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3 A QuesTAo RaciAL NA GESTAGAO DA ANTROPOFAGIA OSWALDIANA No fondo da mata virgem nasceu Macinaimia, herd da nossa gente. Era preto retintoe filo ‘do medo da noite. Mario de Andrade Vous avez qu’a vous pencher sur la mer ow, la fasenda, etendu dans e bamae de la veranda vous liszer bercor par les appels mystérews, diurnes et rnociumes, de la fore vierge. Blaise Cendrars ‘A revolugao cultural e a renovagio estética - ambiciosas propostas da ma- nifestagdo mais ousada do modernismo brasileiro, a antropofagia oswaldiana ~ mostraram, curiosamente, poucos frutos quanto a um aspecto crucial da formagao da nacionalidade brasileira, cujo inven- tario critico os antropéfagos viam como indispensével. Referimo-nos A questio ét- nica na complexidade que a caracteriza € na qual se destacam, no Brasil, a presenga africana e seu legado. © presente ensaio remonta aos dois manifestos basicos de Oswald de Andrade, Heloisa Toller Gomes Universidade do Estado do Rio de Janeiro Pontificia Universidade Catdlica/Rio de Janeiro © Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) ¢ © Manifesto Antropdfago (1928), ven- do no primeiro a gestacio, de certa for- ma abortada, de um tratamento cultural potencialmente mais amplo e rentével da problemética racial brasileira ~ jd anun- ciado na prosa romanesca de Memérias Sentimentais de Joao Miramar (1923) ¢ confirmado nas realizagées da Poesia Past- Brasil (1925). questo racial seria revista por Oswald em sua obra ensaistica espe- cialmente em alguns dos textos reunidos, anos mais tarde, em Ponta de Langa. O Manifesto Antropdfago, por sua vez, nao contém referéncias nem remete & presenca afro-brasileira, quer em termos populacio- nais, quer culturais. Procuraremos distinguir os possiveis motivos subjacentes & mudanga de rumo apontada, buscando, na producao oswal- diana ¢ no contexto cultural daquela se- gunda metade da década de 1920, subsi- dios esclarecedores do desinteresse, mesmo Pane IV - RELEETURAS 405 "omald de trace, “Aa oro sul que venceu™ ‘on dane 0 Pat ‘labo, #881, 75 2a Resse de Anan teveosderrureres cess rere drtaso pubes ‘de maio de 19289 fverero 421025; sesonde den, (eer Tenimeroe a 158 tern a numero reptit), procegarseia ale appt de 19288 paginas tral Dio de So aut ase tabhe, eds ‘esr ce ess ews de Arcot = (did da Reta ere cad ar Sto Paso = 1° 0. Denes 1928-1523. Sz Fal, Al, 1975, com Irrodugo" de Auguste de Campos A anogate oa! ‘oimartd > Veriquese o canes ado so nde eo neat, ‘spsageic,cefede 30 rego. er sverss noes (3 Panta de antago. 92 Lee por eenpb ne psudtreudena “note Shute de Caner srt “Contste" am exgque ran 9 dente ‘indo woure. pos, ue ‘ontrlue poceas pare + formerto do Sa hoje Ee dre, vers, na res ‘mrantodsd nos cub contented ene ‘ips os Pros nero, rss ‘ese anda For oto ladon "Nota — A pedo com oer chaco palmate” aces poe “WEIL, O moro gus ras rere oder Oates nso eo than de O nego controaks grandezaeconbinca Ame prota et ra cones de ne todos" fang, amine raxgo ce snips de a9 ‘beso amber non 3) » da negagao, da tematica negra e seu ndo aproveitamento estético. Este ensaio vem, ois, um escopo € um objetivo especificos: nao se trata, aqui, de fazer um balango geral da antropofagia oswaldiana, em sua originalidade vitalista e com a riqueza de inovagio formal que a caracteriza. Trata- se, sim, de verificar como se comportou ‘em sua elaboragao ¢ emergéncia a temsti- a racial. Conforme sempre sucede porém, 20 se tratar da problematica no Brasil, qualquer que seja o Angulo abordado, a questo tende a extrapolar em tempo e es- aco os limites do exame proposto, Para- Jelamente, torna-se dificil limitar a sempre apaixonante reflexio sobre a contribuigao literdria de Oswald de Andrade a algum aspecto determinado, tais seu brilho e va- riedade de recursos. Estabelecido 0 desa- fio, passemos ao