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Nois vs. Légos Danilo Marcondes de Souza Filho A rejeigdo da idéia de um pensamento ndo-discursivo tem sido uma das ca- racteristicas centrais da filosofia da linguagem, estando relacionada inclusive com seu surgimento na tradicao analitica (A. Coffa, 1986). Na filosofia grega cl4s- sica, entretanto, esta nocdo ocupou um lugar central na teoria do conhecimento, na metafisica e na propria definicdo da tarefa filos6fica. Minha hipétese é preci- samente a de que a importancia e o privilégio atribuidos ao pensamento nao-dis- cursivo explicam, em grande pare, o lugar secundario atribuido a linguagem e ao discurso no pensamento classico, e até mesmo a inexisténcia do conceito de linguagem, propriamente dito, neste pensamento. A questao, portanto, da relagdo entre pensamento discursivo (didnoia, Iégos) e pensamento ndo-discursivo (nods, ndesis) situa-se dentro de uma problematica mais ampla: todo pensamento é necessariamente linguistico?; pressupde uma es- trutura linguistica?; a linguagem é necessaria ao pensamento? Sao essas quest6es que servirao de pano de fundo para este breve exame da nogdo de pensamento nao-discursivo na filosofia grega e suas conseqiiéncias. Antes disso, entretanto, alguns esclarecimentos se fazem necessdrios quanto ao sentido dado neste tra- balho a termos como «linguagem», «pensamento», «discurso», «proposicao», etc. Vou partir de certas definiqdes estipulativas, sem discutir as varias interpreta- Ses possiveis destes conceitos contemporaneamente, 0 que me desviaria dos propésitos deste trabalho. Pretendo basear-me em concepgées recentes na filoso- fia analitica’ para a consideracao dos textos classicos. “Por «linguagem, entendo, em um sentido bastante amplo, a estrutura légica abstrata, o conjunto de regras que permite a constituicdo de juizos, isto 6, a arti- culagao de conceitos, bem como as operaces oi relacdes entre juizos. A propo- sicdo é 0 contetido de um ato de pensamento, distinto do ato ele proprio, e possuindo a forma predicativa do juizo «que X é Y». A sentenca é a expressio 1 Vejam-se.a este respeito Ryle (1971) ¢ Nuchelmans (1973). 8 Danilo Marcondes de Souza F* verbal de uma proposigao constituindo, portanto, uma unidade do discurso. O discurso resulta, assim, de um conjunto de sentengas articuladas. O pensamen- to € 0 processo mental, interior, relativo ao individuo, subjetivo, portanto. En- quanto constituido de juizos, ou da faculdade de julgar, possui uma estrutura lingilistica. Na tradigao classica (Nuchelmans, 1973, 7), o légos é uma combina- cdo de dnoma e rhéma (Platéo, Sofista, 262a), expressando um pensamento (diénoia). O pensamento, por sua vez, é sempre, ou quase sempre, caracterizado através do discurso, como na passagem classica de Platao em que é definide co- mo «o didlogo da alma consigo mesma» (Teeteto, 189e4). Nossa questo, no entanto, é precisamente se h4 um pensamento nao-lingiiis- tico ou nao-discursivo, isto é, nao constituido de proposigées. Se h4, qual entao 0 papel deste pensamento na nossa compreensao do real, na constituigao de nos- sa experiéncia? Ou seja, por que é necessério para a filosofia grega supor a existéncia de um pensamento ndo-discursivo? Oconceito de pensamento ndo-discursivo parece, de fato, vir a resolver duas dificuldades, estreitamente relacionadas, apresentadas pelos paradoxos da defi- nigdo e da andlise. O paradoxo da definicao resulta do reconhecimento de que toda definicéo nominal de um conceito é dada através de outros conceitos que servem para definir 0 primeiro. Estes conceitos, por sua vez, que pertencem ao definiens, carecem de definigao e s6 