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MOVIMENTO E TEORIA FEMINISTA: EPOSSIVEL RECONSTRUIR A TEORIA FEMINISTA APARTIR DO SULGLOBAL? Marlise Matos RESUMO Partindo da trajetoria tebrica de Nancy Fraser, o texto toma os recentes rumos da teorizagdo feminista como embleméticas da elaboragao de um arcabougo tedrico-analitico de fblego na démarche das teorias da Jiustiga ¢ do feminismo contemporineas, ancorado, porém, em consideragdes hegemonizadas do Norte glo~ bal. Hé, neste sentido, um “distanciamento” da tebrica norte-americana em relagdo ds agendas mais recen- tes do feminismo global (e em especial dos feminismos do Sul) e uma reflexao excessivamente baseada em um ‘olhar desde 0 ocidente”. Ea partir dessa constatagdo que recupero a critica aos estudos de matriz anglo~ sax, a partir da contribuigao de C. T. Mohanty. Ao final, proponho a experiéncia de wma “quarta onda” dos movimentos e estudos feministas no Brasil e na América Latina, apontando para circuitos de difusao _feminista operados a partir de distintas correntes horizontais de feminismos — negro, académico, lésbico, ‘masculino etc PALAVRAS-CHAVE: teoria e movimento feminista; justica; participacdo politica; transversalidade; interseecionalidade de género. LINTRODUCAO Inicialmente como “estudo de mulheres” ou “estudos feministas”, depois como “estudos de ‘género” e, agora, mais recentemente, como estu- dos vinculados ao “campo ferinista de género” (MATOS, 2008), os estudos protagonizados pela Tuta feminista das mulheres, desta vez no Ambito académico, tém contribuido de modo substantivo para alterar a paisagem das teorias no campo so- cial, cultural e politico, seja aqui no Brasil ou no exterior. Este artigo se propde debater a possibili- dade de uma nova proposta teérica feminista e de ‘uma nova onda para o feminismo em outra mol- dura (frame): do Sul para o Norte global. Partindo de uma brevissima apresentagio da trajetériateorica de Naney Fraser e, especialmen- te, de alguns comentirios a0 livro Reframing Justice (FRASER, 2005a) e de crticas a um arti- 120 recente intitulado “Feminism, Capitalism and the Cunning of History” ~ publicado em abril de 2009 na New Left Review -, recupero o desenho de um arcabougo te6rico no Ambito do feminismo norte-americano que tem produzido muito impacto nos estudos de género ¢ feministas na América Latina e no Caribe. Tomo as construgdes de Fraser como emblematicas da elaboragio de um Resto cn 20d onemt 29 arcabougo tedrico-analitico de folego na recente démarche das teorias da justiga e do feminismo, por sua vez profundamente ancorado em consi- deragdes hegemonizadas do Norte global (condu- zido e organizado por meio de teorias anglo- saxonicas ocidentais, que indiscutivelmente tém sido algadas & categoria de “a boa’ teoria), Enten- do que a autora em questio diteciona os esforgos de sua obra no sentido de (re)construir um novo paradigma para as “teorias da justiga” no mundo capitalista contemporanco. Contudo, tal esforgo niio seria justificdvel (¢ mesmo compreensivel) se a mesma no tivesse as consideragdes sobre as dindmicas do movimento feminista (do norte-ame- ricano, sobretudo) como um pano de fundo ‘mobilizador de suas reflexes, E neste sentido que se faz neces panhar 0 percurso tedrico feito pela autora em uestio para entendermos uma das maiores limi- tages de suas construgdes recentes: seu olhar baseado nas discussdes sobre a justiga social con- tempordnea € os esforgos de (re}eonstrugio de ‘modelos analiticos para o entendimento do eapi- talismo em moldes contempordneos passarem paulatinamente a estar desvinculados de uma and lise mais densa sobre as vicissitudes do ferninis- Rev Saco. Polit, Cai 18.36.6792, jm. 2010 G7 MOVIMENTO E TEORIA FEMINISTA ‘mo global contemporineo. Isto teria se dado, a meu ver, por certo “distanciamento” da teérica das agendas mais recentes do feminismo global (,em especial, dos feminismos do Sul global) e Por uma construgdo excessivamente baseada em um “olhar do ocidente” hegeménico. ‘Numa segunda parte do artigo acompanho tam- bém e reforgo as consideragdes originais de ca aos estudos de matriz. feminista