trabalho. ‘Tanto antes quanto depois da fase an- tropéfaga, Oswald de Andrade discorreu diversas vezes sobre 0 componente negro em nosso pais. Em varias ocasides comen- tou as ideias de Gilberto Freyre ¢ Sérgio Buarque de Holanda, discutiu as relagées raciais entre nés, comparou as relagdes raciais no Brasil com as de outros paises. No interior da Poesia Paw-Brasil, escreveu a impressionante série dos “Poemas da Co- lonizag4o”. © reconhecimento da contri- buigdo africana no Brasil encontraria, em Oswald, sua explicitagdo mais direta em 406+ Awraovoracta Hoye? Oswanp DE ANDRADE ea Cea, inicios dos anos 1940. Oswald referir-se-ia, entio, ao “[orgulho] da mistura milionéria que nos trouxe a Africa, com seus grandes nagés, seus fildes de cultura sudanesa e oriental e seus rijos e dlacres trabalhado- res do Benin ¢ de Angola®." Entretanto, na proposta e na elaboragio da antropofa- gia ~ ou seja, no Manifesto de 1928 ¢ nas duas edigdes da Revista de Antropofagia® ~ percebe-se uma retragio no tratamento da temética afro-brasileira, um “passar ao largo” da mesma que pode surpreender = principalmente se se comparar a produgao oswaldiana de 1928-29 ao Manifesto de 1924, Neste, a questo emerge, com impli- cages interessantes que examinaremos. A retracio posterior de que falamos nao se limitou 20 texto oswaldiano, permeando a produgio da maioria dos antropéfagos, 05 demais colaboradores da Revista.t . £ certo que, pata a proposta estético- filos6fica da_antcopofagia, com 0 devon ramento e digestio da historia do Brasil. sua heranga civilizatoria, 0 repertérig. simbélico apoiava-se num referencial i= digena, nao africano. Porém, vale lena que insistiam seus proponentes na abras= géncia do festim antropofago, pronto tudo incluir e devorar em sua dest construgio nacionalista: “porque a cida antropofagica ndo € uma revol literdtia, Nem social. Nem politica. religiosa. Ela é tudo isso ao mesmo: o (“De Antropofagia, Remetido da Sucursal do Rio pra Ci”, n. 4, 2 dentigio grifa- mos). Lembre-se ainda de que tal esquema nacionalista,ndo se pretendendo conter no mbito estético, afirmava ter seus funda~ mentos no solo real de um certo pais al- mejado: “O Brasilbrasileiro é que estamos construindo, déa a quem doer, se queixe quem quizer se queixar” (n. 9,28 denti¢ao). ‘Mais do que um paradoxo (estes, sem- pre bem-vindos, para os provocadores modernistas), temos aqui uma contradi- a0 no minimo intrigante. Na verdade, apesar de toda a sua proclamada vocagao de totalidade — que excluiria apenas a rigi- da eas “floridas ramificagdes pela politica ¢ pela literatura” tipo “Dr. Mandarim Pe- droso” (Jodo Miramar) — a antropofagia evitou a problematica racial brasileira. Ao relutar diante do tema nesta fase especi- fica, Oswald de Andrade pode ter esbar- rado na dificuldade que tradicional ¢ se- cularmente tem afetado a intelectualidade brasileira ¢ que, obviamente, trancende a questo estético-cultural, passando por dilemas ¢ por impasses muito arraigados no tecido social. O temor de encarar a dita questao negra, escamoteado no dis- farce da indiferenca, revela-se com recor- réncia na expresso literdria do Brasil, da €poca colonial aos dias de hoje, pas- sando naturalmente pelo modernismo € manifestando-se em eloquentes siléncios, meias-palavras ou discursos. permeados por sugestivas auséncias. Ha, certamente, notas discordantes a assinalar, no qualitativamente instavel cenario antropofagico. O “herdi da nos- sa gente”, chama a atengio Macunaima (publicado justamente em 1928), “é pre~ to retinto [2] filho do medo da noite”. A genialidade de Mario de Andrade confere, na pagina inicial de Macunaima (repto- duzida no segundo nimero da Revista de Antropofagia), 0 estatuto de protagonista a. um heréi preto — no para um Brasil ofi- cial e culto mas dentre a “nossa gente”; € faz esse her6i nascer de um “medo da noi- te” que, mais do