizadas na modalidade Caps,
compunham a mesma estrutura e recebiam subvenções da
Secretaria Municipal de Saúde.
A Clínica Jesus de Nazaré, que continha várias mo-
dalidades de Naps, foi descredenciada neste processo, visto

32
O Ambulatório de Saúde Mental Infantil foi implantado em 1992 e sua
proposta de atendimento à criança portadora de sofrimento psíquico
constituía-se em um dos projetos do setor público municipal. É voltado
ao trabalho de cuidado e prevenção de enfermidades mentais de crian-
ças autistas e psicóticas, assim como acompanhamento de crianças com
dificuldades de aprendizado escolar. Este projeto vislumbrava criar um
centro de referência neste setor, funcionando como um observatório de
práticas e estratégias de abordagens terapêuticas.
33
Os Centros de Convivência de Uberlândia, criados pelo setor público
municipal foram o esboço dos Caps locais e compunham-se de unidades
que em um primeiro momento, ofereciam oficinas terapêuticas, aten-
dendo usuários dos serviços de saúde mental que necessitavam de acom-
panhamento mais constante, desvinculando-os das unidades básicas de
saúde como as UAI e UBS. Estes centros contavam com uma equipe pro-
fissional itinerante, uma vez que faltavam recursos para a contratação de
novos profissionais, enfrentando também dificuldades financeiras para a
manutenção de sua infraestrutura.

130 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


que o Ministério da Saúde privilegiava o financiamento de
instituições públicas, seguidas por instituições filantrópicas
– modalidade na qual inscreve-se esta instituição –, seguida
de instituições particulares. Tal fato gerou certa tensão entre
a Clínica Jesus de Nazaré e a Secretaria Municipal de Saúde,
beneficiada com esta medida. Para dar continuidade ao seu
funcionamento, a clínica se tornou dependente de recursos
provenientes da Secretaria Municipal de Saúde para o paga-
mento de sua equipe profissional, perdendo, desta forma,
sua autonomia. Com a reorganização dos serviços de saúde
mental da cidade, o poder municipal legitimou ainda mais
seu poder de decisão sobre a forma de organização desta
rede, que passou a ser composta da seguinte forma:
Todos os Caps passaram a operar como tal a partir
do mês de novembro/2002 e a rede de assistência em Saúde
Mental de Uberlândia passou a ser constituída da seguinte
forma:

Ambulatórios Distritais – atendimento psicológico a usu-


ários e familiares com transtornos psíquicos graves prio-
ritariamente, contando com um(a) psicólogo(a) em cada
UBS (exceto: UBS Custódio Pereira, São Jorge, Tocantins
e Martins) que conta com 2 (dois) em cada UAI.
Quatro Caps II regionalizados – cada Caps II conta com
uma equipe de 5(cinco) psicólogos, 2 (dois) assistentes
sociais, 1 (um) ou 2(dois) auxiliares /técnicos de enfer-
magem, serviços gerais oficiais administrativos, médi-
co psiquiatra. O Caps II credenciado conta com 1(uma)
enfermeira; todos contam com coordenadora de unidade
(psicóloga); desenvolvem atividades de acolhimento diá-
rio, atendimento individual (medicamento, psicoterápico
e orientação), atendimento em grupos, atendimentos em
oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, atendimento à
família, busca ativa e atividades comunitárias).

A loucura sob um outro olhar • 131


Caps III de referência municipal – conta com uma equi-
pe de 5 (cinco) psicólogos, 2(duas) assistentes sociais, 1
(uma) fonoaudióloga, 1 (uma) fisioterapeuta, 2 (duas)
auxiliares de enfermagem, 1(uma) enfermeira e a coorde-
nadora da unidade (psicóloga). No final de 2002, contava
com atendimento psiquiátrico somente de referência na
UFU. Realiza atividades de acolhimento diário, atendi-
mentos individuais, de grupo (psicoterapia orientações),
acompanhamento social, atendimento fonoaudiólogo e
fisioterapêutico, acompanhamento da equipe de enferma-
gem, oficinas terapêuticas, atendimento à família, ativi-
dades comunitárias e de inserção social e escolar e visita
domiciliar.
A Clínica Jesus de Nazaré – se mantêm como referência
de ambulatório especializado e de internação integral (30
leitos). A internação integral se mantém da mesma forma
excetuando ao fato de melhores relacionamentos com HC
– UFU na tentativa de organizar o fluxo de atendimento
dentro da rede de Assistência em Saúde Mental.34

A rede de saúde mental de Uberlândia, estruturada a


partir de 2001, lançou as bases de sua estrutura definitiva, tal
como encontramos hoje. No entanto, várias foram as modi-
ficações na infraestrutura de cada unidade e em suas formas
de abordagem e práticas terapêuticas, dadas em meio a uma
série de dificuldades e limitações. Esta rede tornou constan-
te sua participação em vários eventos promovidos pelo mo-
vimento de reforma psiquiátrica nacional e regional, com a
representação de delegados que encaminhavam propostas
pautadas em experiências desenvolvidas localmente.35

34
UBERLÂNDIA, 2002, p. 86.
35
Os delegados que participam de congressos locais, regionais e nacionais
são profissionais de saúde e usuários dos serviços de saúde mental li-
gados ao poder público municipal, Clínica Jesus de Nazaré e Hospital

132 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Destaca-se entre os avanços da organização desta
rede a fundação, em 2001, da Associação dos Usuários dos
Serviços de Saúde Mental de Uberlândia (Adusmu),36 que
desde então atua como instância de controle e defesa dos
direitos dos portadores de sofrimento psíquico da cidade,
fiscalizando serviços e apresentando propostas de melho-
ria no atendimento em saúde mental na cidade, assim como
protegendo seus direitos.
Atualmente, a cidade de Uberlândia, com uma popu-
lação de 650.000 habitantes, conta com cinco instituições
municipais na modalidade Caps – distribuídas em seus cinco
distritos sanitários, atendendo a uma população de 100.000
pessoas por distrito cada uma – além dos serviços disponibi-
lizados pelo Hospital de Clínicas da UFU e a Clínica Jesus
de Nazaré –, com uma média de 200 usuários atendidos por
mês, inclusive com o oferecimento de leitos psiquiátricos,
segundo diretrizes do Ministério da Saúde.37 Comparando
estes números com a média nacional e estadual, nota-se que
a cidade dispõe de uma estrutura de atendimento razoável,
porque entre as 68938 unidades de serviços em saúde mental

de Clínicas da UFU. Em 2001, no III Congresso Nacional de Saúde


Mental, um dos Caps ligado ao setor público municipal recebeu o Prêmio
Capistrano de Abreu, que premiou os dez melhores serviços desta moda-
lidade no país, devido a sua forma de gestão e terapêuticas desenvolvidas.
36
A Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Uberlândia
(Adusmu) foi criada em 2001 na cidade de Uberlândia e muito de sua
organização pautou-se em experiências já existentes em outras cidades,
recebendo grande influência da Associação de Usuários da cidade de Belo
Horizonte.
37
Uberlândia têm uma população de aproximadamente 650.000 habitantes
e conta com sete unidades de atendimento intensivo de saúde mental
(cinco Caps, o Hospital de Clínicas da UFU e a Clínica Jesus de Nazaré),
distribuídos de forma razoavelmente equivalente na cidade.
38
Disponível em: <http//portal.saude.gov.br>. Acesso em: 8 jul. 2007.
Estes dados foram extraídos do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), estimativa populacional do ano de 2005. Obs.: Para o
cálculo do indicador Caps 100.000 habitantes. Considera-se que o Caps
I dá resposta efetiva a 50.000 habitantes, que o Caps II dá cobertura

A loucura sob um outro olhar • 133


do país, 88 localizam-se no Estado de Minas Gerais, o que
abrange uma população de 19.237.450 habitantes.39
Estes números demonstram um grande crescimento
na abertura deste tipo de serviço em todo o país, principal-
mente depois da implementação da Lei 10.216, com progra-
mas de incentivo promovidos pelo Ministério da Saúde e
pelas iniciativas de diversos municípios em modificar parâ-
metros de atendimento em saúde mental.
Entretanto, mesmo com a constante pressão e fiscali-
zação do movimento de luta antimanicomial em instituições
asilares, reivindicando a extinção deste tipo de instituição, esta
meta não foi totalmente cumprida, tendo pela frente vários
entraves à superação deste modelo. Observa-se ainda várias
lacunas e demandas de atendimento em diversas regiões do
país, como demonstra reportagem da revista Caros Amigos,
publicada em abril de 2006, em comemoração ao aniversário
da aprovação da Lei 10.216:

O Brasil hoje tem 42.000 internos em 240 hospitais psi-


quiátricos. É o terceiro repasse do SUS (Sistema Único
de Saúde) e, apesar da política do Ministério da Saúde de
diminuição gradual dos leitos, 63 por cento das verbas de
saúde mental vão para manicômios.40

Desta forma, percebe-se que a cidade de Uberlândia,


assim como várias outras localidades do país, passaram por
um profundo processo de modificação dos serviços de saú-
de mental, com a desarticulação de vários manicômios e
asilos que utilizavam práticas violentas. Porém, ainda en-

a 150.000 habitantes e que o Caps II, Capsi e Capsad dão cobertura a


100.000 habitantes.
39
Disponível em: <http//portal.saude.gov.br>. Acesso em: 8 jul. 2007.
40
DIP, A. Cidades Esquecidas. Revista Caros Amigos, São Paulo, ano 10, n.
109, p. 20, abr. 2006.

134 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


frenta diversos desafios, como a necessidade de (re)inser-
ção de milhares de usuários dos serviços de saúde mental,
que muitas vezes, mesmo não estando atrás dos muros dos
manicômios, continuam isolados e excluídos de várias ins-
tâncias de participação social, que muitas vezes encontram-
se fechadas a estes sujeitos. Como demonstra Jubel:

A superfluidade dos “válidos inúteis”a que me referi, ca-


racteriza decerto um dos pontos de impasse de serviços de
(re) inserção na esfera da cidadania, sendo um fator adicio-
nal de uma nova cronicidade, que surpreendeu a quantos
esperavam que a mera derrubada dos muros dos manicô-
mios resultasse na abolição do processo de cronificação.
É forçoso reconhecer com certa amargura que a “sétima
cavalaria” da reforma chegou demasiado tarde, encontran-
do já parcialmente em ruínas a construção inacabada do
welfare state e já instalada um nova e inclemente discrimi-
nação a barrar a passagem aos que se habilitassem a tentar o
ingresso nesse mundo, depois de superada a exclusão pré-
via do estigma da doença mental.41

Vários são os desafios desta nova fase do movimento


de reforma psiquiátrica, que hoje enfrenta a difícil (re)in-
serção de milhares de usuários dos serviços de saúde men-
tal em uma sociedade extremamente excludente e elitista.
Além disso, muitas vezes o corpo profissional apresenta
deficiência e limitações no cuidado do sofrimento men-
tal, uma vez que desvincula os sujeitos de suas particula-
ridades e facetas variadas – características do indivíduo –,
enxergando apenas a enfermidade. Neste sentido, muitas
vezes não são capazes de perceber a dimensão social que
envolve o paciente:
41
BARRETO, J. O umbigo da reforma psiquiátrica: cidadania e avaliação de
qualidade em saúde mental. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2005. p. 46.

A loucura sob um outro olhar • 135


Ao modelo sintomatológico seria preciso opor um campo
processual em que a fala de um paciente, por exemplo, não
fosse apenas indício de um sintoma, mas “produção de um
sujeito social dentro dos limites, certamente problemáti-
cos, que a loucura impõe”. Há aqui uma exigência clara,
que é ao mesmo tempo de caráter ético, político, teórico
e clínico: não perder de vista o paciente concebido como
uma matéria a um só tempo existencial e social que inces-
santemente se produz na instituição. A partir desta ótica, a
subjetividade não pode ser concebida como um dado, mui-
to menos como a encarnação de uma entidade nosográfica.
Ela é uma produção social e existencial singular.42

Sendo assim, nota-se que mesmo com os avanços


apresentados ao longo desta análise muito tem que ser feito
para a modificação da condição de vida de diversas pessoas
que hoje sofrem de distúrbios psíquicos. Uma das primei-
ras coisas que podemos listar é a tentativa de desconstruir
estigmas que ainda os atam e os submetem a uma exclusão
branda, uma vez que os muros simbólicos ainda não foram
totalmente derrubados e as portas para a participação real
na sociedade não foram abertas. Como demonstra Pelbart:

A análise do modelo instituicional vigente no atendimen-


to aos doentes mentais no serviço público mostra a hege-
monia da tecnologia médica, seja na avaliação terapêutica
(priorização da sintomatologia), na prescrição da medi-
cação (ajuste à expressividade do sintoma), seja ainda na
utilização de técnicas psicológicas mediadas pela palavra,
que apenas adaptam o paciente “às figuras do sintoma”.
Nesse sentido, continua-se nos parâmetros que Foucault

42
PELBART, P. P. Os loucos trinta anos depois. Revista Novos Estudos
Cebrap, São Paulo, p. 173, n. 42, jul. 1995.

136 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


havia denunciado: a figura do médico ainda é depositária
de todas as expectativas do tratamento. Com o agravante
de que a doença é compreendida majoritariamente como
fruto de disfunções de ordem biológica.43

A possibilidade da real inserção do portador de sofri-


mento psíquico não depende somente de políticas públicas.
O nó está hoje no envolvimento e discussão desta enfer-
midade com a sociedade atual. Não bastam leis para impor
mudanças, só por meio do debate é possível conscientizar
os sãos da aceitação de diferenças, do convívio com o ou-
tro que, apesar de seu sofrimento, é capaz de contribuir na
construção de uma outra história. Um passo foi dado para
a desconstrução da exclusão dos portadores de adoecer psí-
quico, agora devemos nos voltar a formas concretas de rein-
serção e participação social destes sujeitos.

43
PELBART, 1995, p. 173.

A loucura sob um outro olhar • 137


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MALDI, S. A. G. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005. Médico psi-


quiatra. Atua nas três instâncias de atendimento em saúde mental da
cidade de Uberlândia (Clínica Jesus de Nazaré, Caps e Hospital de
Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia).

MORAIS, M. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005. Radialista, li-


derança do grupo de mocidade Juventude Espírita de Uberlândia,
idealizador e diretor da Clínica Jesus de Nazaré desde sua fundação,
em 1994.

SANTOS, M. A. dos. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2005. Psicólo-


ga, foi coordenadora do setor de Saúde Mental da Secretaria Munici-
pal de Saúde de Uberlândia de 2001 a 2003.

A loucura sob um outro olhar • 141


Capítulo 5

a ordem psiquiátrica e a máquina de


curar: o hospício nossa senhora da
luz entre saberes, práticas e discursos
sobre a loucura (paraná, final do
século xix e início do século xx)1

Maurício Noboru Ouyama2

“O asylo bem organizado é o mais poderoso instru-


mento contra as doenças mentais.”
Rodolfo Pereira Lemos,
médico do Hospício Nossa Senhora da Luz, 1912.

“Se existe classe que mereça uma vigilância esclareci-


da, benévola e ativa é a dos doidos”.
Sigaud, Reflexões acerca do livre trânsito dos doidos
pelas ruas do Rio de Janeiro, 1835.

1
Este trabalho foi escrito como resultado parcial das pesquisas feitas para
a confecção de minha tese de doutorado apresentada ao curso de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Paraná em março de
2006.
2
Doutor em História – Universidade Federal do Paraná.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 143


Figura 1 – Edifício André de Barros1
Figura – Edifício André de Barros3
Fonte: Castro (2004, p. 36).

Um espaço, um jardim patológico:


o mundo dos loucos

Quem entra no Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora


da Luz4 tem a sensação de que a liberdade foi deixada para
trás.5 Logo na entrada, a imponência do edifício André de
Barros assusta.6 Mas, um pouco depois, a natureza se des-
taca do concreto no amplo jardim central em que se dis-
tribuem os pavilhões de internamento. E o que os olhos
registram é a passagem para um outro cenário, que muitas
vezes não tem volta.

3
CASTRO, E. A arquitetura do isolamento em Curitiba na República Velha.
Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2004. p. 36.
4
Agradeço a Elisabeth A. de Castro pela autorização das imagens referen-
tes ao Hospício Nossa Senhora da Luz. Cf. CASTRO, 2004.
5
Visitei o Hospício Nossa Senhora da Luz pela primeira vez em 2001 na
época do meu mestrado. Foram várias visitas no período entre 2001 e
2005 em que alternei minha pesquisa entre a documentação existen-
te no Hospício Nossa Senhora da Luz, nos arquivos da Santa Casa de
Misericórdia, na Casa da Memória e Arquivo Público do Paraná.
6
O edifício André de Barros abriga o setor administrativo e a capela do
Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz.

144 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Quem quer que visite um hospital moderno tem a
sensação de que dentro do asilo, nos confins da cidade, uma
estranha e perturbadora fauna e flora hospitalar emergem,
desencadeando velhos gestos do passado, toda uma maqui-
naria do asilamento.7
A rotina do hospital parece inalterada há mais de cem
anos. Fotografias tiradas por ocasião do seu cinquentená-
rio assemelham-se a realidade que conheci por ocasião de
minhas pesquisas no hospital em 2001. Entrar no hospício
Nossa Senhora da Luz e deparar-se cara a cara com a lou-
cura contemporânea – drogada, medicalizada, classificada
– é uma experiência perturbadora. Exemplos de abandono
familiar são comuns naquele lugar: pessoas que por suas
atitudes diferentes ou por algum outro motivo são levadas
para lá. Rostos solitários de indivíduos sem identidade, que
não se lembram do sobrenome e que não tem para onde ir.
Lembranças expressas na fala balbuciante e no gesto desco-
nexo de uns ou no silêncio guardado a sete chaves de ou-
tros. Em cada rosto, quase sempre a mesma característica:
olhar parado, curioso, que fica imóvel em frente à televisão.
Às vezes, um grunhido incompreensível é acompanhado de
um dedo em riste, outras vezes, acompanhado de urina calça
abaixo. Uma confusão reinante que chamamos de loucura.
Criado em março de 1903 pelo monsenhor Alberto
Gonçalves, provedor da Santa Casa de Misericórdia, o
Hospício Nossa Senhora da Luz foi idealizado para ser
referência no Paraná,8 tendo como modelo o hospício do
Juquery em São Paulo.9 O Hospício Nossa Senhora da Luz

7
Cf. os grandes rituais da maquinaria asilar ou do Tratamento Moral dos
loucos estão descritos em FREMVILLE, B. La Raison du plus fort: traiter
ou maltraiter les fous? Paris: Seuil, 1987.
8
MUNHOZ VAN ERVEN, H. Breve histórico do Hospital Psiquiátrico
Nossa Senhora da Luz. Curitiba: Mundial, 1944.
9
CUNHA, M. C. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. São
Paulo: Paz e Terra, 1988.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 145


teve duas sedes. Primeiramente, funcionou no terreno cons-
truído no bairro do Ahú. Quatro anos após sua inaugura-
ção, o hospício foi transferido para sua sede atual no outro
lado da cidade, na Rua Marechal Deodoro da Fonseca, bair-
ro do Prado Velho.
Atualmente, o hospital é administrado pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. São 130.000 m2 de área
construída, cinco pavilhões na ala masculina e três pavi-
lhões na ala feminina. Uma instituição mais que centenária,
é, ainda hoje, um dos hospitais psiquiátricos do Paraná. Sua
história confunde-se com a própria história da Psiquiatria
paranaense. As jaulas dos quartos de confinamento do
passado sumiram, mas a solidão continua a rondar o espa-
ço.10 Diante dos mil rostos da desordem, perceber o espaço
hospitalar como uma experiência histórica requer a exigên-
cia de ultrapassar a esta questão urgente para os Direitos
Humanos: o que fazer com os loucos? – e perceber o hospício
como uma instituição social, como objeto privilegiado para
o campo da análise histórica.

Hospital e história social

Durante muito tempo, o hospital e, sobretudo, o hos-


pital psiquiátrico, manicômio ou hospício, não era objeto
de investigação nos círculos acadêmicos por ser conside-
rado um tema inferior ou secundário. Domínio exclusivo

10
Num ensaio sobre Win Wenders, Peter Pál Pelbart comenta que o
Hospital-Dia, forma em que os pacientes não são internados, mas vol-
tam para casa no final do dia, é como a Nau dos Loucos descrita por
Michel Foucault em História da Loucura. “[...] mas que ao invés de va-
gar à deriva das águas, como na Renascença, aportou em solo urbano”.
A explicação nos pareceu oportuna, pois o Hospital-Dia, forma ado-
tada pelo Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz, também pode
despontar como um dispositivo a mais de homogeneização social. Cf.
PELBART, P. P. A Nau do Tempo-Rei: sete ensaios sobre a loucura. Rio
de Janeiro: Imago, 1993. p. 22.

146 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


da doença e da morte, da técnica e do sobrenatural num
mesmo gesto, o hospital não era digno de discussão pelos
estudiosos. Mas os tempos mudaram. Agora, o hospital e as
políticas de saúde pública são objetos dos cálculos econô-
micos, como demonstrou Michel Foucault em seus cursos
Em defesa da Sociedade e Nascimento da Biopolítica.11 O
campo social se alargou imensamente. Deste modo, o hos-
pital tornou-se objeto da historiografia recente, inspirada
nos trabalhos de Robert Castel e Michel Foucault,12 Pois o
estudo da instituição asilar tornou-se um terreno fértil para
engendrar discussões a respeito do papel político e social
dos saberes.
Efetivamente, o meio médico tem tentado revestir o
discurso sobre o hospital de modo hegemônico, do ponto
de vista da evolução da técnica, recobrindo as críticas de
seus opositores. Mas a complexidade das relações do espa-
ço hospitalar não deve limitar-se ao foco da sua gestão e
das constantes evoluções técnicas. O hospital, o hospício,
o asilo de alienados, não pode ser visto como simples téc-
nica de gerenciamento, nem pode ser entendido como algo
descolado de seu campo social. Mesmo o estabelecimento
hospitalar não é administrado da mesma forma que o orga-
nismo público. Médicos e psiquiatras estão imbuídos numa
teia complexa de relações de poder. Nem tudo na vida deve
ser revestido da sacralidade com que alguns pretendem cir-
cundar o ato médico ou sua criação maior, o hospital. Para
transformar o hospital (e suas variações: o leprosário, o

11
Michel Foucault realizou os cursos “É preciso defender a sociedade”
(1975-1976) e “Nascimento da Biopolítica” (1978-1979) no Collège de
France, cujos resumos encontram-se disponíveis em FOUCAULT, M.
Resumo dos cursos do Collège de France. 1970-1982. Rio de Janeiro: Zahar,
1997.
12
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo:
Perspectiva, 1999a; CASTEL, R. A ordem psiquiátrica: a Idade de Ouro
do alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 147


hospício, a casa de internamento, o lazareto), é preciso ir
além da técnica e explicar suas razões e seus conflitos den-
tro do campo social.
Foi dentro destas discussões que este trabalho sur-
giu, tendo como referência os estudos seminais de Michel
Foucault em História da Loucura. Tendo iniciado minha pes-
quisa em 1999, este trabalho resultou na feitura de uma tese
de doutorado, em 2006, com o título de Uma máquina de
curar: o Hospício Nossa Senhora da Luz e a formação da tecno-
logia asilar13 cujo teor evoco brevemente nas linhas a seguir.

“(Re)construindo o cenário”:
Curitiba no final do século XIX e início do XX

“A velha vila enfezada marcha para um novo


desenvolvimento”.14 Estas palavras do viajante Ave-
Lallemant definem bem o período de transformações pelo
qual Curitiba passou nas últimas décadas do século XIX.
Para entender o surgimento do Hospício Nossa Senhora
da Luz em Curitiba é preciso conhecer a Curitiba de um
século de mudanças que significou, entre outras coisas, na
transformação da cidade em capital da Província do Paraná.
O Paraná Província, independente de São Paulo desde 1853,
teve de se adaptar a partir da segunda metade do sécu-
lo XIX a uma série de exigências político-administrativas
do Império para sua transformação à condição de capital.
Nesta época, como nos demonstrou o historiador curitiba-
no Romário Martins em seu livro Curitiba de outr´ora e de
hoje, a cidade era

13
Agradeço imensamente a minha orientadora Ana Paula Vosne Martins e
igualmente a banca examinadora composta por Yonissa Wadi (Unioeste),
Luiz Otávio Ferreira (Fiocruz), Ana Maria Oda (Unicamp) e Ana Maria
Burmester (UFPR) pelas sugestões pertinentes.
14
AVÉ-LALLEMANT, R. Viagens pelas Províncias de Santa Catarina,
Paraná e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

148 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


uma insignificância, que de cidade só tinha o predicamen-
to official. Possuía 27 quarteirões, com 308 casas, 52 em
construção, 38 estabelecimentos comerciais de fazendas e
35 secos e molhados.15

Da mesma forma que cidades como Paris, Viena,


Londres e Rio de Janeiro passaram por grandes transfor-
mações urbanas no fin-de-siècle, Curitiba também atraves-
sava um momento de transformação, palco de construções
públicas, bulevares, avenidas, casebres, praças e jardins, lo-
gradouros e macadam. A cidade outrora descrita como um
acampamento militar, agora ganhava novos traços.
Não se pretenderia dizer que Curitiba oitocentista,
pacata e provinciana, imprimiu um mesmo ritmo de mu-
danças das grandes metrópoles do mundo. Mas também
nesta cidade, as transformações se fizeram presentes. Foi
necessário que uma nova concepção de cidade surgisse.
Como capital de Província, Curitiba deveria passar a ser um
exemplo de civilização, de morigeração,16 como diziam as
elites paranaenses. A partir daí, a cidade passaria a ser cons-
truída como uma cidade idealizada, ideal, determinando o
modus vivendi da população urbana.
Curitiba já teve seu primeiro plano urbanístico em
1857, que ficou sob a responsabilidade engenheiro francês

15
MARTINS, R. Curityba de outr´ora e de hoje. Curitiba: Ed da Prefeitura
Municipal de Curitiba, [19--]. p.170-171.
16
Morigerar ou morigerado eram termos frequentemente usados na docu-
mentação oitocentista do Paraná. Atualmente em desuso, o termo morige-
rar correspondia à ida de “comportar-se de acordo com os costumes”, de
portar-se segundo regras socialmente aceitas pela elite. Naquela sociedade,
eram considerados não morigerados os escravos, as prostitutas, os andari-
lhos, os vadios, os mendigos, jogadores, trapaceiros etc. que se opunham a
ordem e aos bons costumes impostos pela elite paranaense. Cf. PEREIRA,
M. Perigosos, imorais e não-morigerados. In: ______. Semeando iras rumo
ao progresso: ordenamento jurídico e econômico da Sociedade Paranaense
(1829-1889). Curitiba: Ed. da UFPR, 1996. p. 89.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 149


Pierre Taulois.17 Uma das concepções adotadas pelo enge-
nheiro era o paralelismo das ruas, apontando para o modelo
de cidade com forma regular, quadrilátera, com quadras per-
feitamente adensadas, tendo o cruzamento em ângulos retos
e bem definidos. Demonstrava-se com o plano urbanístico
de Taulois a preocupação com a circulação dentro da malha
urbana, trazendo os princípios científicos da engenharia fran-
cesa, em que o gerenciamento da circulação espacial já estava
sendo encarado como uma necessidade, desde as reformas
do Barão de Haussman em Paris, para a construção de uma
sociedade homogeneizada e disciplinada.
Na mesma época, por volta de 1858, o viajante alemão
Robert Avé-Lallemant passou por Curitiba e a descreveu da
seguinte forma:

Chegara eu a cidade de Curitiba. Por isso talvez é que


me surpreendeu muito agradavelmente a cidade de uns
cinco mil habitantes. Naturalmente nela nada se encon-
tra de grande ou grandioso. Em tudo, nas ruas e nas ca-
sas, mesmo nos homens, se reconhece uma dupla na-
tureza. Uma é a da velha Curitiba, quando esta ainda
não era uma capital de província, mas um modesto lugar
central, a quinta comarca de São Paulo [...]. Na segunda
natureza, ao contrário, se expressa decisiva regeneração,
embora não apareça nenhum grandioso estilo renascen-
ça. Em resumo, a velha vila marcha enfezada rumo ao
um novo desenvolvimento.18

17
Pierre Taulois, engenheiro francês, foi um dos fundadores da Colônia
Thereza (1847) situada próximo a Guarapuava-PR. Logo após a sua
chegada a Província do Paraná, foi contratado como Inspetor Geral de
Medição e Demolição das Terras Públicas. Cf. OS FRANCESES em
Curitiba. Boletim Informativo da Casa Romário Martins, Curitiba, v. 16,
n. 84, p. 13-15, jul. 1989.
18
AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 274.

150 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Ave-Lallemant descreveu Curitiba de meados dos
oitocentos como uma velha vila enfezada que marcha para
o novo desenvolvimento. Porém, outros viajantes europeus
que passaram pela cidade na mesma época, acostumados
com as grandes metrópoles, emitiram pareceres diferentes,
como é o caso do inglês Thomas Bigg-Wither, que esteve
em Curitiba em 1872:

A falta de agulhas de terrores ou de edifícios altos ou


mesmo das usuais chaminés dá a Curitiba, vista de lon-
ge, aspecto muito diferente de uma cidade inglesa. Quase
se podia classificá-la de aglomerado de tendas e cabanas,
formando o campo de um exército na expectativa de re-
ceber ordens de partir para outra localidade. O costume,
quase universal, de pintar as casas de branco fortalece esta
semelhança.19

A cidade doente: o discurso dos médicos sanitaristas

Apesar das descrições do engenheiro Thomas Bigg-


Wither, ao longo do século XIX, encontram-se diversos do-
cumentos como Relatórios dos Presidentes de Província e
nas Posturas Municipais, e escritos dos médicos sanitaristas
como Trajano dos Reis e seu filho Jayme dos Reis, preocu-
pações sobretudo com a questão da salubridade, tema cor-
rente no século XIX, que se faz presente por meio das leis
e decretos emitidos pela Câmara Municipal. Já que a cidade
começava a se adensar, transformando-se em local de aglo-
meração de pessoas de diferentes classes sociais e costumes,
o meio urbano se transformava em local favorável a trans-
missão de doenças e epidemias.

19
BIGG-WITHER, T. Novo caminho no Brasil Meridional: a província do
Paraná. Três anos de vida em suas florestas e campos 1872-1875. Rio de
Janeiro: J. Olympio, 1974. p. 51.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 151


A segunda metade do século XIX demonstrou uma
necessidade de transformar estes espaços em um local de
ordem e urbanização. O combate à insalubridade que se de-
sencadeou na capital paranaense nas últimas décadas do sé-
culo XIX originou um processo de planejamento de novas
formas de organização, base da urbanística moderna, e uma
formulação de leis e decretos no que tange a questão da saú-
de e salubridade pública nas posturas municipais. O médi-
co Trajano Reis escreveu seu trabalho intitulado Elementos
de Hygiene Social, em 1894, apontando para a necessidade
de trazer à população hábitos de higiene e asseio.20 Seu fi-
lho, quatro anos mais tarde, publicou no Rio de Janeiro,
sua tese de medicina, na cadeira de Higiene, intitulada Das
Principais Epidemias e Endemias de Curitiba.21 O projeto de
civilização e morigeração abraçado pela elite paranaense na
segunda metade do século XIX, que supunha implementar
a riqueza, o progresso, a modernização e a civilização na ca-
pital da Província, esbarrava-se com o temor das epidemias
e da insalubridade urbana, território também dos conflitos,
do não morigerado, do escravo, das classes perigosas.22 O
meio urbano tinha esta outra face, hostil, ameaçadora, peri-
gosa. Dentro desta experiência da nova estética e ideologia
burguesa, a oposição estava clara entre a intensidade da po-
breza e o deslumbramento do mundo burguês.23 Oposição
irreconciliável que levava ao desejo de domesticação ou vi-
gilância do homem pobre nos espaços públicos.
A partir daí o meio urbano passou a ser à medida que

20
REIS, T. dos. Elementos de hygiene social. Curitiba: Typ. Paranaense,
1894.
21
REIS, J dos. Dissertação das principais endemias e epidemias de Curityba.
Rio de Janeiro: Typ Ribeiro Macedo, 1898.
22
DE BONI, M. I. M. O espetáculo visto do alto: vigilância e punição em
Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.
23
RAGO, M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. São Paulo: Paz
e Terra, 1985.

152 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


dá a esse homem pobre a conotação patológica, conforme
seu odor, sua habitação, seu vestuário, enfim, seu modus
vivendi. A imprensa local alardeava a existência incômoda
de uma “romaria de cegos, aleijados, tísicos, etc. com seus
farrapos, com suas chagas, com sua pugentíssima miséria”24
nas ruas da capital paranaense. A estratégia das elites para-
naenses no final do século XIX provoca a distinção entre o
burguês desodorizado e o pobre infecto,25 induzindo a estra-
tégia higienista de Trajano e Jayme dos Reis que assimila a
desinfecção do espaço público a submissão e docilização do
homem pobre.
Foi neste cenário, que reconstruímos brevemente,
que se desenvolveram as primeiras estratégias de medica-
lização da loucura em Curitiba. Nos anos finais do século
XIX e início do século XX a loucura passou a ser tratada com
outro olhar. O louco que emerge desta discussão como um
problema social, vai se ver dotado de um completo status de
alienado: medicalizado, classificado, confinado em cubícu-
los, excluído do convívio social. Transformação da loucura
em doença, em fenômeno patológico, mas doença diferente,
exigindo, por este motivo, um tipo específico de medicina
para tratá-la: justamente a Psiquiatria. Um saber de tipo mé-
dico que torna a loucura objeto, que a considera como uma
doença e uma prática com finalidade de curá-la por meio de
um tratamento físico e moral só se consolida em Curitiba
nas décadas finais do século XIX. Donde a tese principal des-
ta pesquisa, considerando que é impossível compreender a
constituição da Psiquiatria no Paraná sem elucidar as práti-
cas e discursos sobre a loucura que levaram a construção do
primeiro asilo de alienados em Curitiba, o Hospício Nossa
Senhora da Luz. Situada à margem das grandes metrópoles,

24
Diário da Tarde, 05 jun. 1909.
25
Cf. CORBIN, A. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos sé-
culos dezoito e dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 153


a Psiquiatria no Paraná desenvolveu estratégias semelhantes
de consolidação de seu poder (consolidação de um espaço
institucional, extensão geográfica e político-administrativa
dos médicos rumo ao cargo de médico-chefe, desenvolvimen-
to do papel de perito atribuído ao médico, desqualificação de
outros discursos leigos sobre a loucura etc.). Se no Paraná, o
atraso em relação ao surgimento da primeira instituição psi-
quiátrica se explica pela falta de um espaço adequado, a emer-
gência do discurso sobre a necessidade de um hospício em
terras paranaenses demarca as primeiras conquistas de um
saber em formação. O objetivo deste trabalho é mapear as
origens das primeiras práticas em que o tratamento destinado
aos loucos começa a se distanciar dos demais desajustados ou
excluídos da sociedade. A loucura é retirada da universalida-
de abstrata da miséria e ganha um estatuto médico. Mapear
este deslocamento decisivo nos ajuda a entender o processo
de medicalização da loucura no Paraná e o desenvolvimen-
to de uma tecnologia alienista em que o hospício se tornaria
uma máquina de curar loucos.

Aos loucos, o hospício!

A emergência do discurso sobre a necessidade de


construção de um hospital psiquiátrico em Curitiba se dá
quase 50 anos após a criação do primeiro hospício no Brasil,
o D. Pedro II.26 Se no Rio de Janeiro, o surgimento do pri-
meiro hospício brasileiro foi fruto de um movimento desen-
cadeado pelos médicos da Academia Imperial de Medicina
como Francisco Xavier Sigaud, Luiz Vicente de Simoni, José
Martins Cruz Jobim, Jean Maurice Faivre,27 entre outros,

26
Cf. MACHADO, R. et al. Da(n)ação da norma: medicina social e consti-
tuição da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 365 et seq.
27
ENGEL, M. Delírios da razão: médicos, loucos e hospícios. Rio de
Janeiro: Ed. da Fiocruz, 2001.

154 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


que utilizavam periódicos médicos O Semanário de Saúde
Pública, Diário de Saúde e a Revista Médica Fluminense,
para veicular o movimento em defesa da construção do hos-
pício, em Curitiba não há nenhum movimento organizado
da classe médica. O movimento desencadeado para a cons-
trução do hospital psiquiátrico, ou como era chamado na
época asilo de alienados, foi desencadeado primeiro na im-
prensa e na fala dos Secretários dos Negócios do Interior,
Justiça e Instrução Pública. É significativo que o discurso
sobre a necessidade da construção de um estabelecimento
especial para os loucos não tenha sido motivado pela clas-
se médica.28 Outros atores, os filantropos, os políticos, a
Santa Casa de Misericórdia, os Chefes de Polícia, dão vo-
zes aos ecos dos primeiros discursos sobre a necessidade de
um espaço diferenciado. Este trabalho mapeia a emergência
do discurso sobre a loucura no Paraná usando como base
dois cenários distintos. O primeiro é o da Santa Casa de
Misericórdia, cenário em que se deram as primeiras reivin-
dicações sobre a construção de um asilo de alienados no
Paraná. O segundo cenário é o do próprio Hospício Nossa
Senhora da Luz, neste cenário mapeamos as falas dos médi-
cos, seus argumentos, seus conflitos com a administração
e a mesa diretora da Santa Casa de Misericórdia, a luta pela
consolidação do discurso médico para se tornarem os legí-
timos detentores do discurso sobre a loucura, mas não sem
lutas e desafios.

28
Este argumento já foi desenvolvido por Yonissa Wadi quanto a institucio-
nalização da loucura no Rio Grande do Sul. Parece-me que também em
Curitiba como em Porto Alegre, a classe médica ainda não era suficien-
temente forte para impor esta hegemonia. O discurso pela necessidade
do hospício surge, nas duas cidades, dentro da fala dos filantropos da
Santa Casa de Misericórdia. Sobre o Hospício São Pedro em Porto Alegre
vide WADI, Y. M. Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela
construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 155


O primeiro cenário:
a Santa Casa de Misericórdia de Curitiba

A liberdade das ruas
As primeiras referências aos loucos em Curitiba apa-
recem na documentação do século XIX por meio dos rela-
tórios dos chefes de polícia e dos secretários dos Negócios
do Interior, Justiça e Instrução Pública. Se bem que os lou-
cos não passavam de algumas dezenas de alienados vagando
pelas ruas da capital paranaense ou detidos na cadeia civil
situada na praça Tiradentes em meio aos gatunos, prosti-
tutas, desordeiros, embriagados, mendigos. Durante o sé-
culo XIX, a maioria das prisões efetuadas na cadeia civil de
Curitiba aparecia sob a rubrica de embriaguez e desordem.
Os alienados eram classificados entre tranquilos e furiosos.
Até a década de 1880, os alienados sequer tinham um espa-
ço diferenciado para enclausurá-los, sendo trancafiados nas
enxovias da Cadeia Civil com outros contraventores e indi-
víduos que eram retidos por perturbarem a ordem pública.
Quando não eram trancafiados na cadeia civil de
Curitiba, os loucos perambulavam livremente pelas ruas da
capital paranaense. Perambulando pelas ruas, vagando li-
vremente, estes tipos de rua acabavam tornando-se pessoas
estimadas e queridas pela população urbana. Presentes nas
ruas movimentadas da cidade, nas praças, nos jardins, na
igreja do Rosário e na Matriz, não há dúvida de que os lou-
cos já fizessem parte da paisagem urbana, com seus guizos
e vesânias, faziam parte da alma da cidade. Uns faziam rir
com suas extravagâncias outros provocavam pena. Muitos
deles chegaram até mesmo a ser caricaturados no periódico
Olho d’Água, que fazia crônicas sobre o cotidiano da cidade
na virado do século.29
29
Cf. KARVAT, E. A sociedade do trabalho: discursos e práticas sobre a
mendicidade em Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.

156 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Reais ou lendárias, as histórias destes personagens fo-
ram registradas pelas crônicas da cidade, que apesar de re-
produzidas e recolhidas por cronistas e memorialistas, nos
dão pistas de que havia uma outra modalidade da loucura
nas ruas. Muitos deles recebiam donativos, alimentos e até
mesmo um teto para se abrigarem nas casas de famílias vizi-
nhas e amigas. Outros sobreviviam da venda de bilhetes de
loteria, de esmolas, e dependiam da simpatia dos transeun-
tes. Frequentemente eram alvo de chacotas dos moleques e
das agressões físicas de outros, mas também eram objeto
de piedade e compaixão. Alguns eram até mesmo respei-
tados pelo seu profundo conhecimento ou por serem seres
mistificados, eram estimados e admirados. Neste aspecto, a
loucura se assemelha a um espetáculo das ruas. Pobres ou
miseráveis, tendo ou não relações familiares, maltrapilhos
ou vestidos a rigor, o fato é que estes personagens circula-
vam pelas ruas, Neste sentido, é correto afirmar que existia
certa tolerância com a loucura. Trata-se da possibilidade de
sublinhar a existência de várias modalidades de experiência
da loucura. O saber médico, com sua aparente vitória, não
conseguiu abolir das ruas a existência destes típicos perso-
nagens do espaço urbano.
Na alvorada do século XX, para contragosto daque-
les que desesperadamente queriam transformar a capital pa-
ranaense em um espaço homogeneizado, civilizado, mori-
gerado, havia estes personagem exóticos que com sua extra-
vagância tornavam o delírio um espetáculo. Sendo confun-
didos com os vadios e mendigos que perambulavam nas ruas
com seus andrajos, com seus farrapos, com suas chagas, com
sua pungentíssima miséria, os loucos eram associados aos
perturbadores da ordem pública, inseriam-se no universo
do não trabalho, nas fronteiras da legalidade e da liberdade.
O que tornava a loucura um problema social. Por um lado,
o louco era visto como um perigoso, figura generalizada de

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 157


associabilidade e da desordem. Ele não transgredia explici-
tamente nenhuma lei, portanto, não podia ser qualificado
como criminoso. Mas ao mesmo tempo, ele não podia ser
contido por nenhuma lei que preside a sociedade e certa-
mente ele transgredia todas as leis que presidem a organi-
zação social, tornando-se, por isso, um problema de ordem
pública. A figura do louco estava associada ao do nômade,
ao animal selvagem, aos sem pátria, que por não estar preso
a nenhum mecanismo de controle social, vagueia livremente
sem direção, ameaçando, pela sua própria existência, o con-
junto da sociedade. Vaguear pelas ruas tornava-se então, um
problema de ordem pública, e cada vez mais se evidenciava
a necessidade de criar um estabelecimento especial para os
loucos.
Quando não estavam vagueando pela cidade ou
trancafiados nas enxovias da cadeia civil, os loucos eram
enviados para a Santa Casa de Misericórdia. Muitos re-
gistros de loucos que eram enviados para o pio estabe-
lecimento estavam sob guia da chefatura de polícia, que
os recolhia das ruas quando estes representavam algum
problema para a ordem pública. É provável que a livre
circulação dos loucos em espaço público provocasse
problemas de conduta, levando-os a serem enquadra-
dos nas contravenções previstas pelo Departamento de
Identificação da Polícia (embriaguez, desordem, prosti-
tuição, vadiagem e mendicância). Particularmente os cri-
mes de ofensa à moral, bem como a vadiagem, podiam
eventualmente levá-los a cadeia.
Além disso, muitas vezes os loucos eram man-
tidos sob a responsabilidade de sua família, tornando-
se uma vizinhança incômoda e, às vezes, insuportável.
Pelos cuidados que exigiam e pelos problemas que po-
diam criar, esses loucos acabavam tornando-se um far-
do penoso para as famílias. Enviá-los para a Santa Casa

158 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


de Misericórdia parecia ser, enfim, uma alternativa tanto
para os loucos que circulavam pela cidade quanto uma al-
ternativa para as famílias que quisessem se livrar do fardo
penoso da loucura.
Foi dentro da Santa Casa de Misericórdia, institui-
ção criada para consolar, assistir e abrigar30 o sofrimento
dos pobres e inválidos na doença e na morte, que surgiram
as primeiras críticas em relação à necessidade de criação
de um hospício no Paraná. Curitiba contava então apenas
com cerca de 12 leitos ou cellulas especiaes para os loucos
dentro da Santa Casa. Estes eram um número reduzido de
cubículos que já estavam cada vez mais lotados pelo cons-
tante envio de alienados de cidades de Santa Catarina e do
interior do Paraná. A crítica à falta de espaço adequado na
Santa Casa de Misericórdia é parte central da argumen-
tação pela necessidade de um hospício. A ideia básica é
que o hospital de Misericórdia, onde se encontravam os
loucos, não oferece condições para abrigar medicamente
e tampouco para recuperar o louco. As condições em que
se encontram os loucos estavam em desarmonia com os
preceitos da ciência, das luzes e do sentimento de humani-
dade dos homens. Delineava-se claramente a oposição en-

30
A Santa Casa de Misericórdia era a instituição de benemerência por
excelência da Província do Paraná. Durante o século XIX ela desempe-
nhou um papel fundamental no cuidados dos pobres e inválidos atuan-
do diretamente nas políticas de amparo aos necessitados. Esta vocação
já está implícita nos discursos dos filantropos da Santa Casa e aparece
textualmente no documento firmado pela Irmandade de Misericórdia
em 1864. No capitulo III do Compromisso da Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia, afirma-se que: “Serão recebidos no hospital, e trata-
dos com desvelo e caridade: 1º Os irmãos pobres; 2º Todos os pobres e
mendigos; 3º Todas as mais pessoas que quiserem ser tratadas pela Santa
Casa de Misericórdia. Estas serão admittidas havendo proporções para
isto, e entre ellas serão preferidas os escravos que pertencem a família
dos irmãos, pegando por dia o que for estabelecido no regimento”. Cf.
IRMANDADE DE MISERICÓRDIA. Compromisso da Santa Casa de
Misericórdia. Curitiba: Typ. de Lopes, 1864. p. 10-11.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 159


tre hospital de caridade e hospício. O hospital de caridade
tem células especiais para o louco, mas não o trata nem
o recupera, assemelhando-se a gaiolas humanas em que o
louco encontra-se numa espécie de antecâmara da morte,
ali não há tratamento nem esperança.
Curiosamente, este discurso não emana da classe mé-
dica. Em meados do século XIX os médicos ainda encon-
tram-se à margem para impor esta hegemonia. A principal
crítica emana dos discursos públicos e se direciona para a
crítica em relação aos loucos no Hospital de Caridade e
nos espaços públicos. Paradoxo que não se pode resolver
simplesmente isolando o louco, privando-o de sua liberda-
de. Para estes, o lugar do louco não é a cadeia, nem a rua,
nem o hospital de caridade, mas o hospício. A loucura não
se trata com liberdade, nem com repressão, mas com dis-
ciplina e autoridade médica. O hospício então é o grande
pilar da Psiquiatria nascente e atesta o nascimento de uma
especialidade.
A ofensiva do discurso dos filantropos da Santa
Casa de Misericórdia e dos Secretários do Interior, Justiça
e Instrução Pública, os principais enunciadores desta pro-
posta configura-se na medida em relação ao louco que
prevê a criação de um estabelecimento especial, uma ins-
tituição capaz de medicalizá-la. Para combater a loucura
o modelo escolhido foi o hospício, instituição criada pela
Psiquiatria francesa no século XVIII por Pinel e Esquirol.
Um espaço próprio em que o louco é retirado do seu
meio natural e tratado segundo os preceitos da Ciência e
da Humanidade, meio capaz não só de dominá-lo em um
ambiente fechado, mas também de destruir seus efeitos,
subjugar sua ameaça, integrá-lo a vida urbana por um pro-
cesso de recuperação e reinserção nos círculos produtivos
da sociedade.

