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Público • Sexta-feira 23 Julho 2010 • 47

A Constituição ainda impõe opções do “povo de 1975” que limitam possíveis escolhas eleitorais do “povo de 2010”

Quando ouço falar de mais liberdade, puxo logo da pistola

H
ENRIC VIVES RUBIO
á muito tempo que não ouvia uma quan- que, no seu Artigo 43º, se limita a reconhecer o
tidade tão grande dislates concentradas “direito à protecção da saúde” e a estabelecer que
em tão poucas frases. Foi na terça-feira “compete aos poderes públicos organizar e tutelar a
passada e teve como protagonista An- saúde pública através de medidas preventivas e das
tónio Arnaut, essa espécie de bonzo do prestações e serviços necessários”, os quais serão
regime que emerge sempre que alguém discute o definidos por lei ordinária.
seu sacrossanto SNS. Ele, que ainda há pouco tempo Um terceiro exemplo deriva também da compara-
José saudava a “sublevação popular” que, na sua opinião, ção entre as Constituições espanhola e portuguesa,
Manuel derrubara Correia de Campos, proclama agora que agora no domínio da educação. A lei fundamental
Fernandes retirar a expressão “tendencialmente gratuito” da espanhola é muito económica: estabelece apenas
Constituição corresponde “a destruir o Estado so- que “todos têm direito à educação”, que “a liberda-
Extremo cial para voltar ao Estado Novo”, para além de ser de de ensinar é reconhecida”, que o “ensino básico
ocidental um “golpe de Estado” e “uma subversão completa é obrigatório e gratuito” e que, ao Estado, apenas
do modelo social”. compete garantir que isso suceda. Já a nossa Cons-
Não gozasse este antigo grão-mestre do Grande tituição é palavrosa e contraditória. No Artigo 43º
Oriente Lusitano de uma estranha condescendência estabelece a “liberdade de aprender e ensinar” pa-
por parte dos jornalistas e certamente alguém lhe ra, no Artigo 75º, acrescentar que “o Estado criará
teria perguntado se o nosso sistema continua a ser uma rede de estabelecimentos públicos de ensino
“tendencialmente gratuito”, ou se, pelo contrário, que cubra as necessidades de toda a população”.
se está a tornar “tendencialmente pago”; se a sua Isto significa que, no momento em que essa rede
indignação sobre uma saúde para ricos e outra para existisse, ou deixava de haver liberdade de apren-
pobres também se estende à actual norma constitu- der e ensinar por só existir a rede pública, ou então
cional, que diz que a gratuitidade deve ter “em conta esta seria excedentária, pois teria de guardar lugar
as condições económicas e sociais dos cidadãos” para todos os alunos que estivessem noutros sis-
(art. 64º); ou ainda se, quando disse que “não pode temas de ensino. Ou seja, a nossa Constituição diz
haver pagamento no acto”, desconhece que é isso ao Estado para criar um monopólio público e, ao
que já sucede com as taxas moderadoras. mesmo tempo, diz que haverá liberdade fora desse
Arnaut pode, contudom, tonitroar um dia inteiro monopólio. É absurdo.
sem ter de responder a nenhuma pergunta menos Um quarto exemplo é em Portugal o texto cons-
ortodoxa, porque ele representa bem o espírito de titucional tornar quase impossível a passagem do
todos os que entendem que há temas tabu e insus- actual modelo centralista do Ministério da Educação
ceptíveis de discussão política e de todos os que para um modelo descentralizado onde exista, em
sentem ser figuras tutelares do regime democrático. simultâneo, universalidade na oferta e liberdade
Pelo caminho assistiu-se a uma explosão de demago- de escolha entre escolas públicas e entre estas e as
gia que iludiu a discussão mais importante: existem Se quiséssemos adoptar Um segundo exemplo do absur- privadas, como o modelo para que evoluiu a Suécia
ou não normas da actual Constituição que limitam do em que vivemos – e dos termos nos últimos 20 anos. De novo a hipótese de esco-
a liberdade de os portugueses escolherem entre di-
algumas das soluções absurdos da discussão em curso – é lher esse modelo devia, também ela, competir aos
versas propostas políticas? Por outras palavras: não do Estado social sueco pensarmos que o sistema de saú- actuais eleitores, não aos de 1975 – no fundo devia
continuará “o povo de 1975” a mandar mais do que de francês, por regra melhor clas- ser uma escolha do “povo de 2010”.
“o povo de 2010”? Não haverá mesmo necessidade ou francês, era provável sificado do que o português e que Haveria muitos outros exemplos de absurdos
de devolver ao povo o direito de escolher o seu des- que esbarrássemos em assegura níveis de cobertura, qua- constitucionais – ou de domínios onde a Consti-
tino, em vez de o aferrolhar ao que os “guardiões lidade e universalidade que fazem tuição deixa de ser um conjunto de regras politi-
do regime” entendem ser a “interpretação genuína” normais constitucionais dele um exemplo de Estado social, camente neutro para se tornar num programa de
do Estado social? poderia ser considerado inconstitu- governo – mas cito só mais um: de acordo com os
Na verdade, independentemente da bondade das
desnecessárias e abusivas cional em Portugal pela forma co- chamados “limites materiais da revisão”, não se
propostas do PSD (algumas das quais discutíveis ou mo integra, numa mesma rede, estabelecimento de poderia tocar na “existência de planos económicos
mesmo disparatadas), a iniciativa de Passos Coelho saúde públicos e privados. Isto significa que “o povo no âmbito de uma economia mista”. Ou seja, ainda
teve um enorme mérito: abrir a discussão sobre os de 2010”, mesmo que quisesse, não poderia optar somos uma economia mista com planificação eco-
temas proibidos. Mais: ao contrário do que tem sido pelo modelo francês, pois a Constituição está petri- nómica e não uma economia de mercado onde o
dito, num momento em que a crise nos obriga a re- ficada em torno do modelo desenhado pelo antigo Estado não é proprietário dos meios de produção.
pensar muitas das fórmulas do nosso Estado social, grão-mestre da maçonaria. Ora, a Constituição não Seria hilariante, se não fosse um sinal da tragédia
não se compreende como isso não possa ser feito devia ser um programa de governo, antes estabe- irreal em que vivemos. É que, neste país, pedir mais
também em sede de revisão constitucional. lecer apenas princípios gerais e remeter o restante liberdade, ou assumir-se como liberal, é motivo para