podem set definidos por outros conceitos. Te- mos, assim, uma circularidade, j4 que as palavras remetem umas As outras, sem que possamos sair do circuito do discurso. A definiggo nominal, produto do pen- samento discursivo, é incapaz de nos revelar a esséncia das coisas, sua verdadeira natureza. E necessdrio, portanto, uma forma de captacao da esséncia, um modo de acesso ao real, que nao dependa de definicdes nominais. O paradoxo da ana- lise é derivado da concepcao de que, se o conhecimento de um objeto complexo (Teeteto, 201¢-210a) se da através de sua decomposigao nos elementos simples que 0 compdem, entao estes elementos eles préprios nado podem por sua vez ser decompostos e portanto analisados, sendo assim incognosciveis. O conhecimento repousaria entao sobre uma realidade que nao pode ser conhecida, 0 que pare- ce claramente contraditério, Ora, 0 procedimento de anélise é um Pprocedimento discursivo e por isso precisa dar lugar, para que 0 paradoxo seja evitado, a uma apreensao nao-discursiva, direta, imediata da natureza das coisas simples, que ndo podem ser conhecidas por andlise. © recurso 4 nosdo de pensamento nao- discursivo evitaria assim a circularidade do discurso, a sua impossibilidade de telagao direta com o real, jé que a definicado de um termo é dada sempre através de outros € o significado destes termos é sempre convencional, o que levaria ao Tegresso ao infinito das definigdes. Evitaria também o problema do acesso ao re- al do qual a andlise nao da conta e que deve ser imediato, direto, para servir de base ao processo progressivo de construgao do conhecimento. Vejamos alguns textos de Platao em que a nogo de pensamento nao-discur- sivo (nofis)” é introduzida em relacao a estas questdes acima indicadas. Destacaria em primeiro lugar a discussao sobre as etapas e os elementos que formam o pro- 2 Sobre a nogéo de nods antes de Plato, particularmente em Parménides, ver Guthrie (1975, pp. Nodis vs. Légos 9 cesso de conhecimento na famosa passagem da Carta VII (342a-343c). Plato dis- tingue af trés elementos que levam ao conhecimento ou o tornam possivel, sendo © conhecimento ele préprio o quarto elemento e a coisa conhecida o quinto. Em Primeiro lugar temos entdo 0 nome (6noma) cuja natureza é meramente conven- ional (343b), em segundo lugar a definigao (Iégos), que na realidade nada mais € do que um conjunto de nomes (343b), em terceiro lugar a imagem (efdolon) ou tepresentacao da coisa, que € de natureza sensivel e portanto nado pode consti- tuir ainda conhecimento e, finalmente, temos 0 conhecimento (epistéme) identificado por Platao nesta passagem com o entendimento ou intelecgdo (noiis) -€ com a opinido verdadeira (alethés déxa) j4 que no pertencem nem ao campo do discurso nem ao das figuras materiais, mas esto na alma (psyché). Platao des- taca nesta passagem a inadequagao do discurso (343c) ao pensamento, jd que o significado nao é fixo por ser convencional, as palavras podendo ter seus signi- ficados alternados (343b). As definicdes (légoi), igualmente, por serem compostas de nomes, esto sujeitas 2s mesmas limitacdes. Em consequéncia «nenhum ho- mem inteligente deve procurar expressar aquilo que seu intelecto apreende (ta nenoeména) em palavras» (343a). As palavras e o intelecto possuem naturezas dis- tintas, as palavras sao inadequadas para expressar 0 que 0 intelecto capta, 56 0 intelecto é capaz de captar a coisa ela mesma (t6 én), chegar ao préprio real, su- perando por meio da dialética 0 dominio do sensivel que é 0 dominio do discurso, O discurso e a apreensao sensivel sio assim parte do processo do co- nhecimento, mas apenas como etapas a serem vencidas, como