160 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


O segundo cenário:
o Hospício Nossa Senhora da Luz

O eco das reivindicações começa a sair do discurso


para a prática quando assume a provedoria da Santa Casa de
Misericórdia, o monsenhor Alberto Gonçalves. A luta pela
criação de um estabelecimento especial em Curitiba, portan-
to, não é isolada nem quixotesca. Articula-se com perfeição
aos projetos de dom Alberto Gonçalves. A luta pela criação
de um hospício em Curitiba encarna-se, portanto, na figu-
ra adequada. Além de circular nos altos postos políticos,31
dom Alberto é o elemento mais importante da instituição
possuidora dos meios materiais para elevar um hospício.
Desde a década de 1890, portanto, dom Alberto Gonçalves
encabeça o movimento pela construção do asilo de aliena-
dos na capital paranaense. A Santa Casa de Misericórdia
aparece como naturalmente capacitada a elaborar a tarefa de
construção e administração do um novo tipo de estabeleci-
mento destinado a cuidar dos loucos. Tendo o precedente
do encargo dos necessitados, dos pobres e dos inválidos. O
saber médico instrumentaliza-se na figura do provedor para
promover a filantropia.
Nos relatórios de sua gestão, apresentados à Mesa
Diretora da Irmandade de Misericórdia, o provedor expõe
as deficiências do Hospital de Caridade e propõe mudanças
na administração do hospital mantido pela Santa Casa de
Misericórdia e a criação de um novo estabelecimento desti-
nado exclusivamente aos alienados, já que nos últimos anos,
o provedor vinha recebendo diversas críticas dos secretários
dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública e dos
chefes de polícia quanto à falta de um local adequado para en-
viar os loucos. Tendo num mesmo ambiente os pobres invá-
31
Cf. CARNEIRO, D. Galeria de ontem e de hoje. Curitiba: Vanguarda,
1963. p. 314-315.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 161


lidos, os doentes contagiosos e as mulheres grávidas, os alie-
nados não podiam receber os cuidados necessários. Vivem
encarcerados nos quartos que lhes são destinados sem ter ar
e liberdade. Faltam-lhe meios e um lugar mais espaçoso com
um amplo jardim para que possam ser realizados os passeios.
Capacitado pela função de provedor e membro da
Irmandade de Misericórdia, d. Alberto Gonçalves tomou
medidas no sentido de lançar as primeiras atividades con-
cretas para a criação do hospício: a formação de uma comis-
são32 encarregada de levar a construção do hospício a cabo e
da arrecadação de fundos, que foi feita por meio da organi-
zação de uma loteria autorizada pelo governo do Estado.
Apesar da morosidade do processo e dos constantes
atrasos e paralisações, enfim o Hospício Nossa Senhora da Luz
é inaugurado em 25 de março de 1903, no distante bairro do
Ahú, tendo seu acesso principal pela Avenida Anita Garibaldi.
Um edifício de arquitetura eclética, contendo dois pavimentos
de paredes grossas, espaçoso e amplo, que recebeu elogios de
Ermelino de Leão em seu Dicionário Histórico e Geográfico
do Paraná como um marco da filantropia paranaense.33 E o
historiador do Instituto Geográfico e Histórico do Paraná,
Herberth Munhoz van Erven, exclama em seu Contribuição
ao Histórico do Hospital de Nossa Senhora da Luz “São João de
Deus ou Pinel não exigiriam, para o meio e para a época, cousa
melhor”.34 Em 4 e 5 de abril, o hospital começava a receber os
primeiros pacientes matriculados enviados da Santa Casa de
Misericórdia. Segundo Van Erven, o primeiro matriculado do
hospício era um homem chamado Antônio Ângelo K., de 35
anos de idade, cor branca, filiação ignorada, natural da Polônia,

32
A Comissão Especial foi formada em meados da década de 1890 por
Joaquim Monteiro, José Loureiro, Manoel Martins de Abreu e encabeçada
por D. Alberto Gonçalves.
33
LEÃO, E. Dicionário histórico e geográfico do Paraná. [S.l.: s.n.], 1926.
34
MUNHOZ VAN ERVEN, 1944, p. 9.

162 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


lavrador, analfabeto, residente de Ferraria, foi internado com
guia da chefatura de polícia. A primeira mulher registrada foi
Vitória M., de quem o autor não faz maiores menções. Várias
outras pessoas, como a enfermeira Marcolina, após sua recupe-
ração, sem ter para onde ir, continuaram no hospício, efetuan-
do pequenos serviços em troca de moradia e alimento.35
Em 25 de março de 1903 o jornal Diário da Tarde
saúda a criação do Hospício Nossa Senhora da Luz como
um verdadeiro marco filantrópico no Paraná, um suntuoso
palácio de guardar doidos:

Com a inauguração do Hospício Nossa Senhora da Luz, o


Estado do Paraná deu hoje um dos mais brilhantes passos
no caminho do Progresso e da Civilização. Aquele soberbo
palácio da desventura que assoma o campo verde, como
atalaia do bem, é o attestado mais convincente do senti-
mento altruístico do povo paranaense.36

O hospício era dividido em duas partes: uma ala para os


pensionistas e outra para as enfermarias gerais, destinadas aos
loucos pobres e sem família. O hospital era financiado pelo di-
nheiro arrecadado com as pensões e por uma subvenção vinda
do governo do Estado, além de contribuições da Sociedade de
Socorro aos Necessitados e de donativos eventuais.
O primeiro médico-chefe foi o diretor Rodolfo Pereira
Lemos. Faziam parte do serviço clínico também os médicos
Cláudio Lemos, seu filho; José Guilherme Loyola o único com
titulação em Psiquiatria, com uma tese apresentada no Rio de
Janeiro sobre o Livre-Arbítrio e Simulação da Loucura;37 e João
Evangelista Espíndola, um dos mais respeitados cirurgiões

35
Boletim Informativo da Casa Romário Martins, n. 62, p. 22, fev. 1982.
36
Diário da Tarde, 25 mar. 1903.
37
LOYOLA, J. G. Livre arbítrio e simulação da loucura. 1900. Tese –
Faculdade de Medicina, Rio de Janeiro, 1900.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 163


curitibanos na época, editor da revista Paraná Médico.
O serviço de atendimento do Hospício Nossa Senhora
da Luz também ficava a cargo das irmãs de caridade. Desde a
criação da diocese de Curitiba, as irmãs de caridade francesas
de São José de Chambery atuavam como enfermeiras e ca-
ridosas na Santa Casa de Misericórdia. No Hospício Nossa
Senhora da Luz o serviço foi incumbido a um grupo de reli-
giosas: irmã Maria Lúcia (Jeanne Marie Rolland), irmã Flávia
(Virginie Borlet) e irmã Maria Francisca (Victoire Michel),
entre outras.38 O hospital ainda possuía uma capela dirigida
por quinze anos pelo padre francês Maurice Dunard, e tam-
bém pelos padres cordimarianos Germano Beroud, Alphonse
Lebrut e Geronimo Mazzaroto. Como não havia igrejas nas
redondezas do Ahú a capela servia como local para batizado,
casamentos e missas, sendo também local de encontro de co-
munidades católicas (marianos, vicentinos etc.).39
O Hospício Nossa Senhora da Luz funcionou qua-
tro anos no recém-inaugurado casarão eclético próximo da
Avenida Anita Garibaldi. Porém, na mesma época o governo
do Estado necessitava começar a construção de um sistema
penitenciário, já que a Cadeia Civil não comportava o núme-
ro de prisioneiros. Os sentenciados cumpriam prisão provi-
sória no quartel do Regimento de Segurança. Em janeiro de
1905, o governador do Estado do Paraná, Francisco Xavier da
Silva, entrou em contato com a Mesa Ordinária da Irmandade
de Misericórdia, presidida por dom Alberto Gonçalves, e
firmou um acordo em que o Estado ficava com o edifício
do Ahú onde funcionava o hospício Nossa Senhora da Luz
para ali construir uma penitenciária do Estado. Em troca, o
Estado ofereceu à Santa Casa de Misericórdia, os subsídios

38
Cf. PIZANI, M. A. O cuidar na atuação das irmãs de São José na Santa
Casa de Misericórdia de Curitiba (1986-1937). 2005. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005.
39
PIZANI, 2005.

164 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


necessários para a construção de um outro estabelecimento
em local escolhido pela Santa Casa de Misericórdia.40
Firmado o contrato entre o governo do Estado e a
Santa Casa de Misericórdia, iniciaram-se as construções da
nova sede do Hospício Nossa Senhora da Luz. Se o casa-
rão do Ahú, prédio suntuoso e monobloco, assemelhava-se
a outras construções típicas da segunda metade do século
XIX como o Hospício São Pedro em Porto Alegre ou o
Asilo São João de Deus na Bahia, que tinham como referên-
cia a grande instituição da época, o Hospício D. Pedro II, a
nova sede do Hospício Nossa Senhora da Luz, construída
no bairro do Prado Velho, começava tomar como referência
uma nova instituição: o Juquery em São Paulo.
Criado por Franco da Rocha e projetado pelo arqui-
teto Ramos de Azevedo em São Paulo, o Juquery começava
a transformar-se numa grande referência em fins do século
XIX e início do século XX. Ao invés de um prédio mono-
bloco (característica do principal hospício até então, o d.
Pedro II no Rio de Janeiro) o Juquery se dividia em um pa-
vilhão administrativo, cercado por um jardim central onde
se distribuíam os pavilhões de internamento.41
O cronista da História da Santa Casa de Misericórdia
de Curitiba, Francisco Negrão, afirma que a proposta de
construir uma nova sede para o Hospício Nossa Senhora da
Luz se mostrava vantajosa, pois

uma vez que a prática faz ver que a construção de um novo


estabelecimento deve ser feita de accordo com as regras da
sciencia e hygiene, que manda ser em pavilhões separados,
a exemplo do que foi construído em São Paulo.42

40
Cf. NEGRAO, F. Memória da Santa Casa de Misericórdia de Curityba.
Curitiba: Imprensa Gráfica Paranaense, 1933. p. 23.
41
CUNHA, 1988.
42
NEGRÃO, 1933, p. 25.

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 165


Ou seja, os princípios de higiene e ciência determina-
vam que a nova sede deveria ser construída com base em
pavilhões separados.
Este foi o modelo adotado na segunda sede do
Hospício Nossa Senhora da Luz, inspirado nitidamente no
Juquery.43 A característica deste modelo é a simetria, com a
implantação de pavilhões isolados. Os edifícios de alvenaria
possuíam dois pavimentos.44 A teoria médica que funda-
mentava esta distribuição era a de entremear pavilhões por
áreas de lazer, em torno de um jardim central, de forma a di-
vidir os pacientes em grupos mais reduzidos com separação
por sexo, classe social e conduta. Cada pavilhão possui uma
área aproximada de 1.500 a 1.900 m2. Além dos pavilhões de
internamento, onde funcionavam o serviço e o refeitório,
foram construídos pavilhões de apoio, destinado a abrigar
a cozinha, a lavanderia e a usina elétrica, destruídas em um
incêndio em 1916 e logo reconstruídas.45 A construção do
edifício administrativo foi iniciada em 1923 e recebeu o
nome de André de Barros em homenagem ao antigo prove-
dor da Santa Casa de Misericórdia

Os médicos em cena:
discursos e práticas sobre a loucura no Paraná

Até a virada do século XIX para o XX não percebemos


em Curitiba um discurso médico coerente acerca das práticas
da loucura. A fala dos médicos está ausente no discurso sobre
a necessidade de construção de um Asilo de Alienados que
se delineia nas décadas finais do século XIX. Como vimos,
os enunciadores desta fala são os filantropos da Santa Casa
de Misericórdia e as autoridades públicas como os chefes de

43
CASTRO, 2004, p. 40
44
CASTRO, 2004, p. 46.
45
MUNHOZ VAN ERVEN, 1944, p. 10-11.

166 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


polícia e os secretários dos Negócios do Interior, Justiça e
Instrução Pública. Domínio da discussão sobre a ordem pú-
blica e a piedade, a loucura não era essencialmente encarada
como uma doença especial, sendo objeto de uma medicina
que a dispunha tratar de acordo com um tratamento físico
e moral herdada do saber científico francês. Se o hospício
existia nos moldes da instituição criada por Philippe Pinel na
França, dentro da instituição, o médico ainda não tinha poder
suficiente. O surgimento destes novos agentes no cenário da
loucura, como operadores práticos na lida com a doença men-
tal, demarca, a nosso ver, a emergência das práticas psiquiá-
tricas no Paraná. Daí a importância de analisar o Hospício
Nossa Senhora da Luz como o próprio palco em que se de-
senvolveram as lutas e estratégias da Psiquiatria nascente,
sendo importante para entender a constituição da institucio-
nalização da loucura no Paraná.
A primeira linha de expansão do movimento alienista
é em direção ao controle das funções administrativas den-
tro do hospital. Na fundação da Psiquiatria, o hospício é
considerado o lugar de exercício da ação terapêutica, o tra-
tamento moral. Tendo por objetivo destruir a loucura, ca-
racterizando-se por uma ação que não se dá como negativa,
mas dedicada a impedir, afastar, tolher e neutralizar os seus
efeitos, a Psiquiatria precisa ser instrumentalizada de uma
série de dispositivos que possibilitem sua máxima eficácia
de intervenção.
Daí o hospício ser um espaço criado especialmente
para o louco, que não é acidental ou exterior ao núcleo bá-
sico da ação psiquiátrica, mas que, obedecendo aos requisi-
tos básicos postulados pela medicina mental, deve canalizar
a ação do espaço para possibilitar a máxima eficácia. Assim,
ao contrário de outras formas de isolamento, no hospício, o
que cura é o próprio hospício. O asilo, diziam os alienistas, é o

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 167


instrumento mais poderoso contra as doenças mentais.46 Entre
o hospício e a Psiquiatria, portanto, não há relação de exte-
rioridade. A prática psiquiátrica tem como núcleo a ação hos-
pitalar, a organização do espaço e o controle. Ele é mais que
um espaço utilizado a favor da ação médica, é a própria ação
médica. O hospício é uma instituição concebida medicamen-
te. Mas se analisarmos mais de perto o espaço em questão,
o Hospício Nossa Senhora da Luz, percebemos que mesmo
em sua seara, o médico do Hospício acabava tendo que com-
partilhar a autoridade sobre a loucura com outros poderes.
Subordinação que se percebe na estrutura administrativa da
instituição, que continua a ser ligada a Mesa Diretora da Santa
Casa de Misericórdia de Curitiba, assim como o Hospital de
Caridade. Além do serviço sanitário, composto pelos médi-
cos, o Hospício ainda contava com o governo das irmãs de
caridade de São José e um serviço religioso. Instâncias que
escapavam ao controle imediato do médico.
Mas uma das questões que denota a maior falta de
poder dos médicos na cena hospitalar é a inscrição dos alie-
nados. Domínio exclusivo da administração da Irmandade,
a seleção dos loucos não é feita segundo o critério médico.
Cabe ao provedor da Santa Casa efetuar a matrícula me-
diante a requisição oficial do Juiz de Órfãos ou do Chefe
de Polícia ou delegado do distrito de residência do alienado,
ou do lugar onde foi encontrado circulando livremente; ou

46
A tese de que o hospício é o núcleo central da ação psiquiátrica é um
consenso no meio alienista francês do final do século XVIII e início do
XIX. Transformar o espaço hospitalar em um instrumento de curar é
parte integrante da chamada Grande Reforma dos Hospitais, da qual fize-
ram parte Pinel, Tenon, Esquirol, Cabanis, Poyet, entre outros. Ao longo
de vários textos como os de Pinel, Esquirol, Marc, Briere de Boismont,
Lasegue, Voisin, Falret, Leuret e outros alienistas do chamado “Grupo
da Salpêtrière” aparece essa defesa generalizada do hospício como locus
da ação terapêutica. A literatura sobre este axioma alienista é vasta e ina-
barcável para os limites deste estudo. Para maiores informações sobre o
contexto europeu. Cf. CASTEL, 1978, p. 85-95.

168 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


sendo militar ou religioso, mediante a requisição de seu su-
perior; ou ainda, petição oficial do pai, marido, mulher ou
senhor (se escravo) do alienado. Os alienados internados
deveriam passar um período de aproximadamente quinze
dias de avaliação da autenticidade e julgamento da sua de-
mência. Após este tempo o administrador era obrigado a
notificar sua admissão ao Juiz de Órfãos da cidade.
Assim, se de acordo com a perspectiva médica, a en-
trada, permanência e saída dos loucos no hospício deveria
ser um assunto estritamente do âmbito médico, no caso do
Hospício Nossa Senhora da Luz, tratava-se de uma decisão
compartilhada por várias instâncias do poder: o provedor da
Santa Casa, o Juiz de Órfãos do distrito, o chefe ou delega-
do de polícia, os familiares, tutores, curadores ou senhores
de alienados etc., cabendo ao médico apenas a tarefa de vali-
dar a petição mediante um certificado de atestado de loucura
apresentada ao Juiz de Órfãos.
Portanto, desde meados do século XIX emerge um
discurso em favor da construção de um hospício no Paraná.
A criação do Hospício Nossa Senhora da Luz representou o
primeiro passo concreto na implementação deste projeto, as-
sinalando não apenas a intenção de excluir a loucura, mas de
tratá-la e até mesmo curá-la. Entretanto é preciso considerar
que, embora tendo representado uma conquista importante
para a apropriação médica sobre a loucura, a criação deste esta-
belecimento não assegurou, na prática, a consolidação do pre-
domínio médico sobre a loucura. Como foi visto, mesmo den-
tro das fronteiras que isolavam o mundo do asilo, a autoridade
médica em relação ao louco era bastante cerceada. Este tinha
que dividi-la com outros poderes, familiar, jurídico, policial
etc. No funcionamento cotidiano, o poder médico estava su-
bordinado a administração leiga da Santa Casa de Misericórdia,
inclusive no que se referia às decisões do âmbito clínico. O
pequeno número de médicos existentes no estabelecimento

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 169


também impunha limites a medicalização da loucura.
Por todos os aspectos assinalados aqui, pode-se con-
cluir que a função de medicalização do hospício foi uma ta-
refa cumprida de forma precária, mas apresentou um marco
importante na constituição das práticas médicas no Paraná.
Ao longo das primeiras décadas do século XIX, os direto-
res do serviço clínico do Hospício Nossa Senhora da Luz,
como Rodolfo Lemos, Cláudio Lemos e José Guilherme
Loyola, revelariam uma crescente consciência da fragilidade
e dos limites do poder alienista dentro e fora da instituição.
Admissões indiscrimidas de pobres e necessitados envia-
dos pela Sociedade de Socorro aos Necessitados ou reco-
lhidos das ruas transformavam o hospício em um depósito
de mendigos, comprometendo não apenas o papel curativo
do estabelecimento, mas também a intenção de o hospício
se tornar um laboratório da loucura, de observação clínica
exata. Caracterizadas, entre outras coisas, pelo problema
da superlotação, as primeiras décadas do século XX foram
marcadas pelas críticas ao hospital.
Curiosamente, as críticas que surgem nos anos de 1920
e 1930 não são críticas externas, protestos, desconfianças, de-
núncias de quem se sentiu prejudicado pelo arbítrio médico,
mas as críticas partem dos próprios médicos e mesmo dos
diretores do serviço clínico. Delineiam-se assim os primei-
ros sintomas da insatisfação médica quanto aos resultados
concretos de sua primeira conquista, o hospício. Embora
tímidas, feitas no âmbito dos relatórios institucionais apre-
sentados na mesa da Santa Casa de Misericórdia, as críticas e
lamentações não cessam de crescer: críticas quanto à super-
lotação, críticas quanto à mistura e promiscuidade dos lou-
cos e indigentes, críticas às deficiências materiais do estabe-
lecimento (como falta de água). O tom áspero das queixas,
as denúncias, fundamentadas em argumentos cada vez mais
rebuscados, revelam algumas mudanças intimamente ligadas

170 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ao surgimento formal da Psiquiatria no Paraná. Assim, pode-
mos perceber que a emergência dos discursos dos médicos
diretores do hospício demarcam uma tripla estratégia de con-
quista: conquista do espaço hospitalar, conquista das funções
de médicos-chefes e conquista dos saberes privilegiados e
dos discursos sobre a loucura. Incursão difícil, mas também
rica em desenvolvimentos futuros.
Inegavelmente, as estratégias elaboradas pelos médi-
cos alienistas no final do século XIX e, sobretudo nos anos
iniciais do século XX, foram conduzidas até o seu termo.
No final deste processo, a loucura, que emergiu como um
problema social, um problema de ordem pública, vai se ver
dotada de um extenso aparato clínico: o definido como do-
ente mental receberá um local apropriado para o seu trata-
mento e o surgimento de um saber especializado para tratá-
lo. Tripla dimensão que define até hoje as bases da síntese
psiquiátrica: o hospício, a doença, o médico.

***

Recentemente, por ocasião do Centenário do Hospício


Nossa Senhora da Luz (março de 2003), a instituição promo-
veu uma verdadeira reforma psiquiátrica ao abolir os muros que
circundavam o hospital (foram substituídos por grades), alu-
dindo ao gesto fundador da Psiquiatria, a libertação dos loucos
por Philippe Pinel em 1793. Mais de trezentos anos separam
estes dois gestos, mas a estrutura que rege os dois momentos
pode ser qualificada como a mesma. Por trás dos muros, es-
boça-se toda uma maquinaria do isolamento que não cessa de
crescer: mudam suas roupagem, suas linguagens, efetua-se ag-
giornamentos, mas a ordem psiquiátrica resiste. Não necessita-
mos dos muros do asilo para romper os diques desta estranha
vizinhança entre os loucos e sãos. Ao borrarmos as fronteiras
simbólicas entre os sãos e os loucos, sob o pretexto de acolher

A ordem psiquiátrica e a máquina de curar • 171


a vizinhança não estaremos domesticando-a? Será que a estra-
tégia da libertação simbólica do louco (abolir os muros) não é
de fato uma homogeneização do social? Quando os loucos se
tornarem estes vizinhos pacíficos o que restará da loucura? Ou
melhor, desta dimensão desarrazoada que até hoje insiste em
ser patrimônio da própria loucura?

Figura 2 – Pavilhão de Internamento47

Figura 2 – Pavilhão de Internamento

Fonte: Castro (2004, p. 42).

Figura 3 – Pavilhão de Internamento48


Figura 3 – Pavilhão de Internamento

Fonte: Castro (2004, p. 42).

47
Fonte: CASTRO, 2004, p. 42.
48
Fonte: CASTRO, 2004, p. 42.

172 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


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176 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Capítulo 6

a loucura entre dois mundos:


práticas de intervenção médica e
assistencialismo no sanatório espírita
de uberlândia (1932-1970)

Raphael Alberto Ribeiro1

Muitas questões concernentes à institucionalização


da loucura, no final do século XX, serviram, principalmen-
te, para mostrar o descaso e os abusos sofridos pelos inter-
nos das instituições psiquiátricas.
Desde a década de 70, muitos grupos têm lutado por
melhores condições no tratamento psiquiátrico, questio-
nando inclusive o monopólio da Psiquiatria com relação à
decisão de trancafiar ou não determinados pacientes. Esses
questionamentos motivaram novos estudos sobre a loucu-
ra, que colocam em discussão o saber médico. Como re-
sultado de inúmeras denúncias e lutas, a penosa realidade
dos manicômios foi exposta em diversos meios midiáticos,
provocando um certo descrédito na terapêutica psiquiátri-

Mestre e doutorando em História Social pela Universidade Federal de


1

Uberlândia.

A loucura entre dois mundos • 177


ca. A materialização disto pode ser percebida, por exemplo,
na Lei Paulo Delgado,2 que possibilitou várias experiências
no tratamento dos transtornos mentais.
O intuito deste trabalho é estudar a institucionaliza-
ção da loucura em Uberlândia, focando a influência que de-
terminados segmentos da sociedade tiveram no tratamento
de loucura desta cidade.
A história do tratamento da loucura em Uberlândia
iniciou-se na década de 30 com a criação do Penate Allan
Kardec, sob direção do Centro Espírita Fé, Esperança e
Caridade, numa rua do Centro da cidade. O Penate tinha
capacidade para atender, aproximadamente, 20 pessoas.
Com o crescimento da cidade foi preciso construir uma
casa maior, com uma estrutura mais apropriada para atender
os inúmeros casos que requeriam cuidados.
Antes da criação do Sanatório, caso um membro de
determinada família fosse portador de transtornos mentais,
ele era mantido em casa, em algumas circunstâncias, amar-
rado, uma vez que não era possível tratar destas pessoas de
outra forma. Alguns desses enfermos se tornavam indigen-
tes pela recusa da família nos cuidados necessários ou enca-
minhados a outras cidades pelas instituições por excesso de
internados.
A implementação de um manicômio na cidade só foi
possível devido à participação de uma instituição filantró-
pica, neste caso, a espírita. A presença de espíritas faz-se
perceber no poder público, e também no processo de legi-
timação e institucionalização da assistência social da pró-
pria sociedade, pois o cumprimento de atividades essenciais
relativas aos cuidados com a saúde, e não filantrópicas, es-

2
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Lei nº 10.216. Brasília, DF, 06 abr.
2001. Não é a proposta deste trabalho discutir os grupos de luta antima-
nicomial e diversos outros importantes contribuíram para a humanização
do tratamento da loucura.

178 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


tavam a cargo de entidades religiosas quando, em teoria,
deveriam ser dever do Estado. É por causa desse descaso
do poder público em relação aos problemas sociais, que sur-
giram personagens que ficaram marcados no imaginário da
cidade. A aceitação que muitos espíritas tiveram perante a
sociedade uberlandense, neste período da implementação
do Sanatório Espírita, pode ser comprovada pelo número
de doações. As feitorias dos seus adeptos alcançaram núme-
ros surpreendentemente expressivos, assumindo uma estra-
tégia eficiente de divulgação da sua doutrina.
Diante das diversas obras assistencialistas edificadas
pelas instituições espíritas em todo o país, aquelas que vi-
savam o tratamento da loucura merecem maior destaque.
Segundo a premissa kardecista, o reconhecimento da loucu-
ra como obsessão faria com que muitos adeptos da doutrina
religiosa se empenhassem na edificação de sanatórios por
todo o país. Essa visão favoreceu a criação do Penate Allan
Kardec em 1932.3
No final da década de 30, intensificou-se a campanha
para angariar fundos em prol da construção do novo hospí-
cio, desta vez com uma arquitetura própria para abrigar os
internos a exemplo dos asilos existentes em outros locais.
Alcindo Guanabara, espírita atuante trabalhou em várias
instâncias, promovendo ampla divulgação do que viria a ser,
o mais importante feito para a instituição espírita a constru-
ção de um sanatório adequado. O fato de ter sido chefiado
por espíritas – doutrina religiosa de pouquíssimos adeptos
e perseguida por alguns representantes do catolicismo – não
impediu as doações vindas dos católicos, que foram inclusi-
ve, indispensáveis para o funcionamento do hospício.
A existência deste manicômio e a sua eficácia em ga-
rantir o isolamento dos doentes remontam à ações comple-

VITUSSO, I. R. Terra fértil semente lançada. A história do espiritismo em


3

Uberlândia. Uberlândia: Aliança Espírita Municipal, 2000.

A loucura entre dois mundos • 179


xas, como as relacionadas aos dispositivos de controle de-
fendidos por diversos setores urbanos, e à receptividade das
pessoas diante dessa instituição. Mais ainda, às próprias ma-
neiras pelas quais setores da sociedade se fizeram presentes,
lutaram para que projetos higienizadores fossem realmente
implantados. Portanto, entender as relações de forças esta-
belecidas, e o imaginário delineado em torno dos transtor-
nos mentais e do tratamento assistencialista, possibilita-nos
o entendimento da maneira como os diversos setores da co-
munidade local se empenharam na transformação, limpeza
e ordenação do espaço urbano.
Em 1942, representantes do poder público, da ma-
çonaria, médicos e os membros da Associação Comercial
e Industrial (Aciub), reunidos, celebraram a inauguração
do Sanatório Espírita de Uberlândia, uma instituição asilar
que correspondia aos interesses de membros tão diversos.
Depois de intensas cobranças, a notícia do evento foi edita-
da na primeira página do jornal local mais importante:

Conforme já é do domínio publico, inaugurou-se no dia


29 do mês de Abril próximo findo, o Asilo de Dementes
Allan Kardec, instituição essa, construída pelo espírito
altamente dinâmico e caritativo do povo desta grandiosa
Uberlândia e, patrocinada pela Associação Espírita.4

Foram internadas no primeiro ano da instituição 17


pessoas, segundo os prontuários do sanatório. Além do
médico Moysés de Freitas, clínico geral e radiologista, o
sanatório dispunha de uma enfermeira voluntária, dona
Marolina, que fora contratada posteriormente. A casa ti-
nha ainda outro enfermeiro, assalariado, chamado Rosalvo,

4
Sob a mais viva satisfação, inaugurou-se domingo em nossa cidade, O
“Asilo de Dementes”. Correio de Uberlândia, Uberlândia, p. 1, 1 abr.
1942.

180 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


e, posteriormente, teria-se contratado outro enfermeiro, o
Bitencourt. As cozinheiras e outros ajudantes trabalhavam
realizando as tarefas gratuitamente com amor e dedicação à
religião que professavam. Nenhum dos enfermeiros tinha
formação acadêmica para a prática da profissão.5
No começo da década de 60, o psiquiatra Lázaro
Sallum assume as atividades no hospício. Ele foi aprovado em
um concurso estadual para atuar como psiquiatra na cidade,
mas Homero Santos, deputado estadual na época, conseguiu
que o médico fosse atuar no sanatório, não precisando, com
isso, que os espíritas arcassem com as despesas referentes ao
salário do psiquiatra. Esta parceria do poder público com a
entidade religiosa possibilitou que o manicômio continuas-
se a existir, mostrando-nos o jogo político estabelecido e a
aceitação e prestígio que militantes kardecistas desfrutavam.
Quanto à chegada de Sallum ao Sanatório:

Quando o senhor Gladstone [diretor da instituição neste


período] e Sr.. João Dorneles Santos Junior [militante espí-
rita e posteriormente diretor do hospício], não sei se você
chegou a conhecer, que é um dos diretores do Sanatório,
eles vieram através do meu pai.
Então através que eles eram maçons e insistiram muito
comigo, eu ainda não sabia se ia ficar em Uberlândia ou
não, certo. Então eu aceitei dirigir lá, dar o nome como
diretor clínico do Sanatório porque eles estavam na imi-
nência de fechar o Sanatório porque não tinha psiquiatra.
Então eu aceitei assinar como diretor clínico do Sanatório
e quando eu vi que não ia sair mesmo o curso do CAPS e
que se eu fosse pra Uberaba eu não ia ter grandes vanta-
gens, certo?

CASTRO, M. Depoimentos. Uberlândia, jan. 2001.


5

A loucura entre dois mundos • 181


Eu fiz concurso do Estado e fiz concurso pro INSS tam-
bém. E, felizmente eu fui aprovado nos dois e aí eu fixei em
Uberlândia definitivamente. Como médico perito, fazia
perícia na parte neurológica e psiquiátrica para trabalho e
médico do posto de saúde. Foi aí que entrou a diretoria do
Sanatório, através do deputado Homero Santos que foram
lá e conversaram na época, era o governador de Minas, era
o Magalhães Pinto.6

Em última instância, poderíamos até considerar que


a inauguração do manicômio representava para a população
local a solução dos problemas referentes ao isolamento e
tratamento dos loucos. No entanto, as ruas não deixaram
de ser habitadas pelos doentes. A convivência era garanti-
da desde que não perturbassem o espaço do mundo são. É
comum ouvir entre os moradores da cidade histórias en-
volvendo loucos e casos extravagantes vivenciados por eles.
Em um ano de funcionamento, o sanatório internou
menos de 20 enfermos. O projeto arquitetônico da casa,
desenhado por João Jorge Cury, arquiteto famoso na ci-
dade, foi delineado acreditando-se no rápido crescimento
urbano logo, era capaz de comportar em media uma cente-
na de pessoas. Uberlândia, na década de 40, era essencial-
mente rural e tentava se espelhar, por influência dos pou-
cos intelectuais, filhos das elites ruralistas, às metrópoles
como Rio de Janeiro e São Paulo. Para estes moradores,
com mentalidade provinciana, a inauguração do sanatório
significava, além da extirpação de comportamentos morais
reprováveis, a ideia de progresso, pois era a realização de
uma obra que só os centros importantes do país desfru-
tavam neste período. A responsabilidade da manutenção
do hospício era defendida como uma obrigação que a po-

6
SALLUM, L. Depoimentos. Uberlândia, 20 maio 2005. Este foi o primei-
ro psiquiatra do hospício, hoje aposentado, reside em Uberlândia.

182 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


pulação deviria assumir, uma conquista que precisava ser
preservada.
Seguindo esse raciocínio, ainda que se perceba um
descaso do poder público na geração de rendas para o sa-
natório, os militantes kardecistas conseguiam que pessoas
ligadas a outras religiões contribuíssem para a manutenção
desta casa asilar. Não somente o sanatório conseguia as do-
ações como também outros projetos assistencialistas pro-
movidos por estes religiosos. Como podemos observar, há
um reconhecimento dos feitos espíritas:

Das instituições beneméritas com que conta o patrimônio


social de nossa terra, destaca-se pelas finalidades filantró-
picas o Sanatório Espírita, destinado ao tratamento de de-
mentes.
Creado [sic] por um grupo de abnegados filantrópicos, em
que o sentimento de humanidade cristã a luz merediana
da doutrina espírita se empunha aos seus elevados senti-
mentos para com o próximo ergueram esse monumento de
piedade que agasalha a todos sem exceção, ricos e pobres
igualados ali, quer pelo infortúnio, quer pela assistência
absolutamente gratuita conseguida a custa de insanos sa-
crifícios entre as pessoas de coração bem formado e que
em todas as ocasiões estão aptas a compreender seus de-
veres para com o próximo, facultando de sua abastança e
da sua felicidade, um pouco que mitigue a dolosa trajetória
de seres humanos que o destino marcou neste mundo de
sofrimentos e lágrimas.
A atual direção mentora do Sanatório Espírita, vem reali-
zando esforços sobre- humanos para conseguir o suficien-
te para manter em franca atividades a 30 dementes perma-
nentes.7

Socorramos o Sanatório Espírita de Uberlândia. Correio de


7

Uberlândia, Uberlândia, p. 2, 27 jul. 1946.

A loucura entre dois mundos • 183


São frequentes as notas jornalísticas em deferência
aos fiéis espíritas:

A nossa cidade conta, felizmente, com algumas institui-


ções de assistência social que prestam relevantes serviços.
Além da Santa Casa de Misericórdia, que é a de maior, há
o Sanatório Espírita e alguns asilos que se esforçam de-
nodadamente para satisfazer as finalidades para que foram
fundados.
Mas é forçoso reconhecer que essa missão é difícil de levar
a cabo. Sem dúvida nenhuma que há almas generosas que
fazem doações maiores ou menores, conforme as posses
de cada um, representando sempre boa vontade, espírito
caritativo, solidariedade humana. Mas toda renda auferida
é sempre insuficiente para as despesas que são exorbitantes
em face da carestia dos artigos indispensáveis para o seu
funcionamento. Só a alimentação dos asilados com os pre-
ços que agora são exigidos no mercado local, absorve todos
os proventos conseguidos pelos institutos assistenciais.
Mas temos ainda que computar os artigos de utilidades,
o mobiliário, a roupa de cama que é de duração limitada,
equipamento de cozinha, combustível para o fogão, luz,
força e, sobretudo medicamentos que custam uma fortuna
e se consomem necessariamente em grande quantidade.8

Devido ao descaso do poder público em relação aos


problemas sociais, surgiram personagens inesquecíveis. Por
exemplo: José Gonzaga de Freitas – espírita, de família abas-
tada de empresários, médicos e profissionais liberais – tor-
nou-se autor de ações beneméritas em Uberlândia. Como
partícipe do centro espírita Fé, Esperança e Caridade, arre-
cadava com toda a sociedade, comércio, indústria e famílias,

8
O Problema da assistência. O Repórter, Uberlândia, 15 maio 1959.

184 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


auxílio financeiro, medicamentos, comida, roupas, entre
outras coisas para o asilo. Aonde chegasse com seu caderno,
era certo o auxílio conseguido, por isso, mesmo não tendo
sido efetivamente o diretor geral, era o rosto que simboli-
zava a obra social. E esta imagem certamente foi reafirmada
por seus programas de rádio e de televisão, nos quais atuou
por mais de 30 anos. Vejamos o depoimento de sua filha:

E era sustentado porque o papai andava nas ruas pedindo,


nas casas, nunca foi sustentado pelo poder público, nunca
ganhamos nada. Foi a população uberlandense que sempre
sustentou. Nunca faltou a carne, a verdura, os ovos, nunca
faltou, remédios.9

A aceitação que muitos espíritas obtiveram perante a


sociedade uberlandense neste período da implementação do
Sanatório Espírita pode ser vista pelo número de doações.
Nas entrevistas realizadas para este trabalho, foi unânime a
resposta de que o sanatório não recebia subvenções da pre-
feitura. Segundo Gladstone Rodrigues da Cunha, diretor
do Sanatório Espírita na década de 60:

Com referência a manutenção financeira do nosso


Sanatório Espírita, se existia algum amparo oficial, ou
por parte da prefeitura, ou por parte do Estado, durante
a minha gestão, eu não tive conhecimento disso. Nunca
perguntei, nunca indaguei. O que era do meu conhecimen-
to é que o nosso irmão, muito admirado por mim como
um grande trabalhador da seara espírita, José Gonzaga de
Freitas, esse irmão dava o seu tempo integral em busca de
recursos muito, das empresas, das máquinas de arroz, na-
quele tempo tínhamos dezenas, centenas de máquinas de

FREITAS, N. Depoimentos. Uberlândia, 17 jun. 2005.


9

A loucura entre dois mundos • 185


arroz em Uberlândia, ele vivia diariamente batendo na por-
ta de quem tinha condições de dar algum apoio financeiro,
angariando recursos para a manutenção dos irmãos que vi-
viam no Sanatório. E com isto, pelo menos durante os oito
anos que nós lá estivemos, graças a Deus nunca faltou nada
para amparar aqueles irmãos.10

Dona Marta, filha de Florisbela (segunda esposa de


José Gonzaga de Freitas e ex-diretora da instituição) rela-
tou a dificuldade de manter a instituição, uma vez que não
era subsidiada pelo poder público.

Não nós tínhamos SUS não. Não tínhamos SUS, não tí-
nhamos nem convênio com nada. A única, o único órgão
que nos dá ajuda até hoje é a Cemig, ela nos dá oitenta por
cento da luz. Só. É o único, a Cemig. A prefeitura nun-
ca nos isentou, nem de IPTU, nem de água. Nunca nos
isentou. Lá nós pagamos, o IPTU de lá é muito, é muito
grande, que a área é muito grande. Eu quero dizer, era uma
casa de utilidade pública, né? Nó. Temos isenção federal,
estadual, não paga imposto é tudo isento, mas não tinha,
desde essa época o seu José, sempre o seu José que traba-
lhou nas ruas. Ganhava um não aqui, um sim ali.11

Apesar de serem escassas as doações do poder pú-


blico, existia uma subvenção da Prefeitura Municipal, não
só para o sanatório, mas também para outras obras assis-
tenciais espíritas como o Dispensário dos Pobres, o Lar
Alfredo Júlio, o Educandário Emmanuel, como podemos
atestar na publicação do orçamento a seguir:

10
CUNHA, G. R. da. Depoimentos. Uberlândia, abr. 2002.
11
DEUS, M. M. T. de. Depoimentos. Uberlândia, dez. 2002.

186 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Tabela 1
Subvenções, Contribuições e Auxílios – Despesas diversas

Ao Dispensário S. Vicente de Paulo Cr$ 36.000,00

Ao Asilo S. Vicente de Paulo Cr$ 1.200,00

Ao Delegado de Polícia Cr$ 3.600,00

A Sociedade Mineira de Proteção aos Láza-


Cr$ 500,00
ros e Defesa com a Lepra

A Associação de Tuberculosos Proletários Cr$ 1.000,00

Ao Serv. Anti-Rábico de Uberaba Cr$ 500,00

Ao Sanat. Espírita de Uberlândia Cr$ 6.000,00

Fonte: Correio de Uberlândia, 21 jan. 1943.

A partir de uma intensa pesquisa nos jornais, nota-


mos que não há nenhuma nota negando a importância do
sanatório para a cidade, ao contrário, percebe-se o enalte-
cimento das obras espíritas pelos meios de comunicação.
Na Câmara Municipal, o vereador João Pedro Gustin faz
uma intervenção na assembleia para engrandecer os feitos
espíritas, dizendo que:

Reconhece que em nosso município o desempenho da


igreja do Espiritismo e do Protestantismo, tem dado o me-
lhor atendimento aos necessitados. Não nega o trabalho
realizado pela Santa Casa, Lar Alfredo Julio e igrejas evan-
gélicas que dão escolas aos nossos filhos [...] (Vereador
João Pedro Gustin).12

Todos os militantes espíritas reiteram as dificuldades


enfrentadas pela manutenção material da instituição, mas
12
CÂMARA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA. Ata da nona sessão da
terceira reunião ordinária realizada no dia 22 abr. 1968. Uberlândia, 1968.

A loucura entre dois mundos • 187


afirmam que nunca faltou nada aos internos. Havia comida,
roupas, remédios, conseguidos por meio das doações, po-
rém, no depoimento de Lázaro Sallum, o maior motivo de
sua saída, em 1982, foi por não aguentar a falta de alimentos e
a escassez de medicamentos. Em várias oportunidades, che-
gava ao sanatório e notando que não havia comida, ele doava
um montante em dinheiro para que se fizesse uma compra:

Bem, então larguei a escola de medicina e aí continuei só


com o consultório. E nessa época o Sanatório começou a
passar por uma situação tremenda, com dificuldades finan-
ceiras e de repente eu acordei, pode parecer absurdo isto,
acordei tirando dinheiro do bolso.
De chegar e não, não tem arroz, mandava comprar um saco
de arroz do meu bolso. Depois cheguei um ponto, eu falei
não, chega, eu, né.
Nós tínhamos, por exemplo, tínhamos pessoas, o dr. Salim
também, outro que cê [sic] conheceu. O dr. Salim tam-
bém, por exemplo, que sistematicamente, certo, sistema-
ticamente, ele e o dr. Kasan dava dez salários mínimos pro
Sanatório. Todo mês! Quer dizer, acontece que pra manter
cem doentes. Era um saco de arroz de sessenta quilo dava
pra três refeições. Era vinte quilo de arroz por dia. Quer
dizer, e foi chegando um ponto em que a situação foi fican-
do precária, precária, não tinha como comprar medicamen-
tos, não tinha como comprar mantimentos e aí eu deixei o
Sanatório. Não adianta querer dar murro em ponta de faca.
Aí eu saí, na época, eu consegui convencer um garoto que
tinha chegado aqui em Uberlândia, recém-formado, era
psiquiatra, ficar lá no Sanatório no meu lugar, e ele ficou,
mas ele ficou me parece que uns quatro ou cinco meses,
eles mataram ele lá na escola.13

13
SALLUM, 2005.

188 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Os benefícios conseguidos dependiam de acordos.
Lázaro nos disse que, em certo período, o chefe do Serviço
Nacional de Doenças Mentais simpatizou com a maneira
que os diagnósticos eram aplicados, passando a garantir,
todo o mês, o suprimento da medicação utilizada. Quando
mudava o chefe, interrompia-se a remessa. O mesmo acon-
tecia em relação à doação de alimentos, pois faziam um
acordo com determinado sargento do Exército para que es-
tes fossem doados e, quando este oficial mudava de cidade,
o fornecimento era cortado.

O município dava quando o Renato de Freitas assumiu


a prefeitura de Uberlândia, o Renato de Freitas teve o
descaramento de votar uma verba de mil Cruzeiros pro
Sanatório. Mil Cruzeiros naquela época equivaleriam a cin-
co salários mínimos anual.
Não dava pra comprar o arroz. Mas eu tinha um aluno,
da Faculdade de Medicina, que era major do Exército
aqui, quando o Exército aqui não era batalhão, era re-
gimento. Então era o major que dirigia. Eu esqueci o
nome dele.
Foi um dos primeiros que teve aqui. Eu conversando
com ele, que a situação, que eu levava, na hora de aula na
Faculdade de Medicina, eu ia pro Sanatório, enchia o carro
de doente, levava pro Sanatório, dava aula naquele doente,
voltava com isto pro Sanatório, cê entende como é que é?
Porque eles não aceitavam levar estudante lá. A cabeça de-
les era aberta que era uma maravilha.
Nossa Senhora! Chegava uma tonelada de peixe, eles
mandavam duzentos quilos pro Sanatório, cê entendeu
como é que é? Chegava, por exemplo, um caminhão de
arroz, ele mandava dez sacos pro Sanatório. Ele ajudou
tremendamente. Mas aí tiraram o major, passou pra bata-
lhão e veio um coronel. O coronel, primeira coisa que ele

A loucura entre dois mundos • 189


fez foi cortar essas ajudas que eles davam. O Sanatório
passou a viver.14

Havia inúmeras reclamações por parte dos militantes


espíritas acerca do descaso dos governantes municipais e
estaduais em gerir recursos às obras assistenciais. Porém,
a não atenção do poder público, possibilitou a ascensão do
espiritismo. Os espíritas se fizeram presentes em setores
estratégicos da sociedade, tendo representantes na política,
no meio intelectual e na imprensa, como também consegui-
ram uma convivência harmônica com segmentos não espíri-
tas, compondo os quadros conservadores da época.
Isto não quer dizer que todos os espíritas eram con-
servadores, como não o eram também todos os médicos e
políticos. É preciso ficar claro a distância existente entre a
doutrina religiosa professada e as práticas sociais e isto vale
para todas as religiões. Sem entrar no mérito da essência que
move as religiões, nem tampouco classificar se são produtos
de revelações divinas ou criações humanas, podemos asseve-
rar, contudo, que as pessoas reelaboram aquilo que sentem,
que vivenciam, incorporando valores pertencentes à sua cul-
tura. Não há conteúdo puro, pois alguém já o transformou
e o readaptou de acordo com as suas próprias necessidades.
O estudo da trajetória do Sanatório Espírita de
Uberlândia nos permite pensar no movimento constan-
te da cidade, refletido no modo de vida das pessoas que se
organizam e criam seus próprios conceitos com relação a
esta cidade. Por outro lado, é necessário que percebamos a
confluência das vertentes de pensamentos no Brasil, rela-
cionando-os com as representações simbológicas dos adep-
tos do espiritismo associados às práticas do tratamento da
loucura, a fim de fazer referência ao processo histórico,

14
SALLUM, 2005.

190 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


vivenciado por diferentes grupos sociais, alguns dos quais
causadores de injustiças e desmandos com os portadores de
transtornos mentais.
Analisando a documentação, percebemos a maneira
como os interesses das elites empresariais e políticas se uni-
ram com o projeto assistencialista dos espíritas. Eram fre-
quentes as homenagens de políticos aos fiéis espíritas enga-
jados em atividades filantrópicas. Estas alianças dependiam
dos acordos políticos em questão, não necessariamente das
perspectivas ideológicas partidárias. Por outro lado, estes
grupos não viviam em harmonia e as contradições geradas
por interesses diversos não deixam de aparecer. O artigo de
Alcindo Guanabara na imprensa local nos permite visualizar
estes conflitos:

Para que ninguém alegue ignorância de boa, ou má fé e como


é para o bem de todos e felicidades geral, levo ao conheci-
mento que não tem nenhum fundamento quaisquer boatos
de camuflagem forjados sobre a Obra, ou o que eu tenha
dado por terminado “Azilo de Dementes” continuo firme
trabalhando internamente, já, tendo entrado na 4ª etapa no
desenrolar dos acontecimentos, aguardem para breve, meu
pronunciamento, para que os incomodados é que si ... ou
inteirem de toda verdade nua [sic] e crua. Dispensando todo
e quaisquer elogios, no cumprimento dos meus deveres sem
artifícios, pois o que eu sou está em mim, trabalho por ide-
al independente, sem temer os arreganhos dos lobos, ou o
disfarce das ordas reacionárias de Satam!!! encarnados ou
desencarnados, sem compactuar atendendo a bastardos ou
corrompidos interesses pessoais laterais e de quaisquer pro-
cedência, Seilassie ou, não ... (Alcindo Guanabara – Diretor
Tesoureiro, por conta própria).15

15
GUANABARA, A. Campanha pró-Construção do Asilo de Dementes.
Correio de Uberlândia, Uberlândia, p. 2, 26 ago. 1941.

A loucura entre dois mundos • 191


Nesta fala áspera de Alcindo, percebemos a tensão dos
grupos sociais disputando a legitimação e o poder. Embora
a construção do sanatório – como outras obras assistencia-
listas – coadunava com os interesses das elites uberlanden-
ses, a convivência com outros grupos políticos ou religiosos
não deixava de ser conflituosa. Neste caso, a cobrança por
prestação de contas é um definidor instigante para pensar-
mos os embates pelo reconhecimento social. Percebemos a
constante dialética que seria a integração dos variados seg-
mentos sociais na realização de seus projetos com interesses
afins e, ao mesmo tempo, as disputas que emergem da visão
e interesses que estas pessoas têm do mundo e da maneira
como se fazem reconhecer como sujeitos.
A construção do Sanatório Espírita em Uberlândia,
legitimando práticas do tratamento psiquiátrico, está for-
temente associada à própria ascensão da religião espírita na
cidade, entidade religiosa que controlava tanto o tratamen-
to ministrado aos doentes mentais como também a parte
administrativa. Sendo assim, é importante discorrermos
acerca dessa trajetória delineada por adeptos do espiritismo
em busca de reconhecimento.
Segundo o IBGE, o espiritismo no Brasil cresceu
aproximadamente 40% nos dois últimos censos, soman-
do cerca de 20 milhões de espíritas, não contabilizando as
pessoas que, mesmo não se considerando adeptas, de uma
maneira ou de outra, aproximaram-se das práticas espiritu-
alistas, tanto no que se refere às curas espirituais – muito
difundidas por esta religião –, quanto pela busca por fe-
nômenos paranormais. Segundo revela a pesquisa, os seus
adeptos se encontram em uma situação financeira mais con-
fortável, possuem uma renda 150% maior que a média do
país e apresenta uma maior taxa de escolaridade se fizermos
uma comparação com os praticantes de outras religiões.
O país se urbanizava em busca da propagada moder-

192 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


nização que se assentaria no ideal de desenvolvimentismo
de J.K., uma industrialização cujo suporte estaria nas tão
discutidas cinco metas. O fato é que o perfil da socieda-
de brasileira se transformava de maneira irreversível desde
1960. Compreendendo a cultura como parte inerente dessa
mudança, o catolicismo tradicional, arcaico, não respondia
mais com a mesma intensidade às crises experimentadas no
novo cenário social. Assim, fazendo referência à concei-
tuação de Camargo, as religiões internalizadas, entre elas
a pentecostal, a espírita e a carismática, oferecem respos-
tas mais consistentes àqueles que se vêem envolvidos neste
processo. É nesse sentido que Pierucci e Prandi afirmam:

Quando a umbanda, o espiritismo, o pentecostalismo, o


candomblé, curam, suprindo o mal físico ou a loucura,
aplainando a crise existencial, repondo a certeza na ação,
ainda que a ciência possa constatar a mudança operada,
podendo até comprovar ou não a eficácia terapêutica, não
pode interromper o sentido da experiência religiosa da
cura. [...] Estas modalidades religiosas são capazes, cada
qual a seu modo, se dar forma e impregnar de sentido um
estilo de vida relativamente adequado ao setor que se mo-
derniza na sociedade brasileira.16

Alguns pontos fundamentais do espiritismo, como


reencarnação, comunicações e curas espirituais estão disse-
minados na sociedade brasileira e também no mundo, em
diversas linguagens e representações artísticas, embora de
forma não muito clara. Na literatura, na produção cinema-
tográfica, em programas de televisão, entre outros, a dis-
cussão sobre reencarnação, comunicação espiritual, curas
mediúnicas e outros dogmas adotados pelo espiritismo
16
PIERUCCI, A. F.; PRANDI, R. A realidade social das religiões no Brasil:
religião, sociedade e política. São Paulo: Hucitec, 1996.