V
para as leis ordinárias. Como faz a Constituição es- fuzilamento (retórico) imediato. Jornalista (www.
ale a pena ver alguns exemplos que ilus- panhola (será ela neoliberal, camarada Sócrates?) twitter.com/jmf1957)
tram a oportunidade deste debate.
Um primeiro exemplo é o do estatuto
da ADSE, o sistema de saúde dos funcio-
nários do Estado. Qualquer cidadão que
A crise política só existe na nossa imaginação
já tenha contactado com os benefícios desse sistema
gostaria de estar inscrito na ADSE. E é fácil perceber a Paulo Portas disse, no último dito sabendo que pedir algo que não europeu que não tem uma base de
porquê: o utente pode escolher livremente entre debate do estado da nação, o óbvio: era realizável. Depois explicavam apoio maioritária no Parlamento.
serviços públicos e privados e as taxas que tem de que a actual solução de governo porque não era realizável: primeiro, Por isso também não deixa de
pagar são muitas vezes menores do que as do SNS. está esgotada e que, não tendo os porque Sócrates nunca se demitirá, ser extraordinário que, face ao
Pode-se, por exemplo, ir ao seu médico e não ao portugueses dado a maioria ao mesmo estando a afogar-se no evidente fracasso das nossas
médico que o Estado escolhe. Mais: de acordo com PS, jamais em Portugal alguém seu pântano; depois, porque há instituições em produzirem uma
um estudo divulgado há um ano e publicado em fará um acordo de coligação com eleições presidenciais e Cavaco não solução de governo forte em
livro (Saúde: A Liberdade de Escolher, de José Men- José Sócrates. O primeiro-ministro quer confusões; por fim, porque o tempos de crise, ninguém queira
des Ribeiro), o custo deste sistema para o Estado é faz hoje parte do problema, não PSD acha que não é altura de ir a debater essas mesmas instituições
menor, por utente, do que o custo do SNS. Ou seja, é parte da solução. Só quem vive eleições antecipadas. em sede de revisão constitucional.
temos em Portugal, há muitas décadas, um siste- num mundo de ficção pensa o O resultado é continuarmos à Não tenho opinião sobre as
ma público de saúde que os nossos bonzos talvez contrário. espera de eleições que ninguém propostas do PSD, que até não me
classifiquem de “neoliberal” e feito para “encher Não deixa por isso de ser sabe quando serão, enfrentando parecem felizes, mas interrogo-
os bolsos dos privados”, mas que é eficiente, sem extraordinário que todos o uma crise grave com um governo me sobre a hipocrisia dos que
deixar de consagrar a liberdade de escolha a que criticassem não por dizer o que se desgastado e desnorteado, fingem estar tudo bem, quando,
aspiram milhões de utentes. diz pelo país inteiro, mas por o ter sobretudo com o único governo evidentemente, está tudo mal.

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