um caminho que aponta para a realidade superior das coisas mesmas (ta dita, td noeld), que sO 0 intelecto (nofs) pode conhecer, que sao objetos do intelecto (ta noetd). O segundo texto de Platao a que podemos recorrer é a célebre alegoria da Lin- ha Dividida (Republica, 094-511), em que Platao simboliza as varias. etapas ou modos de contato da mente humana com os mundos sensivel e inteligivel atra- vés de uma linha dividida em dois segmentos representando respectivamente o mundo inteligivel (noetd, as coisas inteligiveis, ou énfa, as realidades), e o mun- do sensivel (gignémena, objetos em mudanga; aisthetd, objetos de percepcdo; doxastd, objetos da crenga; horatd, objetos sensiveis). Cada segmento é por sua vez subdividido em dois novos segmentos. Pretendo concentrar-me apenas no seg- mento superior relativo ao mundo inteligivel, examinando as razdes de PlatSo para subdividi-to por sua vez em dois novos segmentos, representando duas eta- pas diferentes de acesso a essa realidade, sendo que alguns intérpretes (por exem- plo Austin, 1979, que passo a seguir) consideram precisamente a distincao entre pensamento (didnoia) e ciéncia (epistéme) como um dos propésitos centrais deste texto. O primeiro segmento em que se subdivide o segmento sobre o mundo in- teligivel € relativo ao matemitico. Segundo Platao, o matematico (geémetra) par- te de hipéteses para delas extrair suas conclusdes e utiliza-se de diagramas e desenhos de figuras que pertencem ao mundo sensivel. O fildsofo (dialético), por sua vez, em busca do verdadeiro conhecimento, deve superar as hipéteses, aban- doné-las, usando-as apenas como pontos de partida para chegar ao prinefpio nao hipotético (arché anypéthetos), no caso a forma do Bem. © termo «hipdtese» tem para Platao precisamente o sentido de uma definicdo ou postulado (cf. Austin, 1979, p. 300), pressupondo a existéncia do objeto definido, sem contudo demons- tra-la. Assim, embora 0 matemitico esteja se referindo a uma realidade supra- 10 Danilo Marcondes de Souza F* sensivel, inteligivel, tudo de que dispde so suas definigdes (Iégot), que perten- cem ao dominio do discurso e diagramas, que pertencem ao dominio sensivel; nao chegando portanto a alcangar ainda esta realidade suprasensivel. Os princi- pios ndo-hipotéticos precisamente ndo necessitam de um postulado existencial, de uma suposigao de sua existéncia, j4 que sio o proprio fundamento ontolégi- co do real. A definicdo é apenas uma imagem (eikén, eidolon) da forma, e nao a posse da coisa ela propria, da realidade da forma. S6 através do notis, do pensa- mento ndo-discursivo, podemos captar esta realidade, por isso enquanto 0 ma- tematico permanece ao nivel da dianoia, o filésofo (dialético) é capaz de ter este conhecimento possibilitado pelo nods. O acesso ao principio nao-hipotético sé pode se dar através do pensamento ndo-discursivo, ja que este principio por sua natureza nao pode ser definido por um [6gos, nem resulta de um postulado ou pressuposto. Embora haja outras passagens relevantes em Platdo® sobre esta questo, creio que as duas passagens examinadas acima ilustram perfeitamente a necessidade de introduzir o conceito de pensamento nao-discursivo para explicar 0 conheci- mento enquanto certeza absoluta, captagao da esséncia do real, acesso direto da mente (noiis) a coisa (6n). Em Aristételes encontramos igualmente uma defesa da necessidade do con- ceito de pensamento nao-discursivo. Os seguintes textos podem ser tomados como representativos, dentre diversos outros possiveis: Etica a Nicbmaco, VI, 6; Tratado da Alma, III, 6; e Segundos Analiticos, I, 2 ¢ 3, II, 19. Nos Segundos Analiticos Aristételes