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DIALETICA RADICAL DO BRASIL NEGRO Moura BS Ue Copyright © 1994 by Clovis Moura Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagao (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moura, Clovis Dialética Radical do Brasil Negro / Clovis Moura, — S40 Paulo : Editora Anita, 1994 Bibliografia 1 Negros - Brasil I. Titulo. CDD-305.896081 105.896081 96081 Copidesque: Maria Beatriz de Melo Revisio: Clovis Meira Buitoragio EletrOnica: COMPUARTE Comérc Produgdes Graficas Ltda. Rua Mons. Passalécqua, Direitos reservados & Editora Anit Rua dos Bororés, 0120-020 - Sao Tel.: (O11) 35-8150 Printed in Brazil 1994 Para Anténio Fernandes Neto ‘Ari Cunha Nelson Schor Manuel Correia de Andrade Giselda Laporta Nicolelis M. Paulo Nunes joio Batista Borges Pereira sbenguele Munanga: ‘Amigos. Para Griselda: ‘Companheira. SUMARIO I- Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio 13 O Escravismo Pleno 35 Brasil Reino e Brasil 45 48 50 52 53 Bstratégias de dominacio do escravismo tardio 7 No setor urbano-industrial o Brasil moderniza-se 59 A tecnologia nova serve & estrutura arcaic 6 Modernizacao escravista ¢ endividamento externo 6 A Tarifa Alves Branco 66 0 np Rasgos fundamentais do escravismo tardio_ 2 A lei Eustbio de Queiroz 85 A Guerra do Paraguai 90 Conclusses.... 9 IL- Populago, Miscigenagio, Identidade Etmica e Racismo mu 3 A difspora negra no Brasil Dinamismo demogrifico da escraviddo no Miscigenasio ¢ identidade étnica Particularidades do racismo brasileiro “Toda historia € remorso.” Carlos Drummond de Andrade IIL- Linguagem e Dinamismo Cultural do Negro ‘As culturas afrcanas transformam-se no Brasil em uma A Cidadania Confiscada “Classficam-se geralmente na nomenclatura de méveis todas aquelas cousas, que interase salvas por natureza, ¢ propriedade se podem mover, ou se movem a si mesmas de hum lugar, nio differindo as méveis das semovenies como as cousas arrancadas quais a areia, a greda, as arvores, os ramos delas; os frutos metilicos, ‘ouro, prata, cobre, estanho, chumbo, ferro (bem enten- dio, depois de avulendos eparads das mins) os ido: Arlindo Veiga dos Santos Linguagem, repressio e ansiedade do cativo (© negro urbanoemergente: novosaspectos da questdo racial Dois universosnegrose sua dinimicadivergenteem Sao Paulo © problema eleitoral €0 to negro ‘A beleza negra e a autoafirmas Valorizagio da estética africana Livraria matriz de consciéncia produzidos em prédios de Morgados, Prazo: cosete:: = Osexravos, os Bots Cavalos gadase mais (que. mova.” (fost de Mello Frere; Comentirio ds Instcuigies do Direito Civil Luaitano) I Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio Historia da Escravidio: Um Dislogo Entre Hamlet e Polénio? tt ~ Estais vendo aquela nuvem em forma de camelo? Pela Santa Missa: Parece, de fato, um camelo! Creio que parece mais uma doninha. Polénio:- f certo! o édedoninha, Ouuma Pol6nio: - Uma baleia, realmente muito semelhante. Shakespeare Tentaremos demonstra, neste capitu ‘compreensio do que iremos expor ‘elementos tebricos que manterio a art fatual dest livro que, no Brasil, a escravido teve duas fases dist apenas no seu aspecto demogrifico, mas, também no social, econémico, politico e cultural. Uma fase ascendente, até 1850, quando foi extinto o trifico is periodos que se articulam, reestruturam € s desarticulam de acordocom adinimicaespecificadecada um chamamos, respectivamente, de excravinno pleno ¢ exravinmo tardio. Na primeira fase (€ devemos considerar aqui, também, a contribuigio demogrifica ¢ ‘econdmica do escravismo indigena tio importante no inicio da coloni- zagio) estruturase em toda a sua plenitude a excravidio (modo de produsio escravista)a qual iriconfigurarpraticamenteocomportamento das classes fundamentais dessa sociedade: senhorese escravos. Isto levard a que as demais camadas, segmentos ou grupos, direta ou indiretamente, também tenham a sua conduta e selecio de valores sociais subordinados 4 essa dicotomia bisi . (s antagonismos sociais, econémicos e étnicos verificados nessa epoca, as convergéncias e divergéncias ideol6gicas ¢ de comportamento que surgiram nessa sociedade so, fundamentalmente, decorrentes das posigdes estruturais e do dinamismo dessas duas classes no espaco social. Sio conflitos antag6nicos ou parciais conscientes ou inconscientes nos seus rasgos de acao social. Nio desejamos, com complementares ou ‘pleno, nem outros niveis na teragGes especialmente naquelas areas onde uma parcela de escravos smésticos (por isto privilegiados) aceitava sem revolta ou restrigBes a existéncia de outras formas -visives, interiorizando os valores do sistema, com ele convivendo através, 15 Dialética Radical do Brasi Negro de um comportamento ambiguo. Mas, do ponto de vista te6rico inais abrangente (visio de totalidade) temos de destacar que foram as contra- digGes estruturais que determinaram (de forma positiva ou negativa) a dindmica desse processo e ensejou, nas suas linhas mais geraise significa- tivas,do ponto de vista de dindmica social, passagem do escravismo para © trabalho livre, ‘A composigio da classe escrava, por outro lado, era profundamente diferenciada ocupacionalmente ¢ isso ird refletir-se na sua conduta quer «em relagio aos demais escravos, quer em relagio 4 classe senhorial. Nao se pode ver cada escravo como uma unidade uniforme, destacada de cada contexto especifico onde s encontrava no processo da divisio do trabalho, Quando dizemos que a contradigio fundamental no regime cescravistaeraa que existia entre senhorese escravos, isto seaplica de forma genérica ¢ abrangente (tedrica) e serve como indicador para se ficar sabendo quais as forgasque impulsionaram o processode dindmica social. Isto no exclui a existencia de grupos ou segmentos escravos que se iveram impassiveis, estaticos, dentro dessa contradicao (pois ela era independia da consciéncia que oescravo tinha da suaexisténcia) jonto, aceitando conviver e sobreviver dentro do sistema. Nesta se integrari em um universo adaptativo, neutro, sem perspec- tivado devir emergente. Podemos dizer que esses escravos se adaptavam aos valores escravstas, em maior ou menor grau, de forma consciente ou inconsciente, parcial ou total. Ecom isto produziam areas de estabilidade no sistema escravista, A produgio eo seu ritmo (quando foram escravos pprodutivos) dependers do tipo de comportamento desses escravos, como © nivel de desgaste econémico do mesmo dependeri do comportamento de escravo nio adaptado a esse tipo de disciplina do trabalho. Convém destacar, também, asdiferengasculturais dosescravos provindosda Africa € que aqui influiram no tipo de comportamento dos seus membros. Como podemos ver 0 modo de produsio escravista tem como componente estrutural mais importante as contradiges entre senhores € escravos, E € essa dicotomia contradit6ria que Ihe € inerente que impulsionaadindmica social enio asdreasde estabilidade parcial que nele existiam, Por outro lado, atualmente hé uma tendéncia de cunho neoliberal de subestimar o conflito e darse mérito 4 acomodagio por parte da massa, escrava, vendose nisso uma estratégia do escravo (em abstrato) que pprocurava criar um espaco social, cultural ¢ econémico préprios, no qual a convivéncia com 0 seu senhor era conseguida através de um pacto, um acordo implicito e negociado no qual as contradigées eram assimi ¢ substituidas pela convivéncia, se ndo harménica pelo menos estivel e consensual. 16 (Do Escravismo Pleno ao Eseravismo Tarcho Em primeiro lugar afirmam que o escravo no era uma simples miquina (cixa) como queriam os seus senhores € certos sociblogos afirmam, com © que estamos de acordo. Mas, para essa corrente de cientistas sociais neoliberais a intrioidade humana do escravo nio se manifestava através de revoltas ou atitudes divergentes, masde acomod- ‘gio, Com esta visio o escravismo se establizaria, as contradigées ficariam semi-anuladas por pérachoques sociais num contexto de senhores ¢ ‘escravos estivel ou relativamente estivel e cheio de espagos neutros, nos ‘quais os escravos poderiam viver com elativa estabilidade e os senhores seguranca, Essas relagbes adaptativas e neutralizadoras das nerentes ao sistema, atuariam, assim, como um