anglo-saxd (portanto, ocidental e do Norte global), a partir da contribuigdo de C. T. Mohanty (1984; 2003; 2006). Mohanty ~ uma tedrica feminista do pés- colonialism — pode ser considerada uma das pri- ‘meiras vozes contra-hegem@nica no Norte glo- bal, que tenta dar destaque aos equivocos, mal- entendidos e problemas que uma visio teérica exclusivamente marcada “a partir de olhos oci- dentais” traz para os debates dos feminismos ¢ das questies centrais que afetam as mulheres no mundo. Pinto (2003) relata a existéncia de trés gran- des momentos (ou ondas) do feminismo brasilei- 10:0 primeiro teria se expressado na luta pelo voto no mbito do movimento sufragista, numa luta pelo direito ao voto, luta, portanto, por direitos politicos ~ uma luta universal pela igualdade poli- tia, Tal fase foi organizada por mulheres das cl ses médias € altas e, freqiientemente, por filhas de politicos ou intelectuais da sociedade brasileira que tiveram a chance de estudar em outros pai- ses, tendo configurado, segundo Pinto, um “fe- minismo bem comportado e/ou difuso”!. O se- ‘gundo momento do feminismo no Brasil teria nas- cido durante o clima politico do regime militar no inicio dos anos 1970, 0 qual foi uma sintese tanto da desvalorizagao e da frustragio de cidadania no pais, quanto de um reforgo na opressio patriarcal e teria se caracterizado por um movimento con- trario de liberago, no qual as mulheres discutiam a sua sexualidade e as relagdes de poder, deslo- cando a atengaio da igualdade para as leis € 08 cos- tumes. As onganizagdes de mulheres que se le- histria das feminists brasileira pode se eragada pelo menos até Nisa Floresta sua livre adi do texto Chisico Direitos das mufhereseinjustca dos homens, de autora de Mary Wollstonecraft, em 1832 Tendo sio ela a primeira brasileira a tentar desconstrur os esteretpos degéner ea dominago das mulheres, emmeados doséeu oxi 8 vantaram em oposigd0 a0 militarismo formaram muitos grupos que consolidaram os interesses ¢ demandas femininas, propiciando maior articula- sfo delas na arena piblica, Esta segunda onda caracterizou-se, no Brasil e nos demais paises la- tino-americanos, entio, como uma resisténcia contra a ditadura militar e, por outro lado, em uma uta contra a hegemonia masculina, a violéncia sexual ¢ pelo diteito ao exercicio do prazer. Teri- amos, enti, a terceira fase, desta vez referida a forte participagao das mulheres brasileira em todo © proceso de redemocratizagio e na construcao daquilo que Pinto identifica como uma especie de “feminismo difuso” e com maior énfase ainda sobre processos de institucionalizagio e discus- sio das diferengas intragénero (ou seja: entre as préprias mulheres). Os movimentos sociais e tam- ‘bémo feminista, defrontando-se com novas manei- ras de conceber a cultura politica ¢ outras formas de se organizar coletivamente, desta vez passi- ram a se caractetizar por: 1) tentativas de refor- ‘mas nas instituigdes consideradas democriticas (com a criagao dos Conselhos da Condigio Femi- nina, das Delegacias de Atendimento Especializa- do as Mulheres, por exemplo); 2) tentativas de reforma do Estado (com a forte participagao das mulheres organizadas no processo da Assembléia Constituinte de 1988, por exemplo); 3) busca de uma reconfiguragdo do espago piblico, por meio da forte participagdo de “novas” articulagdes dos movimentos de mulheres (mulheres negras, 1és- bicas, indigenas, rurais etc.); 4) uma posterior especializagao profissionalizagao do movimen- to, Este terceito momento marca o inicio de uma aproximagao cautelosamente construida junto a0 Estado, Apés.a construgiio do enquadramento geral das dduas partes anteriores rferentes i explicitago dos debates tedricos encabegados por Fraser ¢ Mohanty, proponho, finalizando este artigo, a ex- periéncia de uma nova “onda” para os movimen- tos feministas e também para os estudos e teorias feministas que, por sua vez, levem a sério a exis- tncia radical (ainda recente) de cireuitos de dift- so feminista operados a partir das mais distntas correntes horizontais de feminismos (académico, negro, lésbico, masculino etc.), que se