A loucura entre dois mundos • 193


são bem recorrentes, despertando a curiosidade de inúme-
ros adeptos de outras religiões. Em 1994, apenas para citar
um exemplo, a novela de Ivany Ribeiro, A Viagem, exibida
pela Rede Globo, obteve considerável número de audiência,
abordando, entre outros temas, fenômenos paranormais e
a vida após a morte. A mesma trilha percorreu os folhetins
Alma Gêmea, da Rede Globo, apresentada em 2005, que
obteve o melhor índice de audiência no horário das seis na
última década, e, em 2006, O Profeta, versão dos anos 70
de Ivany Ribeiro, que fora transmitida pela primeira vez na
TV Tupi. No programa Linha Direta, também da emisso-
ra Globo, os episódios que tiveram maior repercussão es-
tão relacionados à mediunidade, entre eles a história sobre
cartas psicografadas de 13 mortos do edifício Joelma, que
pegou fogo em 1974. Além disso, filmes de sucesso como
Ghost, Os Outros,17 Sexto Sentido,18 entre tantos outros
também abordam as temáticas que envolvem o espiritismo.
O mercado editorial referente às obras espíritas cons-
titui-se em um tópico à parte. Várias obras atingiram o sta-
tus de best-sellers. Muitos deles, há dez anos, não saem da
lista dos dez mais vendidos, tem-se como exemplo vários
livros da autora Zibia Gasparetto; Chico Xavier já vendeu
mais de 25 milhões entre seus 400 títulos psicografados;
Waldemar Falcão, autor de Encontro com Médiuns Notáveis
é um dos mais vendidos nas maiores livrarias; e a biografia
As Vidas de Chico Xavier, de Marcel Souto Maior, chegou à
casa dos 300 mil exemplares vendidos.19
Tais recordes aguçam a curiosidade de pesquisadores.
A questão é como explicar tal repercussão. Flávio Pierucci,

17
OS OUTROS. Direção: Alejandro Amenábar. EUA: Miramax Films:
Dimension Films, 2001. 1 filme (114 min.), son., color.
18
O SEXTO sentido. Direção: M. Night Shyamalan. EUA: Buena Vista
International, 1999. 1 filme (106 min.), son., color.
19
MENDONÇA, M. O novo espiritismo. Revista Época, São Paulo, 03 jul.
2006.

194 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


sociólogo da USP, tenta explicar o porquê da crescente ade-
são da classe média ao espiritismo:

O espiritismo é uma religião confortável. Ela suaviza o dra-


ma da morte e dá respostas lógicas ao que acontece de bom
ou ruim. Sem falar que podemos levar créditos ou débitos
para outras vidas. Por isso, há três grandes razões para esta
atração das classes médias:
1. a doutrina espírita se baseia num conjunto de idéias
bem sistematizadas e, portanto, possível de aceitação
racional;
2. ela é flexível e acolhe gente de todas as religiões;
3. a forma original da religião fundada por Kardec de li-
dar com a questão da morte.20

Identificado com algumas correntes de pensamento


europeu, o espiritismo foi trazido para o Brasil por imigran-
tes europeus letrados. Apoiado na ideia da reencarnação
e da evolução, o espiritismo surgiu com Hippolyte Leon
Denizard Rivail, conhecido pelo pseudônimo de Allan
Kardec, pedagogo, nascido em 1804, fortemente influencia-
do pelas ideias liberais, inspirado nas doutrinas de Rousseau.
Na década de 1850, trava forte contato com fenômenos pa-
ranormais, principalmente com as sessões de mesas girantes,
passando, a partir disso, a estudar tais ocorrências. Kardec,
convicto da existência de comunicação com espíritos lança,
em 1857, a obra intitulada O Livro dos Espíritos, em forma
de perguntas e respostas, supostamente respondidas pelos
espíritos. As perguntas eram direcionadas aos médiuns, uma
vez que Kardec se dizia não possuidor de dons mediúnicos.
Entre outras abordagens, o livro realça a existência do mun-
do espiritual, a natureza e a pluralidade das vidas passadas e

20
MENDONÇA, 2006, p. 70.

A loucura entre dois mundos • 195


as leis morais. Segundo defendem os seus seguidores, esta
doutrina propõe uma comunhão da religião com a ciência,
tratando as revelações divinas por meio da manifestação dos
espíritos, e que podem ser explicadas racionalmente, dentro
dos parâmetros adotados pela ciência.21
Kardec publicou outras obras, entre as mais impor-
tantes, O Evangelho segundo o espiritismo, A gênese, O céu e
o inferno, O livro dos médiuns, além de ser responsável pela
organização de um periódico denominado Revista Espírita,
que tinha como objetivo a divulgação da religião que se ini-
ciava. Alan Kardec morre em 1869, deixando vários segui-
dores, entre eles: Leon Denis, Pierre Leymarie, Cammile
Flamarion, Charles Richet, William Crookes, entre outros.
Houve intensa divulgação dos preceitos espíritas por
diversas partes da Europa e, em 1869, após a morte de Allan
Kardec, esta religião alcançou mais de quinhentos adeptos
na Europa. Segundo Laplantine e Aubrée,22 a Europa pos-
suía, no final do século XIX, uma verdadeira cultura espíri-
ta, dada a curiosidade despertada pela suposta possibilidade
de comunicação espiritual, difundida por meio de inúme-

21
Para um aprofundamento sobre o processo de aceitação do espiritismo
no Brasil e sua construção ideológica e religiosa no país e também na
Europa, conferir entre outros: GIUMBELLI, E. O cuidado dos mortos:
uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1997; SILVA, R. M. da. Chico Xavier: imaginário re-
ligioso e representações simbólicas no interior das Gerais – Uberaba,
1959-2001. 2003. 269 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto
de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2003;
DAMÁZIO, S. F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994; JURKEVICS, V. I.
Crenças e vivências espíritas na cidade de Franca (1904-1980). 1998. 137
f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História, Direito
e Serviço Social, Universidade do Estado de São Paulo, Franca, 1998;
STOLL, S. J. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil.
1999. 255 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
22
LAPLANTINE, F.; AUBRÉE, M. La table, le livre et les espirits. Paris:
J.C. Lattès, 1990 apud GIUMBELLI, 1997.

196 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ras obras literárias e por seus militantes espíritas. Havia, na
França, 13 periódicos em circulação; na Espanha, era possí-
vel localizar 36 revistas. Na última década do século XIX,
contavam-se, aproximadamente, 90 periódicos em toda a
Europa, tamanho era o movimento espírita que, em 1989,
propiciou que a França sediasse o I Congresso Internacional
Espírita e Espiritualista.23
Num depoimento, Kardec ressalta:

Por toda parte a idéia espírita começa a ser difundida par-


tindo das classes mais esclarecidas ou de mediana cultura.
Em nenhum lugar ascende das classes mais incultas. Da
classe média ela se estende às mais altas e mais baixas da
escala social. Em muitas cidades os grupos de estudo são
constituídos quase que exclusivamente por membros dos
tribunais, pela magistratura e o funcionalismo. A aristo-
cracia fornece também seu contingente de adeptos, mas
até o presente eles têm se contentado em ser simpatizan-
tes e, na França pelo menos, pouco se reúnem. Grupos
desse tipo são mais comuns na Espanha, Rússia, Áustria
e Polônia [...].24

O autor Artur Isaia25 faz um estudo dos discur-


sos produzidos pelo espiritismo à luz do século XIX, na
Europa, momento em que emergem as teorias positivistas
de Auguste Comte e evolucionistas com Charles Darwin.
Para este autor, tal doutrina religiosa surge num período
conturbado, momento de intensa miséria na França, quando
a classe operária vivia em péssimas condições, e culminava

23
GIUMBELLI, 1997.
24
KARDEC, A. Viagem espírita em 1862. São Paulo: O Clarim, [19--]. p.
21-22.
25
ISAIA, A. C. Allan Kardec e João do Rio: os jogos do discurso. In:
MACHADO, M. C. T.; PATRIOTA, R. História & historiografia.
Uberlândia: Edufu, 2003. p. 11-31.

A loucura entre dois mundos • 197


o risco de uma revolta ou uma revolução. A nova doutrina
religiosa serviria para acalmar os ânimos dos trabalhadores,
aspecto evidenciado tanto no que se refere às práticas de as-
sistência aos pobres e desvalidos quanto à parte doutrinária,
que prega um sentimento de conformidade com a realidade
social vivida, justificando o sofrimento que muitos sujei-
tos enfrentavam naquele momento. As pessoas deveriam
se resignar, pois mereciam a situação de miserabilidade que
viviam. Era a oportunidade de expiar os erros de reencarna-
ções passadas. Assim, a legitimação do espiritismo se expli-
caria, em parte, devido à postura dos espíritas de aceitação
do status quo, e, por conseguinte, por agirem em consonân-
cia com os interesses da elite europeia.
No Brasil, em meados dos anos 70 do século XIX, o
espiritismo teria seguidores identificados com o ideal repu-
blicano, com a bandeira abolicionista e com as teorias po-
sitivistas e evolucionistas. Em 1875 e 1876, são traduzidas,
para o Brasil, quatro das cinco obras mais importantes de
Kardec. Em 1884, é criada a Federação Espírita Brasileira,
instituição importante para promover um trabalho de pro-
paganda da religião.26
Reportando à cidade de Uberlândia, nas palavras de
Vitusso,27 o surto espírita no Triângulo Mineiro teve como
justificativa a atuação de importantes nomes para a religião,
indivíduos que, segundo a autora, mostraram-se como íco-
nes da divulgação doutrinária, multiplicado ainda mais pela
popularidade de Chico Xavier, médium espírita residente
em Uberaba até 2002, ano de sua morte. Remontar a histó-
ria da legitimação do espiritismo em Uberlândia ajudará a
compreender melhor as práticas vivenciadas na cidade.
O espiritismo encontrou forte disseminação no Brasil
e a recepção desta doutrina foi bem diferente à de outros pa-
26
GIUMBELLI, 1997.
27
VITUSSO, 2000.

198 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


íses europeus. Para Sylvia Damazio, a doutrina de Kardec é
apreciada, principalmente na França, pelo seu caráter científi-
co, diferentemente do Brasil que adquirira uma característica
mais religiosa, facilmente percebida nas práticas assistenciais
e na ênfase pela caridade e moral propalada.28 As característi-
cas culturais brasileiras, entre elas, o sincretismo religioso e
as condições sócio-econômicas aqui engendradas ao espiri-
tismo, envereda-se pela perspectiva religiosa, explicando as-
sim, sua aceitação e o respeito a sua doutrina. Isto está forte-
mente evidenciado no respeito que a figura de Chico Xavier
conquistou, mesmo por parte de não espíritas.29

Como o Islamismo na Indonésia, o Espiritismo é uma re-


ligião importada, que se difunde no país confrontando-se
com uma cultura religiosa já consolidada, hegemônica e,
portanto, conformadora do ethos nacional. Sua difusão,
como postulam certos autores, foi em parte favorecida pelo
fato das práticas mediúnicas já estarem socialmente disse-
minadas, de longa data, no âmbito das religiões de tradição
afro. No entanto, em contraposição a estas o Espiritismo
define sua identidade, elegendo sinais diacríticos elemen-
tos do universo católico. [...] O Espiritismo brasileiro as-
sume um “matiz perceptivelmente católico” na medida em
que se incorpora à sua prática um dos valores centrais da
cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade.30

No final do século XIX, três vertentes de pensamen-


tos se evidenciam no Brasil: uma visão cientificista, influen-
ciada pelo positivismo e pelo darwinismo; outra liberal, em-
penhada na instauração da República e o fim da escravidão;
e, finalmente, a vertente conservadora, marcada pela reli-

28
DAMÁZIO, 1994.
29
STOLL, 1999.
30
STOLL, 1999, p. 48.

A loucura entre dois mundos • 199


gião católica. Os espíritas mantiveram relações com estas
três vertentes. Aproximaram-se dos maçons, defenderam
os ideais republicanos e abolicionistas, tanto quanto as te-
orias científicas e, mesmo se contrapondo ao catolicismo,
incorporaram práticas desta religião.
Para Fábio Luiz da Silva,31 a sedimentação do espiri-
tismo no Brasil aconteceu em meio à imagem do paraíso, do
fantástico, presentes nos discursos dos europeus. Na obra
psicografada por Chico Xavier, Brasil coração do mundo e
pátria do evangelho,32 bastante lida na década de 1940, está
presente o ideário da responsabilidade que cabia ao cristão
em relação ao Brasil. A repercussão desta obra, supostamen-
te escrita por Humberto de Campos, mobilizará inúmeras
atividades dos espíritas. Neste momento de receptividade
da obra pelos kardecistas, a Federação Espírita, instituição
importante na legitimação do espiritismo, já se encontrava
forte, detentora de uma editora com larga distribuição no
Brasil, além de inúmeros jornais, reafirmando o valor cien-
tífico da doutrina lançada por Allan Kardec.33
Em relação à importância de Chico Xavier para a as-
censão do espiritismo no Brasil, Bernardo Lewgoy34 discute
o imaginário que envolve a religião e os seus adeptos, mos-
trando, na figura deste médium, a elaboração de símbolos
e significados em torno da mediunidade, da reencarnação,

31
SILVA, F. L. da. Espiritismo: história e poder (1938-1949). Londrina:
Eduel, 2005.
32
XAVIER, F. C. Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho. Rio de
Janeiro: FEB, 1977. Nesta obra psicografada por Chico Xavier é evidente
uma representação cronológica da história do Brasil que pactua e explica
as injustiças sociais, a ditadura Vargas, em que os desmandos políticos
tem um caráter conservador justificando e propagandeando o ideário
burguês das elites brasileiras.
33
A Federação Espírita Brasileira (FEB) foi fundada em 1884 no Rio de
Janeiro. Para melhor aprofundamento da influência desta entidade na le-
gitimação do espiritismo neste período cf. GIUMBELLI, 1997.
34
LEWGOY, B. Chico Xavier, o grande mediador: Chico Xavier e a cultura
brasileira. Bauru: Edusc, 2004.

200 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


da vida após a morte e, fundamentalmente, a forma como
esta doutrina se organiza para se expandir. É relevante men-
cionar a importância de Chico Xavier para a doutrina es-
pírita na medida em que a sua extensa produção literária,
além da imagem de santidade que o circunda, influenciou na
construção de um ideário de conduta espírita, norteando,
de maneira significativa, um vasto campo de atuação dos
espíritas.35
Acrescido a isto, é importante destacar o caráter as-
sistencial adotado pelo espiritismo. Entendemos que este
aspecto, acima das questões envolvendo a paranormalidade
e os fenômenos espirituais, foi crucial para a sua legitimação
no Brasil. Assim, a caridade e a reencarnação estão intrinse-
camente ligados, porém, se destacarmos o respeito que seus
adeptos adquiriram de outros setores privilegiados da socie-
dade, concluímos que as práticas de assistência social foram
fundamentais para que se construísse um ideal humanitário
que, enquanto rótulo, garantiu sua aceitação.
Partindo do pressuposto de que a religião deve ser
compreendida inserida num processo histórico, produ-
to de um conjunto de práticas sociais, observa-se que não
há diferenças significativas na atuação dos espíritas em
Uberlândia. Embora haja intensos conflitos internos na
maneira de conduzir a religião, as práticas kardecistas são as
mesmas para todos os grupos kardecistas, como por exem-
plo: a utilização do passe; a defesa pela prática da caridade;
a comunicação mediúnica; a crença na vida após a morte e
a reencarnação. As análises do processo de legitimação e a
compreensão das representações do campo simbólico dos
adeptos nos darão elementos para avançarmos no entendi-

35
Sobre a construção da idéia de santidade envolvendo Chico Xavier,
cf. SILVA, R. M. da; MACHADO, M. C. T. O jeito católico de ser
espírita nas terras brasilis. Revista História & Perspectivas, Uberlândia,
n. 31, p. 120-138, jul./dez., 2004.

A loucura entre dois mundos • 201


mento da cultura uberlandense e nacional, investigando em
que medida tais práticas forjaram projetos político-sociais e
o resultado disto para a população de maneira geral.
O esforço dos espíritas em atuarem no tratamento
da loucura foi um traço marcante em várias localidades do
país. A justificativa para tamanho empreendimento está na
fundamentação central da doutrina religiosa: a relação do
mundo espiritual com a reencarnação. Para esta religião, a
loucura, na maioria dos casos, não é um aspecto patológi-
co, como assevera a Psiquiatria, mas problemas psíquicos
causados pelas dívidas adquiridas, supostamente, de outras
reencarnações. Segundo esta teoria, a insanidade seria mo-
tivada por dois fatores, sendo o primeiro deles o sentimen-
to de culpa originado nos erros de outras reencarnações,
sentimentos que emergem do inconsciente; e o outro fator
preponderante, como reitera o kardecismo, é a obsessão, ou
seja, a perturbação mental ocasionada pela influência direta
de um espírito sobre outro. Segundo Kardec:

Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mundo mo-


ral e mesmo sobre o mundo físico. Atuam sobre a matéria
e sobre o pensamento e constituem uma das potências da
Natureza, causa eficiente de uma multidão de fenômenos
até então inexplicados ou mal explicados e que não en-
contram explicação senão no Espiritismo. As relações dos
Espíritos com os homens são constantes. Os bons espíri-
tos nos atraem para o bem, nos sustentam nas provas da
vida e nos ajudam a suportá-la com coragem e resignação.
Os maus nos impelem para o mal: é-lhes um gozo ver-nos
sucumbir e assemelhar-nos a eles.36

A terapêutica que os adeptos do espiritismo dizem


36
KARDEC, A. O livro dos espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita
Brasileira, 1996. p. 25.

202 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


promover tem por base a realização de preces, o passe, a
água energizada, além das sessões de doutrinação do espírito
obsessor, instigando-o a perdoar seu inimigo de outras reen-
carnações, evitando, dessa forma, a sua manifestação malé-
fica sobre o louco. Há vários níveis de entendimento da ob-
sessão para a religião kardecistas. Segundo defendem os seus
seguidores, considera-se a mais grave a subjugação, que é a
completa dominação de uma mente pela outra. Estudiosos
do espiritismo apontam a subjugação como um problema
de difícil solução, em que a cura é praticamente impossível
de ser obtida. Os casos mais comuns, evidenciados inclu-
sive nos prontuários do Sanatório Espírita de Uberlândia,
seriam em virtude do louco ser médium e não conseguir
controlar a comunicação espiritual. Vejamos nesta ficha, re-
tirada dos prontuários do Sanatório Espírita de Uberlândia,
a mensagem psicografada por Eurípedes Barsanulpho:

Para a Irmã Aurora Araújo – 20 anos Rua Machado de


Assis. Obsedada por ser médium descontrolada, sim con-
vém depois fazer a sua educação mediúnica, tendo por base
os evangelhos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Convém in-
ternar-se para o tratamento. Paz em Deus.37

O campo de atuação espírita estava definido e era pre-


ciso cuidar da alma deste povo tão sofrido. A militância des-
ses religiosos esteve quase sempre ligada à cura de doenças
com as quais a medicina não obtinha êxitos, e o cuidado
com a loucura passa a ser a sua maior preocupação. Até a
década de 60, os kardecistas conseguiram fundar várias ca-
sas por todo o país, com o intuito de atenderem portado-
res de transtornos mentais. Em Uberlândia, a fachada do
manicômio é rigorosamente idêntica ao de Uberaba, o que

37
PRONTUÁRIOS do Sanatório Espírita de Uberlândia, ficha 117, 1944.

A loucura entre dois mundos • 203


nos faz crer numa rede que se constituía na região e desta
com outras cidades do país. Os exemplos encontrados na
Enciclopédia Ilustrada das obras espíritas permitem pensar
em um novo paradigma arquitetônico asilar, tendo como re-
ferência os parâmetros do Panóptico de Jeremy Benthan.38
Todos eles ocupam uma área vasta, cuja entrada prin-
cipal se abre em um pórtico que abriga, de imediato, o setor
administrativo. Este setor, do lugar em que se estabelece,
tem pleno domínio do interior do prédio cuja estrutura
lembra o corpo de um avião, distribuído por alas/alojamen-
tos/refeitórios/lavanderias, intercaladas por pátios internos
que separam os homens e as mulheres, os enfermos mais
perigosos dos mais pacíficos.

Figura 1 – Sanatório Espírita de Uberaba39


Este modelo de construção não condiz com os mo-

38
Em relação aos edifícios prisionais e toda a sua estrutura pensada para
dinamizar a vigilância e disciplina, conferir: BENTHAM, J. O panóptico.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
39
Disponível em: <http://www.uberaba.com.br/uberaba/uberaba.cgi?flag
web=mostrafoto&codigo=14>. Acesso em: 05 abr. 2004.

204 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


delos de hospícios do século XIX e XX tradicionais, casas
pensadas de modo a isolar completamente o louco da socie-
dade. Os muros dos manicômios de Uberlândia e Uberaba
são baixos e com grades de ferro, possibilitando aos inter-
nos o contato com pessoas de fora, situação que não ocorre
em outros asilos.

Figura 2 – Sanatório Espírita de Uberlândia40

O Sanatório Espírita de Uberaba, fundado em 1933,


teve, desde o início de suas atividades, um psiquiatra espíri-
ta. Nesta instituição, ainda em atividade, a presença do mé-
dico Inácio Ferreira,41 que defendia a terapêutica espiritual,
foi uma espécie de referência para diversos locais do país.
Outros sanatórios foram criados espelhados nesta institui-
ção, inclusive a de Uberlândia. Inácio Ferreira não podia ser

40
SANATÓRIO Espírita de Uberlândia. In: ORLANDI, V. Enciclopédia
ilustrada das obras Espíritas. São Paulo: Editora Urânia, 1961. v. 1.
41
Formado na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no estado
do Rio de Janeiro, este psiquiatra editou importantes livros para a difu-
são da realização do tratamento da loucura. Cf. FERREIRA, I. Novos
rumos à medicina. São Paulo: Edições FEESP, 1993. v. 1/2; FERREIRA,
I. Psiquiatria em face da reencarnação. São Paulo: Edições FEESP, 2001.

A loucura entre dois mundos • 205


processado por prática de medicina ilegal, uma vez que tinha
o registro de médico. Nenhum sanatório espírita podia fun-
cionar se não atendesse as exigências mínimas, tais como: a
presença de médicos, enfermeiros, além, obviamente, das
condições materiais de sobrevivência dos internos (roupas,
remédios, comida, entre outros). A figura do psiquiatra
Inácio Ferreira atuou no imaginário não apenas dos adep-
tos do espiritismo, como de toda a sociedade, legitimando
as práticas espíritas de cura, como também contribuiu para
validar a cientificidade das teorias de Kardec. Nesta nota
jornalística, afirma-se que:

O dr. Inácio Ferreira, um estudioso da grande ciência de


Allan Kardec, acaba de fazer publicar o magnífico livro de
sua autoria “ESPIRITISMO E MEDICINA”. É uma obra
maravilhosa, só não pela facilidade de linguagem, como
também, ela é escrita por um estudioso que alia aos seus
conhecimentos, uma grande e sólida cultura.42

Antes de Inácio Ferreira, outro médico já defendia o


tratamento psiquiátrico pelo espiritismo. Adolfo Bezerra
de Menezes (1831-1900), presidente da FEB em 1895 e um
dos articuladores do periódico O Reformador. Escreveu um
livro intitulado A loucura sob um novo prisma, defendendo
a matriz das doenças e da insânia advindos da espirituali-
dade e de traumas vividos supostamente em outras reen-
carnações. Na literatura espírita, este personagem foi figura
central para a difusão da religião espírita, sendo alguém re-
correntemente evocado pelos fiéis kardecistas.
O fato de alguns kardecistas estarem ligados à inte-
lectualidade, mesmo que não seja um número significativo,
reordenou a maneira de atuação dos crentes espíritas. O
42
FERREIRA, I. Espiritismo e medicina. Livraria da Federação Espírita
Brasileira. Correio de Uberlândia, Uberlândia, p. 5, 18 mar. 1941.

206 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


discurso destes militantes encontrou ressonância em cama-
das diferenciadas, se não como força hábil para a conversão
religiosa, ao menos como garantia de serem respeitados.
Isto é essencial para compreendermos o campo de atuação
dos espíritas. Prestemos atenção nas falas publicadas destes
intelectuais, na tentativa de legitimarem suas práticas reli-
giosas:

Não ha Idea nova que não soffra [sic] o ataque impiedoso


dos homens. Esse ataque se estende a tudo, ás innovações
materiaes e ás espirituaes, como se o progresso devesse
abrir caminho atravez das maiores difficuldades. [...]
O Espiritismo foi, pois, o espantalho que surgiu no século
passado e contra elle e contra sua these formou-se uma
colligação geral. Todos os corpos doutrinários, todas as
instituições, até então conflagradas pelas mais profundas
divergências, se ardunaram como as cidades gregas diante
da alude persa.
Sciencia e religião, que viviam em divorcio, irmanaram-se
para combater o “inimigo”, como irmanadas ficaram as
igrejas, até então umas com as outras em perpetua guerra.
É que o Espiritismo vinha alterar os processos que a scien-
cia tinha estabelecido sobre a matéria e a vida, e perturbar
os meios que a religião firmara para a salvação das almas.43

É comum a utilização de membros letrados para a di-


vulgação do espiritismo, facilmente constatado nas crônicas
editadas nos jornais locais, nos quais os desbravadores e espíri-
tos empreendedores da difusão kardecista, expressão utilizada
por Vitusso, são intelectuais. Agora, um engenheiro escreve
para atestar o caráter racionalista-científico do espiritismo:

43
BARBOSA, A. Espiritualismo. Jornal de Uberlândia, Uberlândia, p. 2, 24
jan. 1937.

A loucura entre dois mundos • 207


O espiritismo, de acordo com as teorias kardecianas, de-
monstra cientificamente a existência da alma humana e do
perispírito. Este é inseparável do principio pensante. Há
uma demonstração desta verdade, pelo estudo feito das
manifestações da alma, não só durante a vida do homem,
como depois de sua morte.44

O caráter de cientificidade defendido pelos espíritas


mostra a busca pela legitimação religiosa e o reconhecimen-
to de suas práticas, aliás, característica vivenciada em todo
o Ocidente. Não queriam ser confundidos como supersti-
ciosos, fanáticos, e faziam sempre a alusão aos fenômenos
espirituais como atividades que podem ser comprovadas até
em laboratórios. Não admitiam ser comparados a feiticei-
ros, charlatões ou macumbeiros. A umbanda e o candom-
blé eram, para eles, práticas primitivas e degradantes, ainda
mais quando afirmam que o espiritismo e

seus ditames, já foram amplamente divulgados por sábios


e psicólogos de renome mundialmente conhecidos e não
se confundem com o linguajar inferior desses que querem
passar como espíritas, ou profetas.45

No campo simbólico dos adeptos desta doutrina re-


ligiosa existe uma hierarquia de espíritos, em que os espí-
ritos mais evoluídos ficariam responsáveis pela difusão do
espiritismo. Este imaginário explica, por parte dos fiéis, a
veneração de importantes personagens kardecistas como
Bezerra de Menezes, Eurípedes Barsanulfo, Chico Xavier,
entre outros, assemelhando com a concepção católica de

44
MENDES, J. F. A alma dentro da ciência espírita. O Repórter, Uberlândia,
p. 3, 19 fev. 1952.
45
SILVA, G. J. da. Fúria de Deus? Correio de Uberlândia, Uberlândia, p. 4,
26 jul. 1942.

208 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


santidade.46 O fato de Chico Xavier não ter tido escolarida-
de poderia representar, de certa forma, uma contradição nos
preceitos hierárquicos desta doutrina religiosa, respaldados
no espírito iluminista. Esta contradição é apenas aparente,
pois, para seus praticantes, Chico Xavier já teria vivido ou-
tras reencarnações nas quais conseguiu desempenhar avan-
ço intelectual. Algumas obras psicografadas asseveram que
ele teria sido a reencarnação de Allan Kardec.
Para esta doutrina espiritual, como para tantos ou-
tros segmentos religiosos, há uma verdade universal, que
é anterior à existência humana e que é revelada gradativa-
mente. As descobertas científicas que tanto influenciaram o
Iluminismo foram consequências diretas da vontade divina,
portanto, missões que os crédulos deveriam seguir e lutar
para abraçá-las, não cabendo questionamentos. No imagi-
nário destes fiéis a noção de temporalidade se transforma,
uma vez que os acontecimentos se repetem na medida em
que consideram a existência de vidas em outros planetas,
anterior à vida terrena. Os acontecimentos vividos por nós
teriam sido experimentados de maneira similar por outros
espíritos que se encontram, segundo defende a doutrina
religiosa, em estágios evolutivos mais avançados. Situações
como a guerra, a corrupção, o ódio, a desigualdade, a misé-
ria, o sofrimento, a ganância, os crimes de modo geral, são
consequências da imperfeição moral de cada espírito e so-
mente com a evolução espiritual passariam a não mais exis-
tir. Diante disso, para os kardecistas, estes espíritos evoluí-
dos conheceriam as nossas dificuldades terrenas e saberiam
dispor de mecanismos para que buscássemos a felicidade,
eliminando, gradativamente, tudo que gera o sofrimento
humano. Esta concepção de que o que se fez, aqui se paga,

Nesta abordagem destacam-se as obras de: SILVA, 2003; LEWGOY, 2004;


46

STOLL, S. J. Religião, ciência ou auto-ajuda? Trajetos do espiritismo no


Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 45, n. 2, p. 361-402, 2002.

A loucura entre dois mundos • 209


justificaria-se pelo próprio axioma adotado pela ciência, e,
ainda segundo seus preceitos, de que para toda ação, há uma
reação.
A compreensão do sofrimento humano como advin-
das de karmas adquiridos em reencarnações anteriores, de
certa forma, propiciaria, sob o aspecto religioso, um abran-
damento das penas do espírito. Assim, o espírito que antes
teria o sofrimento eterno, passa agora a ter o alívio e opor-
tunidade para se recuperar. Talvez, por isso, a religião karde-
cista ganhou novos adeptos. O sofrimento humano passa a
ser explicado não como erros de Deus, mas como falhas do
próprio indivíduo, que precisa ser resgatado para que evolua
espiritualmente.

210 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Referências

BARBOSA, A. Espiritualismo. Jornal de Uberlândia, Uberlândia, p.


2, 24 jan. 1937.

BENTHAM, J. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Lei nº 10.216. Brasília, DF, 06 abr.


2001.

CÂMARA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA. Ata da nona sessão


da terceira reunião ordinária realizada no dia 22 abr. 1968. Uberlân-
dia, 1968.

DAMÁZIO, S. F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritis-


mo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

FERREIRA, I. Espiritismo e medicina. Livraria da Federação Espíri-


ta Brasileira. Correio de Uberlândia, Uberlândia, p. 5, 18 mar. 1941.

FERREIRA, I. Novos rumos à medicina. São Paulo: Edições FEESP,


1993. v. 1/2.

FERREIRA, I. Psiquiatria em face da reencarnação. São Paulo: Edi-


ções FEESP, 2001.

GUANABARA, A. Campanha pró Construção do Asilo de De-


mentes. Correio de Uberlândia, Uberlândia, p. 2, 26 ago. 1941.

GIUMBELLI, E. O cuidado dos mortos: uma história da condena-


ção e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1997.

ISAIA, A. C. Allan Kardec e João do Rio: os jogos do discurso. In:


MACHADO, M. C. T.; PATRIOTA, R. História & historiografia.
Uberlândia: Edufu, 2003.

A loucura entre dois mundos • 211


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A loucura entre dois mundos • 213


II – narrativas: literaturas,
escrituras ordinárias, escritos
médicos e outras narrativas
Capítulo 7

narrativas da loucura em
dyonélio machado

Mauro Gaglietti1

Este texto tem o propósito de examinar as narrativas


acerca da loucura presentes em alguns textos de Dyonélio
Machado. Antes de mais nada, é oportuno frisar que a te-
mática em questão enseja uma releitura dos escritos de
Michel Foucault, sobretudo dos que apresentam uma re-
construção genealógica do anormal, conceito esse erigido
durante o século XIX em meio ao embate entre os saberes
jurídicos e penal, até encaminhar-se para uma psiquiatriza-
ção do desejo e da sexualidade, já no fim daquele século. Tal
reconstrução, efetuada pelo filósofo francês, apresenta ele-
mentos que servem para definir as diferentes personagens
que antecedem o anormal, os dispositivos que permitem a

Mauro Gaglietti é doutor em História/PUCRS, mestre em Ciência


1

Política/UFRGS, professor visitante do mestrado em Direito da


Universidade Integrada do Alto Uruguai e Missões (URI), em Santo
Ângelo-RS, professor e pesquisador do Complexo de Ensino Superior
Meridional (IMED) e Coordenador da Editora IMED em Passo Fundo-
RS – Linha de pesquisa: Novos Direitos, Cultura, Jurisdição, Efetividade
e Desenvolvimento. E-mail: maurogaglietti@via-rs.net

Narrativas da loucura • 217


sua definição e, simultaneamente, assinala a raridade ou a
frequência da aplicação dessa noção, identificando a tecno-
logia de poder que lhe corresponde.
A primeira aula ministrada por Foucault no Collège
de France2 acerca do assunto inicia pela abordagem da fun-
ção do exame psiquiátrico de imputabilidade penal, uma
prática discursiva em que se destacam a medicina mental e
o direito penal. Essa sobreposição torna ambos alheios às
suas regras específicas, levando-os a compor um discurso
grotesco, que tem o poder de manter e, ao mesmo tempo,
de produzir verdade. Dessa forma, o exame psiquiátrico
tem um triplo papel. Ele reduplica tanto o delito prenuncia-
do – uma vez que monta um quadro no qual é rememorada
uma miríade de características pessoais que não infringem
lei alguma, mas que, em seu conjunto, acabam sendo indí-
cios que permitem antever o delito – quanto o réu na condi-

2
Michel Foucault (1926-1984) é admitido no Collège de France em 1970,
sucedendo Jean Hyppolite na cátedra então recém-criada de História dos
Sistemas de Pensamento. A sua principal atribuição como professor dessa
instituição aberta de ensino é oferecer um curso anual, no qual expo-
nha semanalmente o estágio atual de suas pesquisas. Os treze cursos que
Foucault oferece no Collège de France entre 1971 e 1984 originam o livro
Os anormais, que concentra os temas das onze aulas do curso ministra-
do em 1975. Os demais cursos são Théorie e institutions pénales (1972),
La société punitive (1973) e Le pouvouir psychiatrique (1974), que, em
seu conjunto, abordam desde os procedimentos jurídicos tradicionais da
punição no medievo até a lenta formação de um saber intimamente rela-
cionado a um poder de normatização. No curso Em defesa da sociedade
(1976), o autor passa a identificar os mecanismos pelos quais, desde o
fim do século XIX, é desenvolvido o princípio da necessidade de defesa
social contra aqueles indivíduos ou classes considerados perigosos. Nesse
sentido, pode-se observar como, cada vez mais, o seu pensamento está
preocupado com o governo dos vivos ou, como ele afirmará posterior-
mente, com as formas de poder e saber que tornam os indivíduos su-
jeitos. Assim, Os anormais ocupa um lugar de destaque na transição de
Foucault do estudo das estratégias do poder em suas manifestações mais
repressivas e disciplinares, voltadas majoritariamente aos indivíduos para
um momento no qual as estratégias do governo das populações – baseado
em um certo biopoder – serão o seu foco principal.

218 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ção de delinquente, na medida em que reconstitui todos os
antecedentes do acusado. Assim, o efeito da reconstituição
é o de fazer com que o suposto autor do crime se pareça
com o delinquente, mesmo antes de ter cometido o crime.
Pode-se afirmar, portanto, que o exame psiquiátrico acaba
corroborando a natureza constitutivamente criminosa da
personalidade do réu:

descrever seu caráter delinquente, descrever o fundo das


condutas criminosas ou paracriminosas que ele vem tra-
zendo consigo desde a infância, é evidentemente contri-
buir para fazê-lo passar da condição de réu ao estatuto de
condenado.3

Outro aspecto ressaltado por Foucault é o de que, a


partir do momento em que o alienista passa a ter um papel
no tribunal, no início do século XIX, há uma progressiva
tendência à distinção entre as funções do médico e do juiz
nos julgamentos. Forma-se, então, uma área limítrofe entre
as funções desempenhadas por esses dois profissionais, os
quais tratam de crimes para os quais não havia qualquer ex-
plicação racional e cujos agentes não sofriam influência de
delírios. Esse tipo de situação origina um movimento am-
plo no alienismo francês: Pinel (1800) identifica as manias
sem delírio; Esquirol fala nas monomanias (1838). Contudo,
apenas com Baillarger desenvolve-se, em meados do sécu-
lo XIX, o que Foucault chama de princípio de Baillarger,
segundo o qual a ocorrência de delírios deixa de ser o indi-
cativo para a loucura, que passa a ser definida, então, pelo
eixo do voluntário-involuntário, ou seja, um crime impulsi-
vo, fruto de um automatismo, mesmo que sem caráter de-
lirante, e sobre o qual seu agente nada pode dizer, pode ser

FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 27.


3

Narrativas da loucura • 219


entendido como uma alienação, no caso, uma monomania
impulsiva.4
Por fim, Foucault destaca que, por mais que o lou-
co criminoso tenha feito a sua aparição inicial nos tribu-
nais por meio de manifestações monstruosas – como a de
Charlotte Cornier5 ou a do conhecido caso do fratricida
Pierre Rivière6 –, ele passa a ser, apenas gradativamente, de-
finido por meio da associação entre loucura e perigo. Essa
relação foi estabelecida, inicialmente, pela legislação france-
sa, a qual regulou as instituições de tratamento mental em
1838, uma vez que, com as internações ex officio, o vínculo
loucura-perigo é criado sem necessidade da mediação teóri-
ca anteriormente oferecida pela concepção de monomania.
Segundo Foucault, a partir de então

não se precisa mais de monomaníacos. A demonstração


política que se buscava na constituição epistemológica da
monomania, essa necessidade política é agora, pela admi-
nistração, satisfeita e mais que satisfeita.7

De modo geral, no curso Os anormais o autor recons-


titui o modo pelo qual a Psiquiatria se livra da alienação, ao
adotar o princípio do instinto como substituto ao delírio
na identificação da loucura. Ao mesmo tempo, o filósofo
francês salienta que a teoria da degeneração, de Morel, ser-
viu de base para que a Psiquiatria definisse, etiologicamente,
o seu objeto de investigação. A partir desse movimento, a
Psiquiatria produz os seus efeitos de poder de um modo
mais geral na sociedade como um todo, pois se erige como

4
FOUCAULT, 2001, p. 199.
5
FOUCAULT, 2001, p. 141-142.
6
FOUCAULT, M. (Org.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, mi-
nha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
7
FOUCAULT, 2001, p. 179.

220 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ciência dos anormais e das condutas anormais. Segundo o
filósofo,

Não será mais simplesmente nessa figura excepcional do


monstro que o distúrbio da natureza vai perturbar e ques-
tionar o jogo da lei. Será em toda parte, o tempo todo, até
nas condutas mais ínfimas, mais comuns, mais cotidianas,
no objeto mais familiar da Psiquiatria, que esta encarará
algo que terá, de um lado, estatuto de irregularidade em
relação a uma norma e que deverá ter, ao mesmo tempo,
estatuto de disfunção patológica em relação ao normal.8

Dessa forma, a Psiquiatria propicia a definição de políti-


cas profiláticas de defesa social contra a suposta degeneração,
políticas que, em sua forma extrema, podem ser encontradas
no nazismo e no fascismo, como Foucault propõe na última
aula do curso de 1976, intitulada Em defesa da sociedade.9
O pensamento de Foucault a respeito da loucura
pode ser associado, sob alguns aspectos, à produção teóri-
ca e ficcional sobre o mesmo tema realizada por Dyonélio
Machado nos anos 1930 e 1940, no Brasil.10 A fim de evi-
denciar a conexão entre as ideias dos dois intelectuais, cabe
analisar os seguintes escritos de Machado: a tese intitulada
Uma definição biológica do crime, de 1933,11 que guarda pro-
funda atualidade, sobretudo se for levada em consideração a

8
FOUCAULT, 2001, p. 205.
9
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
10
Sobre a loucura, ver estudos sobre o Hospital São Pedro: WADI, Y. M.
Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela construção do
hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Editora da Universidade/UFRGS, 2002; SANTOS, N. M. W. Histórias de
vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo
Fundo: Editora da UPF, 2005.
11
MACHADO, D. Uma definição biológica do crime. Porto Alegre: Globo,
1933.

Narrativas da loucura • 221


categoria de psicopata tal como é estabelecida pelas conven-
ções psiquiátricas internacionais contemporâneas; o relató-
rio técnico da viagem de estudos que o escritor e psiquiatra
realizou a Buenos Aires, o qual foi publicado em 1944, sob
o título Eletroencefalografia;12 os pronunciamentos que fez,
na condição de deputado constituinte,13 em 1947, constan-
tes nos Anais da Assembleia Legislativa do Rio Grande do
Sul,14 e o romance O louco do Cati, publicado em 1942.15

A medicina de Dyonélio e a biopolítica16

Dyonélio Machado, nas décadas de 1930 e 1940,17 re-


alizou pesquisas pioneiras no campo da neurociência, in-

12
MACHADO, D. Eletroencefalografia. Porto Alegre: Globo, 1944.
13
Dyonélio Machado foi eleito em 1947 para a Assembléia Estadual
Constituinte no Rio Grande do Sul, foi líder, na condição de parlamentar,
da bancada do Partido Comunista. Sua eleição deveu-se, sobretudo, à sua
condição de médico que possuía um amplo prestígio junto a população.
Sugere-se a leitura de GAGLIETTI, M. Dyonélio Machado e Raul Pilla:
médicos na política. Porto Alegre: EDIPUCRSE, Instituto Estadual do
Livro, 2007.
14
ANAIS da Assembleia Estadual Constituinte do Rio Grande do Sul de
1947. Porto Alegre: Imprensa Oficial, abr./ago. 1947.
15
MACHADO, D. O louco do Cati. São Paulo: Ática, 1981.
16
A expressão biopolítica lembra a formulação de Michel Foucault, cf.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW,
P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e
da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
Além disso, salienta-se que as informações sobre a atuação do deputado
Dyonélio Machado no âmbito da medicina foram extraídas das seguintes
obras de sua autoria: Uma definição biológica do crime (MACHADO,
1933); Neurose traumática (Arquivos do Departamento Estadual de Saúde
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 4, 1943); Eletroencefalografia
(MACHADO, 1944).
17
Ver CID – 10: décima edição do Manual Internacional de Doenças, ma-
nual de classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS); DSM
– Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da Associação
Psiquiátrica Americana. Como principal leitura, sugere-se o artigo de
OSÓRIO, C. M. da S. Dr. Dyonélio, um médico. In: BARBOSA, M.
H. S.; GRAWUNDER, M. Z. (Org.). Dyonélio Machado. Porto Alegre:
Unidade Editorial, 1995. p. 61-66. (Cadernos Porto & Vírgula, n. 10).

222 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


vestigando, mais especificamente, os potenciais cerebrais
bioelétricos e o metabolismo da glicose no cérebro. Em
1944, três anos antes da sua eleição, fez uma viagem de es-
tudos a Buenos Aires. Designado pelo então Departamento
Estadual de Saúde, o médico foi à Argentina estudar a apli-
cação do eletroencefalograma na avaliação das consequên-
cias dos diversos tratamentos de choque – insulinoterapia,
cardizol e metrazol, eletroconvulsoterapia ou eletrochoque
(ECT). Especialmente a insulina e o ECT eram muito utili-
zados no Rio Grande do Sul naquela época.18 Em um capítu-
lo do relatório intitulado “O controle eletroencefalográfico
nos tratamentos de choque”, no qual descreve o resultado
das pesquisas que realizou na Argentina, Dyonélio apresen-
ta a comprovação, tanto experimental como anatomoclíni-
ca, de alterações histopatológicas no cérebro, provocadas
por vários agentes utilizados na terapêutica de choque. Essa
descoberta levou investigadores brasileiros interessados no
tema a analisarem as modificações do potencial elétrico do
encéfalo com esse tipo de tratamento.
Em 1944, o referido relatório daria origem à obra inti-
tulada Eletroencefalografia, que oferece aos estudiosos uma
apurada revisão bibliográfica sobre os efeitos não deseja-
dos dos tratamentos biológicos no sistema nervoso central
e sobre as causas ou as bases biológicas dos transtornos
mentais. Impressiona, no material, além do rigor científi-
co e do cuidado com a metodologia, a atualidade do tema.