distingue 0 conhecimento cientifico (epistéme) que temos de algo porque conhecemos suas causas (1, 2, 71b9), de um outro tipo de conhecimento que se caracteriza pelo noiis e consiste na apreensdo dos primeiros principios (archai), do ponto de partida indemonstravel, do qual procede toda a demonstracdo (II, 19, 100b5). O notis significa assim a capacida- de de captar o cardter necessirio de cerlas verdades basicas que funcionam co- mo primeiros princfpios pressupostos em toda demonstracao. O conhecimento cientifico é silogistico, demonstrativo, consiste portanto de proposicées que se encadeiam de acordo com determinadas regras (schémata) permitindo inferir de- terminadas conclusées. Neste sentido, o conhecimento cientifico 6 discursivo, proposicional. Entretanto, para evilar a regressdo ao infinito da necessidade de demonstracio temos que supor certos principios basicos que servem de ponto de partida 4 demonstracao e sao por natureza indemonstraveis (1, 3, 72b). Ora, como se dé nosso acesso a estes primeiros principios? Através de uma intuicao ou apreensdo imediata, para a qual Aristételes emprega também por vezes 0 ter- mo epagogé (indugao) em um sentido especial, segundo 0 qual a inducdo nos le- va aos primeiros principios (cf. Ross, 1964, p. 217). O texto da Etica a Nicémaco (VI, 1139b25) nos esclarece mais quanto 4 natu- reza do noiis. Encontramos ai a distingdo aristotélica entre as cinco virtudes intelectuais: epistéme, téchne, phronesis, noils, sophia, caracterizadas como cinco for- mas de a mente alcancar a verdade. A introdugéo da nogao de verdade neste 3 Notadamente Sofista (final) c Tecteto (2014) em que Platéo afirma no pader haver um ldgos dos elementos simples, apenas dos complexos, os elementos simples no podem ser explicados ou conhecidos, mas apenas apreendidos por contato direto. Noiis vs. Logos Wl ponto é importante e serd melhor discutida mais adiante. Aristételes afirma que a epistéme, conhecimento cientifico, consiste em juizos universais ¢ necessdrios sobre as coisas e verdades demonstraveis, que dependem dos primeiros princi- pios que, por sua vez, s6 podem ser captados pelo noiis. Mais adiante Aristételes caracteriza 0 noiis como apreensao das definigdes que nao podem ser demons- tradas (114227), distinguindo este tipo de apreensio da apreensdo do particular e do varidvel que caracteriza a prudéncia ou saber pratico (phrénesis). £, entretanto, no livro III (6) do Tratado da Alma que encontramos a discussao mais explicita e elaborada a respeito da natureza do pensamento nao-discursivo em contraste com o discursive. O pensamento que apreende os objetos simples é incapaz de ser falso, é sé no pensamento que junta objetos em uma espécie de unidade que temos a possibilidade do verdadeiro e do falso. A falsidade sempre envolve uma sintese, uma combinagdo inadequada realizada pelo pensamento ndo possuindo uma correspondéncia com o real, tal como na famosa doutrina platénica exposta no Sofista (260-264). E a mente que unifica estes objetos e pode fazé-lo de modo adequado ou nao. Quanto a apreensdo do simples, Aristételes introduz ainda uma nova disting4o. Nao se trata do simples no sentido de aquilo que nao se encontra dividido, p. ex., uma linha, mas que pode ser dividido, j& que a linha pode ser apreendida em partes. Trata-se no caso do pensamento ndo-discursivo daquilo que ¢ indivisivel, que ndo tem partes, da apreensdo da natureza da coisa, ou seja, de sua esséncia constitutiva, apreensdo esta que n4o pode ser errénea e que nao se dé através de uma assercao de algo acerca de algo. N&o pode ser errénea por se tratar de um acesso direto a um elemento simples que