que achado poético, cap- ta na contramao aspectos conflitados de ‘nosso imaginério coletivo. Além da dbvia associagiio entre o preto retinto € 0 escu- ro da noite, a frase pouco nos diz sobre personagem, devolvendo-o ao mistério de sua origem no “fundo da mata virgem”, Transcendendo o apelo facil do exotico, la remete a vertentes pouco ou mal abor- dadas, no discurso cultural brasileiro. En- ‘to, fala de medo. A abertura da genial fic- ao de Mario articula, assim, dois aspectos paradoxais na constitui¢ao do imagindrio de que falamos: a centralidade (populacio- nal, cultural, mitica) do negro no Brasil; ¢ a complexidade da questo émico-cultural brasileira, bem expressa na mengdo a um medo difuso, pai — prossegue 0 texto - Panre IV - Reverrunas - 407, “airopetage 0 mi veld sore Mlagetnen ner eos prosipis longa. Ma {gard wo 3 an expel Sino me mas pnb reg ta gus te Campos invodecao" 3 Rete se iroptaga: Reso ds seuss Paicach or BioPauby he 2aeruoes “esta de dopa, ne. daquela “crianga feia” que, na rapsédia macunaimica, a india pariu. Mario de Andrade, naquele momento, foi adiante, em relagao a sens companhei- 10s de geracdo. Sua (restrita) contribuigao 8 Revista de Antropofagia, por si s6, exi- be o interesse pelo material cultural afro- brasileiro, especialmente no campo musi- cal. Afastavam-se as propostas estéticas de Oswald e Mario de Andrade, Nao dis- cutiremos aqui os varios aspectos dessas divergéncias, assinalando apenas 0 cres- cente estranhamento entre Mario e os an- tropofigos: a partir do quarto ntimero da segunda denticéo (foram, estes, dezesseis, erroneamente numerados como quinze) cessa a participagdo de Mario na revis- ta, Durante a fase da segunda dentigio — quando, lembra Augusto de Campos, a antropofagia adquiriu os seus definitivos contornos como movimento* ~ Mério ra- ramente foi colaborador, tornando-se, por outro lado, alvo frequente da critica dos antrop6fagos liderados por Oswald: ‘Quetn faz discursos ao st. Gomes Car- dim, credo! nao somos nés, antropéfagos que gracas a Deus literatos ndo somos. Eo st: Mario de Andrade, 0 cétebro mais con- fuso da critica contemporanea.* Talver o distanciamento entre © Mério de Andrade macunaimico e a antropofa- 408 -ANtmororacia Hoje? Oswarp pe Axpnane Ent Can gia (por mais que seus proponentes cont: nuassem reivindicando, recorrentemente ‘© parentesco com 0 livro de Mario) seje um bom ponto de partida para se pensar e relutancia quanto a0 aproveitamento es- tético do elemento negro, na composigae da proposta antropéfaga. O que de fato emerge, no horizonte an: tropofagico, é a utopia do Brasil, nao uma percep¢ao consistente do Brasil — cuja vio: encia de pais colonizado fora to contur: dentemente evocada por Oswald nos “Po: cemas de Colonizagao”. Estes tém assim see paralelo, em termos de visada critico-esté tica, no Manifesto da Poesia Pax-Brastl, distanciando-se do Antropéfago. 4 A teorizagao sobre a formagio racial brasileira, que tomara corpo a partit di década de 1870 ~ na qual a reflexdo bre o legado africano emergira, naque momento, em grande parte gragas esforgos pioneiros de Silvio Rome ocupava crescentemente os intele agora nos anos 1920. Escritores ¢ tistas sociais, Gilberto Freyre a organizaram em 1926 0 T Con: de Regionalismo em Recife, de cia francamente oposta & da S: Arte Moderna e ao eixo Rio-Sao Divergindo do modernismo aordes dos iiltimos anos da década de # (com a lideranga de Jorge de na poesia), Oswald os antro: | i desinteressavam-se do aproveitamento estético do elemento negro ¢ da reflexio correspondente. O assunto, ironicamen- te, parecia voltar ao tabu. Para aqueles escritores, em geral jo- vens abastados e de gostos cosmopolitas, tornou-se mais convidativo naquele mo- mento evocar ¢ invocar o indio, cuja con- traface real deixara de constituir um pro- blema brasileiro urbano, mormente no sul. J4 0 negro