18
A provocação de choque com insulina ainda era usada na década de 1960,
no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Daquelas técnicas, sobreviveu a ele-
troconvulsoterapia, tratamento seguro, eficaz e indispensável em alguns
casos, embora alvo de controvérsias, em particular na literatura conside-
rada não científica. Os modernos hospitais psiquiátricos, ou as unidades
de internação psiquiátrica de hospitais não especializados em Psiquiatria,
atualmente empregam aparelhos para aplicação da eletroconvulsoterapia
que já vêm acoplados a um eletroencefalógrafo, o que demonstra a atua-
lidade do que já preocupava Dyonélio há mais de 60 anos. Para maiores
informações a esse respeito, ver OSÓRIO, 1995, p.64.

Narrativas da loucura • 223


Grande parte do conhecimento contemporâneo nas áreas
de psicofarmacologia e psicofarmacoterapia foi gerada por
essa linha de investigação, aplicada, a partir da década de
1960, na pesquisa das alterações bioelétricas e neuroquími-
cas produzidas nos tratamentos com drogas antipsicóticas
e antidepressivas.19
No que diz respeito ao pioneirismo de Dyonélio
Machado, também chamam a atenção outros aspectos de
sua formação acadêmica. Em 1934, a Editora Globo edita-
va, em Porto Alegre, a obra de Edoardo Weiss, psicanalista
italiano, intitulada Elementos de psicanálise, com prefácio de
Sigmund Freud. Tratava-se de uma obra de iniciação aos es-
tudos psicanalíticos, fruto das conferências feitas pelo autor
na Associação Médica de Trieste, quatro anos antes. A tra-
dução da obra ficou a encargo de Dyonélio, considerando-
se, para tanto, o fato de o médico gaúcho haver se dedica-
do, entre 1930 e 1932, à então jovem ciência da Psicanálise,
com o intuito de aplicar os conhecimentos dessa área à
Psiquiatria. Como resultado desse ambicioso e inovador
projeto científico, ele concluiu e publicou, em 1933, a tese
intitulada Uma definição biológica do crime.20

19
Cf. OSÓRIO, 1995, p. 65. Segundo o autor, Dyonélio, após ter estudado
os trabalhos de Engel & Marcolin (1941) e de Pauline Davis (1943) sobre
os efeitos da hipoglicemia no eletroencefalograma em indivíduos acome-
tidos de patologias e em sujeitos normais sob experimentação, concluiu
“pela alta significação desses dois últimos trabalhos, no esforço de uma
melhor interpretação das modificações (bioelétricas) operadas durante a
hipoglicemia”. Afirma Dyonélio Machado: “achei conveniente inseri-los
no capítulo onde diligenciei por agrupar as principais alterações que sofre
a atividade elétrica cortical, sob influência dos diversos agentes emprega-
dos em terapêutica de choque”.
20
Nessa tese, o autor ratifica as afirmações de Freud em Totem e tabu, de
acordo com as quais o homem contemporâneo pode reproduzir, em vá-
rios momentos da sua vida, o homem primitivo, cuja mentalidade sobre-
vive mesmo nos nossos próprios hábitos e costumes. Cf. MACHADO,
1933, p. 20-74. Ainda Osório mostra que, vinte anos mais tarde, outros
pesquisadores ampliavam esse conceito de dúplice atitude do meio so-
cial. O psicanalista Eissler afirmava que a sociedade é composta por

224 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Nesse estudo, Dyonélio Machado recorre a um con-
junto de autores de diversas áreas – antropologia física e
criminal, criminologia, medicina legal, Psiquiatria e psicaná-
lise, por exemplo –, privilegiando a referência a estudiosos
estrangeiros, mesmo no caso de temas que já haviam sido
abordados por pesquisadores brasileiros.21 Em sua tese, o
autor concebe o delito de homicídio como um fenômeno da
natureza diretamente relacionado ao estado mental do ser
que praticou o crime.22 De acordo com Cláudio Maria da
Silva Osório, esse “seria um estado pré-psicótico, correla-
cionado com a psicologia do caráter ou da personalidade”.23
Osório salienta, ainda, que embora Dyonélio não descar-
te as influências secundárias dos chamados fatores sociais,
aponta para a preponderância do fator psíquico de natureza
individual nos casos de homicídio. Pode-se afirmar, além
disso, que ele antecipou-se às atuais concepções da crimi-
nologia e da vitimologia, ao identificar o que chamou de

indivíduos em que habitam tanto os desejos criminosos inconscientes (os


impulsos homicidas) quanto as necessidades de punição (as proibições
do superego), daí o favorecimento, inconsciente, dos atos criminosos.
Robert Merton, eminente expoente da sociologia, em 1976 desenvolveu
a mesma ideia, indicando que a sociedade aprova e desaprova o compor-
tamento delinquente. OSÓRIO, 1995, p. 62-63.
21
Dyonélio não cita Nina Rodrigues, nem Afrânio Peixoto, e muito menos
Franco da Rocha, apesar de serem, os dois últimos, as principais referên-
cias no Brasil nas áreas da medicina legal e da Psiquiatria forense naquele
período.
22
Franco e Ramos afirmam que Dyonélio publicou, também, os trabalhos
intitulados Um falso caso de eutanásia, O delito passional e o tabu e Teoria
das nevroses. A data de publicação desses trabalhos – não mencionados
nas outras fontes consultadas que contêm dados sobre a biografia do in-
telectual – não é informada pelos autores, que também registram a parti-
cipação de Dyonélio no 2º Congresso Latino-Americano de Neurologia,
Psiquiatria e Medicina Legal, realizado no Rio de Janeiro, em 1930, outra
referência não encontrada nas demais fontes bibliográficas consultadas.
Cf. FRANCO, Á.; RAMOS, S. M. (Org.). Panteão médico rio-grandense:
síntese cultural e histórica: progresso e evolução da medicina no estado
do Rio Grande do Sul. São Paulo: Ramos, Franco Editores, 1943. p. 527.
23
OSÓRIO, 1995, p. 62.

Narrativas da loucura • 225


“dúplice atitude do meio social: consentindo e punindo su-
cessivamente as mesmas práticas”.24
Mesmo tendo recorrido à psicanálise, Dyonélio25 faz
questão de frisar que sua orientação em Psiquiatria não é
psicanalítica, e sim eclética, o que ficaria demonstrado pelo
fato de ter utilizado, inclusive, elementos da psicogené-
tica em algumas situações particulares.26 O autor entrou
em contato com a psicanálise no momento em que fazia
o curso de especialização no Rio de Janeiro,27 sobretudo
por meio das aulas dos professores Antônio Austregésilo e
Júlio Porto-Carrero.28 Ao retornar a Porto Alegre, no início

24
MACHADO, 1933, p. 174.
25
MACHADO, 1933, p. 164.
26
O ecletismo de Dyonélio na sua relação com a psicanálise, a partir da
década de 1930, não era produto de uma atitude superficial perante a nova
ciência. O médico valia-se de procedimentos psicanalíticos em benefício
dos seus pacientes internados no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ele chegou a utilizar, nesse período,
métodos que, dez anos depois, foram denominados – na Europa e nos
EUA – como comunidades terapêuticas e socioterapia.
27
Visando qualificar o corpo técnico, Jacinto Godoy estimulou os médi-
cos a especializarem-se em clínica psiquiátrica, pois ambicionava trans-
formar o Hospital São Pedro em um centro de pesquisa. Cf. GODOY,
J. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: [s.n.], 1955. Visando
cumprir esse intento, Dyonélio transferiu-se com a família para o Rio de
Janeiro, onde redigiu, entre 1930 e 1932, a tese inaugural Uma definição
biológica do crime (MACHADO, 1933).
28
Antônio Austregésilo (1876–1960) era professor titular da cátedra de neu-
rologia da Faculdade de Medicina, tendo sido o orientador da tese Uma
definição biológica do crime, defendida por Dyonélio Machado. Júlio Pires
Porto-Carrero (1887-1937) foi professor de Medicina Legal na Faculdade de
Direito da Universidade do Rio de Janeiro, membro fundador da Sociedade
Brasileira de Psicanálise. Procurou aplicar a teoria de Freud à criminologia,
tema ao qual dedicou os livros Criminologia e psicanálise e Psicologia judiciá-
ria, ambos publicados em 1932. Para maiores informações, sugere-se a leitura
de: CAMPOS, R. H. F. de (Org.). Dicionário de psicologia no Brasil: pionei-
ros. Rio de Janeiro: Imago: UnB: CFP, 2001; GAGEIRO, A. M. L´histoire
de la psychanalyse au Brésil et de la formation de la société psychanalytique de
Porto Alegre (1963). 2001. Tese (Doutorado) – Universidade de Paris VII,
Paris, 2001; OLIVEIRA, C. L. M. V. de. Os primeiros tempos da psicanálise
no Brasil e as teses pansexualistas na educação. Agora: Estudos em Teoria
Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 134-153, jan./jun. 2002.

226 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


dos anos 1930, empregou a psicanálise, de forma pioneira,
na clínica psiquiátrica no Hospital São Pedro, tendo sido
um dos três primeiros médicos aprovados por concurso
para o Hospital, concurso esse realizado no momento em
que Jacinto Godoy (1883-1959) assumiu a sua direção, em
1927, e buscou estimular a criação de um ambiente científi-
co na principal instituição de internamento psiquiátrico do
Rio Grande do Sul.29
Em sua tese, Dyonélio delimita o tema a ser investi-
gado, focalizando, exclusivamente, o assassínio/homicídio,
considerado um comportamento extremo, por meio do qual
o mecanismo biológico que determina a tendência individual
ao crime pode ser deduzido.30 Contudo, ao contrário do que
o título da tese sugere, o autor não pressupõe a determinação
biológica do crime como sua causa principal ou última, o que
era comum às correntes criminológicas consideradas cientí-
ficas nas três primeiras décadas do século XX.
O propósito do médico, com isso, é, inicialmente,
descrever o crime não como um ato decorrente da maldade

29
Desde 1925, Jacinto Godoy dirigia o Manicômio Judiciário do Rio
Grande do Sul, que funcionava nas dependências do Hospital São
Pedro. Após o falecimento do diretor do Hospital São Pedro, em 1926,
foi criada a Diretoria de Assistência a Alienados, para cuja direção foi
nomeado Jacinto Godoy, que passou a acumular as funções de diretor
do Manicômio Judiciário e do Hospital entre 1926 e 1932. Nesse perío-
do, além de Dyonélio Machado, Godoy contratou os médicos Januário
Bittencourt, enviado à Europa em 1929 para tomar contato com a te-
oria e as técnicas clínicas que pudessem ser aplicadas no Hospital São
Pedro, e Décio Souza, que foi orientado por Godoy e defendeu sua tese
inaugural em 1930, intitulada Demência precoce e eschizophrenia. Ver
GODOY, 1955.
30
Dyonélio Machado, embora se mostre muito próximo do pensamento
evolucionista e da antropologia criminal, desenvolve uma argumentação,
ao longo de sua tese, que o leva a distanciar-se, gradativamente, da escola
italiana e de suas classificações criminais. Nas páginas finais da tese, o au-
tor propõe a valorização da caracterologia de Krektschmer, então pouco
conhecida no Brasil, de modo a permitir uma classificação das tendências
criminais individuais calcadas em sua base psicológica, até então colocada
em segundo plano frente aos determinantes biológicos e sociais.

Narrativas da loucura • 227


humana, mas como fenômeno comum a todas as espécies
animais, resultante da forma anormal que a concorrência
vital toma em alguns indivíduos. Para o autor, o crime deri-
va de tendências individuais, tanto nos animais quanto nos
seres humanos. Assim, o fato de que o fenômeno do assas-
sínio/homicídio pode ser regido por leis naturais constitui
apenas a sua causa primeira, não permitindo explicá-lo por
inteiro. Para tanto, faz-se necessário compreender sua causa
última, a qual – a despeito das restrições sociais impostas
aos indivíduos – reside na constituição psíquica, no tem-
peramento de alguns seres humanos, os quais tendem a um
excessivo autocentramento que os impele, de forma mais
frequente e intensa, a cometer atos criminosos.
Dessa maneira, Dyonélio Machado identifica, na per-
sonalidade daqueles que cometem homicídio, uma tendên-
cia psíquica ao exagero, que se manifesta no modo anormal
pelo qual o instinto de conservação opera sobre essas pesso-
as, levando-as a agir com excesso na luta pela existência. O
autor distingue, portanto, o temperamento criminoso (de-
terminado psicologicamente, e não de modo atávico), que
leva determinados indivíduos a acreditarem que é necessá-
rio matar outro ser humano para garantir sua autopreserva-
ção, em condições nas quais pessoas normais não o fariam.
O criminoso seria, assim, um pré-psicótico, que percebe,
subjetivamente, uma ameaça à sua existência, a qual, objeti-
vamente, não existe. Isso não implica, porém, que ele sofra
qualquer delírio cognitivo. Embora tais assertivas situem
a argumentação no âmbito das categorias limítrofes entre
sanidade e loucura, no tocante ao crime, Dyonélio, a seu
modo, não segue a tendência predominante na Psiquiatria
brasileira da época, segundo a qual os criminosos eram con-
siderados insanos e diagnosticados como tendo personali-
dades psicopáticas. Portanto, o autor, mesmo partindo da
ideia de que o crime decorre de uma constituição psíquica

228 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


anormal, não considera todos os criminosos como doentes
mentais.
Além disso, Dyonélio se opõe às classificações crimi-
nais vigentes, o que o leva a sugerir uma revisão dos crité-
rios utilizados para construí-las e a destacar a necessidade
de se colocar em pauta a discussão acerca da responsabilida-
de penal dos criminosos. Com isso, ele demonstra ter cons-
ciência de que os rumos de sua pesquisa, por destoarem das
tendências então em voga na área da Psiquiatria, provocam
sentimentos ambíguos no universo acadêmico, oscilando
entre ódio e a admiração.
Da mesma forma que na área médica, também no
parlamento por diversas oportunidades, é possível perce-
ber o senso de responsabilidade31 do deputado Dyonélio
Machado no que diz respeito ao trato dos assuntos públi-
cos e, de modo particular, dos temas relacionados à saúde
da população. A expressão maior disso talvez esteja no fato
de o parlamentar do Partido Comunista do Brasil (PCB)
ter participado – por meio de apartes e pronunciamentos
sobre o Anteprojeto de Constituição e o Projeto do Ato
das Disposições Transitórias da Assembléia Constituinte
– de todos os debates relacionados, de alguma maneira, à
área da saúde. Valendo-se do tempo reservado ao líder de
bancada, o deputado32 posicionou-se, por exemplo, sobre a
alienação mental no Rio Grande do Sul, sendo que ao final
de tal pronunciamento fez questão de dirigir-se aos autores
da matéria em pauta, registrando a sua constante disposi-
ção de colaborar na discussão dos assuntos que considerava
prioritários. Nessa ocasião, não apenas a sua condição de
médico, mas, também, a de grande conhecedor dos temas
relativos à saúde psíquica do ser humano serve para reforçar
seus argumentos sistêmicos.
31
Cf. GAGLIETTI, 2007, p. 109-199.
32
Cf. ANAIS..., maio 1947, p. 41-43.

Narrativas da loucura • 229


Também merece destaque a sua participação no debate
de outro assunto relativo à saúde pública: no dia 2 de maio
de 1947, o parlamentar33 dirigiu-se ao presidente da mesa
diretora dos trabalhos constituintes com o firme propósito
de discutir o artigo 21 do Projeto do Ato das Disposições
Transitórias, o qual trata da aplicação, no Rio Grande do
Sul, da lei federal referente à obrigatoriedade da profilaxia
mental. Dyonélio, ao examinar a matéria, constatou a ne-
cessidade de se proceder, na Assembleia, à discussão exaus-
tiva e à análise detalhada do projeto, que, segundo suas pró-
prias palavras, permitiria a aplicação desse dispositivo, uma
vez aprovado.
No debate acerca do artigo 21 do Projeto do Ato das
Disposições Transitórias, o deputado apontou os constran-
gimentos enfrentados pelos profissionais responsáveis pelos
portadores de sofrimento psíquico, mencionando as normas
da legislação federal relativas à matéria que então apresenta-
vam aspectos entendidos como negativos. Como tal temática
está diretamente relacionada à saúde pública, o médico-par-
lamentar valia-se dos conhecimentos adquiridos ao longo de
sua formação acadêmica e do desempenho de suas funções
profissionais para, do alto da respeitabilidade técnica que lhe
fora conferida pela especialização em Psiquiatria, construir
uma argumentação altamente convincente.
Seu ponto de partida consistia em mostrar que, além
de ser um médico com expressiva trajetória no exercício da
profissão, já ocupara o cargo de chefe do Departamento de
Profilaxia Mental do Hospital São Pedro, sendo, portanto,
como um conhecedor da legislação federal que falava sobre
a complexidade da aplicação das normativas que regulavam
a prestação de serviços de profilaxia mental no Rio Grande
do Sul. Com base em um apurado diagnóstico da situação,

33
ANAIS..., maio 1947.

230 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


o deputado citou casos concretos que lhe serviam como
provas, dotadas de força simbólica e que assumiam, em seu
discurso, um estatuto de argumento de autoridade. Não
se tratava meramente da opinião de um político, e sim da
diagnose de um médico que possuía, inclusive, experiência
administrativa na área de saúde pública.34
O deputado Dyonélio Machado, à luz de sua expe-
riência profissional, afirmava que o problema da alienação
mental concentra-se em dois aspectos: a profilaxia e a as-
sistência. Destacava, ainda, que essa última deve levar em
conta duas instâncias: os doentes agudos e os crônicos. A
preocupação do parlamentar do PCB relacionava-se à infra-
estrutura que o Estado deveria garantir aos estabelecimen-
tos de saúde de Porto Alegre e das demais cidades-pólo no
sentido de assegurar a aplicação da legislação federal, que
determinava a oferta de um serviço de profilaxia mental.
Embora considerasse difícil a concretização desse dispositi-
vo constitucional, o deputado compreendia não ser impos-
sível contornar os obstáculos que se opunham à execução
das leis.
O líder da bancada comunista na Assembleia
Constituinte lembrava que, no Hospital São Pedro, por mais
de uma vez, ocupara a chefia do Departamento de Profilaxia
Mental, e denunciava, “lealmente e corajosamente”,35 que
nunca se fizera profilaxia mental em Porto Alegre, pois o
que se oferecia, sob tal nome, era, nada mais, nada menos,
do que um serviço ambulatorial para o atendimento de psi-
copatas. Dyonélio citou, então, a única experiência de pro-
filaxia mental que dizia conhecer e que teria se desenvolvido

34
Cf. GAGLIETTI, M. Os discursos de Dyonélio Machado e Raul Pilla: o
político e suas múltiplas faces. 2005. Tese (Doutorado em História) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
2005.
35
GAGLIETTI, 2007, p. 111-113.

Narrativas da loucura • 231


por ocasião da enchente de 1941, quando o Hospital São
Pedro dera abrigo aos flagelados.
Segundo ele, em tal episódio obtivera, da direção do
Hospital, permissão para colocar todos os asilados sob o
regime de rotina do ambulatório, havendo aproveitado a
oportunidade de estarem abrigados no local elementos do
povo para submetê-los a testes clínicos e descobrir possíveis
formas de alienação mental. O médico-deputado, talvez por
consciência de que tal atitude seria passível de censura ou de
questionamentos de natureza ética, fez questão de esclare-
cer que tais testes consistiam em um procedimento sumá-
rio, composto de um exame clínico e de alguns exames de
laboratório, que não acarretavam qualquer constrangimen-
to aos abrigados. Além disso, relatou – ainda que, ao que
parece, sem satisfação – um dos resultados de tais exames,
por meio dos quais pôde se antecipar em um diagnóstico
que, de outra forma, só seria realizado tardiamente:

Num dos nossos flagelados que apenas se queixava de do-


res na cabeça o início da doença mais grave na nosografia
mental: a paralisia geral progressiva. É a única experiên-
cia que posso dar aqui sobre serviços de profilaxia mental.
Esse doente nos iria procurar dentro de um ou dois anos,
quando sua doença, a sífilis maligna, aquela contra a qual
ainda esbarram os mais modernos meios de combate, só
nos iria procurar, repito, quando a doença estivesse em ple-
no desenvolvimento, e, portanto, inacessível à terapêutica
especializada. Mas eu me interesso muito por esse assunto
e pude colher uma experiência de um grande psiquiatra, o
professor Mira y Lopez. Numa cidade argentina da provín-
cia, em Santa Fé, quando dirigia o Hospital Psiquiátrico,
ele aplicou o seguinte método: oferecer à população em
condições de emprego particular ou público, um atestado
de vocação profissional. Atraído por esta grande vantagem

232 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


que dava um Hospital do Estado, um Hospital Oficial,
fornecendo ao candidato um atestado que teria uma força
persuasiva e real perante os seus prováveis e futuros em-
pregadores, ele conseguiu fazer passar pelo serviço clínico
do seu estabelecimento uma população de 10.000 pesso-
as. É uma grande experiência que não se aplicou ainda no
Brasil. Infelizmente, ela não atinge os setores que mais ne-
cessitam do carinho do médico em matéria de profilaxia, e
que é a criança. Em todo caso, é uma ajuda que poderá ser
aproveitada entre nós.36

Partindo disso, Dyonélio sugere, ao governo, a


criação, se possível em todos os municípios, de postos
de triagem, informando que Pelotas, por iniciativa do
Departamento Estadual de Saúde e com a colaboração di-
reta do Hospital São Pedro, contava com um deles. Tais
postos, que poderiam seguir o modelo do antigo Posto
Municipal dos Psicopatas de Porto Alegre, encaminha-
riam todos os doentes, agudos e crônicos, para os hospi-
tais regionais, nas zonas da serra, da fronteira, do litoral
ou outras. Porém, em todas as cidades, e em particular em
Porto Alegre, que recebia, inclusive, psicopatas de outros
Estados, a terapêutica especializada deveria contar com
uma melhor infraestrutura, que seria um mecanismo va-
lioso no combate à alienação mental, pois propiciaria a ne-
cessária separação de duas espécies de nosocômios.

Não se compreende que, até hoje, depois de 5 ou 6 anos em


que o Departamento Estadual de Saúde elaborou o projeto
de uma colônia de psicopatas, quando mesmo o Hospital
São Pedro já conta com terra onde deva construir a sua
colônia de Psicopatas, nada de concreto tenha sido feito

36
ANAIS..., maio 1947, p. 41.

Narrativas da loucura • 233


neste sentido. O que acontece é que o Hospital São Pedro,
com alojamentos para menos de 700 doentes, abriga atu-
almente cerca de dois mil e quinhentos doentes. Isto traz
uma enorme indisciplina no Hospital, por parte de doentes
difíceis de serem conduzidos, apesar do alto nível da nossa
enfermagem especializada. De modo que, ao lado de um
hospital de agudos, deve haver os hospitais de evacuação
de alienados, que é a colônia. [...] A lei federal obriga a
separação, nesses hospitais, das crianças alienadas, as quais
devem receber tratamento nosológico perfeitamente dife-
renciado do que é dispensado aos adultos. A mesma exi-
gência quanto aos toxicômanos. E o que vemos é a máxima
promiscuidade.37

Dyonélio chama a atenção para essa separação que


a legislação federal impõe, frisando que a lei prevê punição
criminal ao médico que atenda um toxicômano em domicí-
lio. Como há essa restrição, mas inexistem, na época, locais
adequados para o tratamento dos toxicômanos, os médi-
cos veem-se obrigados a levá-los para um regime comum
de alienados perigosos, agitados e sórdidos. O deputado do
PCB considerava que o toxicômano, quando ainda na fase
inicial da moléstia, não apresentava um estado psicótico
nem oferecia perigo, estando em sua perfeita lucidez racio-
cinante, embora seja um paciente cuja doença a população
não admita como tal, considerando-a um vício, um defeito
passível de contágio social.
O parlamentar comunista parte para a defesa da
corporação médica ao aludir aos possíveis constrangi-
mentos dos especialistas, que, não tendo outra alternati-
va, eram levados, muitas vezes, a infringir a lei e a tratar
o toxicômano em domicílio. No entanto, colocando-se

37
ANAIS..., maio 1947, p. 42.

234 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


na condição de médico que ocupa a tribuna, ele orienta-
va seus colegas a adotarem alguns procedimentos capazes
de conduzir ao êxito o tratamento desse tipo de pacien-
te. De acordo com Dyonélio, o doente precisaria ser sub-
metido a um regime semicarcerário, fechado, porque, de
outra forma, não se alcançaria a toxi-privação, visto que
ele, se mantido em sua casa, tenderia a continuar fazendo
uso do tóxico que o escravizava e a subornar os próprios
familiares para obtê-lo. Assim, somente sob um regime
semicarcerário o toxicômano poderia observar as prescri-
ções médicas necessárias para a conquista de um resultado
satisfatório e definitivo no tratamento.
Ao que parece, Dyonélio relacionava-se com a me-
dicina, sua profissão, movido pelo mesmo “deus interior”38
– o entusiasmo – que habitava os mais notórios médicos
brasileiros das primeiras décadas do século XX. Pedro Nava
é um desses casos, assemelhava-se a Dyonélio não apenas
por também se dedicar à medicina e à literatura: em sua
posse na Academia Nacional de Medicina, Nava39 procurou
mostrar que não fora só a técnica que os médicos brasileiros
haviam adquirido na profunda revolução operada pelas des-
cobertas científicas.40 Também ele chamou a atenção para

38
Cf. Pasteur, que, em seu discurso de recepção na Academia Francesa,
afirmou  : “les Grecs nous ont legué un des plus beaux mots de notre
langue, le mot ‘enthousiasme’ qui signifie un Dieu intérieur”. O discurso
é citado por NAVA, P. Discurso de recepção de Pedro Nava na Academia
Nacional de Medicina. Brasil-Médico Cirúrgico, Rio de Janeiro, ano 71, n.
28. abr./jun. 1957.
39
NAVA, 1957, p. 14-30.
40
NAVA, 1957, p. 16. No ano de 1922, Banting e Best isolaram a insulina,
o que abriu uma nova era para a medicina e, particularmente, para a tera-
pêutica. Trinta e cinco anos depois, a ciência progrediu mais do que nos
milênios anteriores de existência histórica da arte da medicina. Esse foi
o período da agonia da sífilis, da malária e da tuberculose. As infecções
passam a ser controladas e suprimidas com o advento das sulfanilamidas
e da penicilina. Enquanto isso, a quimioterapia e a medicação antibiótica
enriquecem-se com novos produtos – cada vez mais ativos e cada vez

Narrativas da loucura • 235


esse entusiasmo que tomara conta de boa parte desses pro-
fissionais da saúde.
Tal envolvimento com a profissão talvez esteja re-
lacionado à capacidade que os médicos acreditam ter de
aliviar a dor alheia, de retardar a morte e, sobretudo, de
trazer de volta a vida. Ao que parece, essa crença anima a
militância médica, que, nas décadas de 1940 e 1950, viveu
o milagre cotidiano da revolução científica, a qual alterou
a mentalidade daqueles que então tratavam da saúde alheia.
Essa transformação foi tamanha que a Medicina, antes de-
finida, de forma pessimista, como uma sombria meditação
sobre a morte – pois vivia nessa “espécie de ato gratuito que
era diagnosticar no vivo e confirmar no morto” –, tornou-
se a arte vigorosa da meditação sobre a vida. A geração de
médicos das décadas de 1940 e 1950 assistiu, então, a uma
profunda revolução nos conhecimentos da área.
Em parte por viverem no mesmo período, Dyonélio
Machado e Pedro Nava têm em comum o sentimento e a
ideia de amor à Medicina, a profunda fé no bem, na purifica-
ção e no pentecostes – a iluminação divina – que a profissão
representa para quem a exerce com sinceridade e tendo a
exata compreensão do significado da função que desem-
penha. Além disso, ambos, a fim de servirem não apenas
aos pacientes, mas, também, ao próprio sistema de saúde,
assumem encargos de administração médica, o que, nas pa-
lavras de Pedro Nava, “é ato heroico e significa para quem
tem sensibilidade moral, acometimento e arrojo semelhan-

mais destituídos de efeitos secundários e maléficos. O grupo das doenças


curáveis nesses 35 anos é integrado por doenças graves ou mortais, como
as febres do grupo tífico, as septicemias, as endocardites bacterianas, as
meningites cóccicas e bacilares. A medicina preventiva resgata, conti-
nuamente, milhares de vidas. Os médicos já dominam a temperatura do
corpo, a respiração, os batimentos cardíacos. As máquinas substituem,
momentaneamente, o organismo no desempenho das funções respirató-
ria e circulatória. A cirurgia nervosa fabrica prodígios.

236 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


tes ao daquele que se dispusesse a caminhar descalço num
serpentário”.41

A representação ficcional da loucura

A obra O louco do Cati tem como protagonista um


indivíduo permanentemente atormentado por recordações
de fatos de sua infância, vivida em Quaraí-RS: as prisões
que testemunhou e que foram realizadas pelos homens do
general João Francisco e os comentários por parte da mãe
e da população em geral sobre casos de tortura e morte
ocorridos no Cati. O terror causado na personagem por
tais acontecimentos é tanto que provoca o seu desequilíbrio
mental.42 Isso faz com que O louco do Cati possa ser carac-
terizado como um desses romances que, numa primeira lei-
tura, inevitavelmente deixa o leitor um tanto desnorteado,
confuso e perplexo: tudo se passa num clima de imprecisão,
gerado pela ausência de dados que poderiam esclarecer os
fatos. As indicações de tempo e de espaço ocorrem no texto
de forma assistemática, ou se deixam entrever envoltas em
brumas, como acontece, por exemplo, com aquelas que se
misturam aos farrapos de lembranças que assaltam o mis-
terioso personagem denominado louco. Dele não se sabe
nome, idade, direção, nada.
No início do romance,43 as cenas presenciadas e
imaginadas pelo protagonista, quando criança, constituem

41
Cf. NAVA, 1957, p. 15.
42
Como Grawunder e Barbosa sugerem, os causos e horrores dessa revo-
lução, que Dyonélio ouviu desde menino, dão-lhe matéria para a cria-
ção do romance intitulado O louco do Cati, publicado em 1942. Cf.
GRAWUNDER, M. Z. Curso e discurso da obra de Dyonélio Machado:
uma análise da legitimação. 1989. p. 40. Dissertação (Mestrado) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
1989; BARBOSA, M. H. S. A paródia em O louco do Cati. Porto Alegre:
Edipucrs: Prefeitura Municipal de Quaraí, 1994. p. 17-19.
43
Cf. MACHADO, 1981, p. 11.

Narrativas da loucura • 237


um ponto à sua frente que ele, então adulto, põe-se a apagar
com um olhar sem conteúdo. Quando pela primeira vez o
narrador se refere ao personagem – no início da narrativa
–, ele é apenas o passageiro do bonde. Na sequência, o tra-
tamento dispensado ao protagonista não muda muito: ele é
apenas o passageiro de uma estranha aventura; aquele que
viaja por muitos lugares; sai do Rio Grande do Sul, vai parar
numa prisão do Rio de Janeiro e depois faz o mesmo per-
curso em sentido inverso, sem que em momento algum se
possa vê-lo como sujeito de sua trajetória. No começo do
relato, o Louco ocupa um lugar no bonde que o leva de um
ponto a outro de Porto Alegre, cidade para onde se trans-
ferira ainda menino. A palavra que, no segundo parágrafo
do primeiro capítulo, aparece formando, solitariamente, um
período – atarantamento – é o signo que serve para repre-
sentar o protagonista até o final da narrativa. É esse estado
ou condição que explica o fato de seu andar ser, inúmeras
vezes, referido como um trancão de maluco e, também, a
insistente comparação feita entre o seu modo de ser – os
traços de seu rosto, descarnado – e o comportamento ou a
aparência de um cachorro:

O maluco engolira o seu bocado com a sofreguidão se-


rena e irracional dum cachorro, sem mastigar, o focinho
horizontal, olhando para adiante. [...] E ficou olhando
ao seu redor, sem compreender, levantando lentamente
a face para todos os lados – a sua face muda, quase sem
carne, de cão...

Assim, assinala-se a quase absoluta ausência da fala do


protagonista no texto. Ele manifesta, ainda que de forma
breve, sua aquiescência quanto ao que é proposto, mas do
mesmo modo que não é sujeito de suas ações, também não
aparece como senhor do seu discurso. Ele não é mudo, e

238 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


também não é o caso de não compreender o que lhe dizem:
ouve e compreende, a seu modo, a fala alheia, mas raramen-
te pronuncia uma palavra. Assim, é o narrador onisciente
que filtra os pensamentos do protagonista e revela-os por
meio do discurso indireto livre, fundindo a sua voz com a
voz interior do personagem. Trata-se de um recurso esti-
lístico capaz de denunciar determinada situação existencial,
aquela em que um indivíduo – por um motivo que resta ain-
da investigar44 – encontra-se destituído de sua condição de
ser humano e do livre arbítrio sobre seus próprios atos. Nas
raras ocasiões em que se torna sujeito de um discurso, su-
jeito de uma ação, o protagonista grita, protesta, foge. Isso
ocorre quando ele transita por espaços ou vivencia situa-
ções que considera semelhantes às lembranças traumáticas
que lhe ficaram da realidade do Cati.
Nos primeiros seis capítulos, o louco é apenas isso –
um maluco. No entanto, no decorrer da viagem que realiza,
levado por um grupo de rapazes – ativistas que procuravam
despistar a polícia do Estado Novo –, ele se depara com uma
hospedaria cujo conjunto lembra um reduto militar. Essa é
uma das passagens em que ele expressa todo o seu pânico:
“– Isto! Isto é o Cati”. A aterrorizante lembrança que aque-
la visão lhe acende na memória faz com que ele superponha
alucinação e realidade, e leia, na atitude estupefata daque-
les que eram seus companheiros de viagem, o perigo de um
cerco. Por isso, foge. O momento do grito é, também, o
instante de seu batismo, pois, a partir de então, ele passa a
ser reconhecido como o Louco do Cati. Para os leitores, os

44
Acredita-se que todo texto carrega sua própria chave explicativa. Assim,
investigar o Cati é, ao mesmo tempo, esclarecer o contexto para o qual
apontam as referências espaço-temporais do texto, bem como as implica-
ções que resultaram na sua obscuridade. Dessa maneira, pode-se devassar
os bastidores do projeto literário e buscar, quem sabe, os nomes que se
escondem no hermetismo dessa ficção que diz do fogo sem falar das cha-
mas. Ver BARBOSA, 1994.

Narrativas da loucura • 239


fragmentos de lembranças dos outros personagens, sobre
as histórias que haviam ouvido acerca do Cati, são, parcial-
mente, esclarecedores:

– Quem é que não conhece o Cati?”, pergunta Norberto;


“[...] – Sim... Conheço, lógico, o Cati. O João Francisco...”,
admite Seu Ricardo, o dono da hospedaria; “[...] – A sua
fama ultrapassou o Rio Grande. [...] No próprio Rio da
Prata... [...] Um caudilho perigoso. Cabeleira de gaúcho.
[...]”, completa Norberto; “[...] – Hiena do Cati”, volta a
manifestar-se Seu Ricardo.45

No silêncio das reticências, o peso das revelações que


devem permanecer nas brumas. Norberto, entretanto, con-
ta para os outros esta história:

Havia terminado a revolução com a vitória do governo. Era


um fim de século – século dezenove. Fim de mundo... A
campanha, principalmente a fronteira – ninho de revolu-
cionários – não estava ainda “pacificada”. Fazia-se neces-
sário isso que depois as guerras iriam chamar “operações
de limpeza” (Compreendiam... Compreendiam...). Bem:
essa limpeza se inaugurou, se consolidou, se prolongou.
Tornou-se coisa regular. – Uma espécie de banditismo le-
gal, entronizado naquele “Castelo”, sobre uma elevação
às margens dum arroio, nas caídas dum dos rios que têm
mudado de pronúncia com a mudança da fronteira de dois
povos inquietos. – Mas, é claro, uma tarefa de tal ordem
(“Ordem pública! Ordem pública!”) punha nas mãos dos
homens do Cati uma enorme soma de poder pessoal: po-
der pessoal, poder político, poder!... Já nada mais se fazia
então naquela vasta zona sem consulta ao Cati. O Cati era

45
MACHADO, 1981, p. 26.

240 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


o subestado. Era o Estado para aquela região. [...] Todos os
que caíram eram degolados: por motivos pessoais, por mo-
tivos políticos, comerciais, por qualquer motivo... Ativo e
frio, o Cati apertava, arrastava, triturava. E durante anos,
anos. Fez-se uma legenda, real, verdadeira de sangue, de
morte, de terror feudal. – Nós ficamos um pouco célebres,
respeitados, admirados por essa legenda.46

A história relatada por Norberto, que está em cone-


xão com as recordações de infância do protagonista, dá a di-
mensão do seu problema. Não importa para onde o levam:
ele segue submisso, cachorro manso que acompanha quem
lhe oferece um osso; importa apenas distanciar-se do Cati,
fugir do Cati. Nas suas obsessivas lembranças, está o medo
das atrocidades cometidas no Cati. Pela sua mente, passam
insistentes as figuras vestidas com dólmãs pretos, em que
refulgia o brilho metálico dos botões doirados; assustam-
lhe as sombras daqueles tenentes, que traziam rastros de
sangue e provocavam pânico. O homem com problemas
mentais, o personagem atarantado é, sem dúvida, um lou-
co do Cati, um produto do Cati, não porque o seu grito o
nomeie, mas porque ele carrega, nas marcas de um passado
traumático, uma experiência na qual o Cati desempenhou o
papel mais forte.
Constata-se, ao analisar a narrativa, que os fantasmas
têm o poder de aparecer onde menos se espera. O homem
sai do Rio Grande do Sul ao ser adotado por um ativista que
foge da polícia, e, assim, acaba cruzando com o Cati no meio
do caminho. Norberto, o homem a quem o protagonista
acompanhava – involuntariamente, como vai acompanhar
tantos outros – é preso antes que cheguem a Florianópolis.
Então, o Louco novamente entra em pânico, ao ver o apa-

46
MACHADO, 1981, p. 25-26.

Narrativas da loucura • 241


rato policial: “Isto! Isto é o Cati!”. Desse modo, em meio
à imprecisão de dados, o tempo da ação vai-se delineando.
Trata-se de um período que repete a época do Cati. Na in-
fância do protagonista, situam-se as revoluções do final do
século XIX no Rio Grande do Sul, a disputa do poder por
republicanos (os pica-paus) e federalistas (os maragatos), os
abusos cometidos por caudilhos sanguinários. No presente
da ação, momento em que o personagem se encontra, pro-
vavelmente na faixa dos 40 anos, vigora o clima de terror
instaurado pelo Estado Novo (1937-1945) – repressão fe-
roz, perseguição e morte –, regime que levou às masmorras
do governo ditatorial de Vargas o escritor Graciliano Ramos
e o próprio Dyonélio Machado.
As indicações do tempo representado surgem, no ro-
mance, de forma dispersa, passando quase despercebidas.
Porém, uma série de dados situam a volta do homem para o
Sul na segunda metade do ano de 1938: o jornal em que se
lê sobre a guerra na Espanha em seu ponto crítico faz men-
ção à resistência de Madrid, cuja rendição ocorre no final de
março de 1939; há, também, referências anteriores ao mês
em curso, agosto, e, mais adiante, às chuvas de primavera,
bem como ao fato de um dos personagem estar programan-
do sua próxima viagem a São Paulo para o mês de outubro.
Geraldo, um dos que cuidaram do louco do Cati du-
rante algum tempo, explica à mulher que ele próprio conhe-
ceu o Cati:

Quero dizer: o lugar chamado Cati. Fica no município de


Santana, no Rio Grande. Perto da fronteira com o Estado
Oriental. Ele então contou à mulher muita coisa que sabia:
os horrores, as torturas, as perseguições, os degolamentos.
O povo sofria muito com esse lugar – rematou.47

47
MACHADO, 1981, p. 195.

242 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Nessa fala, alguns elementos apontam para o sentido
do Cati: o lugar chamado Cati fica no Rio Grande do Sul, mas
também é possível vê-lo em outro espaço, tal como ocorre
com o protagonista, ao chegar à prisão, no Rio de Janeiro:

O maluco teve um movimento de fuga. Quis retroceder.


Um dos guardas pôs-lhe a mão. Mas ele já soltava um grito:
– É o Cati! Não me digam que não! – E depois de uma
respiração, ruidosa e difícil, numa voz berrada e choramin-
gada a um tempo: – Não me levem para o Cati!
(“– o que é que vão fazer com o homem, mãe?
– Vão matar ele lá no Cati...”)
O guarda segurou-o com força. Foi arrastando-o para a
frente. Ele se debatia. E sempre protestando que não que-
ria que o metessem no Cati. [...] Ele não queria entrar, nem
por nada. [...]. Atropelo (o maluco vem de arrasto, gritan-
do). [...] À frente do cubículo onde deverá ser metido com
Norberto, o maluco tem um arranco supremo. Emprega-se
a violência.48

Há uma superposição das duas imagens: a dos horro-


res, torturas e degolas, mencionada por Geraldo quando se
refere ao Cati e a que é descrita no excerto acima. Assim,
Dyonélio retorna à imagem de um passado igualmente ter-
rível e coloca em cena um personagem que é a consequência
viva deste outro tempo – o Estado Novo49 – talvez para lu-

48
MACHADO, 1981, p. 91-92.
49
Ver análises da obra O louco do Cati (MACHADO, 1981); A paródia em
O louco do Cati (BARBOSA, 1994); MARIA, L. de. Sortilégios do aves-
so: razão e loucura na literatura brasileira. São Paulo: Escrituras, 2005,
p. 272-299; BARBOSA, M. H. S.; STUMPF, D. Imagens do Estado
Novo na narrativa ficcional e memorialística de Dyonélio Machado. In:
GAGLIETTI, M.; SANTOS FILHO, F. C. (Org.). Ratos de biblioteca:
itinerários de leituras. Passo Fundo: UPF, 2007. p. 68-80; BARBOSA,
M. H. S.; ROSSATO, B. D. O tempo histórico e sua figuração no es-
paço em O louco do Cati e Os ratos. In: GAGLIETTI, M.; SANTOS

Narrativas da loucura • 243


dibriar a censura vigente à época de publicação do romance.
O narrador dessa obra ficcional fornece, assim, os si-
nais que permitem alcançar o sentido mais profundo do tex-
to: a loucura coletiva vigente durante o Estado Novo (1935-
1945), período em que foram levadas à prisão mais de 10 mil
pessoas, em sua maioria privadas de liberdade por simples
delação ou desafeto pessoal. Esse tempo encontra na obses-
são do personagem perseguido pelo terror do Cati sua mais
flagrante metáfora. O louco, um produto de outro momento
em que também vigorava a insanidade, é trazido à cena para
desmascarar essa engrenagem ativa, que, no final da década
de 1930, põe em funcionamento uma nova fábrica de loucos,
de mutilados e de degradados. De acordo com Nasser,

De 1935 a 1945, a casa da Rua da Relação onde funcionava


a polícia central se transformou em fábrica de morte e de
loucura. Centenas de homens e mulheres saíram de lá mu-
tilados ou inutilizados para o resto da vida.50

A figura do protagonista associada à imagem de um ca-


chorro; o modo como ele reage, acompanhando as pessoas de
forma irracional; sua incapacidade de decidir o próprio des-
tino; a sua peregrinação, movido pela vontade alheia; enfim,
todos esses elementos dão à sua vida a conformação de uma
existência degradada. O absurdo do seu percurso, a inutilidade
de todos os esforços que empreende para fugir do Cati, ima-
ginando-o num dado local – lá onde ele não passava de toscas
ruínas – e vindo a encontrá-lo onde não o supunha, permite
que o personagem seja lido como uma metáfora do homem
coagido por um regime de terror. O clima de obscuridade e

FILHO, F. C. (Org.). Ratos de biblioteca: itinerários de leituras. Passo


Fundo: UPF, 2007. p. 81-89.
50
NASER, D. O parceiro da Glória. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
p. 101-109.

244 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


imprecisão que domina a narrativa – personagens aparecem e
somem durante o que se pode considerar a viagem existencial
do protagonista – é o reflexo de um tempo em que as ameaças
pairam no ar, em que o perigo exige cerrada vigilância, tempo
de silêncio e sussurros, de meias-palavras e reticências.
No encerramento da narrativa, depois de muito viver
fugindo, o protagonista alcança, finalmente, o Cati. Em um
sentido psicanalítico, pode-se ler, na cena final, a cura que se
atinge depois de se conseguir encarar de frente os próprios
fantasmas. Em outro sentido, é possível identificar nesse ca-
pítulo final – intitulado Já não chovia – sinais da esperança no
advento de um tempo melhor, pois, após um longo período de
chuvas insistentes, se entrevê a bonança, ainda que por entre
os escombros deixados pela tempestade. O Cati de então é
apenas um conjunto de ruínas, traspassadas pelos raios do sol:

E pôde ver então, lá à sua frente, o sol atirando-se contra as


próprias ruínas, inundando-as.
As ruínas, sim! As ruínas do Cati!... Porque aqueles panos
de parede (vejam todos! Todos! Venham ver!); aqueles ca-
cos de paredes que mal se equilibram em que ele nem qui-
sera reparar, eram o Cati! Dum Cati que ele deixara para
ver, quando já não era mais do que escombros...
O homem-cachorro de ainda um instante quase não acredi-
tava! Mas afugentava a assombração num relâmpago, para
sempre!... Queria, dali donde estava, defronte o sol, queria
– era poder estender umas mãos vingativas de gigante, para
sentir nos próprios dedos frisados de luz o esfarelar do pó
do Cati, do Cati que se esboroava – lentamente, através
desses anos, numa serenidade melancólica de coisa morta,
que apenas vive a vida de espectro...
Mas sorria...51

51
MACHADO, 1981, p. 255.

Narrativas da loucura • 245


A expressão o louco do Cati – como destaca Barbosa52
–, na ausência de um nome, serve para definir, mesmo que
de forma precária, a identidade do protagonista. Aquilo que,
para as outras personagens, é somente uma suposição fica
evidente aos olhos do leitor: a palavra Cati indica o local de
procedência do indivíduo e, principalmente, a origem de sua
loucura. O apelido ganha uma posição privilegiada no livro,
pois funciona como título e, embora apareça, inicialmente,
somente na boca das demais personagens, logo em seguida
passa, também, a fazer parte do discurso do narrador.
Todavia, é preciso atentar para o fato de que a loucura
do protagonista nunca é atestada ou comprovada por um
diagnóstico autorizado. Dr. Valério, instado a dar o seu pa-
recer, é taxativo: “ – Só examinado”. Em sua opinião, o mé-
dico “é o único que não pode” afirmar “assim se um homem
é um louco ou não”.53 Essa resposta, ao mesmo tempo em
que mostra a fragilidade de um juízo orientado pelo senso
comum, revela que a questão é bem mais complexa do que
se pensa.
A réplica do médico é associada a vários outros fato-
res que, reunidos, induzem ao questionamento dos padrões
de normalidade e sugerem que as fronteiras entre a saúde
e a doença são demasiado tênues. Em primeiro lugar, des-
taca-se o número de personagens com deficiência auditiva
que desfilam nas páginas do livro, o que leva a concluir que
nada é mais raro do que a perfeita normalidade. Em segun-
do lugar, estão: o caso do homem examinado pelo professor
Castel, que, embora não possua doença alguma, é conside-
rado incurável; o do próprio professor, um especialista em
cuidar da saúde alheia, que, de uma hora para outra, fica
paralítico; a história da menina, filha de dona Josefina, que
morrera de repente. É preciso lembrar, ainda, que o prota-
52
BARBOSA, 1994, p. 49-52.
53
MACHADO, 1981, p. 188.