mecanismo ‘moderador e gerador de uma psicologia de empatia que caracterizaria a esséncia do sistema. ‘A. do escravo nesta perspectiva reagiria, sempre, ou quase sempre, ‘mas de maneira significativa ou preponderante, positivamente, a uma negociagdo e nunca em diregio a formas de rebeldia ativas e/ou passivas conde ele reencontraria a sua condigo humana. ‘A sua estrutura de personalidade, a sua interiorilade era montada no sentido de receber passivamente ou semipassivamente os mecanismos controladores do sistema, porém nunca, ou quase nunca, para receberem, assimilarem, um reflexo antiinibidor e contestador: uma consciéncia critica, Seria 4 base desse comportamento negociado que se explicariam ‘certas particularidades do escravismo brasileiro quando comparado 20 queexistiu nos Estados Unidose no Caribe. Aqui, “entre Zumbi e Pai Joio © excravo negocia”. Esta seria a sintese hegeliana das relagdes entre senhores ¢ escravos no Brasil. O meio termo seria a realidade, o etinho e as acomodagées dariam o ethos do nosso sistema escravista. No entanto,adinémica bisica do sistemaescravistae a sua superagio estrutural esti nos conflitos entre as classes que eram substantivas nesse modo de producio. Que algum tipo de relacionamento alternativo entre ‘escravose senhoresexistiu ninguém poe em davida, mas, see fosse tipico ‘edeterminantedadinimica entre essasclassesjamaisoescravismo entratia ‘em crise seria substituido por outro modo de produgio, pelo menos no pprazo em que foi. Teria de ficar esperando as contradigdes ext destrut-o e isto nao aconteceu, embora fatoresexégenos também contribufdo perifericamente na sua iltima fase. Gostai ‘um trecho de K. Marcoqual nosparece de fundam ‘a compreensio tedrica do assunto: “A feudalidade também tinha o seu proletariado ~ a servida errava todos os germes da burguesia. A produgio feudal tinh: sm dois elementos antagénicos, que designam plo do bm e edo men da feudalism se considera que sempre o lado mau que acabava levando a vantagem sobre o bom. Bo 7 Dialética Radical co Brasii Negro Jado mau que produz o movimento que faz ahistoria,constituindo aluta, Se na época do reinado do feudalismo, os economistas, entusiasmados com a virtude cavalheiresca, com a boa harmonia entre os direitos ¢ 0s ddeveres, com a vida patriarcal das cidades, com o estado de prosperidade dainddstria domestica nos campos,com odesenvolvimento daindistria corganizada por corporagies, mestradosejufzosde oficio, enfim,com tudo ‘© que constitui o lado bonito da feudalidade, se tivessem proposto 0 problema de eliminar tudo o que obscurece esse quadro ~ servidio, privilégios, anarquia - que teria acontecido? Teriam sido destruidos todos 5 elementos que constituem a luta, e sufdcado no seu germe 0 desenvolvimento da burguesia. Tera sido colocado o problema absurdo de eliminara histéria”, Brasil, isto 6 a pa digo do nosso Desjainos dizer com isto que sempre tivemos uma posigio tebrica foposta a daqueles cientistas sociais que igualam o fundamental, 20 secundirio; o substantivo, ao adjetivo; o conjunto, ao detalhe;o objetivo, a0 subjetivo €0 comparativo ao analégico. Procuram, assim, por questdes ideoldgicas algumas vezes invisiveis pelo recurso da erudico de fichirio, © conhecimento, demonstrar que no modo de produgio brasileiro a conciliagio, a barganha, 0 acordo sobrepés-se 20 conflito ¢ ao descontentamento; a pacificagio a violéncia e a empatia & resistencia social, politica cultural nos seus diversos niveis, Para eles, 08. socidlogos ¢ historiadores que trabalham com a categoria da contradigio € do conflito como to central da dinimica social estariam se deixando influenciar por elementos emocionais extracientificos,ideolégi- ‘@s ou por uma visio nio cientifica das relagées senhor/escravo. No entanto, hi uma striede socidlogose historiadorestrabalhando atualmen- te, cada um a seu modo, com 0 conceito do conflito (portanto da contradigio) como elemento explicador da dinamica social. O professor Jobn Rex - que nao marxista- escreve por exemplo: “Como acontece éentre os grupos, primeiro devemos deixar claro os po! ligdes estruturais, desde a