poderia cchamar de “feminist sidestreaming” ou de “fluxo horizontal do feminismo” (HEILBORN & ARRUDA, 1995; ALVAREZ, 2009).A “nova” onda toma a sério também a diregio rumo a arenas pa- REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLITICA V. 18, N° 36: 67-92 JUN. 2010 ralelas de atuagio, seja no émbito da sociedade civil ou no das fronteiras existentes entre esta ¢ 0 Estado, ¢ também perceptivel a partir da afir- ‘magao da importancia de se considerar as frontei- +a interseccionais,transversais e transdisciplinares entre género, raga, sexualidade, classe e geracio. Tal difusio feminista, com certeza, tem produzi- do conseqiiéncias politicas e culturais que osci- lam desde as politicas estatais (com os sérios de- safios propostos a partir da transversalidade intersetorialidade), passando pelas exigéncias das agdes de cooperagio intemacional, introjetando- se na cultura popular até as reflexdes mais inti- ‘mase que tangenciam aspectos do reconhecimento «da multidimensionalidade subjtiva eidenttiria, Por ‘meio destes caminhos tem sido recorrente identi- ficar trajetos pelos quais os feminismos parecem fluir horizontalmente, Eu destacaria ainda a exis- téncia concreta de esforgos intencionais para es- tender o ferinismo a outros movimentos sociais por meio de coligagdes, campanhas, seminarios, ceapacitagdes e atividades afins. A possibilidade de se pensar esta suposta “quar- ta” onda recente do feminismo no Brasil (c talvez na América Latina)? pode ser demonstrada por ‘meio: 1) da institucionalizagdo das demandas das ‘mulheres ¢ do feminismo por intermédio da ela- boragio, implantagio e tentativas de monitoramento e controle de politicas piblicas para as mulheres que tenham claramente o recor- te racial, sexual e etirio, bem como a busca do poder politico, inclusive o parlamentar; 2) da eri- ago de novos mecanismos € érgios executivos de coordenagio e gestio de tais potiticas no am- bito federal, estadual e municipal; 3) dos desdo- bbramentos oriundos da institucionalizagao, com a criagio de organizagSes ndo-governamentais (ONGs), foruns e redes ferinistas e, em especi- al, sob a influéncia das iniimeras redes comunica- tivas do feminismo transnacional e da agenda in- ternacional das mulheres; e, finalmente, e ainda ‘mais importante, por meio de 4) um novo frame para atuagdio do feminismo, desta vez.muma pers- pectiva trans ou pés-nacional que deriva dai um 2 io pretend tomar o caso dos feminismos brasiliros como paradgmaco"na América Lating:reconego a exis tencia de iferengas esentidos inicos as diferentes femi- nismos na repo. O efit deseo 6 apenas da deseigdo deumateajtiria amir, agucla que me tm feito pensare propor este dinamismo da quar “onda” esforgo sistematico de atuagio em duas frentes concomitantes: uma luta por radicalizagio anticapitalista, por meio do esforgo de construcio da articulacdo entre feminismos horizontais, ¢ de uma luta radicalizada pelo encontro de femini 'mos no mbito das articulagdes globais de paises nna moldura Sul-Sul. E nesta parte final do artigo, tendo como pano de fundo tal conjunto de refle- Bes, que avango a proposta ousada de se pensar na teoria feminista a partir de um novo frame do Sul global, bem como de se pensar uma “quarta ‘onda’ para o feminismo brasileiro ¢ latino-ameri- cano, Vejamos a seguit. Il FRASER E SUA CONTRIBUIGAO PARA A. CONSTRUGAO DA TEORIA POLITICA FE- MINISTAS Para Luis Felipe Miguel (2005), a preocupa- gio corrente de multiculturalistas ¢ de distintos tedricos da diferenga seria a de produzir, no uma teoria democritica, mas uma teoria da justiga. F justamente a este deslocamento que pate impor- tante das teorias feministas dedica-se contemporaneamente: em parte isto se deve por- que, desde a contribuigdo original de Rawls (1971), ficou patente para. mundo que as democracias ocidentais (e suas teorias subjacentes) vinham convivendo facilmente com um quadro desalentador de profundas desigualdades sociais « politicas. Dentre as contribuigdes diversificadas das teorias feministas contempordneas sobre os debates estabelecidos acerca de temas cruciais — como igualdade ¢ diferenga, teorias