pertencia ao dia a dia dos modernistas, em incémoda proximidade que remontava a velhas feridas ~ situa- Go pouco condizente com as perspecti- vas de otimismo nacionalista vigentes no grupo antropéfago. Afinal, apenas qua- renta anos separavam a antropofagia da mal resolvida escravidao. Na elaboragao ¢ praxis da utopia antropéfaga, foi prefe- rivel conceber maledveis indios atempo- rais. Por outro lado, zombando do india- nismo romintico e fabricando bons ou maus selvagens, eles sabiam que estavam temstica ¢ secularmente em boa compa- nhia — de Léry © Montaigne a Rousseau e Lévy-Brihl. Malgrado sua critica desabusada dos romanticos (“Contra o indio de tocheiro. indio filho de Maria, afilhado de Ca- tarina de Médicis e genro de D. Ant6nio de Mariz” ~ Manifesto Antropéfago), Oswald reduplicou a atragao romantica pelo pasado indianista, especialmente pelo mito pré-cabralino. Executow mes- mo, nas palavras de Augusto de Campos, um “indianismo as avessas” — prefigura- do, alis, cinquenta anos antes pelo ma- ranhense Sousindrade.* Como sucedera entre 0s antecessores oitocentistas, nao havia certamente no tratamento literdrio do indio qualquer consisténcia histérica ‘ou antropolégica. No século anterior, 0 indio havia ocupado a lacuna que, sen- iam os romanticos, nos faltava, tornan- do-se mito de origem. Agora, tornava-se ele metéfora, ou carro-chefe, da antropo- fagia. Ampliava-se 0 suporte mitico-po- Gtico em que se haviam apoiado Alencar ¢ Goncalves Dias, abrindo-se para uma perspectiva filoséfica (ludicamente dada) da nacionalidade brasileira. Nesta, 0 pa- rentesco com 0 indianismo roméntico é inegavel, mesmo que pela via do “anti” (sai Peri, entra Cunhambebe) e apesar dos epitetos inflamados, do tom didatico e de- clamatério enfatizando as distingdes: 0 indio que queremos no é o indio de goiabada, inspirando poemas lusos a0 st Goncalves Dias € romances francezes a0 se. José de Alencar. Bsse indio decorativo € romantico nés damos de presente & Acade- mia de Letras (n.15, 28 dentigio). © Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em contraste, j em seu primeiro fragmento Pane IV - Reterrunas 409, * Augusto de Campos, "pase Anode, Man esto Poesia Pa ‘anal de Arcade, Obs comple 6 Do Mu 05! 2 Anropotgi 35 Vins. Irfan de Benet ines oe ro, EC nar Baler, 1973 ‘O wentest fa plc ne Care on. lane, de 1 de mor deniae Camas pane da ago ‘t Obras Comps apontava, em bela sintese metonimica, para a presenga fisica e cultural da po- pulacgio negra urbana: “Os casebres de acafrio ¢ de ocre nos verdes da Favela, sob 0 azul cabralino, sao fatos estéticos”. Prossigamos na leitura: © Carnaval no Rio é o acontecimen- to religioso da raga. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordées de Botafogo. Barbaro e nosso. A formacio étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapé, 0 ouro ¢ a danga.’” So abundantes, no desenrolar do Ma- nifesto da Poesia Pau-Brasil, farpas irre- verentes a0 nosso “lado doutor” personi- ficado em Rui Barbosa: “uma cartola na Senegimbia”; assim como & artifcialida- de grotesca do high society: “negras de jo- ckey” ~ mimica ridicula do bom-tom lon- drino ou parisiense. O texto nao perde de vista a formagio étnica rica em ebuli¢io destacando nela, naquela mistura de sério € de jocoso dinamicamente oswaldiano, 0 componente negro. E ainda em Pau-Brasil que surge o des- confortante, enigmatico fragmento: Uma sugestio de Blaise Cendrars: ~ ‘Tendes as locomotivas cheias, ides partir. ‘Um negro gira a manivela do desvio ro- tativo em que estais, O menor descuido 410- ANTROPOFAGIA Hoje? Oswat Dz AnDuaDe eat CENA, vos fard partic na diregao oposta 20 vos so destino. Proponho utilizar este fragmente como chave, buscando compreender posterior suspenséo da questio racial ne antropofagia oswaldiana, Partimos da hi potese de que justamente 0 Manifesto de Poesia Pau-Brasil & 0 “desvio rotativo” de onde deslancharia a proposta ~ mais ra: dical porém, em termos de avaliagio de questio racial brasileira, mais estreita = do Manifesto Antropéfago que o sucedew Para prosseguirmos na exploragao dé fragmento, faz-se necesséria uma breve mengio a0 papel, na estética oswaldis na daqueles anos, de Blaise Cendrars cujo nome e voz 0 fragmento em questi evoca, Remontaremos, entdo, a0 préprit Cendrars, em passagem esclarecedora dé seu ponto de interse¢ao com os moderns) tas capitaneados por Oswald. Observe, mos detalhadamente as expectativas cae turais do poeta europeu diante do Bi do intelectual brasileiro: Vous avez la chance de ne pas ‘passé livresque |..). Vous waver qu ‘pencher sur la mer ou, i la fazenda, dans le hamac de la véranda vous bercer par les appels mystérieux, et nocturnes, de la forét vierge. possédez tout cela: les “conqui la chasse & Phomme, les mines d'or les es- claves, les belles indiennes et les fécondes Négresses dont les relevailles annuelles étaient un capital siir (...).° Entre 1924 ¢ 1928, precisamente em 1924, 1926 © 1927, Blaise Cendrars visi- tou o Brasil. Foi 2 época em que Oswald fermentou sua proposta antropéfaga. Durante esses anos, estreitou-se a amiza- de entre Oswald o poeta suigo-francés, com diversos encontros (de que também participou Tarsila do Amaral, ent3o mu- Iher de Oswald) no Brasil e na Europa. A relagio com Cendrars esfriou e desfez-se, aparentemente, em razio do rompimen- to entre Oswald e Paulo Prado, este sim grande amigo de Cendrars até a morte de Prado, em 1943. Cendrars foi sem diivida alguma mar- cado, em sua vida individual e produgio artistica, pela experiéncia brasileira e pe- os amigos que fez no Brasil — “les fow- gueux modernistes paulistes” — tornan- do-se também presenca marcante na obra nas ideias de Oswald. Em consonancia com a voga modernista europeia do ini- cio do século XX, Cendrars interessava-se pela cultura africana, pela miisica dos ne- gros norte-americanos, pela arte negra cm geral. Organizou uma Anthologie Négre publicada em Paris, em 1921; 1923 foi o ano de seu ballet african, La Création du Monde, encenado também em Paris. No més de maio de 1924, proferiu em Sao Paulo a palestra “A Literatura Negra”. Cendrars percebeu, A sua maneira, a for cae fertilidade da heranca afro-brasileira. Segundo seu bidgrafo Louis Parrot, muito melhor do que em Africa, foi nas cidades costeiras do Brasil, ou no interior da selva, que Blaise Cendrars descobriu a alma negra; ou, pelo menos, foi a, num ce- nirio que nos descreveu com toda a sua ardente magnificéncia, que nos dew sobre cla, acerca da raga negra, as observagoes sais profundas.!” Nao ha diividas quanto & “sede de exo- tismo” a sublinhar o entusiasmo de Cen- drars pelo Brasil: ele chegou a muitas de suas observagdes brasileiras através das lentes distorcidas do exdtico. Aracy Ama- ral sintetiza, em seu Blaise Cendrars no Brasil e.0s Modernistas: © lado critico-social inexistente em Cen- drars no que diz respeito no Brasil, Nosso pais permaneceu em sua retina mental 0 Brasil-col6nia, via Paulo Prado, misterioso « fascinante, ou o exotismo por ele apreen- dido em suas estadas entre nés, com toda 1 improvisagao, a cenografia, e a magia da mescla de civilizagées aqui contidas e im- plicitadas em nossa maneira de ser! Panre IV - Revestunas 411 Apu sesor ama ‘te Conca ofa fe toe Se Fa sera 36 1957,p. 1 "ale Cena op ‘rp, Fas Dees, 198 pises? "pus ey A Ama ox. 190, dem, 9.173, epassr "ane Nava Reis, Sonn Neo, Booka Bron Sho Fl, taste. 1904 9. 