246 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


gonista é visto pelos policiais como alguém que pertence a
um “novo gênero de agitadores”,54 e dos mais perigosos: de
fato, no contexto da obra, o seu discurso – desde o silêncio
até o grito – tem mais força do que as vozes das demais per-
sonagens, consideradas normais.
O poema que Leandro, um dos prisioneiros, cria,
inspirado na entrada do Louco do Cati no pavilhão onde
ficam os cubículos, também institui a relativização dos con-
ceitos de loucura e lucidez, invertendo-os. O poema cujo
título é “Almas Penadas”, apresentado pelo poeta como
uma das “Sugestões do Cárcere”, dialoga com o discurso
de Norberto sobre o Cati. A fala desta última personagem
possui um sentido referencial e fornece ao poema um fundo
dialógico que evidencia sua significação social e ideológica;
por outro lado, o texto poético, por meio de uma linguagem
de caráter conotativo, proporciona à fala de Norberto um
contexto, dado pela atmosfera patética, que torna flagrantes
os efeitos negativos da repressão sobre os indivíduos.55
Como ressalta Barbosa,56 ao proceder à comparação
dos dois discursos, o poeta retoma um verbo empregado
por Norberto – entronizar –, colocando-o lado a lado com
um substantivo – Insano:

Havia terminado a revolução com a vitória do governo.


[...] Fazia-se necessário isso que depois as guerras iriam
chamar “operações de limpeza”. [...] Bem: essa limpeza se
inaugurou, se consolidou, se prolongou. Tornou-se coisa
regular. – Uma espécie de banditismo legal, entronizado
naquele “Castelo”.57

54
MACHADO, 1981, p. 66.
55
Ver BARBOSA, 1994.
56
BARBOSA, 1994, p. 51.
57
MACHADO, 1981, p. 28.

Narrativas da loucura • 247


Não se sabe quem foi. Só se sabe que os Céus um dia se
fecharam; que um profundo oceano de fogo e de sofrer se
abriu para esses réus.
– O Inferno, assim criado, entronizava o Insano.58

Esse diálogo entre as duas linguagens demonstra que


a insanidade é, na verdade, um atributo dos sistemas sociais
e dos regimes políticos que, por meio de uma ação violen-
ta, provocam o surgimento de distúrbios mentais. Como se
pode perceber, a presença de um demente na história favo-
rece a parodização das convenções sociais, desautorizando
o discurso oficial e interrogando os métodos adotados pelo
aparelho do Estado.
Conclui-se, desse modo, assinalando que as defi-
nições de loucura e de razão – examinadas no romance em
questão e focalizadas por Dyonélio Machado na tese Uma
definição biológica do crime, no relatório técnico intitula-
do Eletroencefalografia e nos pronunciamentos que fez no
parlamento – não são, em tempo algum, dadas de ante-
mão. Convém salientar, ao final deste trabalho, que, para
Dyonélio Machado, loucura e lucidez não constituem cate-
gorias objetivas – eternas, imutáveis ou estáveis – à espera
de uma descrição. Ambas sofrem variações e são, perma-
nentemente, problematizadas ao longo dos tempos.

58
MACHADO, 1981, p. 170.

248 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


referências

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Narrativas da loucura • 251


Capítulo 8

psiquiatria e história cultural: a


literatura como fonte
e a loucura como objeto

Nádia Maria Weber Santos1

A História Cultural (HC), desde as décadas finais de


século XX (década de 80, mais especificamente), destacou-
se pela abertura de fronteiras no pensamento histórico e,
de forma radical, pela revolução realizada na forma como é
escrita a História, em suas mais variadas vertentes. Pensa-se
a cultura como um conjunto de significados partilhados e
construídos pelo homem, que tenta, com isto, explicar e dar
sentido ao mundo em que habita.
Por meio de pressupostos teóricos bem formulados e
de uma metodologia que até então não constava nas histo-
riografias (por exemplo, o método indiciário de Ginzburg,
ou o método da montagem benjaminiano),2 abriram-se novas

1
Médica, psiquiatra e doutora em História/UFRGS; pesquisadora EST/
FAPERGS.
2
Para compreender estas questões, ler o capítulo “Em busca de um méto-
do: as estratégias do fazer História”, presente na obra intitulada História

Psiquiatria e história cultural • 253


correntes ou tendências para os historiadores, bem como
reaparecendo uma pluralidade de temas e campos a serem
pesquisados e analisados sob uma outra ótica – muitas vezes
estando inter-relacionados num mesmo texto histórico.
Dentro de um quadro teórico e metodológico diver-
sificado e trabalhado por historiadores nacionais, além dos
franceses, italianos e americanos, principalmente, pode-
mos destacar alguns pressupostos que são de grande valia
para lançarmos um novo olhar sobre a questão da saúde e
da doença, no caso particular da loucura e da história da
Psiquiatria em nosso meio, que é meu foco particular de
pesquisa e reflexão. São eles, principalmente: a rediscussão
do conceito de representação, com a introdução da noção
de simbólico, fazendo parte de um sistema de ideias e ima-
gens de representações coletivas denominado imaginário: a
noção de sensibilidade, implicando na percepção e tradução
sensível da experiência humana no mundo, por meio de prá-
ticas sociais, discursos, imagens e materialidades, tais como
espaços e objetos construídos.
O diálogo da HC com outras áreas do conhecimento,
e, neste nosso enfoque, com a História das Representações,
ou mais especificamente, com a História do Simbólico (em
suas diferentes perspectivas histórica, antropológica, psico-
lógica, artística etc.) abre um campo imenso e frutífero de
investigações, as quais, num processo nitidamente dialético,
trarão novas possibilidades ao historiador da cultura e aos
pesquisadores das outras áreas.
Porém, estabelecendo limites dentro de questões que
poderiam não suportar limites tão estreitos, como o imaginá-
rio de uma certa época, a HC abre fronteiras, cruza espaços e
noções que antes eram tratadas de forma estanque.
E, nesta nova situação de abertura das fronteiras entre

e História Cultural, de autoria da historiadora Sandra Pesavento (Editora


Autêntica, 2003).

254 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


as ciências e as artes, a HC abriu-se também à interdiscipli-
naridade e à comunicabilidade entre os diferentes discursos
que falam do real, a permitir a viabilidade de um verdadeiro
diálogo multidisciplinar. Entretanto, nesta abertura, a his-
tória cultural não abriu mão de seu território, como que a
demonstrar que a outra conotação da fronteira – a de dividir,
fechar, encerrar – não estava de todo apagada: nesta abertu-
ra para os outros campos discursivos, a história preservou
seu lugar como o reduto a partir do qual se estabelece a
pergunta e se constrói o objeto, problematizando o real.
Ou seja, a abertura multidisciplinar não implicar em perda
de identidade ou de formação específica. Pelo contrário, a
multidisciplinaridade, enquanto atitude intelectual implica
em soma, em acréscimo de experiência e de conhecimento,
em abertura do olhar e em ampliação das capacidades de
interpretação da realidade.3
Conforme nos diz Pesavento,4

entre as provas – as marcas de historicidade encontradas


nos arquivos – e a imaginação criadora do historiador (o
lado ficção de sua escrita, porque não?), se constrói a nar-
rativa histórica, como versão plausível dos acontecimentos.

Todo historiador sabe que descontinuidades nas fon-


tes são inevitáveis e, às vezes, ocorrem por razões bem sim-
ples: extravio de documentos, retirada para preservação ou
mesmo outras razões que nunca conheceremos. Mas, sen-

3
PESAVENTO, S. J. Apresentação do dossiê “História cultural e mul-
tidisciplinaridade”. Fênix, Revista de História e Estudos Culturais,
Uberlândia, v. 4, ano 4, n. 4, out./dez. 2007a. Disponível em: <http://
www.revistafenix.pro.br/PDF18/APRESENTACAO_DO_DOSSIE_
SENSIBILIDADES_A_MARGEM_FENIX_JAN_FEV_MAR_2009.
pdf >. Acesso em: 15 maio 2008.
4
PESAVENTO, S. J. História & história cultural. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. p. 23.

Psiquiatria e história cultural • 255


do o método de construção da narrativa histórica uma re-
novada montagem, é na base desses quebra-cabeças que se
possibilitam as explicações, pela composição das peças, as
correspondências, as justaposições e os contrastes. Isto é,
por suas representações.

A representação, no âmago de seu entendimento – estar


no lugar de –, já apresenta em si uma condição basculante
e de imprecisão, pois assinala uma relação ambivalente e
ambígua entre ausência e presença. Ambivalente porque a
representação é tanto exposição e presença quanto ausên-
cia e referência a um outro distante. É, pois, ser e não ser,
ou, no limite, é ser ela mesma e ser um outro. E, neste
ponto, revela-se a sua ambiguidade, ou seja, a insinuação
de um deslizamento de sentido e de uma manifestação de
uma terceira idéia/ser oculto. Twilight zone, sem dúvida,
que joga com uma tríade: o referente, a imagem e o sig-
nificado. Ora, sendo o texto histórico representação, ele
pretende trazer informações sobre uma realidade exterior.
No caso, um referente que já não mais existe e que não
pode ser sujeito à verificação. Isto passa a se tornar proble-
ma quando se tem em conta que a narrativa histórica é um
tipo especial de representação, porque estabelece um pacto
com a verdade.5

Assim, a HC assume a concepção do imaginário como


função criadora que se constrói pela via simbólica, e que ex-
pressa a vontade de reconstruir o real num universo paralelo
de símbolos. Partimos da definição de que imaginário refere-
se a um conjunto de imagens, isto é, ele constitui um depo-
sitário de imagens, um conjunto de representações. E, assim,
re-colocamos esta conceituação dentro de novas fronteiras,

5
PESAVENTO, 2007a.

256 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


que parecem pertinentes ao estudo multidisciplinar sobre a
questão do simbólico, elemento intrínseco ao imaginário.

O que define a história cultural? De certa forma, os in-


divíduos que vivem um mesmo período não são contem-
porâneos. A história cultural é feita de recobrimentos, de
sedimentações, de inércias, isto é, não se sente as mesmas
coisas, segundo uma série de critérios: o sexo, a idade, a
categoria social, o local geográfico, a tradição, ou a cultu-
ra que se recebeu. O historiador da cultura deve sempre
tentar entender essa complexidade, essa simultaneidade de
atitudes muito diferentes segundo os indivíduos e segundo
os grupos.6

Desta forma, concebi, em trabalhos anteriores, duas


maneiras de perceber o imaginário, ou melhor, de resgatar
suas manifestações no ser humano. 7 A primeira forma tra-
ta de uma concepção de imaginário desde dentro, surgindo
espontaneamente na psique dos indivíduos, tomando for-
ma, por meio de imagens, no mundo exterior consciente.
Remete-nos ao caráter criativo do inconsciente humano e
ressalta o caráter simbólico das imagens das fantasias hu-
manas, as quais aparecem em suas mais variadas manifes-
tações provindas do âmbito do inconsciente. Inconsciente
este, conforme a concepção de Carl Gustav Jung, psiquia-
tra suíço que formatou sua obra na primeira metade do

6
Trecho que entrevista de Alain Corbin a Laurent Vidal, “Alain Corbin, o
prazer do historiador”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 25, n.
49, p. 17, jun. 2005.
7
Remeto o leitor à minha obra, Histórias de vidas ausentes – a tênue fron-
teira entre a saúde e a doença mental, onde, no capítulo 1, discuto esta
questão de forma mais aprofundada, sob o título “As representações sim-
bólicas e o inconsciente nas ciências humanas”, e mais especificamente
na terceira seção deste capítulo: O símbolo como mediador entre incons-
ciente e história: o homem como animal symbolicum e a Nova História
Cultural.

Psiquiatria e história cultural • 257


século XX.8 A segunda concepção de imaginário é aquela
que apresenta sua face voltada para o exterior, para a reali-
dade social, possibilitando quase que uma construção cons-
ciente de um imaginário (imaginário desde fora). Esta face
realiza-se no tempo e no espaço de seu aspecto consciente
e é aquela que os cientistas sociais e os historiadores, de
forma geral, estudam, pois surgem, muitas vezes, de mo-
vimentos sociais e políticos, prestando-se à manipulação e
jogos de poder. Por exemplo, quando tratam a imagem de
Getúlio Vargas como um mito nacional, estão criando um
imaginário que embora verdadeiro (verdadeiro, também,
porque tem um respaldo em nossos sentimentos e refle-
xões enquanto nação) é forjado pelas práticas políticas e
sociais imbricadas na relação do governante com o povo,
de forma consciente.
Estas duas vertentes do imaginário, possivelmente, não
vivem uma sem a outra. E, ao discutirmos as representações e
as sensibilidades da loucura a partir de textos literários, tema
do qual trata este artigo, estamos mesclando em análise estas
duas concepções de imaginário. Pois, tanto fazemos referên-
cia ao aspecto externo das representações em relação a nosso
objeto – por exemplo, aquelas que estão na base das práticas
históricas de exclusão em manicômios, forjadas por noções
sociais, entre outras –, quanto àquele interno, ou seja, as sen-
sibilidades dos próprios loucos – e aqui retratada em textos
literários, o que também não deixa de ser uma representação
externa, pois nem todos estes literatos foram pacientes psi-
8
“[...] a psique é constituída essencialmente de imagens. A psique é feita
de uma série de imagens, no sentido mais amplo do termo; não é porém,
uma justaposição ou uma sucessão, mas uma estrutura riquíssima de sen-
tido e uma objetivação das atividades vitais, expressa através de imagens.
E da mesma forma que a matéria corporal, que está pronta para a vida,
precisa da psique para se tornar capaz de viver, assim também a psique
pressupõe o corpo para que suas imagens possam viver”. JUNG, C.G.
Espírito e vida. In: ______. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1984.
p. 267.

258 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


quiátricos, como no caso de Lima Barreto.
Outra noção muito pertinente aos atuais estudos de
HC, mencionada no parágrafo anterior, é a de sensibilida-
de. Esta é colocada como uma outra forma de apreensão do
mundo, para além do conhecimento científico. As sensibili-
dades corresponderiam a este núcleo primário de percepção
e tradução da experiência humana no mundo que se encon-
tra no âmago da construção de um imaginário social. O co-
nhecimento sensível opera como uma forma de reconheci-
mento e tradução do mundo que brota não do racional ou
das construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos,
que vêm do interior de cada indivíduo. Às sensibilidades
compete esta espécie de assalto ao mundo cognitivo, pois
lidam com as sensações, com o emocional, a subjetividade,
os valores e os sentimentos.
Novamente citando Pesavento,9 “medir o imensurá-
vel não é apenas um problema de fonte, mas de uma con-
cepção epistemológica de compreensão da história”. Ela
refere que a preocupação da HC com as sensibilidades
trouxe para os domínios de Clio a emergência da subjetivi-
dade nas reflexões do historiador. É a partir da experiência
histórica pessoal que se resgatam emoções, sentimentos,
ideias, temores ou desejos, o que não implica abandonar a
perspectiva de que esta tradução sensível da realidade seja
historicizada e socializada para os homens de uma deter-
minada época. Os homens aprendem a sentir e a pensar, ou
seja, a traduzir o mundo em razões e sentimentos.

As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indi-


víduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como
um reduto de representação da realidade através das emo-
ções e dos sentidos. Nesta medida, as sensibilidades não

PESAVENTO, 2003, p. 10.


9

Psiquiatria e história cultural • 259


só comparecem no cerne do processo de representação do
mundo, como correspondem, para o historiador da cultu-
ra, àquele objeto a capturar no passado, à própria energia
da vida. Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em
palavras e imagens, em objetos da vida material, em ma-
terialidades do espaço construído. Falam, por sua vez, do
real e do não real, do sabido e do desconhecido, do intuído
ou pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem
ao mundo do imaginário, da cultura e seu conjunto de
significações construído sobre o mundo. Mesmo que tais
representações sensíveis se refiram a algo que não tenha
existência real ou comprovada, o que se coloca na pauta de
análise é a realidade do sentimento, a experiência sensível
de viver e enfrentar aquela representação. Sonhos e medos,
por exemplo, são realidades enquanto sentimento, mesmo
que suas razões ou motivações, no caso, não tenham con-
sistência real.10,11

Trabalha-se, assim, com a tradução do sensível,


como uma forma de conhecimento do mundo – imaginá-
rio social, subjetividade, emoções, sentimentos etc. Nas
representações e sensibilidades encontradas nos objetos
do sensível, nas marcas objetivas deste sensível, busca-se
o sentido do passado, aquele que fica nas entrelinhas, se
assim podemos dizer, dos grandes acontecimentos. Ou,
como no dizer de Alain Corbin: “Seria isso, então, a histó-
ria das sensibilidades: identificar a utilização dos sentidos
que permitiu construir imagens do outro, dar forma ao
imaginário social”.12

10
PESAVENTO, 2003, p. 58.
11
Ver também PESAVENTO, S. J. Sensibilidades: escrita e leitura da
alma. In: PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. Sensibilidades na história:
memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 2007b. p. 9-21.
12
Trecho de entrevista de Alain Corbin a Laurent Vidal. Revista Brasileira

260 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Estes objetos do sensível, ou evidências do sensível
têm sua materialidade em textos (literatura, história, me-
mória), imagens (pintura, cinema, fotografia), espaço
(paisagem, arquitetura), práticas sociais (comportamen-
to e valor).
Estas novas posturas epistemológica e metodológi-
ca abrem uma vertente enorme de novas correntes, novos
campos temáticos e fontes, ou nos permite rever antigas e
profícuas fontes sob um novo olhar. Por exemplo: a escri-
ta e a leitura sob o prisma das representações; a imagética
urbana, as imagens das obras de arte e mesmo a literatura
como novos campos temáticos de pesquisa, bem como o
são as representações da saúde e da doença, e a diversidade
de fontes daí decorrentes: os textos mais variados – roman-
ce, cartas, processos-crime, prontuários médicos, crônicas
de jornal, escritos pessoais ou as escrita-de-si; imagens – fo-
tografia, cinema, monumentos etc.
Assim, chegamos ao tema específico sobre as repre-
sentações da loucura, em que a HC e a Psiquiatria podem
se encontrar.
No contexto da saúde e da doença, trabalhamos com
o corpo e a com a psique, suas representações, imagens e
sensibilidades. É cada vez maior o número de pesquisa-
dores/historiadores debruçados sobre análise e interpre-
tação histórica da trajetória da saúde em nosso país, desde
os tempos coloniais até os dias de hoje. Tanto nos ma-
cro-espaços do social – hospitais gerais, cadeias públicas,
manicômios, hospitais assistenciais como as santas casas
de misericórdia, manicômios judiciários, entre outros –
quanto nos micro-espaços das vidas individuais, busca-se
investigar representações e imagens, maneiras sensíveis de
perceber o outro, em seu contexto de saúde/doença, bem

de História, São Paulo, v. 25, n. 49, p. 19, jun. 2005.

Psiquiatria e história cultural • 261


como observar como agem estes diversos atores históricos
e qual o sentido que dão às suas ações e saberes.13
É no contexto da loucura, meu campo de pesqui-
sa, em que posso exemplificar melhor o que quero dizer.
Torna-se possível a busca das representações e imaginário,
no momento em que se pesquisa todo o arsenal de moti-
vos, elucubrações e práticas que levam as pessoas de cer-
ta comunidade a internarem (excluírem) o paciente num
hospital psiquiátrico, antigos manicômios ou hospícios.
Junto à questão do simbólico, pertinente ao imaginário
sobre a doença mental, também se pode lançar mão de ou-
tros conceitos relacionados às noções de representação,
dos quais a HC também dá conta – como: identidade, ci-
dadania e exclusão.
13
Nesta área temática, pesquisa-se acerca da representação/imaginário/sen-
sibilidade sobre saúde e doença, orgânicas e psíquicas, sob o ponto de vis-
ta histórico das ciências da saúde, bem como dos posicionamentos leigos;
desde as práticas exercidas sobre elas e seus sucedâneos, até discursos e
atitudes, tanto dos médicos gerais, médicos psiquiatras, psicólogos e dos
outros profissionais de saúde, como das variadas instituições e gover-
nos. Incluímos, também, neste debate, as manifestações discursivas e ex-
pressões narrativas (falas, escritas, expressões artísticas e simbólicas) de
pacientes e dos agentes históricos sobre os quais as práticas foram exer-
cidas. Corpo e psique, saberes e práticas vistos a partir das mais variadas
fontes e interpretados em seus múltiplos significados para a sociedade...
Uma fonte muito profícua e cada vez mais utilizada são os prontuários
médicos. Seria muito extenso colocar aqui todos os trabalhos que temos
notícias e as temáticas dentro deste campo específico da história cultural
da saúde e da doença. Mas vale notar que no Simpósio Temático que as
organizadoras deste livro coordenaram dentro do III Simpósio Nacional
de História Cultural em 2006 em Florianópolis, tivemos 37 inscrições
com os mais diversos temas, de pesquisadores de várias regiões do Brasil,
todos tratando de práticas, representações e sensibilidade na saúde e na
doença. Para citar alguns (os leitores podem ter acesso à maioria destes
trabalhos nos Anais do evento): loucura no RGS e institucionalização da
Psiquiatria, corpo feminino, gestão documental, crime e loucura, litera-
tura & saúde, loucura e ficção, sanitarismo e modernização, alcoolismo,
discursos científicos sobre doença e cura, lepra/hanseníase, tuberculose,
isolamento do doente, trajetórias de vidas doentes, trajetórias de agentes
de cura, medicina e o sagrado, Aids e cinema, representações de tumores,
eugenia, entre outros.

262 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Por um lado, no momento em que o doente é exclu-
ído do convívio social, sendo internado com um suposto
diagnóstico de doença mental no hospício, tem-se, já, uma
primeira representação que é a de não cidadão. A sua iden-
tidade, assim, foi privada de sentido social, sendo estigma-
tizada; e sua cidadania constrangida em camisas-de-força
sociais, sejam estas camisas confeccionadas pela sociedade
como um todo, pela medicina ou pela família.14
Por si só, isto já seria uma representação – negativa –
sobre a loucura, naquela faixa que compreende o imaginário
desde fora. A estes excluídos da História, os loucos, a socieda-
de negou o papel de cidadãos, privando-os de sua dignidade
respeitada, de sua autonomia realizada e seus direitos e deve-
res exercidos em todas as instâncias individuais e sociais.
Pensar o ser humano cidadão – sendo ou não conside-
rado um louco – é pensá-lo na relação das forças sociais que
instauram a diferença, pois é sendo e sentindo-se um não
diferente que ele pode ser incluído na sociedade dos iguais.
Cidadania e exclusão são representações da ordem social
que orientam práticas e instauram paradigmas sociais, sen-
do, portanto, conceitos construídos historicamente.15
Conforme a historiadora norte-americana Barbara
Weinstein,16 a História Cultural17 abriu um espaço para re-
cuperar a questão da cidadania:

14
Identidade, aqui, entendida como um fenômeno que emerge da dialética
entre indivíduo e sociedade, na qual as premissas de um se equacionam
com as representações do outro – constituindo um imaginário de perten-
cimento e não de exclusão.
15
PAUGAM, S. L´exclusion, l´état de savoirs. Paris: Éditions la Découverte,
1996.
16
“A pesquisa sobre identidade e cidadania nos EUA: da Nova História Social
à Nova História Cultural” – texto apresentado em seminário no PPG em
História UFRGS, em 1998.
17
Na época, a história cultural era tratada por esta autora como Nova
História Cultural, pois estava começando a ser repensada por autores de
diversos países, especialmente os norte-americanos.

Psiquiatria e história cultural • 263


Se todas as identidades, comunidades etc. são “imagina-
das” ou “inventadas” ou “socialmente construídas”, então
o conceito de cidadão não é nem mais nem menos “real”,
e chega a ser um tema legítimo e importante para estudar.

Bem como acontece nas questões de raça, gênero e


orientação sexual, a questão da noção (ou representação) da
idiossincrasia mental18 está inserida na discussão e no esta-
belecimento de grupos marginalizados, atualmente – e cada
vez mais – denominados de excluídos.
Sendo psiquiatra, sempre defendi a ideia de que o
diagnóstico social de loucura não deveria significar um
parâmetro de exclusão de qualquer indivíduo de seu meio
sócio-cultural. Por quê? É comprovado cientificamente que
a grande maioria dos primeiros surtos ou crises da doença
mental/loucura19 pode ser evitada, ou plenamente tratada
com sucesso, fora do ambiente hospitalar e quando diag-
nosticados no início de sua evolução, desde que não tenham
sido ainda manipulados com medicamentos, eletrochoque
ou outros meios deteriorantes de terapias. Aliás, esta é uma
das premissas básicas da reforma psiquiátrica.20

18
Idiossincrasia significa o estado de saúde ou maneira de ver, reagir, sentir,
própria de cada pessoa (o que nos aproxima da ideia de representação) cujo
desvio, atualmente, está sob o rótulo genérico de transtornos psíquicos.
19
Os termos doença mental e loucura são utilizados de forma indistinta nes-
te texto, embora prefira deixar o primeiro para a área médica e o segundo,
quando se fala de um fenômeno social, que se modifica com as épocas e
com as sociedades, isto é, com suas representações sociais.
20
Não entrarei, no texto, em pormenores sobre reforma psiquiátrica, mas
este debate, muito contemporâneo, se faria pertinente neste tipo de dis-
cussão. Existem acertos e erros na implementação da reforma, matéria
esta muito discutida nos fóruns atuais de saúde mental. Resumidamente,
podemos dizer que a Lei Federal 10.216, sancionada em 6 de abril de
2001, regulamentou as internações psiquiátricas e promoveu mudanças
no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimento mental,
destacando-se o processo de desospitalização, implementado por meio
da criação de serviços ambulatoriais, como os hospitais-dia ou hospitais-
noite, os lares protegidos e os centros de atenção psicossocial (Caps).

264 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Como historiadora, procuro compreender as origens
das práticas de exclusão, pois diferentes ideias/representa-
ções de cunho histórico e cultural permeiam esta discussão,
todas relacionadas às representações que estão em sua base.
Cito como exemplo algumas representações do imaginário
coletivo/social: a doença mental vista como degeneração mo-
ral do ser humano, vigente ainda nos séculos XVIII e XIX;
a doença como um mal em si ou como uma degenerescência
da raça, o que fez consolidar a noção de eugenia tão realiza-
da nos regimes totalitários do início do século XX; distúrbio
psíquico causado pela sexualidade pervertida ou reprimida,
ligada ou não ao meio sócio-cultural do indivíduo, como pre-
gou Freud em seu dogma psicanalítico, tentando criticar a
sociedade vitoriana da qual era caudatário;21 doença mental

Seu objetivo foi, inicialmente, humanizar o tratamento, de modo que a


internação fosse o último recurso – e ainda assim, cercado dos devidos
cuidados e do absoluto respeito à cidadania do paciente. Há, ainda, a pre-
ocupação de evitar as internações prolongadas e em reduzir as compul-
sórias. A proposta foi, desde então, privilegiar o convívio do paciente
com a família. Neste novo modelo, a sociedade é chamada a assumir sua
responsabilidade com os portadores de transtornos mentais, o que certa-
mente implica a conscientização de que o regime aberto não oferece risco
para ninguém, que o doente mental não é um incapaz e de que a inserção
social é mais eficaz para a sua recuperação. A reforma psiquiátrica elegeu
os agentes fundamentais neste processo: os médicos e a família, que pas-
sam a ser peças fundamentais.
Para aprofundar esta temática, ver: OLIVEIRA, A. G. B. de; ALESSI,
N. P. Cidadania: instrumento e finalidade do processo de trabalho na
reforma psiquiátrica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10,
n. 1, p. 191-203, mar. 2005; AMARANTE, P. Loucos pela vida: a traje-
tória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003;
TENÓRIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos
dias atuais: história e conceitos. História, ciência, saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 25-29, jan./abr. 2002.
21
Acho ótima a seguinte reflexão de Alain Corbin, feita no momento de
sua entrevista, já citada acima: “Foucault teve o gênio de se dar conta de
que aquele século colocava a sexualidade acima de tudo, e que, por conse-
guinte, ela governava a parte física e a parte moral do homem, sua história
natural, também. O que me interessa é o período anterior à patologiza-
ção que se desenvolve a partir de 1860 – aquele que Foucault estuda. Os
médicos do final do século são horrorosos de ler. São apenas perversões e

Psiquiatria e história cultural • 265


como doença da alma, noção esta vinda de alguns povos ditos
primitivos e mesmo dentro de algumas concepções religio-
sas, como o espiritismo nascido no século XIX etc.
Por outro lado, podemos debruçar-nos sobre o delírio
do louco, ou, em outras palavras, mostrar a pertinência de
seu imaginário como algo não louco. Isto significa, de certa
forma, um desafio, que orienta uma leitura em direção ao
simbólico, pois o que se chama delírio, nada mais é do que
conteúdo simbólico do imaginário de uma pessoa,22 retra-
tando, muitas vezes, também um imaginário coletivo.
Na verdade, este sistema simbólico constituinte do
imaginário de um paciente, também traz à tona a sensibi-
lidade sobre a loucura de certa época, na qual ele se insere
na corrente histórica que lhe deu origem. Novamente, aqui,
podemos perceber o quanto estas duas vertentes de ima-
ginário andam juntas, em um franco processo dialético. E
vemos isto mais ainda quando trabalhamos com literatura
como fonte histórica. A fala de um personagem literário
está prenhe de significado, neste sentido, mostrando tanto
aquilo que um louco pode sentir como o que uma época
pode pensar/representar a respeito da loucura.
Uma das premissas de minha pesquisa histórica é ava-
liar de que forma o imaginário de uma época trabalhou com
estas questões e serviu para legitimar as práticas científicas
de exclusão do louco e vice-versa. O espírito de uma época,
a Weltanschauung, ou Cosmovisão, o surgimento de sím-
bolos coletivos em momentos de crise, as sensibilidades, as
ideologias sociais, enfim todo o imaginário, de certa forma,
individual e coletivo, consciente e inconsciente, de uma so-

fetichismo. Michel Foucault demonstrou que aquele final de século quis


criar uma ciência do sexo, uma sexologia fundada na taxonomia das per-
versões. É sinistro. Em compensação, tudo está para ser escrito sobre a
primeira parte do século”.
22
E aqui se fala sobre o imaginário desde dentro.

266 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ciedade contribui intrinsecamente para a existência destas
práticas sociais. Uma outra, é aquela que parte do próprio
sujeito, aquelas subjetividade e sensibilidade intrínsecas
(idiossincrasia) ao fato de estar sendo um louco ou consi-
derado como tal.23

23
Em meados do século XIX, no Brasil, seres humanos rotulados como
improdutivos, inadaptados e inúteis vagueavam pelas ruas das cidades,
havendo a necessidade destas serem limpas destes desafortunados seres
indesejáveis – que muitas vezes iam parar em porões de casas particulares,
em hospitais gerais e mesmo nas cadeias públicas. A modernização cres-
cente das cidades, a economia competitiva e a necessidade de higienização
moral da urbe levou à exclusão de muitos destes indivíduos não adap-
tados aos padrões de vida aceitáveis pela sociedade, improdutivos que
eram economicamente. Estes desajustados sociais, os loucos ou alienados
mentais como foram chamados na época, precisavam de um lugar que os
contivesse e excluísse da sociedade. Pode-se dizer que a partir de moti-
vações diversas, lutas políticas distintas, brigas por poderes e saberes, o
resultado foi um só: a construção de manicômios nas cidades brasileiras
cada vez mais populosas. O hospício surgiu, assim, como uma necessi-
dade de uma época histórica, ligada a outras transformações do período,
sociais e urbanas. Ainda no século XIX, numerosos foram os embates,
realizados pelos diversos setores da sociedade (como as instituições re-
ligiosas assistenciais como santas casas de misericórdia, a comunidade
médica, os políticos) para o que se convencionou chamar de instituciona-
lização da loucura. O primeiro manicômio brasileiro (Hospício Nacional
de Alienados) foi fundado em 1852, no Rio de Janeiro, por um decreto
do Imperador Pedro II, sendo de caráter assistencialista e vinculado à
Santa Casa de Misericórdia, embora tenha surgido por solicitação de mé-
dicos. Daí para frente, muitas lutas foram travadas nos diversos estados
brasileiros, para a criação de hospícios, e, com o advento da República
e a ascensão dos médicos psiquiatras a cargos de poder nesta área, toda
esta questão tornou-se matéria médica e de especialistas. Em suma, aos
loucos o hospício, no século XIX e aos médicos psiquiatras o poder do sa-
ber, no século XX, foram motes que vingaram, no Brasil, até a instalação
da reforma psiquiátrica, em 2001, que, por sua vez, ainda está longe de
desinstitucionalizar a loucura e dar cidadania aos loucos. Não entrarei
em maiores detalhes sobre a história da Psiquiatria no Brasil e no RGS
(local onde atuo como historiadora), pois muito já foi publicado sobre
esta temática. Cito apenas alguns, os quais já se tornaram referenciais
de contingência aos nossos trabalhos, estando presentes nas bibliogra-
fias de nossas teses e estudos. COSTA, J. F. História da Psiquiatria no
Brasil, um corte ideológico. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1976;
CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986; ENGEL, M. G. Os delírios da razão:

Psiquiatria e história cultural • 267


Embora tenha sempre trabalhado com fontes di-
versas, é a fonte literária aquela que, ao meu entender,
mais se aproxima de forma profícua das sensibilidades
e das realidades que se exprimem nos delírios (nem tão
delirantes assim) de seus personagens loucos.24 A litera-
tura é um tipo especial de fonte, pois entre tantas outras
funções, possui o papel de dialogar com o seu tempo de
forma sensível e profunda, porque é criação e é simbóli-
ca. A ficção, e no caso presente ficção literária, por meio
de sua linguagem simbólica, coloca em evidência o poder
da representação na vida cotidiana humana. Ela comporta
o estatuto do real intrínseco à capacidade de representa-
ção de todo ser humano, isto é, seu sistema simbólico,

médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro:


Editora da Fiocruz, 2001; MEDEIROS, T. Formação do modelo assis-
tencial psiquiátrico no Brasil. 1977. Dissertação (Mestrado) – Instituto
de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1977; SANTOS, N. M. W. Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira
entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: Editora da UPF, 2005b;
SCHIAVONI, A. A institucionalização da loucura no Rio Grande do
Sul: o Hospício São Pedro e a Faculdade de Medicina. 1997. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
1997; VENÂNCIO, A. T. Ciência psiquiátrica e política assistencial: a
criação do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 833-900, set./
dez. 2003; WADI, Y. M. Palácio para guardar doidos: uma história das
lutas pela a construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.
24
Menciono as fontes utilizadas em minhas pesquisas de mestrado e douto-
rado, além das literárias, que envolveram um período histórico do Brasil,
ao todo, de 1900 a 1950: prontuários médicos do Hospital Psiquiátrico
São Pedro – HPSP –, atualmente arquivados no Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul (APRS); alguns relatórios da adminis-
tração; o livro do médico e diretor do hospital em duas longas gestões
(1926-1932; 1937-1951) dr. Jacintho Godoy (JG) sobre a Psiquiatria no
RS, editado por ele mesmo em 1955; jornais da época (principalmente
Correio do Povo e Diário de Notícias) e uma publicação interna do hos-
pital, em forma de periódico ou folhetim, de 1975-9, que relatam um
pouco da história deste com alguns depoimentos de funcionários e pa-
cientes (feito pelo chefe da recreação da época e por uma professora);
teses de mestrado e doutorado.

268 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


como foi evidenciado acima. Assim, na literatura utili-
zada como fonte histórica, revela-se o conjunto de pres-
supostos da História Cultural, isto é, podemos perceber
onde e de que forma as representações, o imaginário, e as
sensibilidades estão atuando.
Observemos alguns exemplos retirados da melhor li-
teratura. E, para sairmos um pouco do foco do Brasil e pen-
sarmos este fenômeno da reclusão e da exclusão como algo
globalizado – utilizando uma nomenclatura atual – vejamos
dois contos de autores estrangeiros.25
O conto de Gabriel García Márquez “Só vim
telefonar”,26 escrito em abril de 1978, dá-nos uma con-
tundente descrição literária sobre o imaginário acerca da
loucura, a forma como desde sempre foi tratada, incluindo
a perda de autonomia e da cidadania que são impostas a
quem recebe este rótulo. Resumidamente, a personagem
central, Maria, é uma atriz mexicana, casada com um pres-
tidigitador de salão, que, viajando sozinha, fica sem o seu
carro numa estrada, em um dia chuvoso de primavera,
quando este estraga. Ao buscar socorro, o único veículo
que atende ao seu sinal para lhe dar uma carona é um ôni-
bus estranho, repleto de mulheres sonolentas, todas en-
voltas em cobertores.
Maria, sem o saber, entra em um ônibus que carrega
mulheres loucas para um hospício e não imagina que neste
lugar também vai entrar.
Sigamos um trecho inicial do próprio conto:

25
Infelizmente, em função de limitação de um artigo, não poderemos con-
textualizar a vida e a obra destes autores, como fizemos em outros traba-
lhos, mencionados na nota 26.
26
Este conto faz parte de um livro de contos intitulado Doze contos peregri-
nos, publicados em 1992 pela primeira vez neste formato, porém escritos
sob diversas formas durante 18 anos. Vide prólogo do autor em Márquez
(1992). MÁRQUEZ, G. G. Só vim telefonar. In: ______. Doze contos
peregrinos. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 101-125.

Psiquiatria e história cultural • 269


Maria olhou por cima do ombro e viu que o ônibus estava
ocupado por mulheres de idades incertas e condições di-
ferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela.
Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assen-
to e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou
era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno
gelado. Não tinha a menor idéia de quanto tempo havia
dormido nem em que lugar do mundo estava. Sua vizinha
de assento tinha uma atitude alerta.
– Onde estamos? – perguntou Maria.
– Chegamos – respondeu a mulher.
O ônibus havia entrado no pátio empedrado de um edifí-
cio enorme e sombrio que parecia um velho convento num
bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas
apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até
que a mulher de aspecto militar as fez descer com um siste-
ma de ordens primárias, como em um jardim-de-infância.
Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimônia
na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho.
Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou
menos quando viu várias mulheres de uniforme que as re-
ceberam na porta do ônibus, e cobriam suas cabeças para
que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana,
dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e pe-
remptórias. Depois de se despedir de sua vizinha de as-
sento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que
cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse
na portaria.
– Será que lá tem telefone? – perguntou Maria.
– Claro – disse a mulher. – Lá mesmo eles mostram.27

27
MÁRQUEZ, 1992, p. 33.

270 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


A personagem ainda queria telefonar e ainda não ti-
nha percebido que estava num hospício. Era tratada sem
piedade como todas as outras, não importando às pessoas
que ela não se cansasse de repetir que só tinha vindo te-
lefonar, explicando que o carro estragara na estrada e ao
pedir carona aquele ônibus havia parado. Neste momento,
é óbvio que o ônibus, o motorista e a ajudante já haviam
partido e não poderiam ser testemunhas do ocorrido. No
hospício, não encontram o nome de Maria na lista das pa-
cientes e a enfermeira-chefe estranha que ela não leve a
identificação num cartão costurado no sutiã, como todas
as recém-chegadas.
A razão primeira para ela ser uma louca, embora a
sua não identidade (sugestivo este fato), era que estava
no ônibus do hospício; sua identidade passou a ser um
número no interior de um hospício, como em tantas ou-
tras descrições que se vê na vida real. Ou seja, identidade
e cidadania estilhaçadas ao entrar no ônibus e depois pela
porta do manicômio, pois o discurso de Maria não vale
pelo que diz, significando apenas um sintoma e não uma
lucidez:

– Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.


Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor te-
nebroso, e no final entrou em um dormitório coletivo onde
as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as
camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais hu-
mana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparan-
do uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham
escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na
frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a iden-
tificação.
– É que só vim telefonar – disse Maria.
Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia

Psiquiatria e história cultural • 271


quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas,
estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três
compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não
chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da
noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia
que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pa-
receu escutá-la com atenção.
– Como é o seu nome? – perguntou.
Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio,
mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a
lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta,
sem nada para dizer, sacudiu os ombros.
– É que eu só vim para telefonar – disse Maria.
– Está bem, beleza – disse a superiora, levando-a até a sua
cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real
–, se você se portar bem vai poder falar por telefone com
quem quiser. Mas agora não, amanhã.
Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a
fez entender por que as mulheres do ônibus moviam–se
como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam
apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras,
com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na
realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada,
escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao
portão uma guarda gigantesca com um macacão de me-
cânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a
no chão com uma chave mestra. Maria olhou-a de viés
paralisada de terror.
– Pelo amor de Deus – disse. – Juro pela minha mãe
morta que só vim telefonar.28

28
MÁRQUEZ, 1992, p. 34.

272 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Não vai demorar muito, pelo enredo, até que a per-
sonagem perceba que está em um hospício. E, então, vai
se tornar uma verdadeira louca aos olhos de todos, pois vai
passar por várias tentativas de fuga, horror e descontrole
emocional diante do que vê e do que percebe. Torna-se uma
louca agitada, como escreve o médico na papeleta. O saber
médico ratifica a doença, o que se torna na escrita de García
Márquez um momento emocionante e trágico do conto –
principalmente para quem já viu isto acontecer inúmeras
vezes em manicômios reais de nossas cidades modernas:

Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conse-


guido com seus amantes casuais nos tédios de depois do
amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os de-
dos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a
guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria
e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela pri-
meira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por
um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a
recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora,
desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar
para o seu marido. O médico levantou-se com toda a ma-
jestade de seu cargo. “Ainda não, princesa”, disse, dando
em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sen-
tido. “Cada coisa tem sua hora”. Da porta, fez uma bênção
episcopal, e desapareceu para sempre.
– Confie em mim – disse a ela.
Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um
número de série, e com um comentário superficial sobre o
enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identida-
de. Na margem ficou uma qualificação escrita à mão pelo
diretor: agitada.29

29
MÁRQUEZ, 1992, p. 35.

Psiquiatria e história cultural • 273


Maria só vai conseguir avisar o marido do seu desti-
no quando aceita as seduções sexuais da guarda da noite,
Herculina, em troca do favor do telefonema. E, quando o
marido chega para conversar com o diretor do hospício ele
ouve: “A única certeza é que o seu estado é grave”, diz o
diretor. “Que esquisito”, responde Saturnino, “ela sempre
foi de gênio forte, mas de muito domínio”.

Há condutas que permanecem latentes durante muitos


anos, e um dia explodem. Porém, é uma sorte que tenha
caído aqui, porque somos especialistas em casos que reque-
rem mão forte, conclui o diretor, como um grande sábio ao
finalizar a explicação para um leigo, de cima de seu saber
poder.

E com isto, Maria fica mais louca ainda: por seu ma-
rido não acreditar nela, ela tem um ataque de fúria com ele
e resolve não querer mais recebê-lo. O conto se estende até
o momento em que seu marido, depois de muito sofrer, a
esquece no hospício e desaparece para sempre. Fica a incóg-
nita e uma esperança:

Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e


que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona
deixou o gato meio morto de fome com uma namoradi-
nha casual, que além disso se comprometeu a continuar
levando cigarros para Maria. Mas também ela desapareceu.
Rosa Regas recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há
uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada
de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela
contou-lhe que continuara levando cigarros para Maria,
sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências
imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros
do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles

274 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


tempos ingratos. Maria pareceu-lhe muito lúcida na última
vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com
a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato,
porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para
a comida.30

O que foi feito de Maria e do manicômio? Maria só


queria telefonar e ficou presa para sempre em um manicô-
mio, talvez até sua morte.
Esta é uma história ficcional contundente e emocio-
nante a respeito da perda da autonomia e da própria cida-
dania do indivíduo tido como louco. Suas súplicas não são
atendidas, sua voz não é ouvida, e inexiste ao olhar dos ou-
tros um momento sequer de lucidez nestas criaturas. De
forma nua e crua, sabemos que isto acontece também fora
da literatura. Porém ainda é na fonte literária que percebe-
mos a sensibilidade mais acurada a este respeito, exceção
feita a alguns breves relatos que tive oportunidade de ler
em prontuários médicos, de alguns médicos um pouco mais
sensíveis, ou mesmo em outro tipo de narrativa, quais se-
jam, breves notas ou missivas (sob o termo genérico de
escrita-de-si), deixadas por loucos internados.31
O conto de Tchecov “A enfermaria número 6”, publi-

30
MÁRQUEZ, 1992, p. 40.
31
Remeto o leitor à obra Histórias de vidas ausentes – a tênue fronteira en-
tre a saúde e a doença mental na qual são relatados casos, nos capítulos
2 e 3, sobre pessoas internadas no Hospital Psiquiátrico São Pedro de
Porto Alegre, entre 1937 e 1945, as quais recebem tratamento clínico/
psiquiátrico independente de suas histórias de vida e dos motivos de seus
adoecimentos. SANTOS, 2005b. Também sobre estas narrativas ordiná-
rias, ou “escritas-de-si”, ver os trabalhos de Yonissa Wadi, principalmente
A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: Edufu,
2009; e minha tese de doutorado Histórias de sensibilidades: espaços e
narrativas da loucura em três tempos: Brasil 1905, 1920, 1937. 2005. Tese
(Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005a.

Psiquiatria e história cultural • 275


cado em 1892,32 narra a história de um médico numa cida-
dezinha remota da antiga Rússia czarista, o qual faz vistas
à enfermaria número 6, o pavilhão dos loucos do hospital
onde ele trabalha, enquanto medita sobre a vida e sobre a
morte. A partir da relação de Andrei Efímich, o médico, e
de sua relação com um louco, Ivan Dmítrich, internado na
enfermaria número 6, o autor reflete, por meio do mote da
loucura, sobre o mundo e a (des)humanidade nele contida.