da justiga, Estado nacional, democracia e participagao — des- taca-se sobremaneira a contribuigao de N. Fraser. Fraser (1995; 1999) ficou notabilizada intet- nacionalmente por sua critica contundente ao tra- balho filoséfico de Habermast, especialmente a0 seu conceito de esfera pliblica. Este tiltimo teve sua origem na obra Mudanca estrutural da esfera 5 As wadugdes, a0 longo dest artigo, de techos de obras «em idioma estrangciro sio de responsabilidade da autora 4 Aprimeira critica conhecida de Fraser (1995), na verda- 4e, apontou para tragos conservadores da tori critica de Habermas, que permaneceria androcéntricaeinsensivel is, |questées de género, jé que, posicionando-se contra esta forma analitica que distingue e separa “sistema” e “mundo da vida", a ritca feminista afirmaria a necessidade da _generifcacdo, finalmente, da propri oposigao entre p= bio privado. A autora quis ressaltar que, nestesespagos, 69 MOVIMENTO E TEORIA FEMINISTA piiblica (1984), em que Habermas tratou da gé- nese ¢ transformagio da “esfera piiblica burgue- sa”, N, Fraser (1999) apontava, naquele momen- to, para © surgimento dos “subaltern publics”, aqueles grupos sociais que, devido a concepeio de uma esfera piblica nacional e homogénea, es- tariam excluidos dos processos de deliberacio pblica, como as mulheres e as minorias étnicas. As principais ctiticas elaboradas por ela aquele _momento podem ser assim resumidas: 1) os dife- rentes interlocutores na esfera piblica nfo podem colocar em suspenso seus diferenciais de status € agir como se fossem iguais, trazendo implicita a consideragio de que a igualdade social em mode- los liberais e burgueses nio é condigio necesséria a democracia; 2) existiriam miltiplas esferas pi- blicas concorrentes e isto nio representa neces- sariamente um afastamento da democracia, pelo contrario, a multiplicidade seria preferivel & exis- téncia de uma iinica e compreensiva esfera pibli- ca; 3) a esfera pablica seria 0 local de delibera- «0 acerca do bem comum e também acerca de todos os demais temas que fossem coletivamente ‘stariam mareados diferenciadamente os papéis entre os sexos, sendo central na sua argumentagdo que o priprio trabalho doméstico das mulheres o permanecernio-reco- hecido e invisivel,continuaria ndo sendo contado como ‘uma efetiva contibuiglo para a reprodugio ds sistemas esata eecondmico, A autora taminém se incumbe de indi- car que aesfrapiblica burguesa habermasiana seria “art- al", “efeminada” e“aistoertiea”e promoveria um “es- tile mais austero de discurso ¢ compartamento pilic: ‘um estilo considerado como ‘racional’, virtuoso” e*varo- nil (FRASER, 1999), tendo tambim cabido promover ‘uma exclusio formal da mulher da vida piblica enaurali- ‘zat, dieotomizando, espas0s ideas para as mulheres, como ‘vida privada edoméstiae, em contapartda, eficando a esfera pblica como um espago masculino 5 Tanto em soviedades estratiticadas como em sociedades -multiculturais seria desejvel a existéneia de esferas pbli- ‘cas miltipas econcorrentes. Nas primeiras, diz a autora, a cexisténeia de aranjos que acomodem a contestagio entre _miltipas esferas pablicas concortentes promove deforma ‘mais adequada a paridade de participagio do que em con- textos em que ha apenas uma iniea esfera pica cem que ‘membros dos grupos subordinados no contam eom arenas {e deliberaglo e contestagao, Fraser cham tas arenas de eliberagdo de “subalter counterpublies" ou sea, “arenas iscursivas paralelas em que membros dos grupos subordi- ‘nados podem inventare circular contra-discursos para for ‘mular interpretagSes de oposigo referidas a sua ident Ge, interesses e necessdades” (FRASER, 1999) e afirma ‘que a sua existineia indica uma ampliagao da contestagio liscursva,fato que implica uma democratizagio do espa- ‘50 piblieo em sociedades estratitieadas 70 algados a tal condiglo e seria desejivel, inclusive, a tematizagio de interesses € questdes privadas (jé que 0 “privado também é politico”), Por fim, Fraser afirma que o modelo de esfera piblica de- senvolvido por Habermas pressuporia uma sepa- ragio rigida entre a sociedade civil e 0 Estado, 0 que