35 Ho metro lr, es p.3- Opie moments (ass mantestagces micas sie-tasecs) pelo oo segurerto ara fom cepacia da cantare dancin, ‘prio oars ct 18s tadundos pls regs moans a ea, eno a nrocucao de ios es- oes 0 esl clos, ce ‘aca pelo cece ‘dsctimracso werados plo sede domnante soofe toca enusaue po de reuniea do grupo nego "ode ney aide oe Petduou tao deste Stevo. or uso do, na cca e190, carga corn Frequencies como segue, em jornal do RO ‘delaeto gue veorauae fava estoperoy30 ed pico a aperutdade deouur vino rstumortes ‘malconis pla aia example cake, cao ‘ dstica odes ois Sno incntinde P veo lta tea eld Iinpartines co compecnsto soma amos apenas (uevans ous enzo a aga Onze com mat cen fra 30a ana) Ofince sporio teens sorts pms cloco: promos vatestsinas que edo en eostio numa nas 8 Copia”, p43 Sublinhemos agora, em paréntese, um aspecto que diretamente nos. interessa neste momento, relativo ao contexto cul- tural brasileiro daqueles anos. Justamente na década de 1920, a miisica negra bra- sileira ganhava notoriedade e, através do samba, descia os morros cariocas atingin- do crescentemente em grande parte gra- gas & nascente indiistria fonografica — a populagao urbana, A imprensa noticiava € consagrava 0 samba, finalmente aceito no espaco ptiblico, apesar dos pruridos de reserva dos puristas: “As amostras de samba situavam-se dentro do exético, que tal populacdo via nos descendentes de es- cravos”,escreve Ana Maria Rodrigues em Samba Negro, Espoliacao Branca, Os pri meiros desfiles de Escola de Samba datam da época antropofagica, os fins dos anos 1920, vindo a ser oficializados ¢ regula~ mentados em 1935." Com ou sem a mascara do “exético”, € certo que a cultura negra ganhava mais espago naquele inicio de século XX, suas manifestagées ainda libertando-se das perseguicGes policiais tao frequentemen- te descritas nos noticidrios da imprensa oitocentista. A misica popular brasileira, com seu basico fundamento afticano, ja fora valorizada pela literatura nos primei- ros anos do século ~ basta lembrar, como exemplos, crdnicas de Jodo do Rio e 0 violeiro “Ricardo Coragio dos Outros”, 412 Awrnororaci4 Hoye? OSWALD DF ANDRADE EN CENA criago de Lima Barreto em Triste Fim Policarpo Quaresma Agora, nos anos 1920, a cultura neg estava no ar ~ certamente desdenha pela erudigio conservadora que os a tropéfagos abominavam. Oswald de A drade prestigiou a crescente visibilida € abrangéncia da cultura afro-brasilei urbana, apta a subverter padrdes de gc tos calcados na Europa, ao destacar ‘ Carnaval no Rio”, no inicio do Manifes da Poesia Paw-Brasil: “Wagner submer ante os cordées de Botafogo” Justifica-se aqui a referéncia A mi a afro-brasileica — ao samba, especifie mente ~ pois ela ser o fio recondutor uma das questées levantadas de inici entrelacando-se ao comentério em tom de Macunaima, Sigamos os comenties de Ana Maria Rodrigues, remontands. época colonial: ‘ Desse modo, sew canto, seu mi dangar [o dos negros], © uso do tas para marcar o som dos seus ritmes 458 recriados na nova terra com tracos 1 cantes do local de origem, sendo: testemunhados nos sem-fins da ‘Talvez por sua caracteristica sensual « volvente, esses cantos © dancas sem nos senhores proprietérios ges que iam do medo a célera. Me cardcter desconbecido dos ca a e sensagdes misticas dos sons dos batuques ‘que se perdiam na terra semisselvagem c6- lera pela continuidade monétona ¢ envol- vente de tal ritmo." Percebamos as diferengas nas _per- cepgdes que estamos evocando, diante do material cultural afro-brasileiro. Na passagem de autoria de Blaise Cendrars, vemos 0 poeta europeu sensfvel ao im- pacto da hist6ria brasileira que chegou a vislumbrar, 8 pujanca natural e cultural em espeticulo diante de seus olhos, aos “apelos misteriosos da floresta virgem” € a diversidade étnica: tudo A disposigo do intelectual brasileiro arguto, segundo ele, bastando apenas aquele deixar-se embalar (“vous laisser bercer”), mutrindo-se na su- culenta abundineia, Ao enumerar € con- templar, em sua ética de outsider diletan- te,a riqueza brasileira, ele destaca 0 negro a densidade dramética de sua presenga. Cendrars nao se mostrou, tampouco, me- nos arguto na nua € crua constatagio da