portanto ndo depende de uma combinacdo entre objetos que pode ser adequada ou nao em relacdo ao real. Ou hé apreensdo, ou nao ha, mas ndo pode haver apreensio errénea ou falsa*. Assim, este tipo de apreensio é explicitamente caracterizado como pensamento nao-discursivo e contrastado com o pensamento discursive que é constitufdo por sentencas em que se diz algo de algo, em que se realiza uma sintese. Passo agora a examinar esta nocio de pensamento ndo-discursivo a luz da discussdo mais recente acerca deste problema (Lloyd, 1969/70, 1986, Sorabji, 1982). Segundo Lloyd (1969/70, p. 310), as caracteristicas do pensamento ndo- discursivo sao”: (i) é ndo-complexo; (ii) portanto, é nao proposicional j4 que pro- Pposicdes sao complexas; (iii) nao envolve auto-consciéncia; (iv) 6 descrito em termos de contato. A idéia de nao-complexidade parece ser entendida como apreensdo de esséncias ou conceitos direta e isoladamente e nao através da for- mulagio de um juizo que seria proposicional. E por este motivo que o pensa- mento ndo-discursivo deve ser considerado segundo a metafora do contato (cf. Metaffsica, IX, 10, 1051b24-25; XII, 7, 1072b21), que é direto, e nado como visdo, que admite graus de proximidade e de clareza. O pensamento ndo-discursivo nao depende portanto do estabelecimento de uma relacdo légica entre conceitos, da transigao de um conceito a outro, da predicacdo. Um dos argumentes princi- 4 Sobrea questioda verdadee da apreensio do néo-composto ver Metafisica, IX, 10, 1051b-1052a. 5 Lloyd (1969/70) baseia-se, em ultima andlise, em Plotino, considerando-o como o princi defensor desta nogo, embora sua caracterizacao seja de fato genérica, partindo das relagées entre 08 pensamentos de Platdo e Aristételes eo de Plotino. 12 Danilo Marcondes de Souza F° pais em defesa da prioridade do pensamento nao-discursivo sobre 0 discursivo parte exatamente da idéia de que se 0 pensamento discursivo envolve a transi- go de um conceito a outro, o estabelecimento de relagdes entre conceitos, por- tanto, entéo pressupée a apreensao isolada de cada conceito para que se possa fazer, em um segundo momento, a relacdo. E neste sentido que a doutrina da prioridade légica do conceito sobre 0 juizo é uma das causas principais da ine- xisténcia de um conceito de linguagem como estrutura légica auténoma no pen- samento antigo. Na verdade, & sé 0 questionamento, a partir de Kant, da prioridade do conceito sobre o juizo, e a conseqiiente inversdo desta prioridade, que abriré caminho para Frege e para a constituicdo da nocio légica de lingua- gem na filosofia analitica Do ponto de vista ontolégico, esta doutrina tem como conseqiiéncia a idéia de que os conceitos devem existir autonoma e isoladamente para que possam ser apreendidos pela mente através de uma intuigdo. Nao podem portanto re- sultar de nenhuma construcao mental que seria complexa, nem serem deduzi- dos de juizos, j4 que ai seriam derivados por anilise. E importante, para se esclarecer mais esta nocdo de apreenséio imediata de um conceito, examinar a relagdo entre o pensamento e seu objeto, aquilo de que é pensamento. Estas relacdo, entretanto, parece ja trair uma concepgdo de pensamento enquanto complexo, atributivo, ou seja, do verbo pensar em seu sentido transitivo: pensar que X, isto é, «que a alma é imortal», «que a justica 6 um bem», etc.. O pensamento nao discursivo equivaleria a pensar a alma, a justiga, etc., enquanto tais; isto é, corresponderia a uma espécie de posse do conceito de alma, de justica, etc.. Mas o que significa este pensamento da al- ma, da justiga? Como isto deve ser compreendido? O pensamento nao-discur- sivo seria assim uma