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DURKHEIM1
I-INTRODUÇÃO
Feito isso demonstrarei como esta noção articula relações com os mais importantes
pressupostos teóricos e metodológicos de Émile Durkheim. Numa terceira parte
apresentarei os problemas teóricos decorrentes da ancoragem do conceito nos pressupostos
referidos acima sem, contudo descartar a potência e a plausibilidade da utilização
sociológica da noção de Normalidade do Crime. Defenderei a idéia de que este último
conceito Durheimiano apresenta grandes possibilidades explicativas desde que seja
recolocado em termos que introduzam algumas variáveis negligenciadas
macrossociológicamente, bem como articule a análise das macro-estruturas sociais com a
elucidação de processos microssociológicos constituidores da Normalidade do Crime.
Para Durkheim (1987a, passim e 1989a, passim) o Crime deve ser entendido como
normal no interior de qualquer Sistema Social. A própria noção de Crime deve ser
recolocada: um comportamento não é reprovado porque é criminoso, mas é criminoso
justamente por ser reprovado em um determinado grupo social em uma época dada. O
exemplo de Sócrates é lapidar: aos olhos das sociedades ocidentais do século XX o filósofo
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Este artigo é uma versão modificada e desenvolvida de artigo anterior “Revisitando a Normalidade do
Crime em Émile Durkheim”, publicado em Rifiotis et alli (orgs.) (1999).
não teria cometido crime algum. Aos olhos de seus contemporâneos rompeu com normas
constituidoras da sociedade de sua época. Não existe, pois uma essencialidade substantiva
a-histórica do comportamento criminoso, mas este último é definido dentro da forma de
ordenamento da sociedade específica a que se vincula.
Pode-se deduzir assim que as sanções não operam efetivamente sobre os que
praticam crimes, mas levam a cabo um ritual para o benefício da sociedade. Os grupos
sociais são mantidos unidos (entre outros mecanismos) pela repetição de rituais
padronizados de punição daqueles que desrespeitaram normas sociais passíveis de
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Mestre e Doutor em Sociologia pela UFPE. Professor da Faculdade Marista Recife e AESO.
aplicação de sanções. Tais normas - específicas ou difusas - são expressões da Consciência
Coletiva. Definem comportamentos típicos (que chamaríamos Parsoniamente de Papéis), e
introduzem coesão e regularidade em sua execução. Por detrás deste sistema normativo
encontramos os valores, entidades semelhantes a preferências, mas relacionados a ideais
coletivos, e que se impõem como modelos ou projetos de ação coletiva. De um lado, o
sistema normativo pode ser justificado por referência a tais ideais capazes de tornar as
normas particulares respeitáveis ou atraentes. De outro, os valores, sob pena de
permanecerem irrealizáveis reclamam uma expressão que assegure sua eficácia. A Síntese
concreta e operacional da Díade Valores-Normas é a Representação Coletiva (variante
tardia da noção de Consciência Coletiva) que permite aos indivíduos articular o desejável e
o possível, considerado o estado de uma sociedade ou grupo específico. Esse sub-sistema
Valores - Representações Coletivas - Normas comanda a execução daqueles rituais que
fazem crer ao conjunto de indivíduos que a lei existe. Assim envolvendo intensas emoções,
coletivamente compartilhadas, cria crenças simbólicas que dão aos sujeitos a forte sensação
de pertencimento ao próprio grupo social. O importante aqui é que estas emoções sejam
fortes o suficiente para reforçar os laços grupais.
Neste sentido a sociedade se faz presente pelas ordens que decreta e pelas sanções
que coloca em ação, fundamentando todo o sistema normativo inclusive a norma jurídica.
O Direito repressivo e o Direito cooperativo especificam delitos e aplicam metodicamente
as penas. Quando o Direito se afirma enquanto atividade diferenciada assumindo as funções
repressivas e restituitórias através de órgãos especializados, a sociedade aparece claramente
visível em todo o decorrer do processo, do delito à sua punição ou reparação (mesmo que
nem sempre as ordens sejam obedecidas). O processo enfatiza a crença nas leis e gera elos
emocionais que unem os membros da sociedade a cada execução do ritual.
Do que foi dito acima podemos concluir que em Durkheim um certo nível de
criminalidade é benéfico, funcional e necessário socialmente (sendo inclusive traço normal
e inevitável de toda vida social) porque:
a) Crime provoca Punição que por sua vez reforça solidariedade nas comunidades.
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Obviamente não se trata de postular uma visão historicista ou mesmo culturalista em Durkheim, mas apenas
indicar que a sua diferenciação de tipos de sociedade pode implicar em variações no tempo e no espaço.
