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O documento descreve o impacto do filme Cidade de Deus, mostrando como ele desmascara a crueldade da sociedade brasileira ao revelar a realidade da violência e da pobreza nas favelas. O filme faz o público se sentir culpado e desamparado ao ver a vida interior dos miseráveis. Ele também revela que existe "um outro mundo" nas favelas, com valores e cultura diferentes, que já está além do alcance do estado para ser resolvido.
O documento descreve o impacto do filme Cidade de Deus, mostrando como ele desmascara a crueldade da sociedade brasileira ao revelar a realidade da violência e da pobreza nas favelas. O filme faz o público se sentir culpado e desamparado ao ver a vida interior dos miseráveis. Ele também revela que existe "um outro mundo" nas favelas, com valores e cultura diferentes, que já está além do alcance do estado para ser resolvido.
O documento descreve o impacto do filme Cidade de Deus, mostrando como ele desmascara a crueldade da sociedade brasileira ao revelar a realidade da violência e da pobreza nas favelas. O filme faz o público se sentir culpado e desamparado ao ver a vida interior dos miseráveis. Ele também revela que existe "um outro mundo" nas favelas, com valores e cultura diferentes, que já está além do alcance do estado para ser resolvido.
importante, um acontecimento crucial, um furo na conscincia nacional. Fui ver o filme e sa modificado. Tenho a impresso de que esse filme no se diluir como um espetculo digervel. Ns no vemos esse filme; esse filme nos v. Com essa epopia da guerra dos miserveis que nasceram no livro de Paulo Lins, sentimo-nos desamparados na platia. Nossa vida de espectadores, com roupas e comidas, com namorada do lado, com pizza depois, ficou ridcula. Cidade de Deus faz balanar nossa sensao de "normalidade". No d mais para acreditarmos apenas que o crime tem de ser combatido para que a "ordem" seja mantida. Destri-se nosso "ponto de vista" e viramos uma platia de culpados. Esse filme agrega uma descoberta opinio pblica do Pas que nunca mais poder ser ignorada. Enquanto a misria era dcil, ningum se preocupava com ela. Nossas empregadas surgiam de manh, sumiam de noite, nossos faxineiros, copeiros e engraxates eram seres abstratos. Os pobres pareciam no ter vida interior. Podamos romantiz-los, rir deles, paternaliz-los, tudo. Mas, a TV, a comunicao democratizante do consumo fez surgir uma massa miservel, mas desejante. Pulsa nos bailes funk uma brutal corrente de expresso, a violncia como fome e linguagem. A indstria cultural estimulou o desejo e a cocana e o trfico de armas trouxeram os meios para sua possvel realizao. Depois que a cocana despejou milhes de dlares sobre o mundo da misria, o contentamento letrgico da excluso virou fome de consumo, a aceitao da escravido disfarada de "emprego" virou uma invaso do pas "branco". No mais inferioridade; diferena. Agora, pau a pau. Existimos ns e eles. Um outro mundo est aparecendo, no como decadncia ou ameaa, mas como sinistra cultura, pavorosos valores, tudo sob o manto sombrio da morte. Estamos enfrentando agora a morte no olho. A tragdia das periferias brasileiras sempre foi um terremoto ignorado, para o qual ningum enviou patrulhas de salvamento. J houve um terremoto e todos ns tentamos esquec-lo, subindo grades em nossas casas, com os socialites cheirando o p malhado de otrios e perpetuando essa misria. Sempre tivemos uma conscincia epidrmica dos problemas do crime. E s sabamos dizer "que horror!", mas esse filme nos faz entrar dentro dos lamaais, dentro das chacinas, dentro de tudo que sempre detestamos ver. Cidade de Deus no o retrato condodo das favelas; no tem um s trao de sentimentalismo. Ele tambm o nosso retrato, a 24 quadros por segundo, com nossos rostos aparecendo por trs dos meninos de 10 anos se matando com metralhadoras e fuzis. Ali esto visveis todas as pistas de nosso caos, que levam sordidez de nossas classes dominantes, s mentiras polticas, s falsas bondades, aos retricos ideais nacionais. O filme prova nosso despreparo para resolver as tragdias sociais, mesmo que houvesse vontade poltica. O filme no conta o que aconteceu; o filme mostra o que est acontecendo agora, sem parar, enquanto o assistimos ou lemos estas linhas. O filme nos revela que houve uma "mutao social", tica, fsica. Ao sair do cinema, tive vontade de gritar nas ruas: "E a? Ningum vai fazer nada? H milhares de crianas se matando e vamos continuar falando em criminalidade como um caso de polcia?" E logo depois penso: "Fazer o qu? Com que verbas, com que bilhes de dlares, com que vontade poltica, com que aparelhos do Estado, se o Estado est sendo tragado para dentro da misria armada? Os fatos esto mais adiantados que a lei. No adianta esta eterna guerra triste de policiais mal pagos e corrompidos (justamente) contra miserveis lutando por existir. Aquelas crianas armadas esto acima do bem e do mal, sim. Precisamos de novos conceitos para entender este problema de Estado e da sociedade. Filme e fato so um retrato da sinuca de bico em que est o Pas todo. Em Cidade de Deus, o documento invade a fico. Antes, havia uma "esperana" terica; hoje h o absoluto impasse. H 40 anos talvez houvesse uma soluo higinica, assistencialista. Hoje, no adianta mais o papo de luta de classes, de conscientizao, cidadania. Eles j se "conscientizaram" sozinhos, em outra direo. Tarde demais, polticos egostas; trata-se agora de um muro de chumbo, com razes fundas. Quem vai resolver? Com que verbas, com que direito, com que poderes? E quem disse que eles ainda querem que ns os "salvemos"? O filme de Fernando Meirelles, co-dirigido por Katia Lund, extraordinariamente bem produzido, bem dirigido, bem fotografado. Uma obra-prima; mas, no se trata de dizer na sada: "Gostei ou no gostei." No se qualifica a descoberta de uma doena. Cidade de Deus fura as leis do espetculo normal, trai a indstria cultural e joga em nossa cara no uma "mensagem", mas uma sentena. Estamos condenados a viver com essa tragdia, ela vai continuar crescendo como um tumor e no estamos preparados para cur-lo, porque fazemos parte dele, com a polcia vendida, a lei vendida, os negociantes envolvidos, aqui e nas fronteiras. Esse filme vai ser visto pelo Pas todo, num terror fascinado. Creio que vai provocar mudanas na conduta poltica, pois faz parte de um processo de conscientizao que ningum pode mais deter, dentro e fora do cinturo da misria. Qualquer projeto nacional teria de passar prioritariamente pela salvao das periferias. Infelizmente, os "projetos nacionais" chegam sempre depois. Cidade de Deus j foi vendido para o mundo todo. Ser um sucesso planetrio e vai revelar para sempre nosso segredo: somos um dos pases mais cruis do mundo. Cidade de Deus mostra que o inferno aqui, atrs de Ipanema ou dos Jardins. Esse filme nos desmascara para sempre. Arnaldo Jabor