forma de contemplacao, de presenca diante da prépria realidade da idéia ou do conceito. Dar-se-ia entdo uma espécie de identifica- ao entre o pensamento e o seu objeto, que seria captado enquanto tal, e ndo através de uma representagéo mental ou de uma definigdo conceitual. Nosso vocabulario parece inclusive inadequado para caracterizar este tipo de expe- riéncia, talvez porque esteja demasiado distante dos paradigmas segundo os quais entendemos o pensamento desde a filosofia moderna. Lioyd (op. cit.), en- tretanto, indica que Piotino, p. ex., chega mesmo a considerar que este conta- to com © real obtido pelo notis, jd que nado é complexo, é directo, ndo é pensamento. Trata-se de uma experiéncia nao intelectual ou racional, mas mis- tica, caracterizada como epibolé (Enéadas, V, 3.10). Plotino emprega os termos pronootsa (Enéadas, V, 3.10), uma espécie de «pré-pensamento», e, em outro contexto, hyperndesis, ou «superpensamento» (Enéadas, VI, 8.16), como ativida- de do Uno. £ 0 pensamento ndo-discursivo (nots) para Plotino que leva final- mente a unido com o Uno, o nivel mais elevado da experiéncia, que j4 ndo envolveria sequer mais 0 pensamento. O pensamento nao-discursivo seria, portanto, ndo-proposicional, ndo envol- vendo a predicacdo, 0 pensar que, ¢ caracterizando-se pela contemplacio iso- lada de conceitos. Seguindo Sorabji, no entanto, podemos nos perguntar se o pensamento ndo-discursivo pode ser proposicional? Mas o que seria «proposi- cional, porém ndo-discursivo»? Aristételes (De Anima, III, 6, 430b28) afirma que o pensamento ndo-discursi- Noils vs. Légos 3 vo leva a verdade. Como, se é uma contemplacao de um conceito ou esséncia isoladamente? A definicdo de verdade do préprio Aristételes” supSe a combina- do de conceitos, como j4 vimos. 56 proposicdes podem ser verdadeiras ou falsas, por referéncia a uma realidade determinada. Segundo Sorabji, na contemplacao de conceitos isolados nao se predica nada de nada, nao se formulam assercées. O pensamento ndo-discursivo aplica-se ape- nas a contemplagao da definig&do (enquanto esséncia) do incomposto (asyntheta) isto é, do simples, que ndo poderia ser apreendido de outra forma. Sorabji, en- tretanto, considera que neste caso o pensamento teria de ser proposicional, seria 0 pensamento que uma determinada esséncia pertence a uma determinada en- tidade. A saida para o impasse seria considerar ent4o a definicdo, neste caso, apenas como uma expressdo de identidade, em que no teriamos predicacdo pro- priamente dita, mas referéncia 4 mesma coisa duas vezes. Contudo, mesmo uma expressio de identidade tem necessariamente uma forma proposicional, jé que relaciona conceitos; assim sendo a solucao de Sorabji nao me parece inteiramen- te satisfatoria. Creio que a noc3o de pensamento ndo-discursivo exclui a possibilidade de entendé-lo como proposicional, e que este pensamento pode ser verdadeiro no sentido especifico de um acesso imediato ao real. Devemos supor que haja uma nogao de verdade prépria ao pensamento nao- discursivo, em que a verdade seria uma contemplacao da esséncia, uma espécie de revelacdo da natureza da coisa. Teriamos af uma verdade ontolégica, como manifestacao do ser, e nao légica ou epistemolégica (cognitiva no sentido pro- posicional). A dificuldade, entretanto, esta exatamente na passagem daquilo que € apreendido pelo notis para uma formulacio discursiva, isto é, através de uma proposi¢io. Voltemos, contudo, 4 nossa questdo inicial: 0 pensamento ndo-discursivo é uma idéia coerente, sustentavel? O pensamento nao-discursivo, por ser imedia- to, direto, se esgotaria em si mesmo, em sua propria realizacdo, nao possuindo