A idéia de Normalidade do Crime (Durkheim, 1987a), discutida no tópico anterior,
não aparece gratuitamente no corpo da obra de Durkheim. Ela funciona como exemplo
empírico do modelo teórico-metodológico do autor. Trabalharei aqui algumas das conexões
do conceito de normalidade do crime com alguns dos principais termos da equação
sociológica de Durkheim:
Note-se que esta concepção de Sociedade pressupõe uma entidade com vida própria
em (dentro de) cuja estrutura os crimes são construídos e também respondem pela sua
manutenção. É clara a anterioridade lógica e analítica da consciência coletiva (as
representações coletivas) sobre as escolhas individuais. Não são os indivíduos que
escolhem a carreira criminosa por si só, mas é a sociedade, mais ou menos integrada, que
oferece ou não aos indivíduos possibilidades de desenvolvimento pessoal em acordo ou
desacordo com os objetivos e fins colocados disponíveis pela própria sociedade. Frente ao
arranjo específico do ordenamento social e suas determinações morais partilhadas de
alguma forma por seus membros é que estes responderão comportamentalmente às
virtualidades e exigências do sistema social. A vida social parte diretamente do Ser
Coletivo que tem uma natureza sui generis. A Sociedade em Durkheim tem um status
epistemológico de objetividade com sua própria autonomia e leis de desenvolvimento. Não
há elemento complicador das relações entre consciência individual e consciência social.O
crime, mesmo que dependente da escolha individual, repousa sobre um conjunto de
condições socialmente determinantes (densidade moral e material), adequadas à
manutenção e reprodução de qualquer arranjo social que não esteja vivendo um período
transicional ou anômico. Não seria teoricamente criminoso dizer que em Durkheim como
existem correntes suicidógenas percorrendo as sociedades também existiriam correntes
criminógenas.
A exposição do conceito de Anomia feita acima nos permite inferir que estados
anômicos podem estar associados a níveis patológicos de criminalidade, que além de não
reforçarem mecanismos de solidariedade grupal da parte dos indivíduos membros não
praticantes de Crimes, contribuem pelo contrário, para o esgarçamento do Tecido Social.
Inclusive deslocando as arenas integradoras de punição de criminosos para arenas
desintegradoras, as quais competem com as primeiras - espaços já consagrados de
reafirmação das leis e da ordem social subjacente a um conjunto social qualquer.
Tomemos como exemplo o Crime enquanto Fato Social (Durkheim, 1987a). Por si
só ele já tem legitimidade para ser considerado um fato social dada a sua exterioridade,
generalidade e coerção (critérios durkheimianos sine qua non o objeto não pode ser
estudado sociologicamente) que exerce sobre os indivíduos, sejam eles criminosos ou não.
Sua Generalidade é demonstrada pela sua observância em qualquer sociedade que tenha
existido. A exterioridade pode ser visualizada nas penas para cada tipo de Crime, passíveis
de conhecimento por todos os membros da Sociedade. A Coerção se manifesta pela
existência real (quase material) de uma concepção partilhada de Crime, que quer seja
internalizada pelos indivíduos em maior ou menor grau, se impõe a eles como fato objetivo
de suas existências.
Não era meu intento aqui explorar exaustivamente os principais traços da obra
Durkheimiana, mas tão somente realçar alguns aspectos de seu arcabouço conceitual que
integrados de forma absolutamente coerente podem ser aplicados in totum a fenômenos
sociais diversos, inclusive ao crime, de alguma forma tematizado na obra do autor francês.
A Normalidade do Crime pode ser entendida assim relacionalmente no network teórico-
metodológico de Durkheim permitindo que agora a coloquemos sob teste, ou seja, a
submetamos à crítica, apontando os elementos que mantém seu poder explicativo, aqueles
que necessitam de um redimensionamento e outros que nos parecem carecer de deficiências
graves, comprometedoras, portanto de sua corroboração científica de uma perspectiva
estritamente sociológica.
Os rituais de punição não seriam uma forma de exercício da Política? O crime não
daria aos grupos dominantes a possibilidade de atualização da dominação através de
práticas cerimoniais conformadoras de um sentido comum e partilhado de Ordem
(sustentada, no entanto, em sentidos particulares, legitimados na coletividade exatamente
por estes ritos integradores que promovem a vivência de interesses e particulares em
sensação de comunalidade ou partilhamento dos mesmos interesses)? Ou seja, se o que é
criminoso é definido socialmente e a sociedade que define o crime apresenta divisões e
interesses, porque tais divisões e interesses não estariam presentes na própria conformação
do Crime? A Ordem Social não seria o resultado final da cooperação antagonística entre
indivíduos e grupos com preferências e interesses diferenciados, sendo o Crime um fato
social revelador deste tipo de mecanismo societário?
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As noções utilizadas por Cohen e Machalek vinculam-se claramente aos conceitos formulados no interior da
corrente sociológica entendida como Rational Choice. Assim, Payoff e Função de Utilidade Máxima devem
ser entendidos sinonimicamente como o benefício máximo que um ator pode obter adotando uma
determinada estratégia .Quando se fala em estratégia produtiva, se associa este conceito de forma bastante
geral a qualquer tipo de trabalho individual socialmente legítimo no interior de uma sociedade. Por outro
toda estratégia é sempre orientada em direção à função de utilidade máxima em uma
perspectiva individual, mas coabitam com comportamentos não racionais.
V-CONCLUSÃO
lado, quando se fala em estratégia expropriativa deve-se relacionar este conceito, também de forma geral, à
idéia de roubo, furto etc.
holística e harmonicamente acaba por contaminar seu modelo levando-o a omitir a
fundamental dimensão de Conflito e Poder presente onde há vida social. A noção de
Normalidade do Crime não escapa deste problema.
VI-BIBLIOGRAFIA