Um mundo cada vez mais repleto de avanços científicos e


tecnologias, além de filosofias e ideologias ditas racionais
em profusão, entretanto vasto de degradação moral, indi-
ferença e desumanidade ante o próximo; um mundo em
que os direitos humanos são deSr.espeitados das maneiras
mais sutis, cruéis e mesquinhas.33

O doutor Efimich, de dentro de sua ética, não com-


preendia como é que poderia haver local como aquele hos-
pital:

Depois de uma revisão geral, Andrei Efimich chegou à con-


clusão de que semelhante instituição hospitalar era imoral
e altamente nociva para a saúde das pessoas. Parecia-lhe
que a única solução era mandar os doentes para casa e
encerrá-la. Considerou, no entanto, que isto não depen-
dia somente de sua vontade e que não seria eficiente: se se
eliminasse a imundície física e moral de um local, aquela
provavelmente transferia-se para outro. Havia que esperar
que desaparecesse por si própria. Além disto, se tinham
aberto este hospital e o toleravam, era sinal de que as pes-
soas necessitavam dele; os males desta vida e todas as suas
vilanias são necessários, já que se convertiam com o tempo

32
TCHECOV, A. A enfermaria número 6. São Paulo: Veredas, 2005.
33
TCHECOV, 2005, p. 25.

276 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


em qualquer coisa de útil, como o estrume em terra negra.
Não há no mundo bem que na sua origem não contivesse
uma ação abjeta.34

O médico da narrativa literária, que possui o hábito


de se autoexcluir da sociedade em que vive, pois não vê nela
pessoas inteligentes com as quais possa conversar, vê neste
louco da enfermaria uma pessoa interessante, com o qual
passa horas a discutir as questões filosóficas sobe a vida, a
morte e a própria loucura. Andrei, antes de conhecer este
paciente, deleitava-se na hora em que chegava à sua mora-
dia, no próprio hospital, e podia ler um bom livro, tomar sua
cerveja e comer o que a cozinheira lhe preparava. Embora
monótona, sua vida se enriquecia com a leitura de muitos
livros antigos. Passou a não acreditar mais na Medicina.
Em determinado momento da trama, um outro mé-
dico do hospital o vê e o ouve conversando com o doente
Ivan, sentado ao seu leito. Imediatamente tem a clara certe-
za de que seu colega está também louco:

Não tardou a propagar-se no hospital o rumor de que o


doutor Andrei Efimich começara a visitar a enfermaria nú-
mero seis. Ninguém, nem o assistente Nikita, nem as en-
fermeiras, compreendiam a razão desta atitude, nem por-
que passava ali as horas mortas, ou de que assunto falava, e
porque nunca receitava [medicação ou outro tratamento].
As suas atitudes [de ficar horas a fio conversando com um
louco] causavam estranheza. Mikail Averianich [um amigo
que frequentava sua casa rotineiramente] frequentemente
não o encontrava em casa, coisa que antes nunca acontecia.
E Dariushka [sua empregada] sentia-se desorientada, em
virtude de o médico ter deixado de tomar a sua cerveja a

34
TCHECOV, 2005, p. 20.

Psiquiatria e história cultural • 277


determinada hora, e até às vezes chegar tarde para comer.
Numa ocasião – passava-se isto já em fins de junho –
tendo o doutor Kobotov tido a necessidade de falar com
Andrei Efimich, foi à sua casa; como não o encontrasse,
procurou no pátio, onde lhe disseram que o velho médico
estava no pavilhão com os doentes mentais. Ao entrar no
pavilhão, parou no vestíbulo ouvindo a seguinte conversa:
– Nunca chegaremos a um acordo, não conseguirá con-
vencer-me – dizia Ivan Dmitrich, irritado. – O Senhor
não conhece o que é a realidade e nunca sofreu. A única
coisa que fez foi alimentar-se como uma sanguessuga com
os sofrimentos alheios; eu, pelo contrário, sofri desde o dia
em que nasci até o dia de hoje. Por isso lhe digo francamen-
te que me considero superior a si e mais competente em
todos os sentidos. Você não é ninguém para me dar lições.
– Não pretendo de modo algum convertê-lo às minhas
convicções – murmurava Andrei Efimich em voz baixa e
como lamentando que não quisessem entendê-lo. – Não
se trata disto, meu amigo. Não se trata de você ter sofri-
do e eu não. As alegrias e os sofrimentos são efêmeros.
Ponhamo-los de parte e que os leve o vento. Trata-se do
que você e eu pensamos; vemos, um no outro, duas pessoas
capazes de pensar e raciocinar, e isto torna-nos solidários
por mais diferentes que sejam nossos pontos de vista. Se
você soubesse, amigo, como me aborrecem a loucura geral,
a falta de talento, a torpeza, e como me alegra conversar
consigo! Você é uma pessoa inteligente e encanta-me a sua
conversa.35

O médico Kobotov, lançando olhares cúmplices com


o atendente Nikita sai do pavilhão com uma certeza. No dia
seguinte, leva um assistente para ver a cena, que se repetia: a

35 TCHECOV, 2005, p. 41.

278 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


conversa entre um louco (quase furioso em seus argumen-
tos) e o doutor Andrei. Estava lançada a sentença de morte
deste médico, sem ele o saber. O fato de ser solidário a um
louco internado, de chamá-lo de amigo, de estar numa po-
sição submissa ao discurso do outro... Isto foi imperdoável.
Em pouco tempo, na cidade pequena, isto se espalhou
e o dr. Ifimich é chamado à Câmara Municipal, onde estão
presentes várias autoridades da cidade, dos vários poderes e
alguns médicos. Sem ele perceber, está sendo testada a sua
sanidade mental.
Todos falaram um pouco, perguntaram sobre sua
vida, etc. Embora soubessem de antemão o que queriam,
principiaram por acordar com o doutor, dizendo-lhe que
sabiam sobre a monotonia da vida daquela cidade para um
homem culto como ele. Até que chegaram a perguntar so-
bre a enfermaria número seis e sobre o doente, “um extra-
ordinário profeta”. Dr. Efimich responde que aquele rapaz
era “um jovem com muito interesse, e, então, não voltaram
a lhe perguntar mais nada”.
Enquanto Andrei vestia o sobretudo na antecâmara,
o chefe de Polícia colocou-lhe a mão no ombro e disse com
um suspiro: – “Chegou a hora de nós, os velhos, nos retirar-
mos para descansar!”.
Logo ao sair da Câmara, o médico se dá conta sobre
o que está acontecendo a ele e, sentindo, “pela primeira vez
em sua vida, profunda lástima pela carreira médica”, pensa:
“– Meu Deus – pensou recordando a maneira como os mé-
dicos acabaram de julgá-lo –, não foi assim há tanto tempo
que estudaram Psiquiatria e ficaram aprovados; como po-
dem ser tão ignorantes? Não fazem a menor ideia do que é
Psiquiatria!”.
Uma semana depois lhe chega uma carta solicitando seu
afastamento do hospital. Seu amigo, Mikail Averianich, um
ex-militar, convida-o a viajar para Moscou, São Petesburgo e

Psiquiatria e história cultural • 279


Varsóvia. Um tanto a contragosto, ele vai, mas já nos primei-
ros dias de viagem se irrita com tanta extroversão do amigo,
tanto passeio e conversa. Acaba por ficar muito tempo nos
quartos dos hotéis. Quando voltam à sua cidade, ele se iso-
la cada vez mais. Perdeu o espaço de moradia no hospital,
não recebeu nenhuma pensão em dinheiro (o que se poderia
esperar de uma aposentadoria) e passou a viver do favor de
uma mulher que lhe alugara um pequeno quarto de pensão.
Vai perdendo aos poucos até sua vontade de ler, questiona o
mundo em que vive, os desagrados daquela cidade. Seu amigo
Averianich e o médico Kobotov ainda o visitam, este último
levando remédios.
Certo dia, Andrei se desespera e grita com ambos,
dizendo que não mais os quer ver por ali. Coitado, senten-
ça final sub-reptícia: transformou-se em um louco furioso.
Embora tenha ido ao dia seguinte pedir desculpas ao amigo,
o médico Kobotov vai até sua casa, ao final da tarde, e o leva
a um passeio, dizendo que precisava de sua ajuda para escla-
recer um caso. Fica contente, o velho doutor. Porém, ele é
levado ao hospital, deixado na enfermaria número 6, até que
se dá conta do que está acontecendo: ele é internado como
um louco, despojado de suas roupas e pertences (veste a
roupa do hospital, isto é, o uniforme de louco) e é largado
sem que nenhum médico fale com ele. À noite, querendo
sair do quarto para caminhar um pouco no pátio, ele é proi-
bido por Nikita, o guardião dos loucos. Em um ataque de
fúria, atira-se contra as grades, tenta bater no serviçal e é
espancado por este. No dia seguinte, o ex-médico morre.36

36
Estas reflexões trazidas por Tchecov são muito semelhantes ao que nos
mostra Rocha Pombo, em seu romance simbolista “No hospício”, escri-
to em 1900 e publicado em 1905. POMBO, Rocha. No hospício. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1970. Resumidamente, o romance
revela certo pano de fundo: o sanatório hospeda o protagonista louco,
Fileto, um rapaz sensível e filósofo-místico, levado à internação compulsó-
ria pela família, e também o narrador, que se internou aí voluntariamente,

280 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Este conto é riquíssimo para levantarmos várias ques-
tões pertinentes à loucura.
Em primeiro lugar, o que é a loucura? Algumas no-
ções ligadas ao comportamento incomum, são sugeridas,
como o louco gostar de filosofar e pensar o mundo de seu
entorno. Cabe ressaltar o que não disse antes: que o louco
interessante que estava na enfermaria, tinha ido parar lá por
motivos semelhantes ao doutor, pois havia perdido famí-
lia, era inteligente e sentia desprezo pelas pessoas da cidade,
com suas vidas sedentárias e torpes; vivia isolado e irritadiço,
lia muito.

Há de pensar que a leitura era para ele um hábito doen-


tio, porque se lançava com igual avidez sobre tudo que lhe
chegava às mãos, até mesmo jornais e calendários de anos
anteriores.37

Embora sua cultura e inteligência, passou a se sen-


tir perseguido pelas pessoas da cidade – e esta parte é
belamente contada por Tchecov em várias páginas – che-
gando a um ápice de loucura que o fez interná-lo no hos-
pital e ali ficar para sempre: não tinham como tratá-lo
em casa.38 Como o doutor, ele era amado na cidade, sem-
pre tinha sido inofensivo até seus surtos de perseguição,

a fim de ter a maior aproximação possível com este louco, que ele queria
conhecer melhor. Isolado em sua cela, Fileto escrevia. Ele escrevia, em
uma quantidade grande de cadernos, registros estes de cunho pessoal,
que davam conta de sua vida e do mundo em que vivia, ao mesmo tem-
po em que mostravam grande capacidade de reflexão filosófica e místi-
ca. Porém, no romance do brasileiro, o médico teve maior sorte e quem
morreu foi o louco internado, Fileto. Mas existe uma semelhança muito
grande no que tange à sensibilidade sobre a loucura e suas representações
literárias, socialmente validadas no mundo concreto e real das práticas de
exclusão. Maiores detalhes de análise deste romance estão em minha tese
de doutorado Histórias de sensibilidades. (SANTOS, 2005a).
37
TCHECOV, 2005, p. 12.
38
TCHECOV, 2005, p. 16.

Psiquiatria e história cultural • 281


mas, depois de internado, bastou um ano para a cidade
esquecê-lo.39
Alguns parâmetros de cidadania deveriam ser discu-
tidos neste percurso analítico: dignidade, auto-estima/sub-
jetividade, autonomia, direitos e deveres, alteridade, solida-
riedade, responsabilidade.
Tchecov apresenta as práticas e os discursos de
segregação e mostra que a internação é utilizada como
modo de repressão social. Porém, é mais do que isto: vista
sob o prisma apresentado, a loucura priva o ser humano
da sua capacidade de julgamento e de decisão, ou seja, sua
condição de sujeito torna-se inexistente, incapacitando-o
como cidadão. Sua subjetividade não é levada em conta,
sua dignidade de ser humano é perdida junto com seus
pertences.
A ficção trouxe simbolicamente aquilo que existe na
realidade. O fato de tirarem os pertences e as roupas de um
interno é paradigmático para a noção de que o louco é espo-
liado de tudo o que é seu de mais íntimo. Se os argumentos
acerca da existência de delírios (e, claro, alucinações) são
suficientes para colocar o louco numa posição de incapa-
cidade para distinguir entre a fantasia e a realidade, tam-
bém acabam por servir ao status quo ao mantê-los sem sua
cidadania, podendo ser internados à revelia, interditados e

39
Em 1937, no Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, um ho-
mem de 34 anos foi internado pela família, apresentando mania de per-
seguição e ideias de grandeza. Seu pai e irmão, responsáveis pela baixa
hospitalar, responderam ao médico que o paciente lia e escrevia demais,
e isto era um dos motivos de sua loucura. Este paciente escreveu cartas
durante a internação, que são um documento importante sobre a sensibi-
lidade da loucura. Outras semelhanças entre a ficção e a realidade são no-
tórias: o bom relacionamento com as pessoas, a inteligência mal aprovei-
tada, o sentimento de reclusão e isolamento, por exemplo. Este caso foi
analisado e interpretado em dois trabalhos anteriores que realizei – vide
Histórias de vidas ausentes (SANTOS, 2005b); Histórias de sensibilidades
(SANTOS, 2005a).

282 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


terem seus bens confiscados – por exemplo, muitas famí-
lias ficam com o dinheiro da aposentadoria de seu familiar,
quando este é interditado por doença mental.
A solidariedade, que, por exemplo, o amigo do médi-
co demonstrava para com ele, pode ser considerada falsa se
prestarmos atenção em suas atitudes durante a viagem: ele
queria se divertir, pouco se importando se o amigo ficasse
recluso no quarto de hotel. Isto poderia significar também
o que vemos na realidade: a solidariedade para com o lou-
co vai somente até onde o auxílio não atinge os propósitos
egoístas dos demais. É muito raro vermos alguém ajudar
e se debruçar verdadeiramente sobre os problemas do ou-
tro: o doutor Ifimich nunca foi ouvido com respeito, nunca
tentaram compreender seus pontos de vista sobre a doença
mental, sobre a importância que dava às suas leituras e mes-
mo ao louco que tinha muita lucidez em suas arguições.
Se, por um lado, as terapêuticas antigas e obsoletas
deram origem às novas condutas e a reforma psiquiátrica
veio para tentar colocar um fim nestas práticas explicitadas
pela ficção, por outro, na vertente biológica, com os gran-
des coqueteis medicamentosos de última geração, ainda pre-
valece e coloca todos num buraco negro em relação às curas
de seus problemas. E, se o mundo continua cada vez mais
repleto de pessoas com problemas emocionais, não seria o
momento de reavaliar mais uma vez o paradigma vigente?

Psiquiatria e história cultural • 283


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Psiquiatria e história cultural • 285


Capítulo 9

“quem senta na pedra fica doente,


vadio e com preguiça”: a invenção do
trabalho numa colônia agrícola
gaúcha (1972-1982)

Viviane Trindade Borges1

O objetivo deste estudo é analisar o discurso médi-


co que instituiu visibilidades e dizibilidades a respeito do
trabalho realizado pelos internados do Centro Agrícola de
Reabilitação. A referida instituição foi tema de meu trabalho
de mestrado, no qual me propus analisar o quotidiano e a re-
sistência dos internados frente ao controle psiquiátrico, pro-
curando nos não ditos possibilidades inscritas nas entrelinhas
da documentação institucional.2 O que proponho aqui, dian-
te das mesmas fontes, é inteiramente diferente. Objetivo de-
bruçar-me somente sobre aquilo que foi dito, não buscando
significados ocultos nos silêncios das fontes, mas sim procu-

Doutoranda do PPG em História da UFRGS. Bolsista Capes.


1

Ver BORGES, V. T. Loucos (nem sempre) mansos da estância: controle


2

e resistência no quotidiano do Centro Agrícola de Reabilitação (1972-


1982). 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 287
rando problematizar o emaranhado discursivo que instituiu
como pacientes aptos à reabilitação, os sujeitos que passaram
a habitar a nova colônia agrícola gaúcha. Enredados pela fala
médica, os atores desta narrativa foram constituídos como
sujeitos trabalhadores, os quais deveriam se concentrar em
suas tarefas a fim de obterem a cura. Pretendo assim, recom-
por uma intriga, pensando nas imagens constituídas a partir
de tais falas, nas características que instituíram aos sujeitos
loucos, e nas reverberações na maneira como estes persona-
gens passaram a perceber a si próprios.

A proposta: inventando sujeitos trabalhadores



Segundo o Relatório Anual da Secretaria da Saúde do
Rio Grande do Sul de 1972:

Na área da saúde mental merece [...] destaque a implan-


tação de um projeto agrícola para a produção hortogran-
geira, aproveitando-se de uma área de 360 ha nas glebas
pertencentes ao Hospital Colônia Itapuã. Esse projeto
agrícola serviu para a experimentação de um processo te-
rapêutico, sem tirar as funções produtivas do paciente.
Ao mesmo tempo, oportuniza uma redução do número
de pacientes internados no Hospital Psiquiátrico São
Pedro (Unidade de Planejamento da Secretaria da Saúde e
Meio Ambiente, 1972).

Em virtude do referido Projeto, em 1º de julho de


1972, um grupo de cerca de 12 internados foi transferido
do Hospital Psiquiátrico São Pedro para o recém-inaugura-
do Centro Agrícola de Reabilitação, localizado no Hospital
Colônia Itapuã, em Viamão-RS. Até então, tais homens não
eram considerados aptos à vida social e ao trabalho, eram
pacientes psiquiátricos pertencentes à massa humana que

288 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


superlotava o grande nosocômio gaúcho. A possibilidade
de retornar as suas comunidades de origem não era perce-
bida como possível para muitos destes senhores. A partir
desta data, um novo discurso inventa os sujeitos selecio-
nados com as qualidades necessárias para a reabilitação, ou
seja, institui sujeitos aptos ao trabalho. Assim, os diferen-
tes sujeitos que perpassam este estudo não são percebidos
como produtores centrais dos acontecimentos, e sim como
resultados dos discursos que procuraram instituí-los. Neste
sentido, objetivo colocar em evidência a teia discursiva que
procurou definir quem eram os loucos que passaram a habi-
tar a nova colônia agrícola gaúcha.3
A invenção dos sujeitos trabalhadores inicia-se, por-
tanto, com a proposta que apontava possibilidade de cura
e reinserção social aos internados de origem rural e do
sexo masculino, os quais constituíam o contingente mais
numeroso de internados no grande nosocômio gaúcho.
Justificando a construção de uma colônia agrícola, o depoi-
mento de um médico que atuava no São Pedro, aponta que
no ano de 1971, dos 4.600 internados, 3.500 eram crôni-
cos e possuíam condições de reabilitação.4 Nesta perspec-
tiva, cerca de 3.500 internados não eram reabilitados, pois
o referido hospício não contava com recursos para que isso
se efetivasse. É ai que entra o Projeto Centro Agrícola de
Reabilitação, no intuito resgatar os vínculos sociais destes
homens por meio de atividades agrícolas.
A criação do Centro surge sob a inspiração das anti-
3
Refiro-me aqui ao conceito de discurso proposto por Foucault, pen-
sando este como prática discursiva. De acordo com Rago: “recusando a
concepção do discurso como reflexo do real, o filósofo explicava que o
discurso é prática, e que as práticas discursivas instituem figuras sociais,
constroem identidades e objetivam o fato histórico, dando-lhe visibilida-
de e imprimindo-lhe um sentido determinado”. Cf. RAGO, M. As mar-
cas da pantera: Foucault para historiadores. Resgate, Revista de Cultura,
Campinas, SP, n. 5, p. 28, 1993.
4
Jornal Zero Hora, p. 3, 19 mar. 1971.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 289
gas colônias agrícolas propostas por Pinel, na primeira me-
tade do século XIX, e difundidas no Brasil na segunda me-
tade do século XX.5 Embasado por tais práticas discursivas,
o discurso médico que funda a colônia gaúcha propõe-se a
reabilitar os internados por meio do trabalho. Nascido em
meio aos questionamentos levantados pela antiPsiquiatria,6
o Centro Agrícola é marcado por um discurso que tentava
se diferenciar das propostas anteriores e mesmo dos gran-
des hospitais psiquiátricos como o São Pedro. Nesta pers-
pectiva, os discursos que cercam sua criação parecem preo-
cupados em assinalar este suposto diferencial, alegando que
a nova instituição procurava valorizar os aspectos culturais
dos pacientes, mantendo e incentivando, por exemplo, cos-
tumes bem característicos dos gaúchos, como gosto pelo
churrasco e as rodas de chimarrão, além de privilegiar, entre
os cerca de 3.500 crônicos, a transferência daqueles que re-
almente tivessem experiência ou afinidade com atividades
agrícolas. A instituição condenava a homogeneização dos
internados, não prevendo o uso de uniformes e determinan-
do a utilização de quartos individualizados. Conforme um
dos psiquiatras envolvidos:

os pacientes do São Pedro eles tinham um uniforme que


era chamado o “uniforme de louco”, era um macacão, uma
roupa azulada, escrito bem grande nas costas: HPSP. Então
eles, para ir para Itapuã, tiraram essa roupa e colocaram
roupas normais. Já começa por aí, eles tinham quartos in-

5
A primeira colônia agrícola foi criada por um discípulo de Pinel, André
Marie Ferrus, em Saint-Anne, na França, em 1828. Cf. PESSOTTI, I. O
século dos manicômios. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 189.
6
Buscando “deslocar, mascarar, eliminar ou anular” o poder e o saber mé-
dicos, surge entre 1958 e 1960, a antiPsiquiatria, movimento que colocava
questão o papel do psiquiatra como responsável por produzir a verdade
da doença no espaço hospitalar. FOUCAULT, M. Mesa redonda em 20
de maio de 1978. In: ______. Estratégia, poder e saber. Ditos & Escritos
IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 337.

290 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


dividualizados, eles tinham um tratamento diferenciado,
eles se sentiam menos doentes que no São Pedro. E isso aí,
já de início, deu um outro aspecto, uma valorização, uma
melhora na auto-estima desses pacientes, que não havia no
hospício.

Contudo, a instituição valia-se de um discurso fun-


damentado nos conceitos a respeito da laborterapia que
se aproximava, em alguns aspectos, das antigas colônias
que procurava se diferenciar, estabelecendo horários rígi-
dos de trabalho para cada setor, rotinas, esquadrinhamento
minucioso do espaço, revistas aos quartos dos internados,
motivações (ou coações) para o trabalho, além de uma vi-
gilância ininterrupta. Tal perspectiva passa a relacionar o
cumprimento de tais normas à suposta cura e consequen-
te reabilitação do internado. Conforme o discurso médico,
era o fazer, ou seja, o processo de realização das atividades
laborativas, que levaria ao resgate de vínculos antigos e con-
sequentemente à reabilitação.
A nova proposta efetivamente não apresentava nada
de novo, ligando-se a ideia de ilusão de liberdade que cer-
cava as concepções psiquiátricas do século XX, procurando
reforçar a relação deste saber com a percepção de homem
normal, moldando trabalhadores caracterizados como tran-
quilos.7 Da mesma forma que ocorria nas colônias da pri-
meira metade do século XIX, o trabalho dos doentes dentro
do manicômio deixa de ser algo informal e esporádico, para
tornar-se terapia, passando a ser controlado pelos médicos.
Com isso, o discurso psiquiátrico estabelece um vínculo
que liga o trabalho à possibilidade de reabilitação, instituin-

Segundo Portocarrero, tal percepção reforça a “relação da Psiquiatria


7

com a ideia de homem normal, trabalhador tranquilo, força produtiva”.


PORTOCARRERO, V. Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descon-
tinuidade histórica da Psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. p. 143.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 291
do a capacidade de trabalhar como característica que define
a normalidade, sendo justamente a possibilidade de tornar-
se normal a diferença mais marcante entre a prática psiquiá-
trica do século XX e a do século XIX.8
Creio que Foucault parece bem esclarecedor a este
respeito, trazendo para a atualidade tal perspectiva:

primeiramente, no que concerne ao trabalho, mesmo nos


dias de hoje, o primeiro critério para determinar a loucura
em um indivíduo consiste em mostrar que é um homem
inapto ao trabalho.9

Tais discursos implicavam uma série de práticas não


discursivas que passaram a operar dentro das instituições
psiquiátricas, instituindo novas visibilidades e dizibilidades
a respeito da loucura. No Rio Grande do Sul, estas procu-
ravam garantir o bom andamento da proposta de criação
da nova colônia por meio de uma série de normas que esta-
beleciam punições para aqueles que não se enquadrassem à
rotina institucional. Estas medidas variavam do retorno ao
São Pedro, o qual significava a desqualificação do internado
para o projeto e o caracterizava novamente como inapto à
reabilitação, à castigos como, por exemplo, o não recebi-
mento de alguma refeição ou de cigarros.
Nesta mesma perspectiva, surge uma série de de-
terminações a respeito do trabalho a ser realizado. Este,
não poderia exceder nove horas diárias, devendo abranger
variados tipos de atividades, tais como: olaria, transporte
(caminhão e lenha), calçamento e limpeza de ruas, jardina-
gem, capina, horta, barreira, corte de lenha, serviço geral,

8
PORTOCARRERO, 2002, p. 110.
9
FOUCAULT, M. Ditos e escritos I. Problematização do sujeito: psico-
logia, Psiquiatria e psicanálise. São Paulo: Forense Universitária, 2004.
p. 261.

292 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


lavanderia, refeitório, valetamento, limpeza de campo, ofi-
cina mecânica, marcenaria, serra de lenha, cozinha e colhei-
ta no período de safras. Tais atividades eram exercidas em
três áreas diferentes que se afastavam gradualmente da ins-
tituição. Conforme o discurso psiquiátrico, a intenção des-
te afastamento era proporcionar aos internados “o mesmo
fenômeno vivenciado no crescimento sadio do indivíduo”,
ou seja,

as áreas tornam-se progressivas e geograficamente mais


distantes, imitando o desenvolvimento [...] do indivíduo
rumo à maturidade, de forma gradual e conforme as possi-
bilidades de cada um.10

O emaranhado discursivo proposto pela Psiquiatria
passa a construir uma imagem diferenciada a respeito do
trabalho dos internados dentro das colônias agrícolas. De
acordo com a nova perspectiva, o trabalho não deveria ser
forçado nem exercido como uma forma de castigo, e sim
em virtude da recompensa, não apenas material, mas prin-
cipalmente por ser encarado como a possibilidade de cura
e consequente retorno ao convívio social. Na tentativa de
recompor esta intriga é possível perceber que, estimulados a
trabalhar, os internados deveriam seguir rotinas fixas que os
mantinham permanentemente ocupados, pois, na perspec-
tiva da equipe médica, somente desta forma seria efetivada
a proposta terapêutica de reabilitação por meio do trabalho.
Tais práticas instituem determinadas característi-
cas antes não selecionadas para definir os antigos loucos
esquecidos no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Mediante
a transferência para o Centro Agrícola de Reabilitação es-

10
CASTELLARIN, C. et al. Pesquisa avaliativa: reabilitação de doentes
mentais crônicos no Centro Agrícola de Reabilitação (1972/82). Porto
Alegre: PUC/RS, 1983.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 293
tes passam a serem definidos como trabalhadores. Alguns
documentos institucionais referem-se aos internados ape-
nas desta forma, por exemplo, o regimento que instruía os
pacientes mais experientes a ensinar seu ofício aos novos
internados estabelece que estes deveriam ajudar os recém-
chegados “sempre que tiver um novo trabalhador ou quan-
do mudar o trabalho”.11
Não apenas trabalhadores, mas trabalhadores tran-
quilos e mansos. Conforme um dos psiquiatras que atuou
no Centro Agrícola, a origem rural dos pacientes encami-
nhados a instituição deveria lhes conferir uma personalida-
de mais tranquila, caracterizando estes personagens como
os loucos mansos da estância. Tais dizibilidades e visibilida-
des antecedem a criação do Centro e parecem fazer parte
de todo o processo que envolve o surgimento de institui-
ções semelhantes. A título de exemplo cabe citar que tanto
Borges de Medeiros12 quanto Jacintho Godoy,13 ao tratarem
respectivamente das colônias agrícolas fundadas no Rio
Grande do Sul em 1917 e 1949, atestam que a estas deve-
riam ser enviados apenas os doentes “tranquilos”.14
Tais concepções foram inventadas, ou seja, fo-

11
HOSPITAL COLÔNIA ITAPUÃ. Unidade de Internação Psiquiátrica.
Livros de ocorrência. Itapuã, Viamão, 1972/1973. Destaque nosso.
12
Mensagem enviada por Antonio Augusto Borges de Medeiros à
Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. 20 de
set. de 1920. AHRS.
13
GODOY, J. História da Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Edição do Autor, 1955. p. 227.
14
Cf. BORGES, 2006, p. 57. Existiram duas colônias agrícolas anteriores
ao Centro Agrícola de Reabilitação no Rio Grande do Sul. A primeira
delas foi fundada em 1917 e denominava-se Colônia Jacuhy; a segun-
da, cujo nome não é citado nas fontes consultadas, foi criada em 1949.
In: Mensagem enviada por Antonio Augusto Borges de Medeiros à
Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. 20 de
setembro de 1918. Ver: Mensagem enviada por Antonio Augusto Borges
de Medeiros à Assembleia dos Representantes do Estado do Rio Grande
do Sul. 20 de setembro de 1918. AHRS; GODOY, 1955.

294 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ram construídas por meio do discurso médico que insti-
tuiu os sujeitos trabalhadores que habitavam o Centro de
Reabilitação. Nesta perspectiva, pode-se pensar que tais
personagens são o resultado final do discurso que os cons-
tituiu como trabalhadores. Apesar de seu caráter médico-
científico, creio que o uso do termo invenção enfatiza a
subjetividade que também perpassa tal discurso, remeten-
do “para uma abordagem do evento histórico que enfatiza
a descontinuidade, a ruptura, a diferença, a singularidade,
além de afirmar o caráter subjetivo da produção histórica”.15
Até o presente momento, pretendi dar conta das
práticas discursivas e não discursivas que produziram os
personagens reabilitáveis de Itapuã, problematizando as fa-
las que os instituíram como trabalhadores. Passo agora a
analisar a reverberação de tais dizibilidades e visibilidades
naqueles tidos como loucos.

A reverberação: aqueles que sentaram na pedra

Objetivei demonstrar a maneira como o discurso


médico procurou instituir os sujeitos trabalhadores que pas-
saram a habitar o antigo Centro Agrícola de Reabilitação.
Agora, cabe tentar problematizar a maneira como tal dis-
curso foi recebido por estes sujeitos, como as visibilidades
e dizibilidades instituídas reverberaram no modo como os
personagens em questão viam a si próprios.
A fala que dá título a este estudo foi proferida por J.,
um internado do Centro Agrícola de Reabilitação. Segundo
este, quem senta na pedra fica doente, vadio e com preguiça,
era desta forma que ele justificava sua loucura. De acordo
com o prontuário médico, J. teria enlouquecido após ter
perdido uma colheita devido as fortes chuvas que dizima-
15
ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. História a arte de inventar o
passado. São Paulo: Edusc, 2007. p. 20.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 295
ram as safras de julho de 1973. Diante disso, a reverberação
da proposta institucional fundamentada num discurso que
enfatizava a importância do trabalho na recuperação dos in-
ternados, parece ter feito sentido para o ex-agricultor. A
capilaridade da fala médica instituiu visibilidades e dizibi-
lidades que, de alguma forma, legitimaram as razões atri-
buídas por J. para sua loucura. Sentar-se na pedra passava
a significar preguiça, vadiagem, interrupção das atividades
a serem realizadas, compondo a imagem de trabalhadores
que deveriam manter-se sempre ocupados, ligando a cura à
capacidade de trabalhar.
Desta forma, muitos internados passaram a se per-
ceber por meio do discurso institucional, ou seja, não se
viam mais como pacientes e sim como trabalhadores que
logo estariam de volta ao convívio social. Neste sentido,
num relatório escrito por um interno líder do grupo que
trabalhava na horta, é feita a seguinte observação a res-
peito de seus colegas, todos pacientes como ele: “se os
trabalhadores não forem mais ou menos homogêneos o
trabalho fica prejudicado”.16 Percebe-se que o internado
se refere aos trabalhadores e não a pacientes, aproprian-
do-se da fala médica, constituindo-se a partir deste novo
lugar de sujeito.
Instituídos pelo discurso psiquiátrico, alguns pa-
cientes-trabalhadores de Itapuã levaram as últimas conse-
quências às implicações que esta nova posição de sujeito
sugeria. Um destes casos extremados foi relatado por um
psiquiatra que atuou na instituição e teve um desfecho
dramático. Segundo este, entre 1977 e 1978 houve um au-
mento na safra de cebolas produzida pelos internados, a
qual não seria totalmente consumida e deveria, portanto,
ser descartada:

16
HOSPITAL COLÔNIA ITAPUÃ, 30 abr. 1973. Destaque nosso.

296 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


então nós enterramos a cebola, fizemos um buraco e
mandamos enterrar a produção que estava apodrecendo
e fedendo lá. Nesse momento, um cidadão chamado [...]
pegou um pedaço de arame e [...] enforcou-se deixando
um bilhete dizendo que ele pensava que ele ia ficar bom da
cabeça, que ele passou muitos anos no Hospital São Pedro,
que aqui disseram que ele ia ficar bom da cabeça e que ago-
ra chegou lá e viu que aquilo tudo era mentira. [...] se con-
tava desse exemplo sempre. Um doente que se suicidou
porque se desiludiu com a coisa, na verdade, um grande
entusiasta do trabalho.17

A reverberação da fala médica teve consequências de-


sastrosas para o referido paciente. Imbuído por tal discurso
o internado, considerado pela equipe médica como um en-
tusiasta do trabalho, passou a constituir a si próprio como
parte daquilo que os psiquiatras legitimavam como verdade,
ligando a possibilidade de cura ao trabalho realizado. Diante
da perda e desperdício dos frutos de seu esforço, o interna-
do acreditou perder também a possibilidade de reabilitação,
percebendo o tratamento empregado na instituição como
uma mentira. Após ter passado muitos anos no Hospital São
Pedro, ele finalmente havia encontrado a esperança de ficar
bom da cabeça. Tal esperança foi enterrada junto com as ce-
bolas. Diante da decepção, sua opção foi o suicídio.
Assim, a imagem de trabalhadores permanentemen-
te envolvidos em suas atividades, tão bem desenhada pelo
discurso psiquiátrico, nem sempre pareceu clara aos olhos
dos pacientes. Como pode-se perceber, muitas vezes os in-
ternados formavam outras visibilidades a partir de tal dis-
curso e a proposta de reabilitação por meio do trabalho pas-
sava a ser percebida de formas que escapavam do controle

17
Apud BORGES, 2006, p. 139.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 297
médico. Nesta perspectiva, em alguns casos, a proposta do
Centro Agrícola não foi entendida como possibilidade de
cura e sim como exploração. Alguns pacientes reclamavam
da dura jornada de trabalho e da série de normas a que eram
submetidos, mostrando, que nem todos estavam de pleno
acordo com a referida proposta. Tais falas, por vezes indig-
nadas, podem ser apreendidas nos registros deixados por
alguns internados na documentação institucional. Como
exemplo cabe citar a anotação deixada pelo paciente A.:

eu vos comunico que estou aguardando alta, que já faz um


ano que estou hospitalizado sem ser doente, e se meu tra-
tamento é o trabalho então eu o farei em casa, que em meu
lar também tenho trabalho.18

A fala de A. interpela a coerência do discurso médico,


descosturando a teia que procurava ligar a cura à capacidade
de trabalhar. Subvertendo a lógica psiquiátrica o internado
parece desnaturalizar a suposta coerência da trama discursi-
va que passa a instituir os sujeitos trabalhadores de Itapuã.
O discurso do paciente inverte a lógica médica, pois se sua
cura estava relacionada a seu trabalho, este poderia ser reali-
zado fora do hospital, até mesmo em sua própria casa, sem
a necessidade do internamento.
A reverberação da trama discursiva que institui os
sujeitos reabilitáveis possibilitou que alguns internados se
percebessem por meio deste novo discurso. Contudo, ocu-
pando tal posição de sujeito, alguns pacientes passaram a
questionar a proposta da instituição. Neste sentido, alguns
reclamavam que apesar de serem considerados trabalhado-
res, não recebiam dinheiro por seu trabalho.19 Nada mais

18
HOSPITAL COLÔNIA ITAPUÃ, 28 ago. 1973.
19
Cabe salientar que o dinheiro para as gratificações dos pacientes
era retirado da própria produção: “o produto do trabalho de nossos

298 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


justo, porém nada mais complicado. O hospital não possuía
verba para remunerar todos os internados. Se para o dis-
curso médico a importância do trabalho estava no processo
de realização das atividades, o qual supostamente resgataria
os vínculos sociais dos internados levando a esperada cura,
para alguns pacientes a ausência de remuneração regular
tornava-se algo quase incompreensível. Diante deste im-
passe, tem-se a configuração de uma imagem sombria que
passa a ligar a proposta de tratamento à exploração, confor-
me o registro de um dos pacientes: “eu estou baixado a mais
de um ano neste hospital e o meu tratamento é trabalhar de
graça, e permanecer trancado nos pavilhões”.20
Somente recebiam dinheiro aqueles que trabalha-
vam na área 3, último estágio do internamento, denomina-
do também de trabalho a terceiros, visto que os pacientes
eram, em sua maioria, contratados pelos proprietários das
pequenas propriedades agrícolas que circundavam o hospi-
tal. Contudo, estes ainda permaneciam como internados,
voltando a instituição para dormir. À espera da alta muitos
já se percebiam como sujeitos trabalhadores, reabilitados,
prontos para voltar ao convívio social e, diante desta nova
imagem de si, se questionavam se deveriam obedecer ao pa-
trão ou ao psiquiatra, conforme pode ser percebido neste
registro:

O paciente D. discutiu muito hoje pela manhã dizendo que


o Dr. [...] não manda nele porque o doutor não paga ele se-

pacientes na lavoura teria a finalidade de abastecer os hospitais manti-


dos pelo Estado. A verba destinada a esta despesa seria usada para pa-
gamento dos pacientes e manutenção do CAR (Centro Agrícola de
Reabilitação)”. CONCEIÇÃO, C. D. et al. Um Centro de Reabilitação
de Doentes Mentais Crônicos: comunicação preliminar. In: JORNADA
SUL RIOGRANDENSE DE Psiquiatria DINÂMICA, 6., 1972, Pelotas.
Anais... Pelotas: [s.n.], 1972 apud BORGES, 2006, p. 98.
20
HOSPITAL COLÔNIA ITAPUÃ, 27 set. 1973.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 299
manal e que quem manda nele é o seu patrão, porque paga
todas as semanas ele e que segunda feira ia trabalhar [...].21

Instituindo sujeitos trabalhadores, a proposta do


Centro não conseguia afastar a ideia do trabalho como mer-
cadoria. Tal percepção é inerente à proposta de reabilitação
por meio do trabalho, tecendo dizibilidades e visibilidades
conflitantes, as quais, muitas vezes, contradiziam a nova
imagem de si formada pelos pacientes diante da reverbera-
ção do discurso médico, ou seja, eles eram trabalhadores,
mas nada recebiam em troca de seu trabalho.
Cabe ainda apontar que alguns destes senhores, ainda
hoje, percebem-se pelo trabalho que realizaram, ou que ain-
da julgam realizar dentro da instituição. G., por exemplo,
sempre que vê uma pessoa conhecida, imediatamente relata
todas as atividades realizadas até aquele momento. Em sua
entrevista, ele fez questão de dizer tudo o que já havia feito
durante os seus 25 anos de internamento:

Eu trabaiei em várias coisa, no almoxarifado, em cozinha,


trabalhei na manutenção, carregava botijões, carregava bri-
ta, trabaiava em bota poste no chão [...] fazia arroz na cozi-
nha, trabalhava lá, [...] mexia os panelão, tudo eu fazia isso.

Cito ainda outro paciente, R., o qual ficava sentado
diariamente num banco em frente a um dos prédios do hos-
pital-colônia. Certa vez, ele me informou que não estava
descansando, e sim trabalhando, pois acreditava ser guarda
da instituição e sua função era vigiar o referido prédio.
A partir da década de 1980, os sujeitos que permane-
ceram no Centro foram considerados inaptos para reabili-
tação:

21
HOSPITAL COLÔNIA ITAPUÃ, 02 set. 1972.

300 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


a idade avançada da maioria, a doença crônica incurável que
requer tratamento ininterrupto e a ausência de suporte fa-
miliar consistente acaba impossibilitando a reintegração à
sociedade [e] caracterizam a UIP como área asilar.22

Institui-se, portanto, uma nova posição de sujeito


que constitui os internados remanescentes como incuráveis,
condenados à vida asilar. Diante de tal discurso, a imagem
que se configura mostra apenas as feições de velho hospício,
semelhante a tantos outros existentes no Brasil, aguardan-
do pacientemente um novo destino, esperando que a morte
forneça alta a cerca de 84 pacientes que ainda hoje habitam
a referida instituição.

Considerações finais

Procurei mostrar ao leitor que os homens que pas-


saram a habitar o Centro Agrícola de Reabilitação nem
sempre foram pensados como sujeitos aptos ao trabalho,
ou mesmo como sujeitos aptos à reabilitação. Contudo,
a partir de 1972, com a criação do Centro Agrícola de
Reabilitação, alguns destes senhores antes internados no
Hospital Psiquiátrico São Pedro, passaram a ocupar tal po-
sição de sujeitos, desenhados como trabalhadores suscetí-
veis de cura pelo discurso médico.
Problematizando a trama discursiva que apresentei ao
leitor neste estudo, objetivei demonstrar que os senhores
que passaram a habitar o Centro Agrícola de Reabilitação,
são resultado final de práticas discursivas e não discursivas,
responsáveis por instituir uma nova imagem a respeito da

22
Conforme o “Histórico do Centro Agrícola de Reabilitação” (1991),
no início da década de 1990 a instituição passou a se chamar Unidade
de Internamento Psiquiátrico (UIP), ligando-se administrativamente ao
Hospital Colônia Itapuã. 12.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 301
loucura, são resultado de um discurso que os instituiu como
trabalhadores, como reabilitáveis. Este novo discurso médi-
co propõe novas características a determinados pacientes do
São Pedro, as quais passam a ser elencadas para definir os no-
vos sujeitos instituídos. Os selecionados para o tratamento
na nova Colônia passam a não ser mais percebidos somente
como loucos, responsáveis por superlotar o grande nosocô-
mio gaúcho, mas também, e principalmente, como trabalha-
dores dóceis, ou melhor, sujeitos tranquilos, mansos.
A reverberação de tal discurso pelos internados en-
trelaça-se de diferentes formas a esta tessitura discursiva.
Muitos pacientes passaram a ocupar a nova posição de su-
jeito que a Psiquiatria lhes conferia naquele momento, e to-
mados por esta perspectiva, não se percebiam mais como
pacientes, e sim como trabalhadores. As práticas discursivas
e não discursivas reverberaram de diferentes formas sob os
sujeitos instituídos, variam em suas nuances desenhando
acontecimentos que variaram em sua intensidade: da aceita-
ção total ao questionamento, da esperança ao suicídio.
Objetivei, portanto, problematizar o emaranhado
discursivo que procurou definir quem eram (ou quem de-
veriam ser) os pacientes da última colônia agrícola gaúcha.
Tal exercício interpretativo não é simples, afinal, nós, histo-
riadores, temos muita dificuldade em pensar o sujeito como
um exercício, como uma função que se exerce numa ação,
num discurso, como algo que não esteja pronto no início
da ação, que não venha antes do discurso, mas que seja seu
resultado final.23 Propondo tal análise, busquei na trama de
discursos que perpassa a instituição, perceber o modo como
os loucos do São Pedro tornaram-se os trabalhadores aptos

23
ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. A história em jogo: a atua-
ção de Michel Foucault no campo da historiografia. Anos 90. Revista do
Programa de Pós-Graduação em história da UFRGS, Porto Alegre, v. 11,
n. 19/20, p. 94, jan./dez. 2004.

302 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


à reabilitação do Centro Agrícola gaúcho, pensado estes
como resultados das práticas discursivas e não discursivas
que procuraram defini-los como sujeitos.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 303
referências

ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. História a arte de inventar


o passado. São Paulo: Edusc, 2007.

ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. de. A história em jogo: a atua-


ção de Michel Foucault no campo da historiografia. Anos 90. Revista
do Programa de Pós-Graduação em história da UFRGS, Porto Ale-
gre, v. 11, n. 19/20, p. 79-100, jan./dez. 2004.

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304 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


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gate, Revista de Cultura, Campinas, SP, n. 5, p. 28, 1993.

“Quem senta na pedra fica doente...”


• 305
Capítulo 10

a cura em saúde mental:


história e perspectivas atuais

Vládia Jucá1

O tema que vamos abordar em seguida – a cura –


tem sido pouco discutido na saúde mental.2 Em parte, po-
demos entender essa lacuna pelo significado que o termo
adquiriu na língua portuguesa, na qual o mesmo se tor-
nou fortemente associado às noções de solução absoluta
ou retorno à normalidade. Além da questão semântica, ou-
tro agravante para o silêncio sobre o termo diz respeito a
questões epistemológicas e técnicas, em função do modo
pelo qual a loucura foi concebida e tratada pela medici-
na e pela psicologia desde a invenção desses saberes até
um tempo bem recente. Nesse sentido, deve-se notar, por

1
Psicóloga, doutora em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia
e professora do departamento de psicologia da Universidade Federal do
Ceará.
2
Uma exceção importante é o texto de TEIXEIRA, M. Algumas refle-
xões sobre o conceito de cura em Psiquiatria. Cadernos IPUB: por uma
Assistência Psiquiátrica em Transformação, Rio de Janeiro, n. 3, p. 85-94,
1999. O autor traz, em seu texto, também uma perspectiva histórica e nos
incita a refletir acerca do tema.

A cura em saúde mental • 307


exemplo, o fato de que a assistência nesse campo foi, du-
rante séculos, muito mais produtora de cronificação do
que promotora de novas possibilidades existenciais para o
sujeito que padece com o sofrimento que desorganiza sua
vida e corrói seus laços sociais.
Ao eleger a cura como tema, é importante explicitar-
mos que um pressuposto que adotamos é a impossibilidade
de abordá-la como um elemento isolado. Só é possível pen-
sá-la, atentando para sua inserção em uma rede semântica,
conceito utilizado por Byron Good3 para indicar a interco-
nexão existente entre as noções de saúde/doença/tratamen-
to/cura, associadas a partir de um determinado contexto
cultural.
O caminho que seguiremos nesse escrito não nos
levará a formulação de um conceito de cura. A proposta
é analisar como tal noção foi pensada (de modo implícito
ou explícito), ao longo da história, na saúde mental. Ao
final, lançaremos apenas o que categorizamos como algu-
mas pistas para a elaboração de uma nova concepção de
cura em saúde mental mais afinada com as diretrizes ético-
políticas traçadas pela reforma psiquiátrica. Consideramos
de extrema pertinência colocar em pauta essa discussão no
momento atual, no qual proliferam tentativas de ofertar
não apenas uma assistência mais digna, mas de transfor-
mar o lugar culturalmente reservado para o dito louco.
Nesse sentido, concordamos com Bezerra4 quando o au-
tor afirma que:
qualquer proposta de transformação da assistência com um
todo tem suposta, pressuposta, debatida ou não, algumas

3
GOOD, B. Medicine, and Experience: an Anthropological Perspective.
New York: Cambridge University Press, 1994.
4
BEZERRA, B. A clínica e a reabilitação psicossocial. In: PITTA, A.
(Org.) Reabilitação psicossocial no Brasil. 2. ed. São Paulo: HUCITEC,
2001. p. 139.

308 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


noções básicas sobre o que é o sujeito, o que é a interação
humana, sobre o que é um sintoma ou se não quiserem
sintoma, sobre o que é o sofrimento, sobre o que é tera-
pêutico, sobre o que é cura, enfim, várias dessas noções.5

Pinel: o tratamento moral e a cura

Apesar da forte associação entre cura e restabeleci-


mento de um estado anterior, ao realizarmos um resgate
etimológico do termo cura, encontramos outra possibi-
lidade de significação para o mesmo. A origem da palavra
reside no radical cur derivado do latim curae que signifi-
ca cuidado, preocupação, direção, administração, curatela
(em linguagem jurídica), cuidado, tratamento (em lingua-
gem médica), guarda, vigia, intendente, superintendente,
objeto ou causa de cuidados e preocupações, amor ou ob-
jeto amado.6 Assim, curar é também cuidar ou ocupar-se
de alguém.
O cuidado dedicado ao portador de transtorno men-
tal passou por importantes transformações ao longo do
tempo. Transformações no tocante ao modo de interpretar
a loucura, de tratá-la e de definir os objetivos desse trata-
mento. É importante lembrarmos, inclusive, que antes de
ser uma questão médica, a loucura foi (e continua a ser)
um problema social para o qual respostas diversas foram
criadas; algumas dessas respostas estão muito bem apresen-
tadas na obra clássica de Foucault, a História da Loucura,
como a famosa “Nau dos Loucos”; embarcação que retirava
os insanos que perambulavam pelas ruas das cidades e os
lançava a própria sorte:

5
HOUAISS, A.; VILLAR, M.; FRANCO, F. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
6
FOUCAULT, M. A história da loucura. 3. ed. São Paulo: Perspectiva,
1993. p. 12. Destaque nosso.