primeira Rebelides da Senzala, publicado em 1959%, deconcordn- juanto d maneira pela qual ocontflito pode serlevado.a Mas, desde que existe um conflito de objetivos, deve-se esperar que c: grupo procure forgar 0 outro a seguir um comportamento que, na pior das hipéteses, nao interfira com a realizacio dos seus proprios objetivos 18 Do Escravimo Pleno ao Escravimo Taro tum certo grau de concessio é mais proveitoso do que a continuagio do conflito. ‘Seo equilibrio de poder permanece depoisdecelebrado o acordo este pode ser elaborado para proporcionar normas consensuais de comport mento para os membros de ambosos grupos. Masé possivel que se atinja somente um compromisso instavel, caso em que ambos os lados permanecerio preparados para o reinicio do conflito™. ‘O que se ve - sem muito esforgo de analise tebrica - & que do ponto de vista de John Rex, parte-se do conceito de conflito como bisico, para chegarse & conciliagio como eventual, secundério e conjuntural. Os cientistas sociais brasleiros, que estio procurando reve modo de produgio escravista no Brasil, partem doconceitodeconciliagio € o acessbrio, Parece-n0s claro, portanto, que 0 socidlogo ou historiador ao procurar as causas da dinimica social de um modo de producio e os contradigGes e nos conflitos as causas geradoras dessa dinfmica e nfo nas reas neutras e estiticas de conciliacio existentes no sistema. ha atualmente uma corrente que procura como a Demografia Hist6rica, explicar de social ¢ 6tnico durante a escravidio ¢ a substituigao do primeiro pelo trabalho livre’. Nao queremos negar 0 valor desses estudos como ferramentas auniliaresda Sociologia eda Histbria. sss trabalhos compdem um painel rico evariado de informagées, devendo serconvenientemente valorizado. ‘O que nos parece um exagero flagrante & elevilos a iltima instincia do conhecimento, sem nenhuma mediagio tebricacom asciéncias sociaisno seu conjunto, especialmente a Sociologia e a Historia. Através de técnicas de abordagem sofisticadas e quantificadoras de detalhes, tentam, por ‘exemplo, demonstrarainexisténciade barragem social eétnica permanen- te contra o escravo e mesmo o liberto no processo de transformacio do «escravo em homem livre ¢, posteriormente, ap6s a Aboliglo, na transfor. Diaistica Radical co Brasit Nogro populagio escrava adaptava-se total ou significativamente aessa conviven- cia 0 que lhe permitiria, inclusive, criar uma cultura da escravidio, transformando-seem uma unidadeacimadascontradigSesdo sistema,em ‘uma tnidide cultural neutra ou pelo menos adaptada aos padres escravistas ‘Queremos detersnos mais analiticamente em dois aspectos: a possi- bilidade de uma empatia social, através de vastos espagos imunes 20 conflito € a possbilidade, a partir dai, de ser possivel a formacio € desenvolvimento de uma cultura da eravidt, Ora, o aparelho administrative montado na Colénia tinha dupla finalidade: defender os interesses da Coroa e garantir a seguranga dos senhores da insurgéncia negra escrava, que se mostrava dinamica e constante nessa fase do modo de producio escravista (escravismo pleno). ‘Se, de um lado, esmeravam-se na defesa dos direitos do Rei, da seguranga dda classe senhorial e eficiéncia da maquina administrativa local, de outro estruturavam-se militarmente para conterosescravos(africanose também {ndios) que se recusavam a0 trabalho, quer através da fuga individual, quer através de quilombos que se organizavam em toda a Colénia. Durante o tempo em que o escravismo pleno funcionou, os negros viviam em um verdadeiro corpo-+-corpo com os senhores ¢ as autoridades. ‘Ocixo da dinamica social desse periodo passa pelo comportamento do escravo rebelde ou descontente ¢ as medidas das autoridades para impedilo, sto no quer dizer que todo escravo fosse um quilombola ou fugitivo. Em qualquer sociedade dividida em classesaconsciéncia dos seus antagonismos no atinge a totalidade dos seus membros, nem seria isso possivel. Quando voltamos a repetir que a dinimica desse tipo de sociedade passa pelo antagonismo entre escravos ¢ senhores queremos assinalar que toda a miquina ideolégica, administrativa ¢ militar estava ‘montada objetivando manter o eyuilibro social ele somente seria possivel se houvesse uma estrutura de contengio capaz de mantéla equilibrada. Esse equilibrio era conseguido através do chamado controle social. Bvidentemente, no conjunto das relagées estabelecidas nessa sociedade cexistiam Sreas de colaboracio social do escravo ¢ compreensio de alguns senhores. Mas, ess rlagées sociais nao tipificam aquelas que produzem ‘edio conteiido & dinimica social nos seus diversos niveis e se expressam. justamente no antagonismo de interessese da alocacio de cada uma dessas classes no espaco social. Querer ignorar isto & pretender que as relagdes de contato cotidiano individual e rotineiro entre os componentes das duas lasses em antagonismo nos niveis de colaboracio, adaptagio e de acomodagio tio estudadas no Bra aquelas que caracterizam o sistema escravista, £0 fator de mudanga e transformagio da di 2 0 Escravismo Pleno ao Escravismo Taro Queremosinsistirnestedetalhe: quando se estuda centificamente as relagesestabelecidas de um modo de producio na sua otalidade procure: se ver quais io aquelas relages mais importantesem comparagao aquelas secundiriasno processo da dinimica no periodo estudado. Evidentemen- te, sio encontradas Areas nas quais as relagdes de fragoes de classes slo pacificas, neutras e até coloquiais. Flas possibilitam que 0 modo de produgio possa funcionar e estabelecer um espago no qual o trabalho possa ser realizado sem choques ¢ com isto se justifique a sua existencia no campoda seguranca sociale produtividade. Se todos osescravos fossem rebeldes © modo de produgio escravista nao teria existéncia, porque a producio seria impossivel socialmente e um modo de produgio sb se justfica exatamente pela pradugio nele contida. ‘Mas, isto nao explica ou esgota 0 assunto nem os mecanismos da dinamica do escravismo, O seu agente motor esta justamente no oposto dda harmonia e da cooperagao, nas contradigdes que uma parte da classe produtora do valor se abstém dessa produsio. Fé justamente essa parcela escrava que representa em diversos graus diferentes a negacao do sistema de produgio existente. Nem Zumbi nem Pai Joao. Com isto ficarfamos com 0 escravo que faz. acordo com o colaborador do siste i cemprego 0 termo colaborador no seu sentido estritamente econdmico) aquele que pela sua produgio (e toda produgio exige uma disciplina no trabalho) consolida esse modo de produgio. Ora, se todos os escravos fossem disciplinados, fizessem acordos,aceitassem acultura da escravidio segundo os critérios de concessio do senhor, entio, como diria Marx, a historia pararia, Esta visio do detalhe, de andlise de caw, de exagies usada por alguns cientistas sociais brasileiros na esteira dos norteamericanos, faz com que muitos deles procurem fazer uma releitura do que foi a escravidio no Brasil via papel-carbono dos segundos. Jodo? A apresentagao dessa dicotomiacomo sendo aquela logos ehistoriadores brasileiros que trabalham com a categoria da contradigio e do conflito caricata e destituida de seriedade. Ninguém, até hoje, 0 que eu saiba, quis transformar a populagio escrava como composta de herbis na sua totalidade, ou como sambos, Mas, o que nosparece serconsiderado & que independentementedesse julgamento de valor de herbis e vilées, deve-se ver qual o tipo de comportamento que, na dindmica social, contribuiu para o seu aceleramento ou para ainércia, a estagnagio e a conservagio das relagdes de produgio escravista via cequilfbrio social Esta racionalizagao das relagbes durante o escravismo (beirando a0 funcionalismo sociolégico) ¢ 20 mesmo tempo a sua simplificacio, transformouseemum simples luir,como se nao tivesse sido um processo a Dialstica Radical do Brasit Negro rio que passou por diversas fases durante a sua existéncia endo i antese relevantes durante o seu transcur- a forma como a escravidio no Brasil io da mesma, deixando o estabele- para possivel trabalho posterior. riodizacio dividimoso.scravismobrasileiroem yroximadamente, 1850). Por que esta petiodizacio? Em primeiro lugar, porque mesmo no tendo havido uma modificacao