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i PERCURSOS DE MEMORIAS EM TERRAS DE HISTORIA: PROBLEMATICAS ATUAIS* Jacy Alves de Seixas Universidade Federal de Uberlandia ‘Temos a sensagio de viver sob 0 império da meméria (e de seu cor- relato, 0 esquecimento). Pierre Nora refere-se com acuidade, em estudo que “fecha” o seu extenso Les liewx de mémoire, & “obsessiio comemora- tiva” que tomou conta de todas as sociedades contemporiineas nas tlti- mas décadas do século XX. Em 2000, o Brasil dos 500 anos reaviyou o mesmo fenémeno, alimentando, no entanto, um aparente paradoxo; a grandiosa comemoragao do “Descobrimento” em um pais tradicional- mente carente de comemoracGes, posto que tido “sem mem6éria”, e que se efetivou precisamente excluindo do lugar de meméria oficial a mani- festagio da meméria dos exclufdos (trabalhadores sem-terra, povos indi- genas, negros, estudantes...). Luta sub-repticia de memérias que emergiu com violéncia em 22 de abril, colocando a questo sensfvel e muitas vezes recalcada do reconhecimento social ¢ da cidadania. Este artigo visa refletir sobre a atualidade dessa meméria que nao cessa de irromper, em escala internacional, pelos poros e cicatrizes sociais, sobre sua presenca marcante no seio da historiografia e destacar certos * Esras reflexdes inscrem-sc numa pesquisa mais abrangente — De Todas as Memérias, a Meméria: Estudos sobre a Meméria Histérica —, que procuta aprender as relagSes teci das entre historia e memoria, recorrendo a um enfoque transdisciplinar, que privilegia sobretudo a literarura (as obras de M. Proust) e a filosofia (H. Bergson, G. Bachelard ¢ F. Nietzsche). Tal pesquisa ¢ financiada pelo CNPq. 37 aspectos que os estudos sobre a relacao histéria~meméria tém em grande medida desconsiderado. Meméria versus histéria: as reflexbes historiogréficas hoje A crescente revalorizacéo da meméria, tanto na esfera individual como nas prdticas sociais ou mesmo no interior da historiografia, 0 acti- mulo de falas de meméria, sua operacionalizagao cada vez mais eficaz, 0 direito ¢ 0 dever de meméria reivindicados por intimeros grupos sociais e politicos, convivem com um movimento inverso, que aponta um descaso ou fragilidade tedrica realmente instigantes, fendmeno que Pierre Vidal Naquet designou como “uma espécie de vergonha da meméria” por parte dos historiadores que de “alguma maneira esforcam-se para apagé-la como tal”.! Em uma palavra, muito se fala ¢ se pratica a “mem6- tia” histérica — 0 b00m atual da histéria oral e das biografias e autobio- grafias ¢, nesse sentido, bastante expressivo —, mas pouquissimo se re- flete sobre ela. Essa reflex4o, entretanto, parece iluminar-se no ambito da transdisci- plinaridade, a partir da construgao de tramas que coloquem a historia em didlogo com campos do saber e da sensibilidade que também, e de formas diversas, tematizaram e problematizaram a memGria. A partir desse olhar, muitas interrogagées se apresentam: ora, € legitimo pensar- mos num estatuto tedrico proprio 4 meméria especificamente histéri- ca? Seria tal formulacao pertinente: a particularidade de uma meméria histérica, distinta pot exemplo da meméria literdtia ou, ainda, da memé- ria constitutiva do individuo enquanto tal? Sem enfrentar a questo, ou driblando-a com mais ou menos sutilezas, a historiografia tem proce- dido como se a resposta a essa problematica estivesse a priori dada, consti- tuida por um inequivoco e inexplicitado “sim”, que se impoe na medida mesmo em que sao desconsideradas muitas das categorias e contetidos da meméria definidos “fora” do campo de investigacao historiografico € que a tém singularizado e definido enquanto tal. Como se a meméria, em sua relagao com a histéria, deixasse em grande medida de ser meméria 38 para enquadrar-se nos preccitos teérico-metodolégicos da(s) historiogra- fia(s), como se ela espontaneamente se redefinisse, abandonando peda- cos importantes que a definem, no contato taumattirgico da histéria. Uma primeira quest&o que gostaria de levantar ¢ 0 verdadeito parti pris constituido pela consideracao da meméria voluntdria, ocupando todo o espaco conceitual consagrado & temdtica, regulando as relages entre memoria ¢ histéria, entre meméria e esquecimento, entre memd- ria e conhecimento. Buscar tragar a genealogia de tal