A cura em saúde mental • 309


confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele
ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é
ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de
sua própria partida. Mas isso a água acrescenta a massa obscu-
ra de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais do
que isso, ela purifica. Além do mais entrega o homem à incer-
teza da sorte: nela cada um é confiado ao seu próprio destino,
todo embarque é, potencialmente, o último.7

No século XVII, aconteceu o que Foucault chamou


de a grande internação. No entanto, essa internação não se-
guia critérios médicos stricto sensu nem reservava um lugar
particular para os loucos. Ela era sustentada por motivos
que diziam respeito essencialmente à necessidade de fazer
uma assepsia das cidades, além de gerar uma mão-de-obra
que produzia gratuitamente. O marco dessa prática, ainda de
acordo com o autor, foi o Hospital Geral (criado em Paris,
em 1656) que passou a abrigar toda uma gama de miseráveis
– loucos, prostitutas, mendigos, portadores de sífilis, entre
outros. Foi apenas em meados do século XVIII que o asilo
se tornou um espaço exclusivo para os loucos – tratados
doravante por meio do saber psiquiátrico (que nascia com
seu objeto de estudo e intervenção). Até este período, os
cuidados destinados a estes não pertenciam à medicina nem
o hospital era o espaço mais adequado para sua realização.
Como no caso de outras enfermidades, a família constituía
o lugar natural em que os tratamentos deviam acontecer e
as intervenções obedeciam aos princípios gerais da medici-
na clássica. Segundo Foucault, foi justamente a era clássica
que deu à noção de cura seu pleno sentido. No entanto, é
preciso observar que se trata de uma cura em que os pro-

7
FOUCAULT, 1993, p. 474.

310 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


tagonistas não são nem o médico, nem a medicação, nem
tampouco o doente. A cura é um possível desdobramento
do curso natural da doença, assim como a morte.
A grande virada no sentido de tornar a loucura um
objeto de saber e de intervenção médica contou com um
personagem que se tornou ilustre – Philippe Pinel. O médi-
co francês iniciou um trabalho de reforma asilar em Bicêtre,
continuado na Salpêtrière, no qual separava os loucos dos
outros excluídos e arrancava das correntes os que viviam
contidos, por meio de um ato humanitário, mas também ex-
tremamente disciplinar. No lugar de se conter a loucura pela
força, teve início o trabalho de regrá-la através da introjeção
de normas de conduta social, mediante um regime de re-
compensas e punições. A cura, almejada por Pinel, obedecia
antes de tudo a uma norma moral: “O que constitui a cura,
para Pinel, é sua estabilização num tipo social moralmente
reconhecido e aprovado”.8
Neste momento, é importante acentuar que, para o
alienismo francês, do qual Pinel foi um dos principais ex-
poentes, as doenças mentais eram passíveis de cura. Este
olhar sobre a história nos convida a romper com uma lei-
tura atemporal e descontextualizada da problemática da
cura no campo psiquiátrico, sendo fundamental observar
que, apesar das variações temporais e culturais, tal pro-
blemática já nasce atrelada a outra questão: a existência
ou não de lesões que funcionem como base orgânica das
doenças mentais. Para Pinel, se era possível localizar nos
idiotismos congênitos, uma má-formação crânio-encefá-
lica, nas outras formas de doença mental, alterações desta
ordem não eram visíveis.
Pinel concluiu, portanto, que era provável que, na
imensa maioria dos casos

BECHERIE, P. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber


8

psiquiátrico. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. p. 44.

A cura em saúde mental • 311


a loucura estava isenta de lesões materiais do cérebro. Essa
tomada de posição teve uma primeira consequência: forne-
cer à ideia da curabilidade da loucura uma base teórica; o
cérebro não era atingido, e apenas a mente estava perturba-
da em seu funcionamento, pelo menos no tocante à mania
e à melancolia não complicada.9

Pinel foi anterior ao movimento anátomo-patológico


iniciado por Bichat (por uma diferença de menos de dez
anos) e inaugurou, simultaneamente com a Psiquiatria, uma
leitura que, de certo modo, preparava o modelo que seria
dominante na clínica moderna (pautado no olhar e na des-
crição dos sintomas), mas que, por outro lado, distanciava-
se da clínica que surgirá então. Nesta nova clínica o olhar
deve ser dotado de profundidade e adentrar o corpo até en-
contrar as lesões tissulares nele presentes.
As correntes psiquiátricas que vieram após Pinel ti-
veram que enfrentar a querela que marcara o surgimento
do próprio campo (uma clínica do olhar que nem sempre
encontra lesões que expliquem as patologias manifestas).
De modo geral, as hipóteses condizentes com os princípios
de Bichat, se nunca foram completamente comprovadas na
Psiquiatria, paradoxalmente, ganharam força no decorrer
do tempo. A percepção de que haveria algum tipo de desvio
biológico, por mais que não tenha sido precisamente de-
terminado, tornou-se um elemento estruturante da cultura
psiquiátrica e desde a década de 80 ganhou uma força im-
pressionante com o fortalecimento da Psiquiatria Biológica
com forte apoio da indústria farmacêutica.
No decorrer do século XIX, encontramos sutis al-
terações no saber e prática psiquiátricas. Por um lado, ga-

9
FOUCAULT, 1993, p. 512.

312 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


nharam raízes algumas das sementes lançadas no período
anterior que delinearam a percepção da loucura como uma
“espécie de infância cronológica e social, psicológica e or-
gânica do homem”.10 Para lidar com este homem infanti-
lizado, ao lado da Psiquiatria, surge a Psicologia positiva,
erguida sob o paradoxo de definir o normal sempre por
meio do patológico. Por outro lado, nasce ainda no século
XIX, a Psicanálise. Com ela, surge uma nova compreensão
do normal e do patológico e, por consequência, uma forma
diferenciada de abordar a loucura, em que os delírios passa-
riam a merecer escuta.

As contribuições da Psicanálise

Com Freud, o normal e o patológico passam a con-


viver intimamente, como duas faces indissociáveis de uma
mesma moeda. Tal compreensão se faz presente, por exem-
plo, na Psicopatologia da Vida Cotidiana e nos Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade.11 No primeiro, Freud, a partir
da análise de pequenos atos falhos e lapsos que cometemos
no nosso cotidiano, demonstra que o patológico está inti-
mamente entrelaçado com o que supomos ser nossa nor-
malidade. Por sua vez, nos Três Ensaios, estudando práticas
e fantasias sexuais reconhecidas pela cultura e pela ciência
de sua época como desvios ou perversões, Freud verifica que
a sexualidade humana implica no rompimento com os ins-
tintos naturais. Freud afasta-se da conotação moral e pas-
10
FREUD, S. Psicopatologia da vida cotidiana. In: ______. Obras comple-
tas. Rio de Janeiro: Imago, 1980c. (1901). (Edição Standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, VI); FREUD, S. Três
Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1980d. p. 117-230. (1905). (Edição Standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,VII).
11
FREUD, S. Análise terminável e interminável. In: ______. Obras comple-
tas. Rio de Janeiro: Imago, 1980a. p. 239-287. (1937). (Edição Standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, XXIII).

A cura em saúde mental • 313


sa a reconhecer nas perversões a existência de uma outra
versão de experiência sexual que não está inscrita na ordem
da natureza. Afinal, não nos relacionamos apenas com fins
reprodutivos. Beijos, carícias, fetiches e todos os outros
elementos que compõe o cenário amoroso humano fazem
Freud reconsiderar o normal da sexualidade humana.
Considerando que o normal e o patológico não se co-
locam como par de opostos na Psicanálise, poderíamos nos
perguntar se seria possível, de algum modo, falar em doença
mental e mesmo em cura a partir da Psicanálise. Para Freud,
certamente existe o sofrimento mental, o qual caracteriza o
adoecimento no caso dos neuróticos por meio da intensifi-
cação de suas angústias e de suas inibições. Resta pensar se,
nestes casos, seria plausível vislumbrar alguma perspectiva
de cura. Este é um tema polêmico entre os próprios psicana-
listas, sendo um dos traços de diferenciação entre algumas
correntes. Freud, em Análise Terminável e Interminável,12
afirma que a expressão término de análise é ambígua e que,
por conseguinte, é necessário explorar seus sentidos a partir
de dois pontos de vista:

1) o ponto de vista prático, segundo o qual psicanalista e


analisando deixam de se encontrar quando o paciente pára
de sofrer excessivamente com seus sintomas;
2) o ponto de vista ambicioso, que corresponderia a levar o
paciente a um nível de normalidade absoluta.

No decorrer do artigo, Freud afirma ser possível, sim,


pensar no fim de análise, mas a partir do primeiro ponto de
vista. Essa opção nos convida a algumas reflexões. Em pri-
meiro lugar, a condição de que o paciente não esteja sofrendo
com os seus sintomas não implica necessariamente no desapa-

12
FREUD, 1980a, p. 268.

314 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


recimento dos mesmos. Em outros termos, o fim da análise
não se confunde com o controle ou com a total erradicação
dos sintomas. Não encontramos, deste modo, em Freud,
nenhuma promessa de restituir à sociedade, homens e mu-
lheres completamente normais ou assintomáticos. Se fosse
esta a finalidade da análise, Freud teria adotado a perspectiva
ambiciosa e apostado numa normalidade absoluta. No entan-
to, pensar na normalidade como o estado de pleno funciona-
mento psíquico seria demasiado arriscado, posto que: “um
ego-normal [...] é, como a normalidade em geral, uma ficção
ideal. O ego anormal, [...] infelizmente, não é ficção. Na ver-
dade, toda pessoa é apenas normal na média”.13
Um dos exemplos mais relevantes da subversão das
fronteiras entre o normal e o patológico pode ser encontrado
em um dos casos clínicos mais famosos apresentados por Freud
(1911): a análise do livro autobiográfico Memórias de um do-
ente dos nervos de Daniel Paul Schereber, no qual o autor des-
creve os pormenores de sua experiência psicótica e de como
a revelação final de estar predestinado a ser a mulher de Deus
dava sentido à sua vida. A partir desse testemunho, Freud sus-
tenta a hipótese de que o delírio psicótico pode ser estabiliza-
dor e que o mesmo constitui-se numa tentativa de restabeleci-
mento, não sendo mero signo da patologia, como costuma ser
interpretado na nosologia psiquiátrica: “a formação delirante,
que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma
tentativa de restabelecimento, um processo de construção”.14
Além da qualificação do delírio como estabilizador (mesmo
13
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um
caso de paranoia. In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago,
1980b. p. 94-95. (1911). (Edição Standard brasileira das obras psicológi-
cas completas de Sigmund Freud, XII).
14
SOURNIA, J. C. L’Explosion du Savoir et des Techiniques. In:
______. Histoire de la Médicine. Paris: La Découvert, 1992. p. 278-334;
TUBIANA, M. Des Difficultés Psychologiques aux Désordres Mentaux
et a l’Étique Médicale. In: ______. Histoire de la Pensée Médicale: les
Chemins d’Esculape. Paris: Flammarion, 1995. p. 349-438.

A cura em saúde mental • 315


que se trate de uma tentativa malsucedida), a própria ideia de
estabilização vai se tornar um termo-chave da semântica psica-
nalítica, expandindo-se para o campo da saúde mental.
A Psicanálise, que terá importantes desdobramentos
após Freud, deixa-nos alguns pontos de reflexão importantes
no âmbito dessa discussão: 1) não existe uma fronteira rígida
entre o normal e o patológico; 2) a ideia de cura é substitu-
ída pela problematização do que seria o término da análise,
evitando-se assim uma associação entre o fim do tratamento
e uma solução definitiva para o sofrimento mental; 3) o fim
do tratamento não implica numa erradicação dos sintomas;
4) não existe um fim absoluto – há sempre uma possibilidade
de retorno ao processo analítico; 5) nos casos de psicose, o
fim do tratamento será redefinido a partir da ideia de estabi-
lização pelo delírio. É importante destacar que sobre o trata-
mento da psicose, esse será um tema de interesse maior para
pós-freudianos do que para o pai da Psicanálise propriamente
dito. Apesar das considerações traçadas em sua obra sobre a
psicose, Freud apresentava uma série de reticências sobre a
possibilidade de aplicar a técnica por ele desenvolvida com os
acometidos por essa forma de sofrimento.

O século XX e o refinamento
técnico da Psiquiatria

Em termos de Psiquiatria propriamente dita, grandes


mudanças apareceram no século XX. Vale lembrar três mo-
mentos importantes: a disseminação dos eletrochoques nas
décadas de 40 e 50; o uso abusivo da lobotomia durante a
década de 50, e o surgimento dos neurolépticos em 52, os
quais diminuíram consideravelmente o uso das duas técni-
cas anteriores.15

15
TUBIANA, 1995.

316 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


O uso da medicação teve um papel de extrema relevân-
cia, pois, com seu advento, foi possível passar de uma con-
tenção física para outra de ordem química. Se, por um lado,
essa mutação trouxe novos problemas e sofrimentos para os
que passaram a sofrer os impactos dos efeitos colaterais, por
outro lado, foi intensificada a possibilidade de se pensar na
reinserção do sujeito que se encontrava num estado de exclu-
são intensa. Por sua relevância, vamos traçar algumas consi-
derações sobre a medicação e seus efeitos na saúde mental.
Em 1952, Henri Laborit descobre, no laborató-
rio Rhône-Poulene, o primeiro neuroléptico, por aca-
so. Segundo autores como Sournia (1992) e, Ginest e
Kapsambelis (1995), a descoberta ocorreu quando Laborit
desenvolvia uma substância que deveria funcionar como
pré-anestésico. Na versão de Tubiana (1995), o cientista
testava um antialérgico para a anestesia. Encontramos ainda
a leitura de Zarifian (1995) que nos diz ter sido o achado
possível por meio das tentativas de Laborit de melhorar as
condições de anestesia de seus pacientes, ministrando-lhes
diversos coquetéis medicamentosos. Pequenas divergências
históricas à parte, o fato é que Laborit se deparou, em suas
pesquisas, com uma substância denominada clorpromazina
que provocava, nos sujeitos que a recebiam, um estado de
sedação. Um estudo feito no Hospital Saint-Anne, condu-
zido por Jean Delay e sua equipe, na qual se destacava Pierre
Deniker, demonstrou a efetividade da droga para controlar
agitação, delírios e estados alucinatórios. Os neurolépticos,
nos quais a clorpromazina era a substância essencial, torna-
ram-se rapidamente conhecidos na França e no restante da
Europa, demorando um pouco mais para serem incorpora-
dos pela cultural médica norte-americana que, naquele perí-
odo, encontrava-se impactada pela difusão da Psicanálise.16

ZARIFIAN, E. Les Limites d’une Conquête. La Recherche: Les


16

Mèdicaments de l’Esprit, Paris, p. 74-78, oct. 1995. Segundo Ginest e

A cura em saúde mental • 317


De qualquer modo, os neurolépticos, assim batizados pelos
seus inventores pelo poder de prend les nerfs, ou seja, de
prender os nervos,17 acabam ganhando terreno e substituin-
do, em grande parte, as outras técnicas.
Os neurolépticos fazem parte das drogas denomina-
das como psicotrópicos, compreendidas como substâncias
que, agindo sobre o cérebro, têm o poder de modificar as
funções psíquicas ou o comportamento. Além dos neuro-
lépticos, fazem parte dos psicotrópicos, os seguintes medi-
camentos do espírito:18

os ansiolíticos, os antidepressivos e os reguladores do hu-


mor (em destaque o lítio), os quais foram desenvolvidos,
em sua maioria, entre as décadas de 50 e 60. Além da clor-
promazina, podemos destacar, por exemplo, o surgimento
de antidepressivos derivados de anti-histamínicos (antia-
lérgicos), em 1957, e a descoberta do efeito do lítio como
estabilizador do humor, na década de 60.19

A Psiquiatria, com a descoberta de tais medicamentos


assume, desde a década de 50, uma direção contrária com
relação a outras especialidades clínicas: “ela possui os me-
dicamentos, mas não possui ainda o diagnóstico no sentido

Kapsambelis, os neurolépticos foram inicialmente denominados de “gân-


glios basais”. O batismo aconteceu em função dos efeitos colaterais por
eles produzidos, caracterizados como a “síndrome extrapiramidal”, que se
subdivide em três categorias: mal de Parkinson, movimentos involuntários
(disquineias agudas) e a impaciência (hiperquinese). Assim, surgiu a hipó-
tese de que os neurolépticos atuavam sobre os gânglios basais. Depois, pelo
mesmo motivo, tais drogas passaram a ser denominadas de ganglioplégi-
cos, posteriormente, neurolíticos, neuroplégicos e, finalmente, neurolépti-
cos, do grego leptikos, ou seja, “que prende”, no caso, os nervos. GINEST,
D.; KAPSAMBELIS, V. Des Médicaments pour la Folie. La Recherche: Les
Mèdicaments de l’Esprit,Paris, p. 78-84, oct. 1995.
17
ZARIFIAN, 1995.
18
SOURNIA, 1992.
19
ZARIFIAN, 1995, p. 75. Tradução nossa.

318 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


médico do termo”.20 Ou seja, a Psiquiatria, com o avanço
da Psicofarmacologia, encontrou formas de controle dos
sintomas, mas nunca conseguiu se enquadrar por comple-
to no modelo de medicina científica ocidental baseada na
anatomia e na fisiologia. Segundo este modelo, é necessário
localizar no corpo, as lesões ou disfunções que justificam a
doença. A Psiquiatria nunca realizou este projeto de cien-
tificidade, não obstante os esforços neste sentido existam
até hoje. Na prática, no entanto, a terapia medicamentosa,
na Psiquiatria, precede a identificação geográfica da doença
no corpo e, muitas vezes, precede mesmo a clareza diagnós-
tica, pois, nem todos os casos são facilmente enquadráveis
nas inúmeras patologias descritas na nosologia do DSM-IV
(Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders –
Fourth Edition).
O uso das medicações psiquiátricas, em ampla escala,
coloca alguns pressupostos da Psiquiatria em evidência. Um
desses pressupostos reforça justamente o modelo da medi-
cina moderna, não obstante a doença mental se constitua
como um objeto que resiste a uma abordagem estritamente
biológica. O pressuposto em questão seria o de que a doença
mental envolve distúrbios neuro-químicos. Existe um tipo
de materialismo químico21 que é colocado em jogo quando
refletimos sobre os motivos pelos quais a medicação psiquiá-
trica é efetiva em inúmeros casos. O problema que podemos
levantar acerca deste pressuposto é: com ele, não apenas se
estabelece uma correlação entre processos mentais e orgâni-
cos (o que nos parece legítimo e merecedor de mais aprofun-
damento), mas cria-se uma hierarquia entre corpo e mente,
em que o primeiro funciona como causa de tudo aquilo que
se passa na vida mental. Segundo Widlocher:

20
SOURNIA, 1992.
21
WIDLOCHER, D. Le Cerveau et laVie Mentale. La Recherche: Les
Mèdicaments de l’Esprit, Paris, p. 102, oct.1995.

A cura em saúde mental • 319


O essencial é admitir que a todo evento mental correspon-
da um evento fisiológico. Num dado instante, um estado
mental exprime um certo estado cerebral. Nós podemos
dizer que o estado cerebral determina o estado mental na
medida em que lhe produz [...] A prescrição de um psico-
trópico determina uma mudança do estado cerebral e seu
efeito clínico realiza uma modificação do estado mental.
O erro que cometem o neurobiologista “reducionista” e
o psicogeneticista “puro” é o de não perceberem que a re-
cíproca é necessariamente verdadeira. Uma mudança do
estado mental deve ser acompanhada de uma mudança do
estado cerebral.

De qualquer modo, no caso da saúde mental, duran-


te anos, os psiquiatras se contentaram com o que podiam
fazer: controlar provisoriamente os sintomas de seus pa-
cientes com o uso das medicações disponíveis no mercado
farmacológico. Apenas para ilustrar, vejamos o que infor-
ma o vocabulário médico Medterms, no caso da esquizo-
frenia:

As medicações antipsicóticas (também chamadas de neuro-


lépticos) tem estado disponíveis desde meados da década de
50. As drogas antipsicóticas são o melhor tratamento dis-
ponível na atualidade, mas elas não “curam” a esquizofrenia
nem garantem que não haverá novos episódios psicóticos.22

Outra referência com relação às possibilidades de in-


tervenção em casos de esquizofrenia, que segue na mesma
direção apontada pelo Medterms, é assinalada por Oliveira:
“infelizmente, os neurolépticos apenas aliviam a intensidade
dos sintomas esquizofrênicos, sendo incapazes de curar tais

22
SCHIZOPHRENIA. In: MEDTERMS. Disponível em: <http://www.
medterms.com>. Acesso em: 03 jul. 2001.

320 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


pacientes”.23 Para alguns profissionais o controle medica-
mentoso é tudo, ou quase tudo, que se pode conseguir. Para
outros, contudo, trata-se de um ganho provisório, enquan-
to a cura propriamente dita ainda permanece no horizonte
dos possíveis, cada vez mais tangível graças aos avanços das
neurociências ou ainda por meio do avanço da genética.
Nesse sentido, é fundamental considerarmos que,
na segunda metade do século XX, mais especificamente, a
partir da década de 80 assistimos a um fortalecimento da
Psiquiatria Biológica que teve repercussões importantes na
classificação das doenças e na retomada das expectativas em
torno de uma cura pautada no modelo de identificação da
patologia no corpo e, por meio desse mapeamento, a reti-
rada do mal. Isso é facilmente percebido pelo clima de oti-
mismo genético, frequentemente alimentado pelos meios de
comunicação de massa.24
Sobre o impacto em termos da classificação das do-
enças, observa-se uma mudança fundamental na tercei-
ra edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Transtornos Mentais), publicado pela American Psychological
Association. As duas primeiras edições seguiram uma orien-
tação psicanalítica, adotando como base a semiologia de-
senvolvida por essa corrente teórica. No DSM-III (1980)
e, posteriormente, no DSM-IV (1994), acontece uma clara
separação do discurso psicanalítico,25 sendo priorizadas in-
terpretações neuroquímicas da doença mental. Este movi-
mento de afirmação da Psiquiatria Biológica, que marca o
final do século XX, contribuiu, inclusive, para que a mor-

23
OLIVEIRA, I. Manual de psicofarmacologia clínica. Rio de Janeiro:
MEDSI, 1994. p. 73.
24
CONRAD, P. Genetic Optimism: Framing Genes and Mental Illness in
the News. Culture, Medicine and Psychiatry, Dordrecht, v. 25, n. 2, p.
225-247, June 2001.
25
HENNING, M. F. Neuroquímica da vida cotidiana. Cadernos IPUB,
Rio de Janeiro, v. 4, n. 18, p. 123-132, 2000.

A cura em saúde mental • 321


te da Psicanálise fosse constantemente anunciada. O DSM
passa então a trabalhar com uma perspectiva muito mais
sindrômica do que psicopatológica propriamente dita, ou
seja, descreve um conjunto de sintomas que deverão ser
medicados até que se descubra o que está fora da norma na
anatomia ou fisiologia cerebral.
Apesar das sérias implicações éticas do incremento
da Psiquiatria Biológica, não se pode negar que assistimos
nos últimos anos do século XX o surgimento de novas me-
dicações que podem ser extremamente úteis na implemen-
tação de uma nova assistência ao portador de sofrimento
mental. Trata-se das medicações atípicas, assim chamadas
por apresentarem um número menor de sintomas colate-
rais. Para entendermos a relevância desse fato, é importante
atentarmos para o seguinte fato: os sintomas colaterais das
medicações mais tradicionais provocavam, pelo menos, dois
efeitos, o mal-estar físico e o aumento da estigmatização,
haja vista que provocam reações que facilmente fazem com
que o sujeito seja identificado como alguém que toma re-
médio de louco.

Reforma psiquiátrica, cura e direção do tratamento

A mudança na assistência a qual fizemos referência


também teve início em meados do século XX, quando sur-
giram as primeiras iniciativas no sentido de transformar o
hospital psiquiátrico em um espaço mais humano e menos
cronificador. Compartilhando essa missão, apesar de suas
particularidades, alguns movimentos se destacaram, dentre
os quais, podemos citar: a comunidade terapêutica (1946),
na Inglaterra; bem como a Psiquiatria Institucional (1952)
e a Psiquiatria de Setor na França (final da década de 40 do
século XX). A Psiquiatria Preventiva nos Estados Unidos
(década de 60 do mesmo século) também teve relevância,

322 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


no entanto, seu diferencial foi ir além dos muros hospi-
talares, na tentativa de realizar a prevenção em termos de
saúde mental da população, o que levou a adoção de me-
didas moralizantes e higienistas. Nas experiências citadas
anteriormente, um movimento primeiro de alterar a ordem
hospitalar tornou-se mais evidenciado. No entanto, a rup-
tura maior acontece com Franco Basaglia que vem propor
mudanças epistemológicas, técnicas e culturais no modo de
se conceber e tratar o dito louco.26
Basaglia propõe substituir o tradicional modelo asi-
lar por outro que funcione como uma rede que possa pro-
mover a reinserção do sujeito portador de um sofrimento
mental maior na malha social. Essa perspectiva tem grande
influência no Brasil que inicia seu processo de reforma, por
meio do movimento dos trabalhadores de saúde mental,
na década de 70. Tal movimento nasce com o objetivo de
funcionar como lugar de debate e encaminhamento de pro-
postas para a renovação da assistência psiquiátrica e surge
em função das condições precárias e ameaças e violências às
quais se encontravam submetidos tanto os pacientes inter-
nos quanto os funcionários dos hospitais.
A partir principalmente da segunda metade da dé-
cada de 80,27 a reforma psiquiátrica é impulsionada graças
ao processo de redemocratização do país. Além da nova
carta constitucional de 1988, outros acontecimentos se-
rão marcantes nesse período, sendo importante destacar:
1) o surgimento da proposta do Sistema Único de Saúde;
2) a realização da primeira Conferência de Saúde Mental
(1987); 3) o nascimento do primeiro Centro de Atenção
Psicossocial (Caps Luis Cerqueira, em São Paulo) em
1989 e 4) a apresentação ao Congresso do projeto de lei

26
AMARANTE, P. Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE: ENSP, 1995.
(Coleção Panorama).
27
AMARANTE, 1995.

A cura em saúde mental • 323


de autoria de Paulo Delgado28 que propunha a substituição
progressiva dos hospitais psiquiátricos por uma rede de
outros dispositivos terapêuticos.
Apesar do surgimento do primeiro Caps ter ocorri-
do ainda na década de 80, esse momento é marcado pela
disseminação dos ambulatórios de saúde mental.29 Os am-
bulatórios surgem como uma tentativa de romper com a
cronificação resultante das sucessivas internações as quais
os usuários eram submetidos. Um diferencial desses ser-
viços era contar com uma equipe multidisciplinar, o que,
a princípio, promoveria uma ruptura com a concentração
de poder na figura do psiquiatra. O intuito, portanto, era
passar do discurso psiquiátrico para a construção de um cam-
po então emergente – o da saúde mental, que não pertencia
a um protagonista apenas, mas que deveria se configurar
como campo de negociação entre profissionais, usuários e
seus familiares. Como destacam Birman e Costa:

a Psiquiatria Clássica vem desenvolvendo uma crise tanto


teórica quanto prática, detonada principalmente pelo fato
de ocorrer mudança radical no seu objeto, que deixa de
ser o tratamento da doença mental para ser a promoção da
saúde mental.30

Fizemos essa breve incursão na reforma psiquiátrica


para contextualizar o momento no qual vivemos hoje, mar-
cado pela tentativa de fazer acontecer essa reforma, o que
nos defronta com alguns ganhos e outros tantos problemas
a serem resolvidos. Nesse cenário, a cura também precisa ser

28
Lei que foi sancionada, pelo presidente da república, apenas em 2001.
29
VASCONCELOS, E. M. Desinstitucionalização e interdiscipli-
naridade em saúde mental. Cadernos do IPUB: Saúde Mental e
Desinstitucionalização – Reinventando os Serviços, Rio de Janeiro, n. 7,
p. 17-39, 1997.
30
Apud AMARANTE, 1995, p. 21-22.

324 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


revista. Basaglia, nos primórdios da reforma italiana, lançou
o desafio de que, naquele momento, a doença mental fosse
colocada entre parênteses para que fosse resgatado o sujeito
com seu sofrimento multidimensional (pois é simultanea-
mente físico, psíquico e social). Hoje, é preciso repensar o
que compreendemos como saúde, doença, tratamento (ou
cuidado) e cura. Tal tarefa é certamente árdua, mas isso não
nos exime do compromisso de nos defrontarmos que tais
questões que podem fortalecer a criação de um novo ethos
na saúde mental.
A partir dessa reflexão, gostaria de lançar o que po-
deriam ser duas pistas para essa elaboração de uma compre-
ensão de cura mais arejada e adequada à saúde mental. A
primeira seria a de seguirmos a proposta de Teixeira de tor-
narmos tal noção menos avassaladora:

De certo modo, [a cura] perde um pouco seu sentido, na


medida em que cura, no senso comum médico, pressupõe
uma ação de restituo ad integrum, de intervenção sobre
algo que está funcionando de forma errada, para que volta
a funcionar de forma adequada. É contra essa implicação
determinista da idéia de cura que temos que nos haver,
ao lidar com uma problemática tão complexa quanto a
loucura.31

A segunda seria de considerarmos cura como cuida-


do. No entanto, não pode ser um cuidado sem rumo, pois,
do contrário, o mesmo se tornaria tão cronificador quando
aquele ofertado no modelo anterior, mesmo que mais hu-
manizado. É preciso que o tratamento tenha uma direção,
podemos afirmar, parafraseando um texto do psicanalista
pós-freudiana, Jacques Lacan32 no qual o mesmo, referindo-
31
TEIXEIRA, p. 92, 1999.
32
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In:

A cura em saúde mental • 325


se ao trabalho do analista, sustenta a ideia de que é necessá-
rio dirigir o tratamento, mesmo que não se dirija o pacien-
te. Isso implica a adoção de uma posição particular, na qual
não sabemos de antemão o caminho que cada um seguirá,
nem tampouco temos o domínio do que seria o bem do
portador de transtorno mental. Mesmo considerando que
Lacan tratava em seu texto de um trabalho muito especí-
fico, o do analista, acreditamos que a concepção de que o
tratamento tem uma direção e de que o profissional tem um
papel na construção dessa direção pode e deve ser aprovei-
tado no atual momento da reforma. Afinal, o tratamento
não é acéfalo; ele tem um percurso e aquele que se dispõe a
secretariar tal trajetória deve minimamente estar preparado
para construir possíveis vetores a serem seguidos durante a
mesma.

Considerações finais – ou preliminares?

Esperamos, ao longo do texto, termos propiciado ao


leitor uma viagem histórica, que certamente, privilegiou
alguns pontos de ancoragem, por meio da qual tentamos
apresentar a cura, na saúde mental, como um elemento con-
textualizado e que, portanto, só pode ser compreendido por
meio: da rede semântica na qual se inscreve; da teoria e do
solo epistemológico na qual se enraíza; e de questões sócio-
culturais com as quais se articula.
Ao longo do percurso feito, observamos que a cura
se coloca como um problema para a Psiquiatria desde seus
primórdios e, por vezes, aparece como pano de fundo não
explicitado no debate maior que envolve a etiologia do so-
frimento mental: problema resultante de conflitos psicodi-
nâmicos ou epifenômeno de uma disfunção da neuroquími-

______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 591-652.

326 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ca cerebral? Secularmente, estamos tão embaraçados com
essa questão (uma falsa questão, arriscamos afirmar) que o
debate em torno de noções relevantes como a cura é relega-
do ao esquecimento.
No cenário atual, com as tentativas de fazer valer a
reforma psiquiátrica, parece-nos imprescindível nos de-
frontar com o problema crucial que diz respeito aos objeti-
vos do tratamento: reinserir, reabilitar, desinstitucionalizar,
construir ou reconstruir laços sociais, o que queremos dizer
com tudo isso? Modelos diversos convergem para apontar
algumas possíveis direções do tratamento,33 mas todos de-
vem compartilhar do mesmo compromisso ético: o de curar
(ou cuidar) do paciente, com o objetivo de lhe abrir possi-
bilidades existenciais e minimizar o sofrimento e a solidão
vivenciados.
Tentamos fornecer alguns elementos para enriquecer
essa discussão; sem a pretensão de fechá-la, por sua comple-
xidade. Assim sendo, encerramos esse texto com considera-
ções muito mais preliminares do que finais, na expectativa
de que, ao reconstruirmos essa história, possamos contri-
buir para construção de novos rumos na saúde mental.

33
TENÓRIO, F. Da reforma psiquiátrica a clínica do sujeito. In: QUINET,
A. (Org). Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 121-131.

A cura em saúde mental • 327


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330 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Capítulo 11

um lugar (im)possível: narrativas


sobre o viver em espaços
de internamento

Yonissa Marmitt Wadi1

Poucos, dentre os vários sujeitos anônimos ou fa-


mosos, que foram internados e viveram curtos ou longos
períodos em asilos ou hospitais psiquiátricos, relataram em
escritos (na forma de bilhetes, cartas, poesias, diários, ro-
mances etc.), em imagens (desenhadas no que encontravam
pela frente, nas paredes das instituições, em telas ou papeis
oferecidos nas oficinas terapêuticas) ou mesmo por meio da
fala (capturada em gravações) suas experiências no interior
das instituições.
Alguns dos internos delinearam em seus escritos o
processo de sua enfermidade, os tratamentos buscados
(antes e depois da internação), seu encontro com as prá-
ticas e o poder médico; alguns outros se limitaram a rei-
vindicar sua condição de não louco, condição esta atestada

Doutora em História; professora do CCHS e dos programas de mestrado


1

em História e em Desenvolvimento Regional e Agronegócio – Unioeste;


bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Um lugar (im)possível • 331


por médicos psiquiatras (ou não) quando da internação
nas instituições; outros ainda rememoraram suas vidas até
o momento da internação, ora no sentido de defenderem-
se da acusação de serem loucos, ora acusando outrem (es-
pecialmente familiares, amantes, inimigos etc.) pela impu-
tação da loucura a eles dada.
Além destes aspectos mais comuns, outros aspectos
surpreendentes das experiências dos sujeitos no interior de
instituições manicomiais emergem das narrativas, ultrapas-
sando os majoritários relatos negativos, chocantes ou mes-
mo brutais sobre o tratamento asilar, suas dores e horrores.
Em algumas narrativas – mais raras ainda – tais instituições
emergem sob perspectivas que soam, a primeira vista, como
absurdas, considerada a configuração histórica das institui-
ções psiquiátricas como lugares de exclusão e violência: a
dos sujeitos que acreditaram encontrar nelas um lugar para
si (para morar, para trabalhar, para amar etc.) ou, por outro
lado, como um espaço de criação artística (incentivada ou
não pelos médicos).
Como afirma Canal,

Estos relatos fragmentarios que emergen en los expedien-


tes se acercan a una cierta presentación oficial de si en la
cual estos seres recluidos en el encierro se exhiben y mues-
tran, cual si el nombre y el cuerpo lograsen sustancia por el
peso de la letra y la vida comenzara a agitarlos. La palabra
escrita hace posible que el grito se articule en voz y la voz
se haga audible, al tiempo que toma la forma de una de-
manda precaria, de una exigencia que se disloca… de una
declaración sin más de sus odios y rencores, de sus amores,
sus culpas y resentimientos; de sus deseos y esperas… Un
reclamo insistente de justicia…2

2
CANAL, M. I. G. La relación médico-paciente en el Manicomio de
La Castañeda entre 1910-1920, tiempos de revolución. Nuevo Mundo

332 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


As lutas contemporâneas pelo fim dos manicômios,
aliadas ao incremento das pesquisas acadêmicas sobre a
emergência e desdobramentos históricos de uma forma de
tratamento da loucura apoiada em tais instituições, trouxe-
ram a tona com maior intensidade o terror e as misérias vi-
vidas pelos habitantes dos chamados “cemitérios de vivos”,3
denunciadas pelos internos de diferentes formas. Porém,
paradoxalmente,4 certas narrativas de internos mostram di-
mensões dos lugares de internamento que contrastam com
estas, ainda que possam ter sido formuladas em ambientes
em que parecia “que nada vivo podia vingar”.5
No mundo do hospício, alguns internos – conforme
indicam suas narrativas – enxergaram possibilidades novas,
que vão além de uma possível quebra dos sujeitos pela prática
psiquiátrica. Este olhar dos internos, expresso nas narrativas,
torna possível entrever algo que constantemente escapa a

Mundos Nuevos, Coloquios, 2008. 02 janv. 2008. Disponível em: <http://


nuevomundo.revues.org//index14422.html>. Acesso em: 19 fev. 2008.
3
BARRETO, A. H. de L. O cemitério dos vivos: memórias. São Paulo:
Brasiliense, 1956.
4
Por paradoxal entendo uma posição (ou opinião) que desafia o que é do-
minante, ortodoxo, contrário a tradição, o que no caso da história da
institucionalização da loucura ou da assistência psiquiátrica significa con-
temporaneamente a crítica ao saber e as práticas da Psiquiatria, à manu-
tenção de grandes instituições (hospícios ou manicômios). Assim, soa
como paradoxal a posição daqueles que vivendo dentro de tais institui-
ções como internos, sob os auspícios de certas terapêuticas psiquiátricas,
enxergam neste viver algo positivo. Se como diz Lancetti, ao apontar para
os dilemas que cercam o processo de desinstitucionalização, “a pragmáti-
ca da desconstrução manicomial é o reinado do paradoxo”. LANCETTI,
A. Loucura metódica. Saúde e loucura, São Paulo, n. 2, p. 139-147, 1990,
viver (e conviver) em instituições manicomiais é condição paradoxal
sempre, pois o “o manicômio, à diferença do que se acredita, não é um
usurpador, e sim, um produtor maciço de identidade do doente mental
e seus médicos”. (LANCETTI, 1990, p. 143). Assim, procurar compre-
ender os dilemas existenciais paradoxais dos que vivem a experiência da
loucura é condição sine qua non para toda e qualquer crítica ao que aí esta
e para a produção de algo novo, em termos de cuidados em saúde mental.
5
WAHBA, L. L. Camille Claudel: criação e loucura. Rio de Janeiro:
Record: Rosa dos Tempos, 1996. p. 104.

Um lugar (im)possível • 333


muitos – aos próprios especialistas das diversas ciências, dos
psiquiatras aos historiadores da loucura –, que acreditam ser
a loucura uma totalidade fora da história, constante univer-
sal, regularidade a-histórica. Permite compreender que toda
experiência, inclusive a da loucura, têm múltiplas dimensões
e temporalidades, elementos dispares, lógica incomum, cenas
e falas próprias, sendo constituinte de sujeitos. Ao olhar para
as experiências particulares, contextualizadas em situações
históricas precisas, torna-se possível perceber as questões de
vida envolvidas em cada história.
Neste capítulo, discuto estas dimensões paradoxais
do espaço manicomial, além de refletir sobre os processos
de construção de subjetividades nos lugares de interna-
mento, por meio de diferentes olhares lançados pelos su-
jeitos sobre sua experiência da internação. Com o intuito
de atingir estes objetivos analisei três conjuntos de fontes
documentais constituídos, em temporalidades diversas, a
partir da escritura ou fala de mulheres: cartas escritas pela
escultora francesa Camille Claudel no período de sua in-
ternação (1914-1943) no Hospício de Montdevergues, em
Montfavet, no sul da França; cartas escritas por uma cam-
ponesa brasileira interna no Hospício São Pedro de Porto
Alegre – Rio Grande do Sul – Brasil (1909-1911) e falas
transcritas de gravações realizadas com uma mulher – que
se intitulava doméstica –, que foi internada inicialmente no
Centro Psiquiátrico Pedro II (1962-1966) e depois na então
Colônia Juliano Moreira (1966-1992), ambos na cidade do
Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil.

Camille...

Camille Claudel, a genial escultora francesa foi redes-


coberta pelo cinema, pela literatura e mesmo pela história

334 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


na década de 1980, tornando-se conhecida de todos nós.6
Porém, como afirma a historiadora Maria Clementina P.
Cunha,

Não deixa de ser curioso que, apesar de sua obra vigorosa e


original, as primeiras credenciais com que [...] é apresenta-
da ao público sejam precisamente aquelas que dizem respei-
to aos homens ilustres com os quais ela manteve diferentes
tipos de relação ao longo de sua vida: Paul Claudel, seu
irmão; Auguste Rodin, de quem foi amante e companheira
de trabalho por muitos anos; Claude Debussy, com quem
manteve uma convivência amiga e afetuosa. O dado de que
tenha enlouquecido é também tomado como importante
e significativo, tornando-a uma personagem “maldita” e
fascinante.7

Para Cunha, a história de Camille

é a da dificuldade, compartilhada por muitas mulheres em


diferentes situações de vivenciar com sucesso escolhas que
se caracterizavam pela transgressão às normas socialmente
definidas.

Assim, a autora utiliza-se daquilo que visualiza na


vida de Camille como um rico material de reflexão: “rela-
tivo à experiência levada às últimas consequências de uma
vida à margem do padrão aceito socialmente como ‘bom’
6
Refiro-me aqui ao filme Camille Claudel, de Bruno Nuytten (França,
1988); a biografia Camille Claudel, uma mulher, de Anne Delbée (São
Paulo, Martins Fontes, 1988); ao livro Dossier Camille Claudel, de
Jacques Cassar (Paris, Librarie Séguier / Archimbaud, 1987); ao texto
“Loucura, gênero feminino: as mulheres do Juquery na São Paulo do iní-
cio do Século XX”, de Maria Clementina P. Cunha (Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 9, n.18, p. 121-144, ago./set. 1989); e ao já citado
livro de Wahba, entre outros.
7
CUNHA, 1989, p. 121.

Um lugar (im)possível • 335


para as mulheres de sua condição” no período em que vi-
veu. Ou seja, Camille uma jovem oriunda da “classe média,
apoiada nos rígidos padrões morais do período”, tornou-
se escultora (profissão tida como masculina), além de viver
“plenamente sua paixão amorosa por Rodin [um homem
casado], seu principal mestre no ofício, incentivador de seu
talento profissional e também seu primeiro amante”.8
Sem dúvida a abordagem proposta por Cunha é ins-
tigante e rica em possibilidades, porém – considerando as
proposições da autora como referentes fundamentais para
entender a trajetória de Camille –, debruço-me, neste texto,
sobre outros aspectos de sua vida, especialmente os rela-
tivos a seu olhar sobre as instituições de reclusão na qual
viveu, quiçá, aqueles que poderiam ser os anos mais ricos
de sua vida e ao processo de subjetivação9 vivido por ela
durante os longos anos de sua internação.
Com 49 anos, Camille foi internada, em 1913, no
manicômio de Ville-Évrard em Paris e, no ano seguin-

8
CUNHA, 1989, p. 122.
9
Entendo subjetivação na perspectiva de Michel Foucault, para
quem esta consiste em transpor a linha de força, ultrapassar o
saber-poder, curvar a força. Segundo Gilles Deleuze, é “[...] fazer
com que ela mesma se afete em vez de afetar outras forças: uma
dobra, segundo Foucault, uma relação da força consigo. Trata-se
de ‘duplicar’ a relação de forças, de uma relação consigo que nos
permita resistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem-se
contra o poder. [...] processos de subjetivação são inteiramente
variáveis, conforme as épocas, e se fazem segundo regras muito
diferentes. Eles são tanto mais variáveis já que a todo o momento
o poder não para de recuperá-los e de submetê-los às relações de
força, a menos que renasçam inventando novos modos, indefini-
damente [...]. Um processo de subjetivação, isto é, uma produção
de modo de existência [...], é um modo intensivo e não um sujei-
to pessoal. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia
ultrapassar o saber nem resistir ao poder”. DELEUZE, G. A vida
como obra de arte. In: ______. Conversações (1972-1990). São
Paulo: Ed. 34, 1998. p. 123.

336 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


te, transferida para o hospício de Montdevergues em
Montfavet (perto de Avignon, no sul da França), onde
morreu em 1943. Em sua longa internação nas institui-
ções francesas – trinta anos –, jamais se conformou com
o destino imposto a ela por sua família, referindo-se, em
suas cartas, ao que chamava “casas de loucos”, como “lu-
gares especialmente feitos para causarem sofrimento”,
onde não se podia fazer nada, “principalmente quando
nunca se vê ninguém”.10
Em cartas escritas ao longo de seu tempo de interna-
ção, comumente dirigidas à mãe ou ao irmão, o poeta Paul
Claudel, Camille implorava que a tirassem dos asilos de alie-
nados ou que ao menos a transferissem para mais perto de
casa, dizendo-se “desolada” por continuar a viver em luga-
res nos quais não se identificava mais como “uma criatura”,
mas sim como “um mero número de uma casa de saúde”.11
Afirmava desesperadamente que seu único desejo era ir em-
bora de um lugar em que “todos gritam, cantam, esgoelam-
se a plenos pulmões de manhã à noite e de noite à manhã”,
cheio de “criaturas cujos familiares já não podem suportar,
de tal modo se mostram desagradáveis e perniciosas”.12 A
maioria das referências de Camille, especialmente ao hos-
pital de Montdevergues e aos seus habitantes, mantêm-se
neste tom, esboçando com muita lucidez o ambiente de de-
gradação em que viviam os internos, até mesmo na primeira
classe onde ficou instalada a escultora:

Querida mamãe,
Demorei muito para lhe escrever, pois fez tanto frio que eu
não podia mais manter-me de pé [...]

10
Carta de Camille Claudel à mãe (02/02/1927), em WAHBA, 1996, p. 15.
11
WAHBA, 1996.
12
Carta de Camille Claudel a Paul Claudel (em 1927), em WAHBA, 1996,
p. 104.

Um lugar (im)possível • 337


Não voltei a me aquecer durante todo o inverno, estou ge-
lada até os ossos, cortada em duas pelo frio. Estive muito
gripada. Uma de minhas amigas, uma pobre professora do
Liceu Fénelon que veio encalhar aqui, foi encontrada mor-
ta na cama em razão do frio. É de meter medo. Nada pode
dar a idéia do frio de Montdevergues. [...]
[As internas] Passam o ano inteiro com disenteria, o que
não é sinal de que a comida seja boa. A base da alimen-
tação resume-se a isto: sopa, quer dizer, água e legumes
malcozidos, sem qualquer pedaço de carne. Um velho ragu
de carne de vaca, escuro, gorduroso, amargo, durante todo
o ano, um velho prato de macarrão nadando em óleo mil
vezes reaproveitado ou um velho prato de arroz do mesmo
tipo, em suma, parecem restos de comida [...]
Quanto ao quarto, é a mesma coisa, não há nada ali, nem
um edredom, nem um balde higiênico, nada, um miserá-
vel urinol a maior parte do tempo rachado, uma miserável
cama de ferro onde se fica tiritando a noite inteira [...].13

Meu querido Paul,


[...] sua irmã se acha presa. Presa, e com loucas que gri-
tam o dia inteiro, fazem caretas, são incapazes de dizer
coisa com coisa. É esse o tratamento que há quase vinte
anos se inflige a uma inocente; enquanto Mamãe viveu,
não parei de suplicar-lhe que me tirasse daqui, que me
colocasse onde quer que fosse, no hospital, num con-
vento, mas não no meio dos loucos. E sempre esbarrava
contra um muro. Parece que em Villeneuve era impossí-
vel. Por quê? [...]14

13
Carta de Camille Claudel à mãe (02/02/1927), em WAHBA, 1996, p. 13-
14.
14
Carta de Camille Claudel a Paul Claudel (após 1929, s.d), em WAHBA,
1996, p. 104.

338 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


O diagnóstico dado a Camille quando de sua inter-
nação, em 1913, mantido durante todo o período de sua in-
ternação foi psicose paranoide “com delírio de perseguição
à base de interpretações”.15 Em seus certificados de situação
– documentos encaminhados ao Procurador da República
confirmando a necessidade de internação –, os médicos
não apontaram em momento algum, em todo o período em
que esteve Camille reclusa, a cura de sua doença, afirmando
sempre estar ela atingida “por delírios de perseguição à base
de interpretações delirantes” ou “delírio sistematizado de
perseguição à base de interpretações falsas”.16
Porém, nos boletins internos do hospício – que não che-
gavam às mãos do procurador –, apesar de insistirem em não
vislumbrar uma cura, os médicos fizeram recomendações à
família para atenuar a “prisão perpétua” de Camille.17 Em di-
versos relatórios, especialmente entre os anos 1920 e 1925,
os psiquiatras que a acompanharam indicaram este caminho:

A Sr.ta. Claudel continua calma, com postura correta, qua-


se não manifesta suas idéias de perseguição, que estão mui-
to atenuadas. Se os senhores não podem retomá-la, pode-
riam colocá-la numa casa de saúde mais próxima à família,
que poderia vir vê-la às vezes. Esta ausência de visitas é
com efeito muito penosa para a Sr.ta. Claudel. 18

15
WAHBA, 1996, p. 61. Segundo a autora: “A psicose paranoide ou para-
noia, pela definição psiquiátrica, é caracterizada pelo delírio dito sistema-
tizado, pois se desenvolve na ordem e na clareza. O paciente manifesta
uma convicção dogmática que se constroi logicamente a partir de ele-
mentos falsos ou ilusórios; ele se conduz e pensa em função de sua con-
cepção delirante, em vez de seguir a realidade comum. Quando conversa
sobre assuntos que não atinjam o foco perturbado, aparenta normalidade
e juízo perfeito”. WAHBA, 1996, p. 61-62.
16
Cópia da ordem de admissão entregue pelo prefeito – dr. Chapernel
(1924); Certificado de situação ao sr. Ferté, procurador (1929), em
WAHBA, 1996, p. 66-67.
17
WAHBA, 1996, p. 67.
18
Boletim interno – dr. Brunet (01/07/1920), em WAHBA, 1996, p. 68.