exploragéo econémica (“capital stir”) da populacdo negra ~ sempre se mantendo, decerto, na perspectiva das elites brancas. Para Mario de Andrade, em Mactnat- ma, o cendrio circundante deixa de ser tao somente aprazivel e convidativo, aborda- do segundo a ética do intelectual cosmo- polita. A abertura do livro dramatiza 0 mistério da floresta também referido por Cendrars mas, em lugar da plécida, quase passiva, captagao e fruigo no balanco da rede patriarcal, invoca ali o medo da noi- te, “pai” de Macunaima ~ ¢ 0 mistério de tanta terra, cultura e humanidade ainda inexploradas. ‘Mais recentemente, como vimos, a pes quisadora da miisica negra constatava 0 medo do colonizador diante da experién- cia cultural afro-brasileira — vista por ele ‘como ameacadora ~ rastreando tal medo de volta a0 universo escravista. E Oswald, como se situa ele no “des- vio rotativo” de que falava © fragmento do Manifesto da Poesia Pau-Brasil? Ow quem fala nele é Cendrars? Tendo organi- zado alguns elementos do cendrio cultural em que se montava a peca antropéfaga, talvez possamos entender melhor a ad- verténcia do proprio Cendrars a Oswald no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, com aquele enigmatico negro: Protagonista? Antagonista? Voltemos a nosso fragmen- to-chave, A sugestiio que merece 0 enfoque de Oswald é ambivalente: 0 personagem ali brevemente mencionado ~ “um negro”, sem vor, atributos ou adjetivos ~ é entre- tanto mostrado como agente: “gira a ma- nivela do desvio rotativo em que estais”. E preciso cuidado com o silencioso ator, parece advertir “Cendrars”. O menor descuido (do negro? daqueles a quem se PaRre IV - RELEITURAS “413 "xen, 9. 202 ot “come o peronagem nea "by do cont Faun 3 Roser ey dirige, em discurso direto, a suposta voz de Cendrars?) vos fara partir na diregao ‘oposta ao vosso destino” (grifamos). Sugerimos que, no Cendrars absorvi: do (devorado, se quisermos) por Oswald de Andrade, 0 cosmopolitismo ofuscou parte do componente brasileiro buscado na composigio de uma arte nacionalista € modernista de “exportacio”. A sensa- do de exotismo que maravilhou o euro- peu Cendrars pode ter sido vista com um sorriso de condescendéncia pelo brasilei- to Oswald de Andrade. Este jamais foi cerceado pelo exdtico que, justamente, sempre desmistificou, na recriacio lite- réria de “Rios, caudais, pontes, advoga- dos, fordes pretos, caminhos vermelhos, porteiras, sequilhos, misicas, mangas” ~ enfim, dos Estados Unidos do Brasil” (Serafim Ponte Grande). ‘Mas 0 trecho do Manifesto da Poesia Pau-Brasil em questio também sublinha que Blaise Cendrars nao subestimou a pu- janga da presenga negra no Brasil - a pon- to, sugere a interessante miniparabola que €0 fragmento com o qual trabalhamos, de ver 0 negro como potencialmente capaz de inverter o destino cultural do pats. Percebe- se um certo didatismo paternalista na su- posta sugestio de Cendrars ~ na verdade, uma adverténcia & cautela, contra 0 menor descuido. “Ides partir”, tudo parece pron- to para a aventura modernista do jovem 414 ANTROPOFAGIA HO}E? OSWALD De ANDRADE Eat Cena século XX = talvez o passaporte para in- troduzir o Brasil, com seus talentosos artis- tas e escritores, na comunidade intelectual comtemporanea (leia-se, europeia). O giro da manivela daquele negro pode, contudo, levar “as locomotivas cheias” em outra direcdo. Diregio em que 0 “primitivismo africano” emergisse sem o controle inte- Iectual do Ocidente civilizado? Parece-nos ue sim, que proyavelmente é este 0 senti- do da adverténcia, A estrutura fragmenta: da dos Manifestos e de muito da obra de Oswald, com interrupgées em momentos cruciais do tecido textual, previne contra ¢ fechamento do sentido, impedindo 0 con forto das conclusdes. Afinal de contas, 0 autor do Manife to da Poesia Rau-Brasil é sempre Oswald, io Cendrars. Mas, na letra do texte, Oswald cede brevemente a vor a rats, atribuindo-the adverténcia denoms, nada, ali, “sugestao”, e parece mesmo d= vertir-se com a perplexidade, ou a nog do impasse, que o acomete, Faz surgi, we tanto ameagadora, aquela figura sibita ¢ inesperada, a girar a manivela do destino/desatino — figura que se as parece pertencer & linhagem de negros faulknerianos: eles despont texto ¢ participam da aco, manten cenigmaticamente mudos."