estrutural nas relagées de produgao escravistas, durante a sua existéncia no Brasil, podemos registrar, a partir modificagGes tendenciai sofreram um processo de diversificagio regi Em segundo permanente. seria simplificar demais, como aliis acontece uitas vezes, verse 0 sistema escravista no Brasil com as mesmas ‘caracteristicas durante os quase quatro séculos da sua durasio. Durante esse longo periodo causas internas ¢ externas influfram para que certos rasgos e particularidas estrutura sofressem modificagoes, inici- almente imperceptiveis por irrelevantes ou inobservadas, mas, com 0 correr do tempo ficaram mais significativase visiveis. ‘Conforme jé haviamos assinalado anteriormente6, essas mudangas realizamse em dois periodos, podendo ser registrados como nodais. Nao ‘vamos no momento insistir nas particularidades dessa periodizacio, isto seri feito no decorrer do livro, porém apenas salientar a necessidade de consideré-la como marcos capazes de situar mais precisamente o nasci- mento, apogeu, decadéncia e decomposicio do modo de produgio ‘escravista no Brasil Esta visio sociologicamente mais precisa poderd explicar ou fazer compreender nio apenas a composicio de grupos ¢ segmentos ea sua alocagio no modo de produsio escravista mudangas de status durante o seu transcorter, o papel das c como, também, aslutasde resisténc ‘nos seus diversos niveis e nos seus TTemos de ver que © dinamismo. da sociedade escravista, como unidade produtora,tinha de estabelecer mecanismos de funcionamento ce defesa capazes de fazélajustificivel econdmica, social e politicamente. Isto exigia uma racionalidade interna do escravismo. Acontece que a racionalidade desse modo de producio nioé amesmado capitalism, isto 2 Do Escravismo Plano ao Escravisme Tarlo porque as leis econdmicas que regem o funcionamento dos dois sistemas slo especificas de cada um. Para se compreender a racomalidade que se desenvolve através da dominagaoeconémica extraeconémica nomodo de producioescravista temos de dirigit a nossa ética nio para o comportamento bom ou mau dos seus agentes principais~ ser comportamento dos compo! 30 forgada, a desarticulacio Famili tiqueta escrava em relaGdo 20 se imposto, a tortura nas suas diversas modalidades; e, por outro lado, os fatores extralegais de desequilfbrio dessa racionalidade como: a desobedi- loescravo, a malandrage i vidual, a fuga coletiva, a guerrilha surreigdo urbana, o aborto provocado pela mie escrava, do recém-nascido, os métodos anticoncepcionais empiri 40 do escravo em movimentos da plebe rebelde. Bsses dois lados do escravismo compéem uma unidade, uma totalidadee &sobrecla que se projetaaracionalidadedo sistema. Nioh nenhum julgamento de valor ou implica considerar se os senhores sio estrutural com valoresc: mos compreendéo. Faz parte da ldgica do sistema. Poristo, achamosque o problema da dinimica social do escravismo exemplos de episédios, de detalhes que se sucederam isoladam a visio da sua transformagio estrutural através da fricgio nos digées faziam parte da raconalidade do sistema escravista e da sua estrutura, dao-the contetido, formam a sua totalidade ¢ normalidade. dagui para ld, isenta de pressupostos pree velho Durkheim jd dizia que para se ter um conhecim 2 Dialéica Radical do Brasil Negro dizer que esses julgamentos de valorimplicitos na anilise e conclusio do Jo escravista no Brasil deverao passar por uma reformulagio tebrica quer metodolégica para nio continuarmos na jo respondendo ao delirio de Hamlet. Esta posigio influenciada - tebrica e institucionalmente - da Sociologia e da Histéria nos paises do chamado Terceiro Mundo em relagio as fontes culturais dos paises desenvolvidos, vem sempre acompa- nada de uma postura de subordinagio ideolgica. As perspectivas de anilise, 08 projetos ¢ a produgio académica que Ihe dio conclusio coincidem com 0 circuito fechado do pensamento distribuido pelas instituigées. académicas dessas nagdes hegeménicas. Esse processo deformador, reificador leva a se procurar analogiasentre o produzido na ‘matriz ¢ a nossa realidade. Decorre, como ji dissemos, uma cigncia de semelhangas, de