Um lugar (im)possível • 339


A Sr.ta. Claudel é atualmente pouco visitada. Ela reclama
sua saída com insistência. Decepcionou-se por não ter re-
cebido ainda nenhuma visita de sua família, visita que ela
aguardava neste período do ano.19

Como já se sabe, a saída do hospício ou ao menos a


internação em um asilo mais próximo de seus familiares ja-
mais ocorreu, pois os familiares de Camille não a quiseram
de volta, num tempo e lugar em que este querer era funda-
mental para decidir o destino de um interno em institui-
ção manicomial. Apesar dos apelos dos médicos, a mãe de
Camille não a quis mais por perto, “por ter todos os vícios”
– como disse a um dos médicos em 1915 – e por acreditar –
em razão das cartas de Camille – que “nada tinha mudado, e
que tais doentes, soltos, retomam a conduta anterior”.20 Já
o irmão, apesar de prometer a Camille cuidar dela – cuidado
que talvez acreditasse efetivo ao pagar uma internação na
primeira classe ou ao enviar-lhe algum dinheiro eventual-
mente –, também não demonstrou nenhum empenho em
retirá-la do espaço de reclusão.
Neste longo tempo de internação, pouco se sabe dos
tratamentos a que Camille foi submetida. Em razão dos
delírios e seus desdobramentos – “medos vagos de envene-
namento”, “desconfiança extrema quanto a alimentação”,
“família a mantém aprisionada para tomar sua fortuna”21 –,
os médicos indicam nos certificados de situação que “a pa-
ciente deve ser mantida em tratamento no asilo”.22 Porém,
além da própria reclusão no hospício – que configura-se
como tratamento na perspectiva da Psiquiatria da época –,

19
Boletim interno – dr. Chapernel (out. 1924), em WAHBA, 1996, p. 70.
20
WAHBA, 1996, p. 68.
21
Certificado de situação ao sr. Procurador da República de Avignon – dr.
Brunet (26/06/1919); Cópia de ordem de admissão entregue pelo prefei-
to – dr. Chapernel (03/11/1924), ambos em WAHBA, 1996, p. 66.
22
Certificado de situação ao Sr. Ferté, procurador – Dr. Chapernel (1925).

340 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


nenhum tipo de terapêutica parece ter sido indicada para
Camille.
Gradativamente, os próprios documentos médicos,
além dos relatos constantes em suas cartas ou nas de seus
raros visitantes, indicam a decadência física e existencial da-
quela que fora considerada uma mulher, que além de sua
estupenda criatividade, era muito bonita e de personalida-
de forte. Abandonada pela família e submetida ao ambiente
inóspito de diferentes instituições de internação – a despei-
to de ser ela uma interna pagante – e as suas práticas acacha-
pantes de individualidades, que acabam igualando todos e
todas através de atividades ditas terapêuticas ou da falta total
delas, Camille se degradou mais e mais.
As tentativas de transpor a linha de força, ultrapassar
o saber-poder, curvar a força – processo de subjetivação –,
foram esboçados por Camille numa escritura em que exigia
sua liberdade aos gritos. Porém, além da escritura, não pa-
rece ter Camille estabelecido qualquer outro gesto que lhe
permitisse resistir, furtar-se ou fazer com que sua vida se
voltasse contra o poder. Pelo menos não de dentro do espa-
ço manicomial. “Triste surpresa para uma artista: em vez de
uma recompensa, veja o que me aconteceu!”, diz ela sobre
sua internação reclamando ao irmão que gasta “seu dinheiro
num asilo de alienados. Dinheiro que poderia ser útil para
fazer belas obras e viver agradavelmente”.23
A genial escultora Camille Claudel não aguentou.
Nada produziu de arte durante sua permanência nas ins-
tituições francesas e morreu em suas instalações em 1943,
depois de trinta anos de internação, sem nunca mais ter vol-
tado a rever a casa de sua família, os arredores de Paris ou
mesmo a cidade de seus anos gloriosos, objeto de seu desejo
tantas vezes expresso nas cartas que escreveu.
23
Carta de Camille Claudel a Paul Claudel (em 1927), em WAHBA, 1996,
p. 85-86.

Um lugar (im)possível • 341


Pierina...

A narrativa da camponesa Pierina sobre a vida no hos-


pício, expressa em cartas que escreveu quando interna no
Hospício São Pedro de Porto Alegre – capital do Estado
do Rio Grande do Sul – por cerca de dois anos, entre 1909
e 1911, contrasta com a percepção de Camille de seu tem-
po nas instituições francesas. 24 Paradoxalmente àquela, esta
não parece ter considerado o hospício – no qual passou
pouco tempo, é certo – um lugar impossível de se viver. Lá,
do outro lado do espelho,25 no cemitério dos vivos,26 Pierina
acreditou encontrar um lugar para si.27
Cerca de três meses antes de ser internada no hospício
de Porto Alegre, Pierina afogara sua filha de 17 meses numa
tina no porão da casa em que morava, na pequena cidade de

24
As cartas de Pierina, escritas no período em que esteve internada no
Hospício São Pedro de Porto Alegre – entre 5 de julho de 1909 e 11 de
maio de 1911 – encontram-se anexadas ao seu Prontuário Psiquiátrico,
atualmente sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Rio Grande
do Sul (APRS). Apenas uma das cartas foi datada, a dirigida a sua “queri-
da Mãe”, em 8 de outubro de 1909. Sem nenhuma datação – apenas algu-
mas pistas que permitem situá-las temporalmente – Pierina escreveu uma
carta endereçada a seu cunhado oficial de justiça, para ser entregue ao Juiz
de Garibaldi (em razão das informações contidas pressuponho que esta
foi a primeira carta escrita por Pierina dentro do hospício); um bilhete
para a “Sinhora infermeira Bernadeta da Santa Casa da Seção 15 Porto
Alegre”; e uma carta dirigida aos “Senhores dottores”, possivelmente os
médicos legistas da Chefatura de Polícia, responsáveis legais por avaliar se
ela “sofria das faculdades mentais”. In: Hospício São Pedro. Prontuário
n. 38120 – P. C. (APRS – Cx. 06).
25
Cf. CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um
asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
26
Cf. BARRETO, 1956.
27
Uma discussão sobre a experiência de Pierina no hospício e sua particular
visão sobre a vida neste foi publicada em: WADI, Y. M. Um lugar todo
seu!? Paradoxos do viver em uma instituição psiquiátrica. Varia História,
Belo Horizonte, n. 32, p. 75-101, jul. 2004. A trajetória da experiência
de loucura de Pierina foi contada em: WADI, Y. M. A história de Pierina:
subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: Edufu, 2009. Esta parte do
capítulo é inspirada em tais textos.

342 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Garibaldi, interior do Rio Grande do Sul. Por solicitação do
Juiz Distrital, Pierina fora examinada por peritos médicos
da chefatura de polícia da capital que, por cerca de um mês,
a observaram e diagnosticaram ser ela portadora da

sýndromo mental – impulso por obsessão psychastenica –


sýndromo este que se correlaciona, na doente [...] com es-
tygmas psychicos peculiares á degeneração inferior (typo:
moral insanity dos ingleses) e com estygmas de ordem de-
pressiva, proprios a psychose hystero-neurasthenica.28

Segundo os peritos, no caso em questão, havia a


necessidade de “[...] uma observação demorada de meses
para uma classificação psiquiátrica exata e segura [...]”, e
assim atestaram as “[...] condições de [Pierina] ser interna-
da no Hospício São Pedro, a fim de ser convenientemente
observada”.29
Em 5 de julho de 1909, por ordem do chefe de polícia
e anuência dos peritos médicos, adentrou Pierina o portão
do Hospício São Pedro onde permaneceu até 11 de maio de
1911. Na primeira carta que escreveu no hospício, logo ao
ser internada, dirigida ao Juiz do Crime do Município de
Garibaldi, Pierina rememorou o dia de sua internação bem
como os dias subsequentes a esta data:

Elle me disse não vai no ospicio, la no Partenão tem cadeia,


eu dise la no Partenão, e ospicio não e cadeia não. Elles

28
“Atestado médico-legal dos drs. João Pitta Pinheiro e Antonio Carlos
Penafiel, em 5 de julho de 1909 – Gabinete Médico Legal da Chefatura de
Polícia do Estado do Rio Grande do Sul”. Juizo Districtal do Civel e do
Crime do Município de Garibaldi. Processo-crime n. 1009 – P. C. (APRS
– maço 30 – est. 29 – ano 1909). A grafia original das fontes foi mantida
nesta e nas demais citações.
29
Juizo Districtal do Civel e do Crime do Município de Garibaldi. Processo-
crime n. 1009 – P. C. (APRS – maço 30 – est. 29 – ano 1909).

Um lugar (im)possível • 343


falarão, entres elles dicerão, ella vai no caro bem fechado
ella não sabe pradonde vai, eu respondi os Senhores pen-
çon que eu não intendo o que estão dizendo, intendo sim,
intão, não queria me levanta, elles me disserão intão vai na
cadeia, e daí intrei no caro. Quando seguei na porta do os-
picio, que vi os critos dos locos, que parecia tantos casos.
Eu dise não abbre aporta que aqui não quero ficar, elle me
dise aqui é cadeia, Eu dise não aqui e ospicio, não e lugar
pra mi eu não so loca eu so criminosa quero ir na cadeia,
e daí veio uma sinhora me tirou do caro, entrei numa sala
tinha muitas mulheres locas, eu dise pro favor me bote so-
zinha que eu não so loca, intão me botarão sozinha.
Aqui secome peior dos cachorros, e não se pode dormir
pelos critos que os locos e as locas fazem, as infermera, eo
infermero medise que aqui eu não posso ficar e o Dotor,
elles me dise aqui e lugar dos locos e locas mas não das cri-
minozas, Eu lhe mandei dizer ao chefe que venha me bos-
car maz elle em todo o tempo que estou nas mãos delle faiz
tanto causo de mi como dum cachorro que não tem dono.
Sinhor Juiz lhe mando diger por favor de me tirar deste
inferno, e me botar na cadeia, em meu lugar pode entrar
o desgrasado loco chefe que elle e mas loco, de todos os
locos que estão aqui.30

Nesta carta, as imagens esboçadas sobre o hospício


são de rebeldia e horror quanto a sua internação: não era
louca, era uma criminosa, o hospício era um inferno, não
aguentava nem podia dormir com os gritos dos loucos, a
comida do hospício nem os cachorros podiam comer, era
tratada como um cachorro sem dono. Porém, como indi-

30
“Carta ao Juiz de Garibaldi”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120
– P. C. (APRS – Cx. 06). Partenon é o nome do antigo arrabalde – atual
bairro – da cidade de Porto Alegre, onde foi construído o Hospício São
Pedro.

344 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


cam as fontes disponíveis – os documentos médicos e as
cartas –, Pierina mudou sua percepção quanto ao significa-
do de sua internação e das condições de vida no São Pedro.
Em pouco tempo, sobreveio uma imagem positiva
da instituição, como indicou na carta dirigida aos douto-
res, que não está datada, mas que suponho, tenha sido es-
crita depois da dirigida ao juiz e contemporaneamente a
carta escrita para sua mãe: “[...] eu para sair daqui, ficaria,
muito sentida por que, medou muito com as empregadas
[...]”.31 Elogios ao tratamento que lhe era dispensado no
São Pedro, também foram registrados na carta que escre-
veu para sua mãe em 8 de outubro de 1909, apenas quatro
meses depois de internada: “minha querida Mãe. Eu vou,
indo, muito bem, bem tratada, e respeitada de todos, que
nem mereço [...]”.32
É impossível saber o que, de fato, fez com que mudas-
sem as impressões de Pierina sobre sua internação no hos-
pício. Teria sido a rotina e disciplina asilar que cercava por
todos os lados, dia e noite, os internos com atividades vol-
tadas a revigorar sua moral e bons costumes? 33 Ou teriam
sido as terapêuticas (morais, físicas, higiênicas) destinadas
a quebrar resistências e rebeldias de todo gênero – como se
sabe, configuravam-se as utilizadas nas instituições psiqui-
átricas no tempo em que Pierina esteve internada34 –, que
mudaram sua percepção do lugar de reclusão?

31
“Carta aos dottores”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P. C.
(APRS – Cx. 06).
32
“Carta de Pierina à mãe”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P.
C. (APRS – Cx. 06).
33
CUNHA, 1986.
34
CASTEL, R. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de
Janeiro: Graal, 1978. Sobre terapêuticas médicas utilizadas no Hospício
São Pedro, na época em que Pierina esteve internada, ver: WADI, Y. M.
Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela construção do
hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Editora da Universidade/UFRGS, 2002 e WADI, 2009.

Um lugar (im)possível • 345


Não há respostas conclusivas para tais perguntas e
sei apenas que, a despeito da dura rotina asilar a qual cer-
tamente também foi submetida – buscando incitar a “nor-
malidade de sua afetividade”, a fazer com que afastasse as
“ideias anormais que a acompanhavam como parasitas do
pensamento”35 –, Pierina passou a ver no São Pedro uma
possibilidade de encontrar um lugar para si. Não pela acei-
tação da condição de louca, que ela negava, mas como em-
pregada, como se pode perceber em sua carta aos doutores:

[...] eu não tenho duensa ne um grasas a Deus eu, poço


trabalhar dia e noite, eu tenho uma boa, memória que des-
da idade de simco annos, sei lhe contar a minha vida, etão,
bem quando, vejo, fazer um trabalho, um veis sega, noutro
dia já sei fazer. Se os senhores me dese um inpreguinho
aqui, no hospício, de ganhar um 15, mereis, por méis, pra
mise garia.36

A mudança de sentimentos em relação à instituição,


bem como a recuperação de sua afetividade e de sentimentos
que vinha negando, segundo os legistas, esboçada em suas
cartas e em entrevistas com eles, poucos meses depois do
internamento – mas após já estar integrada a rotina asilar –,
fez com que os médicos legistas, acreditassem estar Pierina
curada de sua síndrome mental:

Pierina C., com o repouso, com o afastamento do meio


familiar (isolamento hospitalar), com o remorso do crime,

35
“Relatório Médico Legal dos drs. João Pitta Pinheiro e Antonio Carlos
Penafiel, em 10 de maio de 1911 – Gabinete Médico Legal da Chefatura
de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul”. Juizo Districtal do Civel
e do Crime do Municipio de Garibaldi. Processo-crime n. 1009 – P. C.
(APRS – maço 30 – est. 29 – ano 1909).
36
“Carta aos dottores”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P. C.
(APRS – Cx. 06).

346 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


com a saudade da família e outros incitamentos a normali-
dade de sua afetividade, com o tratamento médico, sobre-
tudo moral (psicoterapia), com a mudança de ar e de ali-
mentação, com melhores cuidados higiênicos de certo, co-
meçou em pouco tempo a melhorar no Hospício S. Pedro,
engordou, adquiriu logo bem estar com o aproveitamento
físico e moral, passando de todo o seu estado depressivo
cerebral e, com este, as idéias anormais que a acompanha-
vam como parasitas do pensamento, pelo que, em última
análise, opinamos atualmente pela retirada a paciente do
hospício, afim de que possas dar a ela o destino que julgar-
des conveniente [...].37

Vivendo no mundo do hospício, que pretendia corrigir


os vícios do mundo real por meio de seu próprio espaço, no
olhar dos médicos Pierina podia voltar a ocupar seu lugar, in-
clusive respondendo à justiça por seu crime. Porém, partindo
quase do mesmo lugar – ou seja, do seu acostumar-se ao São
Pedro –, a escrita desta mulher mostra-me uma dimensão que
certamente contrasta profundamente com a dos médicos,
ainda que possa ser confundida a primeira vista, com suas po-
sições: no mundo do São Pedro (mundo das terapêuticas, da
disciplina, da rotina médica) acredito que Pierina enxergou
– paradoxalmente – possibilidades novas para sua vida, o que
não torna tão simples dizer que ela foi simplesmente vencida,
dobrada ou quebrada pelas práticas psiquiátricas.
Escrevendo para sua mãe Maria, em 8 de outubro de
1909, Pierina disse:

Eu desejo saber noticias de toda, a minha, zente, mormente,


da senhora, e do meu marido, Minha querida mandahime

37
Relatório Médico Legal dos Drs. João Pitta Pinheiro e Antonio Carlos
Penafiel, em 10 de maio de 1911. In: Hospício São Pedro. Prontuário n.
38120 – P. C. (APRS – Cx. 06).

Um lugar (im)possível • 347


vossas, noticias, e toda a minha roupa eu que não presizo,
e das cobertas, quero dois, trabeceiros, bem seios, os meus
cadernos, o livro, de missa, ou vosso retratto, aquelle, da,
Minha Amiga Luiza, aquelle do Senhor, Eugenio Pizzi, e
dos meus, compadres, e também do meu marido, e das fa-
milhas dos irmanas e irmãos se [sic], memandar, Madaime
bastante, palha branca, e de cor de numero 1, 3,5, 7,9, que,
queiro, fazer, treis, ou quatro, tapetes mas que seja bem
bonita; Minha querida mãe muitas saudades de toda a mi-
nha zente, mas eu, em Garibaldi não desejo de voltar mais.38

Sua recusa a voltar para casa e seu desejo de viver no


São Pedro, ficou explícito também na carta que escreveu aos
doutores:

Senhores, Dotores, eu lhe peço por favor, eu tenho dois


lugares ou cadeia por toda vida ou aqui, mas não nas fami-
lhias, não, quero, ir não, desejo mais de passar nem um, dia
de vida familha, pelos meus feios nomes, que tenho, porém
pra sair da qui pra ir num lugar mas, triste não, saria con-
tente , eu aqui za estou me acostumando, sou muito bem
tratada, que não, mereço [...].
Os senhores, intende que, eu não tenho coragem de dizer
que estou, arrendida de medo de ser absolvida [...]. 39

Apesar do arrependimento pelo crime cometido, das


saudades da família, dos amigos e conhecidos, a recusa em
sair do hospício e, principalmente, em voltar para casa – a
qual os médicos, ao que parece se fizeram surdos –, revela
muitas questões. Questões estas que ultrapassam os senti-

38
“Carta de Pierina à mãe”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P.
C. (APRS – Cx. 06). Destaque nosso.
39
“Carta aos dottores”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P. C.
(APRS – Cx. 06).

348 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


dos que a elas podem dar os operadores de diversos saberes,
como os médicos que trataram Pierina. Enquanto estes usa-
vam as terapêuticas que tinham, no próprio uso do espaço
do Hospício São Pedro, a garantia de grande parte de sua
eficiência, buscando neste espaço enquadrar a paciente, rea-
daptá-la ao que acreditavam ser seu verdadeiro lugar, fazê-la
assumir seus papeis no mundo, recuperando sentimentos
que ela vinha negando; Pierina via naquele mundo – pois era
um outro mundo, não obstante um espelho do mundo – um
lugar para si.
Certamente, pressionada pelas rotinas e exigências da
terapêutica, ela passara a cumprir certas tarefas como cozi-
nhar, lavar, costurar, tecer artesanato.40 Porém, estas eram
coisas que ela sabia fazer e, não necessariamente, não gos-
tasse de fazer. Por outro lado, na aplicação do dito trata-
mento moral, Pierina encontrara espaço para fazer coisas
que lhe inspiravam muito, como ler e escrever, como se per-
cebe em sua narrativa. Primeiro, talvez mesmo incentivada
pelos psiquiatras, escreveu as cartas que conheci e analiso
aqui. Mesmo que pareça improvável – pois não são conheci-
das outras cartas, além daquelas anexas ao prontuário, pro-
vavelmente escritas no primeiro ano de sua internação –,
ela pode ter seguido escrevendo. Quem sabe mesmo nos
cadernos que pedira a mãe que enviasse. Ou, visto que sua
mãe parece nunca ter recebido tal carta,41 em qualquer lugar
possível, como “[...] tiras de papel, às vezes em rabiscos nas

40
Sobre as atividades ditas terapêuticas desenvolvidas nas instituições psi-
quiátricas, que tinham formatos estabelecidos a partir dos papéis de gê-
nero construídos socialmente, ver: CUNHA, 1989, p. 140-142; ENGEL,
M. Psiquiatria e feminilidade. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 322-361; WADI, 2009.
41
As cartas anexas ao prontuário de Pierina parecem ser todas elas, as cartas
originais. Era comum nos hospícios não enviar a correspondência dos
internos, utilizadas como documentos médicos para averiguação de sin-
tomas das doenças mentais.

Um lugar (im)possível • 349


paredes [...]”.42 Muitos internos em instituições psiquiátri-
cas fizeram isto, Pierina não seria a primeira pessoa nem a
última a fazê-lo.
Da mesma forma, Pierina não foi nem o primeiro nem
o último dos chamados pacientes psiquiátricos internos em
instituições manicomiais – lugares comumente identifica-
dos como destituidores de singularidades, desejos, indivi-
dualidades e subjetividades – a desejar permanecer no lugar
de seu desterro. Frente às adversidades que via lá fora, no
lugar de sua desgraça, junto a uma família com a qual não
podia mais combinar, junto a um marido cujas ações lhe de-
sagradavam profundamente e que, segundo escreveu, foram
o impulso para sua desgraça, Pierina preferia ficar.

o Senhor Juiz [...] Quando estava na S. Casa lhe mandei


uma carta que se eu ir responder o zuro quero ser conde-
nada envida, que pello meu crime que tenho cometido e
tudo o resto que tenho feito mersaria deser fuzilada, mais
para eu sair daqui para ir com a minha gente nem depois, de
morta, não quero ir nem com o marido nem com os, parentes,
eu não posso, mais, combinar.43

O meu marido, a vida delle era esta, se a sema, era todos


os dias de festa, elle era capaz, de passar a sema intera nas
vendas, e quando vinha a qualquer, horas da noite, bêbedos
como, um porco, elle lansava tudo, e assim, eu ficava muito
braba e ralhava com elle, se lhe dizia semos tão pobre, e tu
sempre bêbedo a eta maneira. Eu quando, era moça gostava
de ir bem arrumadinha e depois, me, vi que logo, tinha, de
ir pedir esmola, a minha Elvira era tão bonita, que paresia

42
PORTER, R. Uma história social da loucura. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1991. p. 245.
43
“Carta ao Juiz de Garibaldi”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 –
P. C. (APRS – Cx. 06). Destaque nosso.

350 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


um anzinho, eu de vella de ir mal arrumada não gostava, e
não tinha nada pra vestir ella, eu se não cometia este crime,
e se ficava junto com o marido, e se Deus me dava mais
filhos eu tinha de ir com toda aminha trosa a pedir esmola,
eu sou mais contemte, de passar, ou resto, da minha vida,
aqui, ou na cadeia antes, de ir pedir, esmola, e de passar o
que tenho passado com o marido [...] Mas Deus e messe-
ricodioso, elle a deter missericordia, de mi, este tudo que
passei na minha vida, e o que tenho, de passar, Eu gostaria
que estas cartas fosse, tudo, num jornal para tudo o povo,
saber, mas, eu não tenho dinheiro, para mandar no Coreio
do povo.44

O que pode parecer acomodação, dobramento, en-


quadramento pode também não ser bem isto, mesmo que
contenha um pouco disto. No afirmar as benesses do hos-
pício, dizendo que lá podia trabalhar, que se dava bem com
as empregadas, voltando a comer bem, a realizar seu arte-
sanato; no pedir à mãe que mandasse seu baú, com seus
cadernos, suas roupas, retratos, enfim, tudo o que era só
seu – porque não queria voltar mais para casa, pois não
podia mais combinar. Pierina estabeleceu um processo de
subjetivação, tentou recriar seu lugar no mundo, no mun-
do que descobrira no São Pedro. Um mundo muito espe-
cial ao certo, por vezes horrível, espantoso e triste, mas
paradoxalmente também, um mundo mais amplo, mais se-
guro, e até, mais agradável, para muitos. Um mundo onde
sonhos que podem parecer pequenos – ter o que comer,
ter algo “[...] pra vestir [...]”, andar “[...] bem arrumadinha
[...]”, não ter de “[...] pedir esmolas [...]” e, porque não,
escrever – podiam se realizar.45 Assim, Pierina parece ter

44
“Carta aos dottores”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P. C.
(APRS – Cx. 06). Destaque nosso.
45
Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P. C. (APRS – Cx. 06).

Um lugar (im)possível • 351


estabelecido uma relação consigo – naquele momento e
naquele lugar – que lhe permitiu resistir, furtar-se, fazer a
vida voltar-se contra o poder.
Porém, Pierina recebeu alta do São Pedro em 11 de
maio de 1911 e, já em Garibaldi, em 23 de maio, o Juiz
Distrital resolveu não pronunciá-la pelo crime cometido,
julgando que “a denunciada, no ato de praticar o crime era
irresponsável”. Assim, foi expedido alvará de soltura em seu
favor.46 Apesar dos apelos insistentes e do desejo tantas ve-
zes expresso de não retornar, Pierina voltara a Garibaldi,
para uma liberdade com a qual não sonhara. Não passaria o
resto dos seus dias, nem no hospício, nem na cadeia, mas jun-
to aos seus. Não por desígnio do destino, mas pelo jogo dos
saberes e das verdades que deviam ser firmadas e mantidas.
Pierina faleceu em 1962.

Stela...

Stela do Patrocínio que viveu, entre 1962 e 1992,


como interna em hospitais psiquiátricos, esboçou de forma
diferente de Camille e Pierina o seu olhar sobre a própria
vida e as instituições nas quais passou a maior parte dela: a
palavra falada. A palavra falada em formato poético, foi sua
forma preferida de expressão. Transcritas, as falas de Stela
tornaram possível aproximar-me dela e de sua compreensão
sobre o viver em tais lugares.
Aos 21 anos, Stela foi internada, em 1962, no Centro
Psiquiátrico Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro, com o
diagnóstico “personalidade psicopática mais esquizofrenia
hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas”.47 Foi trans-

46
“Despacho do Juiz da Comarca, em 23 de maio de 1911”. Juizo Districtal
do Civel e do Crime do Município de Garibaldi. Processo-crime n. 1009
– P. C. (APRS – maço 30 – est. 29 – ano 1909).
47
MOSÉ, V. Apresentação: Stela do Patrocínio: uma trajetória poética em

352 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


ferida, em 1966, para a então Colônia Juliano Moreira, na
mesma cidade, onde faleceu em 1992.
Stela, que nasceu em 1941, se dizia “solteira, domés-
tica, de instrução secundária” e pouco, além disso, sabe-se
sobre seu passado.48 Em 1986, então com 45 anos, passou
a frequentar um ateliê, no núcleo de mulheres da Colônia,
coordenado por artistas plásticos – e sem fins terapêuticos
– e foi nesta época que suas falas poéticas foram gravadas.
Segundo Mosé:

Stela do Patrocínio chamou atenção por sua singularidade,


naquele lugar uniforme. Parecia uma rainha, não se portan-
do como as outras, que se aglomeravam, pedindo sempre.
Diferenciava, em um silêncio agudo, sua foram própria de
se colocar no espaço. Impossível era não vê-la: negra, alta,
com muita dignidade no porte, algumas vezes enrolada em
um cobertor com o rosto e os braços pintados de branco.
Apesar de frequentar o ateliê, raramente utilizava os ma-
teriais propostos. Quando desenhava, o que era raro, eram
coisas quase minimalistas, expressões pequenas, muito pró-
ximas a escrita. Algumas vezes escrevia em papelão, frases
ou números. Mas o que realmente diferenciava Stela no gru-
po era sua fala. Ao contrário das outras internas, que aceita-
vam se relacionar com tintas e papéis, ela preferia a palavra.
E parecia ter clareza desta preferência. Em sua fala descon-
certante, incisiva, cada sílaba era pronunciada com gosto.49

Ser considerada uma doente mental fez com que Stela


fosse internada e permanecesse até sua morte em institui-
ções manicomiais, porém, contrariamente a qualquer diag-

uma instituição psiquiátrica. In: PATROCÍNIO, S. do. Reino dos bichos e


dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001. p. 21.
48
MOSÉ, 2001, p. 20.
49
MOSÉ, 2001.

Um lugar (im)possível • 353


nóstico, era vista por outros sujeitos (seus companheiros
de internamento ou mesmo alguns operadores de saberes
como psiquiatras ou psicólogos), para além do redutor atri-
buto de doente mental. Era considerada uma filósofa /poeta
que refletiu as dores, os horrores, mas também o processo
de subjetivação no hospício. Por um lado, suas palavras –
transformadas em texto – podem ser consideradas:

um depoimento sobre o que foi a assistência psiquiátrica


nas décadas de sessenta, setenta e início dos anos oitenta,
num grande manicômio do Rio de Janeiro, bastante próxi-
mo do que ocorre em todos os asilos e hospitais psiquiátri-
cos brasileiros tradicionais.50

Por outro, podem servir para compreender melhor as


questões de vida de quem habita tais lugares. Para Pelbart, so-
mente uma atitude que recuse “suturar as questões de vida
dos loucos alguma chance de responder a seus problemas de
vida”. Porém, tais questões, a despeito de serem expressas
pelos tidos como loucos, constante e repetidamente, como
vimos com Camille e Pierina – e veremos com Stela – pouco
ou nada ressoaram junto aos operadores dos saberes, para
responder aos problemas de vida destas pessoas.51
Para Stela, o espaço de internação, “o hospital parece
uma casa”, mas “o hospital é hospital”.52 O olhar de Stela

50
AQUINO, R. Estrela. In: PATROCÍNIO, S. do. Reino dos bichos e dos
animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001. p. 14.
51
PELBART, P. P. Os loucos, trinta anos depois. Novos Estudos CEBRAP,
São Paulo, n. 42, p. 176, jul. 1995. Destaque do autor.
52
Patrocínio, S. do. Parte I: Um homem chamado cavalo é o meu nome.
In: ______. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2001b. p. 51. A organizadora do livro, Viviane Mosé,
estruturou-o em partes a partir de sua percepção dos encadeamentos en-
tre os assuntos, a conexão de temas, a malha de sentido expressa nas falas.
Segundo a organizadora, esta primeira parte fala da situação de Stela no
hospital.

354 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


remete ao significado comumente atribuído às práticas e à
instituição psiquiátrica – lugar de controle e exclusão, de
criação de doença, não de cura:

Estar internada é ficar todo dia presa,


Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu passar lá no portão
Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais.53

Eu estava com saúde


Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente...54

O remédio que eu tomo me faz passar mal


E eu não gosto de tomar remédio pra ficar passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico cambaleando
Quase levo um tombo
E se levo um tombo eu levanto
Ando mais um pouquinho, torno a cair55

Mas viver neste espaço, apesar de ser “[...] seguida


acompanhada imitada assemelhada; Tomada conta fiscaliza-
da examinada revistada [...]”,56 não significa o apagamento

53
PATROCÍNIO, 2001b, p. 55.
54
PATROCÍNIO, 2001b, p. 51.
55
PATROCÍNIO, 2001b, p. 54.
56
PATROCÍNIO, S. do. Parte II: Eu sou Stela do Patrocínio, bem patro-

Um lugar (im)possível • 355


do sujeito, a despeito dos investimentos de um saber-poder,
durante muito tempo comprometido com práticas violen-
tas de reclusão e submissão. O poder não é apenas olho e
ouvido, incita, suscita, faz falar, provoca subjetivação57 e,
nos processos de subjetivação, a todo momento recupera-
dos pelo poder e submetidos às relações de força, pessoas
renascem “inventando novos modos, indefinidamente”.58

Tem esses que são igualzinhos a mim


Tem esses que se vestem e se calçam igual a mim
Mas que são diferentes da diferença entre nós
É tudo bom e nada presta59

Eu sou Stela do Patrocinio


Bem patrocinada
Estou sentada numa cadeira
Pegada numa mesa nega preta e criola
Eu sou uma nega preta e criola
Que a Ana me disse60

Stela se reinventou pela poesia, criando os “meios de


viver o que de outra maneira seria invivível”:61

A vida a gente tem que aceitar como a vida é


E não como a gente quer
Se fosse como eu queria

cinada. In: ______. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de
Janeiro: Azougue Editorial, 2001a. p. 63. Nesta parte, segundo Mosé,
Stela “se distingue do contexto hospitalar, se diferencia; aqui Stela adqui-
re nome próprio, adquire palavra”. MOSÉ, 2001, p. 29-30.
57
FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: ______. O que é um
autor? Lisboa: Vega, 1992. p. 89-128.
58
DELEUZE, 1998, p. 123.
59
PATROCÍNIO, 2001a, p. 63.
60
PATROCÍNIO, 2001a, p. 66.
61
DELEUZE, 1998, p. 141.

356 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


Eu não queria ver ninguém no mundo
Não queria ver ninguém na casa
Queria estar toda hora comendo bebendo fumando
Assim é que eu queria que fosse meu gosto

Mas como eu pulei muro despulei muro


Pulei portão despulei portão
Pulei lá de cima pro lado de fora
Do lado de fora pro lado de dentro
Quer dizer que eu...62

Da mesma forma, em diversas poesias, Stela demons-


trou ter consciência dos limites de sua fala, especialmente
no sentido de livrá-la das amarras institucionais:

Eu já não tenho mais voz


Porque já falei tudo o que tinha que falar
Falo, falo, falo, falo o tempo todo
E é como se eu não tivesse falado nada
Eu sinto fome matam minha fome
Eu sinto sede matam minha sede
Fico cansada falo que tô cansada
Matam meu cansaço
Eu fico com preguiça matam minha preguiça
Fico com sono matam meu sono
Quando eu reclamo.63

62
PATROCÍNIO, S. do. Parte VI: Reino dos bichos e dos animais é o meu
nome. In: ______. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de
Janeiro: Azougue Editorial, 2001c. p. 109. Para Mosé, esta parte do livro
retoma falas de Stela relativas a condição asilar, “só que sob a metáfora
dos animais e do zoológico”. MOSÉ, 2001, p. 30.
63
PATROCÍNIO, S. do. Parte VIII: Procurando falatório. In: ______. Reino
dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial,
2001d. p. 142. Segundo Mosé, esta parte da obra traz poemas que mostram
“a consciência que Stela tinha de sua palavra”. MOSÉ, 2001, p. 30.

Um lugar (im)possível • 357


Me transformei com esse falatório todinho
Num homem feio
Mas tão feio
Que não me aguento mais de tanta feiúra
Porque quem vence o belo é o belo
Quem vence a saúde é outra saúde
Quem vence o normal é outro normal
Quem vence um cientista é outro cientista.64

Produzindo um modo de existência por meio de seu


vestir, de seu portar-se, mas especialmente pelas suas pala-
vras, Stela ultrapassou – dentro do hospício – o poder e re-
sistiu ao saber, porém, trinta anos de internação debilitaram
seu corpo. Em 1992, “em função de hiperglicemia grave,
teve uma perna amputada. Ficou muito triste, parou de falar
e comer. A ferida não cicatrizou. Stela morreu de infecção
generalizada”.65

Um lugar (im)possível...

A análise das fontes tornou visíveis as dimensões pa-


radoxais que cercam o espaço manicomial – lugar de desterro
e violência ou lugar para si – e o processo de construção
de subjetividades nos lugares de internamento. Através dos
diferentes olhares lançados pelos sujeitos sobre sua expe-
riência de internação, expressos em cartas ou poesias fala-
das, foi possível compreender aspectos constituidores des-
sas experiências, que por sua vez construíram sujeitos que
nunca mais foram os mesmos de outrora. O processo de
sofrimento e enfermidade, o encontro com as práticas e o
poder médico, as formas de negociação e questionamentos

64
PATROCÍNIO, 2001d, p. 143.
65
MOSÉ, 2001, p. 21.

358 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


de diagnósticos e tratamentos, os mecanismos utilizados
para serem escutados pelos que se acreditavam os detento-
res legítimos do saber sobre a loucura (os alienistas ou psi-
quiatras) ou por familiares, foram referidos nas narrativas,
ora de forma dramática, ora de forma poética como se pôde
observar nos fragmentos citados acima.
Camille deixou, como marco principal de sua existên-
cia, esculturas espetaculares. E estas, o destino trágico a ela
reservado, não pôde apagar.
Stella – pelo empenho de sujeitos comprometidos
com o resgate da cidadania dos loucos, tanto tempo silen-
ciados – nos deixou um livro contendo suas falas poéticas
transcritas, sinais da produção de uma estética da existência,
apesar do lugar durante tanto tempo ocupado (o hospício)
e do limite do rótulo doente mental.
Pierina legou-nos apenas suas cartas do hospício,
que ela sonhava “foce, tudo, num jornal para tudo o povo,
saber”66 (o que motivara seu crime, o que ela sentia, como
ela vivia etc.), mas que jamais deixaram o hospício, perma-
necendo em seu prontuário como marcas de uma memória,
talvez impossível de resgatar de outro jeito.
As vidas (e também as obras delas), aqui precariamen-
te resgatadas e compreendidas através de fragmentos de suas
escrituras ou falas, são estímulos para que não deixemos de
buscar compreender aqueles que nos parecem diferentes –
mas que também são semelhantes e contém algo de nós –,
para que inventemos novas formas de nos relacionar com
o acaso, com o desconhecido, com a força e a ruína.67 Elas
– Camille, Pierina e Stella –, como tantos de nós, cotidia-
namente, tornaram possível o que parecia impossível. Suas

66
“Carta aos dottores”. Hospício São Pedro. Prontuário n. 38120 – P. C.
(APRS – Cx. 06).
67
PELBART, P. P. Manicômio mental: a outra face da clausura. 3. ed. São
Paulo: Hucitec, 1990. p. 131-138. (Saúde e loucura, n. 2).

Um lugar (im)possível • 359


palavras – de um jeito ou de outro – ultrapassaram os muros
das instituições de reclusão, venceram outras palavras que
determinaram sua própria exclusão.
Assim, ainda que não tenha escrito sobre tudo, não
tenho mais o que expressar por ora. Como disse Stela:

Já falei de mundo de casa


De prédio de família
De que mais eu vou falar?
Então eu já vou...68

68
PATROCÍNIO, 2001d, p. 144.

360 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


referências

AQUINO, R. Estrela. In: PATROCÍNIO, S. do. Reino dos bichos e


dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.
p. 14.

BARRETO, A. H. de L. O cemitério dos vivos: memórias. São Paulo:


Brasiliense, 1956.

CANAL, M. I. G. La relación médico-paciente en el Manicomio de


La Castañeda entre 1910-1920, tiempos de revolución. Nuevo Mun-
do Mundos Nuevos, Coloquios, 2008. 02 janv. 2008. Disponível em:
<http://nuevomundo.revues.org//index14422.html>. Acesso em:
19 fev. 2008.

CASTEL, R. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio


de Janeiro: Graal, 1978.

CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um


asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

CUNHA, M. C. P. Loucura, gênero feminino: as mulheres do Ju-


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História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 121-144, ago./set. 1989.

DELEUZE, G. A vida como obra de arte. In: ______. Conversações


(1972-1990). São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 118-126.

ENGEL, M. Psiquiatria e feminilidade. In: DEL PRIORE, M.


(Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
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FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: ______. O que é


um autor? Lisboa: Vega, 1992. p. 89-128.

LANCETTI, A. Loucura metódica. Saúde e loucura, São Paulo, n. 2,


p. 139-147, 1990.

Um lugar (im)possível • 361


MOSÉ, V. Apresentação: Stela do Patrocínio: uma trajetória poética
em uma instituição psiquiátrica. In: PATROCÍNIO, S. do. Reino dos
bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Edito-
rial, 2001. p. 21.

PATROCÍNIO, S. do. Parte II: Eu sou Stela do Patrocínio, bem


patrocinada. In: ______. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001a. p. 63.

PATROCÍNIO, S. do. Parte I: Um homem chamado cavalo é o meu


nome. In: Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janei-
ro: Azougue Editorial, 2001b. p. 51.

PATROCÍNIO, S. do. Parte VI: Reino dos bichos e dos animais é o


meu nome. In: ______. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001c. p. 109.

PATROCÍNIO, S. do. Parte VIII: Procurando falatório. In: ______.


Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azou-
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PELBART, P. P. Os loucos, trinta anos depois. Novos Estudos CE-


BRAP, São Paulo, n. 42, p. 171-176, jul. 1995.

PORTER, R. Uma história social da loucura. 2. ed. Rio de Janeiro:


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WADI, Y. M. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura.


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WADI, Y. M. Um lugar todo seu!? Paradoxos do viver em uma insti-


tuição psiquiátrica. Varia História, Belo Horizonte, n. 32, p. 75-101,
jul. 2004.

WADI, Y. M. Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela
construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.

WAHBA, L. L. Camille Claudel: criação e loucura. Rio de Janeiro:


Record: Rosa dos Tempos, 1996.

362 • História e loucura: saberes, práticas e narrativas


sobre os autores

ANA PAULA VOSNE MARTINS é doutora em História pela


Unicamp, com pós-doutorado pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz,
é professora do Departamento de História da Universidade Fede-
ral do Paraná e uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos de
Gênero desta universidade. Publicou os livros Visões do feminino: a
medicina da mulher nos séculos XIX e XX (Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2004) e Um lar em terra estranha. A Casa da Estudante Uni-
versitária de Curitiba e o processo de individualização feminina nas
décadas de 1950 e 1960 (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2002). E-mail:
ana_martis@uol.com.br

ANA TERESA ACATAUASSÚ VENANCIO é socióloga, mestre


e doutora em  Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ), co-
organizadora do livro Psicologização no Brasil: atores e autores (Con-
tracapa, 2005) e autora de vários artigos sobre ciência e assistência
psiquiátrica no Brasil no século XX. Atualmente, é pesquisadora do
Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação
Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), professora e coordenadora adjunta
do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde
(PPGHCS/COC/Fiocruz). E-mail: anavenancio@coc.fiocruz.br

ARTUR CESAR ISAIA é doutor em História Social pela USP, com


pós-doutoramento pela EHESS (École de Hautes Études en Sciences
Sociales) de Paris, pesquisador do CNPq e professor do Departa-
mento de História e Programa de Pós-Graduação em História da
UFSC. Atualmente, centra suas investigações na relação religiões
mediúnicas e discurso médico-psiquiátrico no Brasil da primeira
metade do século XX, tendo publicado a esse respeito artigos e ca-
pítulos de livros,  bem como  organizado a obra Espíritos e Orixás:
o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea (Edufu, 2006).
E-mail: arturci@uol.com.br

JANIS ALESSANDRA CASSILIA é graduanda em História pelo


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) e bolsista de iniciação científica CNPq/
Fiocruz na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. E-mail: janis_ufrj@hot-
mail.com

363
MARIA CLARA TOMAZ MACHADO é mestre e doutora pela
USP, professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Histó-
ria da UFU, foi diretora da Editora da Universidade Federal de Uber-
lândia entre 2003–2008. Dentre os vários trabalhos publicados desta-
ca-se o capítulo “Almas Enclausuradas práticas de intervenção médica,
obsessão e loucura no cotidiano do Sanatório Espírita de Uberlândia/
MG (1932-1970)” que compõe o livro Orixás e Espíritos: o debate
interdisciplinar na pesquisa contemporânea, publicada pela Edufu em
2006. Organizou, em 2007, o livro Caleidoscópio de saberes e práticas
populares, também pela Edufu, no qual possui dois textos sobre reli-
giosidade popular. E-mail: mclaratmachado@yahoo.com.br

Maurício Noboru Ouyama é historiador, doutor em História


pela Universidade Federal do Paraná. Estudou a formação da Psiquiatria
no Paraná no século XIX. É autor da tese Uma máquina de Curar: o Hos-
pício Nossa Senhora da Luz e a formação da tecnologia asilar (Curitiba,
final do século XIX, início do XX). E-mail: rizhoma@yahoo.com.br

MAURO GAGLIETTI é mestre em Ciência Política pela UniFRGS e


doutor em História pela PUCRS, coordena a Editora IMED e o grupo
de estudos Culturas jovens, cartografias da subjetividade: estudo sobre
a violência nas escolas; autor de vários artigos e livros entre os quais se
destaca a obra intitulada Dyonélio Machado e Raul Pilla: médicos na
política (EDIPUCRS e IEL). Atualmente, é professor e pesquisador
na IMED (Passo Fundo, RS), professor visitante do PPG em Direito
na URI (Santo Ângelo, RS) e integra o GT de História Cultural da
ANPUH, RS (Associação Nacional de História – Seção Regional do
Rio Grande do Sul ). E-mail: maurogaglietti@via-rs.net

NÁDIA MARIA WEBER SANTOS é médica, psiquiatra junguia-


na, mestre e doutora em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, coordenadora do Grupo de Trabalho de História
Cultural da ANPUH, RS (Gestão 2006-2008), com publicações de
vários artigos no Brasil e na França sobre a temática história e lou-
cura. Autora dos livros Histórias de vidas ausentes – a tênue fronteira
entre a saúde e a doença mental (Editora da UPF, 2005) e Narrativas
da loucura & Histórias de sensibilidades (Editora da Universidade/
UFRGS, 2008). Atualmente, é pesquisadora pela FAPERGS (Fun-
dação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul) na Escola Supe-
rior de Teologia, desenvolvendo projeto sobre construção de espaços
de cidadania para a loucura nos municípios do Vale do Rio dos Sinos.
E-mail: nmws@terra.com.br

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RAPHAEL ALBERTO RIBEIRO é mestre em História pela Uni-
versidade Federal de Uberlândia e membro do Núcleo de Cultura
Popular (Populis). Autor da dissertação Almas enclausuradas: práti-
cas de intervenção médica, representações culturais e cotidiano no Sa-
natório Espírita de Uberlândia (1932-1970) e, em coautoria com Ma-
ria Clara T. Machado, do capítulo “A Institucionalização da loucura
em Uberlândia: discursos de controle e políticas de higienização”,
do livro Uberlândia Revisitada: memória, cultura e sociedade. E-mail:
raphaelhis@yahoo.com.br

RICIELE MAJORI REIS POMBO é graduada em História pela


Universidade Federal de Uberlândia e mestre em História pela Uni-
versidade Federal de Uberlândia. Autora da dissertação A nova polí-
tica de saúde mental: entre o precipício e paredes sem muros (Uberlân-
dia, 1984-2006). E-mail: riciele_pombo@yahoo.com.br

VIVIANE TRINDADE BORGES é doutoranda do Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (bolsista Capes) e mestre em História pela mesma instituição.
Sua atual pesquisa trata da biografia histórica do artista plástico Ar-
thur Bispo do Rosário, por meio da problematização dos diferentes
discursos que instituíram o personagem como louco e como artista
renomado. E-mail: borgesviviane@hotmail.com

VLÁDIA JUCÁ é psicóloga, formada pela Universidade Federal do


Ceará; mestre em comunicação e cultura contemporânea e doutora
em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia. Trabalha como
psicanalista e professora das seguintes instituições: Fundação Bahia-
na de Medicina e Saúde Pública e Faculdade Social da Bahia. Atual-
mente, é professora e preceptora da Residência Multiprofissional em
Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Mental (ISC-UFBA). E-mail:
vladiajuca@gmail.com

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YONISSA MARMITT WADI é mestre em História pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em História pela
PUC de São Paulo, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq,
professora do Centro de Ciências Humanas e Sociais e dos Progra-
mas de Pós-Graduação em História e em Desenvolvimento Regio-
nal e Agronegócio da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
- Unioeste. Dentre os vários trabalhos publicados destacam-se
os livros Palácio para guardar doidos: uma história das lutas pela cons-
trução do hospital de alienados e da Psiquiatria no Rio Grande do Sul
(Editora da Universidade/UFRGS, 2002) e A história de Pierina:
subjetividade, crime e loucura (Edufu, 2009). E-mail: yonissamw@
uol.com.br

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Sobre o livro

Formato 16 cm x 23 cm
Tipologia Baramond
Papel Sulfite 75 g
Tiragem 1.000 exemplares

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