permanéncia, nem sendo possivel nenhuma elaboracdo a partir dele, j4 que nao pode se expressar proposicionalmente. O «conhecimento» intuitivo que resulta- ria dele nao envolveria assim a capacidade de definir a tealidade apreendida, de determind-la conceitualmente. Portanto, se ndo tem expressio, 0 pensamento nao-discursivo é totalmente privado, incomunicavel. Nao pode ser verdadeiro nem falso no sentido em que nao envolve adequacao de um predicado a um su- jeito em uma sentenca que se refere ao real. Na realidade, como vimos acima, se- ria sempre verdadeiro, no sentido especial de uma captacdo direta da esséncia, de uma espécie de identidade.com 0 ser. Dessa caracteristica decorre a dificul- dade em explicar as relagGes entre 0 pensamento nao-discursivo e 0 discursivo. Como 0 nao-discursivo poderia vir a expressar-se no discursivo? Trata-se, por- tanto, da dificuldade de se extrair quaisquer consequéncias do pensamento ndo- discursivo ja que nao é inferencial e nada pode derivar-se dele. Nao teriamos como justificar que aquilo que supomos ou afirmamos, j4 no plano do discurso, ser derivado realmente o seja. Assim, a questo 6: do ponto de vista aristotélico, como explicar a relacdo entre a apreensao dos primeiros princfpios indemons- 6 — Ver De Anima, Ill, 6, 430a27b6, Categorias, 4, 2a7-10, De Interpretatione, 1, 1629-18. 14 Danilo Marcondes de Souza F* trdveis e o procedimento inferencial, discursivo, lingiifstico, dos processos de de- monstracao e argumentaco, do raciocinio portanto? Ou ainda, do ponto de vis- ta platénico, como explicar a dialética descendente? A relacao da apreensao das formas com 0s outros niveis de conhecimento que na linha dividida Ihe sao in- feriores, ou a volta do filésofo a caverna no livro VII da Reptiblica? Neste sen- tido, a posigéo mais coerente, embora mais radical, parece ser efetivamente a de Plotino, em que o pensamento nao-discursivo leva finalmente 4 contemplacao mistica, ao éxtase, A unio com o Uno, como finalidade da filosofia. Com efeito, parece-me que Sorabji tem razao ao vincular estreitamente a ques- to do papel do pensamento nio-discursivo A concepsao de filosofia como tendo por finalidade a contemplacao das esséncias, a posse da verdade em um senti- do absoluto. O pensamento nao-discursivo nao se caracteriza pela busca do conhecimento, da verdade, mas por sua posse, para a qual, como vimos, o dis- curso nao é capaz de contribuir diretamente. Apenas algumas correntes da filosofia, como 0 ceticismo em pelo menos uma de suas vertentes, valorizam a busca (zétesis) da verdade e do conhecimento como definidora da propria filoso- fia, j4 que posse do conhecimento é considerada impossivel. Na concepcéo classica, a filosofia enfrenta o seguinte dilema: enquanto discurso encontra-se inevitavelmente no terreno do [égos, entretanto almeja sempre realizar-se como noiis, como pensamento transcendente, apreensdo direta das verdades primeiras, contato direto com o ser; visa assim a superagao do discurso em uma realizagéo. contemplativa. Neste sentido, s6 a postulagao da existéncia do noiis podera ga- rantir a filosofia a realizagao de sua prépria tarefa. Bibliografia Aristételes, The Complete Works, od. W. D. Ross, Oxford Univ. Press. ‘Austin, J. L,, «The Line and the Cave in Plato's Republic», em Philosophical Papers, 3a. ed., Oxford Univ. Press, 1979. Coffa, A., «Le positivisme logique, la tradition s&mantique et l'apriorin, em J. Sédestik e A. Soulez. (eds), Le cercle de Vienne, Paris, Klincksieck, 1986. Guthrie, W.C. K,, A History of Greek Philosophy, vol. 11, Cambridge Univ. Press, 1965. Lloyd, A. 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