* Nao ha, contudo, por que super Cendrars e sua influéncia sobre de Andrade, Se tanto o destacamos, neste trabalho, é porque chama a atencio 0 des- taque dado pelo proprio Oswald ao poeta europeu, a ponto de fazer-se dele porta- yor no Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Por outro viés, Cendrars pode bem ser visto, ele sim, como porta-vor da civiliza- cio europeia que, da forma como emerge no Manifesto de 1924, entra em confron- t0- melhor dito, registra-se um confronto —com outra e poderosa vertente geradora do imaginario brasileiro, a africana. No inicio do Manifesto da Poesia Paw- Brasil, surge a alegre louvagao do que € “barbaro € nosso”. Mais adiante, no ‘mesmo texto, vem A cena 0 europeu com sua intrigante sugestio de cautela que Oswald “transmire” mas ndo.comenta, Oswald parece estar sendo advertido por uma Europa que, aqui, ameaga devors-lo = ou abandoné-lo, Em outras palavras: © Manifesto da Poesia Pau-Brasil reconhece uma situagio cultural tensionada, dela ti- rando partido. Ao acolher a diversidade €tnica ¢ cultural brasileira, em seus tons conflitantes, 0 texto de Oswald ricoche- tcia o impasse de diferentes herancas ¢ incertos futuros em direg4o ao leitor. Isso no sucede, entretanto, no Manifesto de 28 € na fase antropofaga em geral, onde tal tipo de tenso se rarefaz. Ali, prevale- ce a utopia e, para tanto, neutralizam-se atritos éticos e herangas contraculturais. © que justifica a impressio de que a an- tropofagia oswaldiana, em sua irreverente metdfora digestiva e apesar da cabal nega- sao do proprio Oswald, incorpora e leva adiante, mais do que elimina o legado ci- vilizatério europeu. Durante ut6pico paréntese, que cor- respondeu aos anos do “sarampao an- tropofagico”, Oswald de Andrade abs- teve-se de incorporar a sua literatura a problemstica racial e 0 componente afto- brasileiro. Ele entao nao fez uso, como material artistico, da “formacio étnica rica” cuja importincia assinalara © que emergira de maneira breve mas com for cae complexidade anos antes, na fase do Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Porém, 0 aproveitamento abrangente de nossa for- macio e heranga cultural no deixou de persistir teimosamente, durante os anos antropéfagos do nosso modernism: telas de Tarsila do Amaral, na poesia de ‘Ascenso Ferreira, nas travessuras de Ma- cunaima. Felizmente para nés, seus leitores do presente, Oswald de Andrade é maior do que todas as suas diferentes fases respec- tivamente abordadas. Nele, quaisquer que sejam as vertentes € trajet6rias que se pretenda enfocar ~ a exemplo da cul- tura ¢ da vivéneia do Brasil -, a sempre desafiadora pluralidade de angulos tem que ser levada em conta. 1as Pane IV - RELEITURAS - 415, "Nese entia Ws “propane Como magna, ue Cos Lime "Mantes anton ago represema ena tp ro pres deiner trong dvi oe ta ber ue ar {ta bencenad por Os ‘ono nio mas pica fdesvug do mundo n Ernco pinto Senza q 2 ees do ras Pome nas Fences sare, ecco, 1981, Avesta do pascoron (ode Osa de Anca usr 8 ado carpe ves “imorecaaoo Tistc Ge nay’ eo de 1 fubicaco a Maria Eup. Soeur re) Obras Cogito Osa ce ‘Ancbade Eta e Fob ‘Soul, cite, 1903 Se: "O gue me ners fess esscuress E09. fara nao norer eect 2 ca teers ave ‘estar, ad Ree prt Bidet perro Nerd pra qualquer {ete pasa dames ae dolore cae (aidlc-putana. 0 que lesa cveaso oiert aciegio more met oso ei. 0 $9 ararao 3 crea cose esa ol", p. 2

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