analogias, sem que asdiferengas possam serconsideradas, asparticularidades destacadas, as contradigdes analisadase os diferenciais entre realidades diversas possam ser estabelecidos. Como podemos ver, as ciéncias sociais brasleiras ainda no tém karomhor. Este procesto de raciocinio anal6gico estimula ou determina muitas _vezes niveisde prestigio académico, tendo ocientistade procurar no Brasil clementosque ustifiquem asconclusSesdasmatrizes. Temosde encontrar correspondéncias entre a realidade estudada pelos cientistas das matrizes ea realidade brasileira Hi, por isto, alguns cientstassociais nacionais que, ao discutirem a a fase da escravidio no Brasil referem-se ao escravo de ganho como ‘metade escravo metade live. Em face disto temos de tecer algumas consideragaes sobre a andigio do ser ecravo. (O problema do escravo, ou seja, a sua caracterizagdo essencial (de cessincia) no pode ser conceituado pela forma como ele é tratado por alguns senhores, alimentado, vestido ¢ educado. Sua condigio podia, ‘mesmo, em certas circunstincias - e esta particularidade foi muito explorada pela literatura escravsta, daqui e dos Estados Unidos, daquela epoca serigualado a algumas categoriasde trabalhadoreslivreseuropeus. Em nivel de castigos, por exemplo. Descrevendo as condigdes do povo trabalhador na Franca, por volta de 1664, Michel Beaud diz: “ao mesmo tempo, éo brutal aprendizadoda disciplina stureira. Osmendigos, ey ‘Do Escravismo Peno ao Eseravismo Tarcho encerradosnosasilos, devem aprender uma profissio; os ociosos, as mogas missa no iniciododia, osiléncio oucanticos durante o trabalho; as: © agoite ou a golilha em caso de erro; a jornada de doze a dezesseis | ‘0 baixos salériog, a ameaga de prisio em caso de rebelido”*, A primeira vista essa situacéo ¢ exatamente igual a dos escravos no Brasil e, ao se analisar apenas formalmente as duas sitwagbes chega-se & conclusio que os dois tipos de sistema de trabalho se equivalem. No entanto, se aparentemente sio iguais - pelo nivel de exploragio em horas de trabalho e mesmo o uso de aparelhos de suplicio - as situages no se podem comparar. Na primeira o trabalhador estava sujeito a normas contratuais, isto é, teoricament i, €, 20 mesmo tempo, partici- pante do mercado e suas flutuagGes através das oscilagdes dos saldrios, do prego da sua forga de trabalho e da aquisigio de bens de consumo. Ele, mesmo submetido a formas abusivasde coersio, tinha odireito de mudar_ ‘voluntariamente de patrio, deixarde trabalhar ou exigir melhor pagamen- to. Era, por isto mesmo, malgrado as condigSes opressivas a que estava submetido, um ser lore, isto , um ser que nao era dono apenas da sua interioridade (0 corpo do escravo pertencia 20 seu senhor), mas dispunha livremente do seu corpo para locomover-se e atuar como aj produtor. Essasregras, mesmo nas condigdes odiosas expostas acima,tinham de set respeitadas porque o mercado nio podia ser criado independentemente dele, mesmo com a existéncia do exército industrial de reserva. E verdade que a mercadoria (por ele produzida) nio lhe pertencia, mas ele ao imprimir nela 0 seu trabalho, criando valor, participava do mercado no nivel em que recebia um salrio que também agia ativamente no mercado. Jaoescravo circulava como mercadoria, idéntica iquela a qual ele proprio produzia. E é nesse nivel de relagdes econdmicas que o esctavo & socialmente eviificado, le durante 0 decurso da sua vida pertencia. Nada revertia posteriormente para ele. O que con sum tipo de racio animal (muitasvezes porele proprio produzida) fornecida pelo senhor para repor a sua forga fisica capacitada para o tipo de servico escolhido por ele. Por outrolado, seo homem livre produzia mercadoria, o escravo era também mercadoriae poderia ser vendido juntamente como saco de café por ele produzido. O seu trabalho nao era recompensado € os alimentos ‘que recebia, assim como as roupas, nao eram pagamento, mas material suficiente para a manutengio da miquina ¢ colocéla em situagio ‘operacional. Oescravo, por isto, podia até possuir alguns bens concedidos 5

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