postura nos remete aos antigos gregos, ou melhor, aos gregos da época classica, que em varios campos realizaram uma aproximagao fecunda e problematica entre me- méria e histéria, a primeira constituindo-se finalmente como 0 meio privilegiado de acesso ao verdadciro conhecimento. Essa nogao, que retém dominantemente a meméria como faculdade intelectual, a me- méria-conhecimento, alimentou toda a tradigao platénica e neoplaténica que, por sua vez, fecundou a Idade Média, de onde, a partir da impor- tancia da concepgao agostiniana da meméria,? influenciou toda a cul- tura racionalista posterior. A adequagao entre meméria e histéria pos- sui, portanto, rafzes sdlidas e longas, Mas a meméria apreendida unica- mente em sua fungao cognitiva nao ¢ algo evidente ou “natural”, mas profundamente histdrico, que se insere numa epistemologia espectfica ¢ supée uma trajetéria (digamos, uma trajetdria de “extlios”). Vale ressal- tar aqui (ainda que nao nos detenhamos nessa andlise) que as “categorias arcaicas da memoria” retém a sua trifuncionalidade, como meméria-agao, memiéria afetiva e meméria-conhecimento.‘ Recentemente, a partir do infcio da década de 80, a historiografia vem afirmando nogio diversa; ela toma consciéncia de que a relagao me- méria—histéria é mais uma relagao de conflito e oposigao do que de complementaridade, 20 mesmo tempo — aqui se inscreve a novidade da critica — em que coloca a Aistéria como senhora da meméria, pro- dutora de memérias. A oposicao entre meméria ¢ histéria, no entanto, é construfda sem que haja ruptura efetiva com a tradigao aristotélica que entende a memé- ria (ou melhor, a reminiscéncia, 0 ato de lembrar), sobretudo em sua fung4o cognitiva, como conhecimento do passado. 39 Ao redebrucar-se sobre a meméria, a historiografia contempora- nea pouco tem recorrido as reflexées da filosofia ou da literatura, mas tem estabelecido com a sociologia seu didlogo preferencial. De fato, a sociologia da meméria de Maurice Halbwachs que se constitui na base tedrica fundamental 4 maioria dos trabalhos historiogrdficos. Neste sen- tido, € importante assinalar a influéncia da sociologia de Halbwachs — que elabora, em 1925, uma sociologia da meméria coletiva — sobre Pierre Nora, que no terreno historiografico elaborard a divisdo e oposi- ¢do entre meméria e histéria. Escreve Nora, em 1984, de forma provocativa: “Meméria, histéria: longe de serem sindnimas, tomamos consciéncia de que tudo as opde”.> Nora retoma e apropria-se® das idéias basicas de Halbwachs — a oposicao que estabelece entre meméria individual e meméria coletiva ¢, sobretudo, entre meméria coletiva e histéria. A meméria coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade natural, espontinea, desinte- ressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser titil para criar um elo entre o presente ¢ 0 passado, ao contrario da histéria, que constitui um processo interessado, politico e, portanto, manipulador. A meméria coletiva, sendo sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a hist6ria é uma atividade da escrita, organi- zando e unificando numa totalidade sistematizada as diferengas e lacunas. Enfim, a histéria comeca seu percurso justamente no ponto onde se detém a meméria coletiva. Em suas reflexdes sobre meméria ¢ histéria, Pierre Nora as opord ainda mais radicalmente. Afirma que é imposs(vel, hoje, operar-se uma distingao clara entre meméria coletiva e meméria histérica, pois a pri- meira passa necessariamente pela historia, é filtrada por ela; ¢ impossivel A memoria escapar contemporaneamente dos procedimentos histéri- cos. Assistimos hoje ao fim das “sociedades-memérias”, e 0 que eviden- ciamos como uma revalorizagio retérica da meméria esconde, na ver- dade, um vazio. “Fala-se tanto de meméria precisamente porque ela nao existe mais.”” Nora organiza uma classificacao rigida e dicotémica entre meméria ce histéria. A meméria é a tradigao vivida — “a memédria é a vida’* —, 40 ee ee ¢ sua atualizacdo no “eterno presente” ¢ espontanea e afetiva, multipla e vulnerdvel; a histéria é 0 seu contrario, uma operac3o profana, uma reconstrugao intelectual sempre problematizadora que demanda andlise ¢ explicag4o, uma representacao sistematizada e critica do passado. A mem

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