nem sempre seria real ou mesmo desejével. ‘Voltando-se a questi da igualdade, Fraser defen- dew entio que, apesar da inexisténcia de impedi- ‘mentos formais & participagio no debate piiblico, alguns impedimentos informais ainda persistiriam. Destaco o ecletismo tedrico que pode ser per- cebido na trajetéria tebrica percorrida pela autora: ela insiste em levar em consideragao, de modo simulténeo, tanto os fatores politicos quanto os sociais e econémicos, que, por sua vez, seriam observaveis nas diversas conjunturas globais. Na sequéncia de suas reflexdes, Fraser passou a se digladiar, entio, com a construgio de uma nova teoria feminista da justiga social que incorporasse ddimensdes paradoxais nao tratadas nem pelos li- berais (mesmo as correntes do liberalismo iguali- tiio) — que enfatizavam a justiga como equidade destacavam a redistribuigio econdmica como 0 ‘motor da promogiio da igualdade e da justica soci- al -, nem pelos tedricos multiculturalistas ou comunitaristas, que, por sua vez, insistiam que a lua pelo reconhecimento deveria suplantar a luta por redistribuigdo. Para Fraser (2001), tomou-se desafiante 0 esforgo de associar ambos os tipos de reivindicagdes em uma anélise que incidiria em ‘um “dualismo perspectivo”, propondo uma con- cepeiio de justiga “bidimensional” associada a0 ‘monismo normativo da paridade na participagio. Haveria assim duas formas correntes de compre- ensio da justiga: uma que foca a injustica socioeconémica, enraizada na estrutura politico- econdmica da sociedade (manifestando-se por meio de distintas formas de exploragao, ‘Nao deveriahaver uma definigao apriorstica do que deve ‘uno ser td como fora dos limites do “pblico”. Assim, diz aautora que “polo contrrio,a publicidade demoeritica requer garantas positvas de oportunidades para minorias convencerem os demais de que o que nao era pico no passado no sentide de ser uma questio rlativa uo bem ‘comum deve agora passara sé-0"(FRASER, 1999), Nesse sentido, a autora indica que a eoria social critica deve olhar ‘de modo atento para os termos “pilblico” e “privado", percebendo-os nto apenas como a designagio de esferas sociais, mas como classiicaescuturas erétuls etricos {que apresentam consegigncias pritico-po tes para. democracia, REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLITICA V. 18, N° 36: 67-92 JUN. 2010 ‘marginalizagio e privagio material); e outra, cul- tural e simbélica, focando a injustiga advinda dos padrdes sociais ¢ culturais da representagdo, re- conhecimento, interpretagao € comunicagao (es- tas seriam exemplificadas pelas manifestagdes do rio-reconhecimento, da dominacio cultural e do desrespeito). Mais recentemente (FRASER, 2005a; 20056; 2007a; 2007b; 2008), @ autora passou a repensar a sua coneepgdo © a incorporar uma tereeita pers pectiva especificamente politica em seu paradigma bidimensional da justiga, Fraser passou a conside- rar", ento, como uma terceira dimensio da justiga social, a representacao politica, Por meio do recur- 0 te6rico a uma suposta virada “pds-nacional” & ue a autora passa a utilizar a nova categoria da representagdo, que vai Ihe permitir problematizar as estruturas do governo ¢ os provessos de toma- dda de decisio: “pelas lentes das disputas por demo- cratizagao, a justiga inclui uma dimensio politica, cnraizada na constituigdo politica da sociedade ¢ ue a injustiga coelata éa representagio distorcida ‘ua afonia politica” (FRASER, 2005a, p. 128-129). problema dos limites, segundo a autora, refero- se Ainecessidade de que uma teoria da justiga, para ‘um mundo globalizado, deva se apresentar como tridimensional, incorporando a dimensdo politica da representagio ao lado da dimensio econdmica da distribuigio e da dimensio cultural do reconheci- mento, A dimensio politica da justia referir-se-ia, entdo, & constituigdio da jurisdicdo do Estado e das regras de decisio pelas quais ele estrutura a con- testagdo, sendo este o palco no qual as lutas por distribuigio e reconhecimento seriam realizadas. Segundo Fraser: “Estabelecendo critérios de pertencimento social e determinando quem conta como membto, a dimensio politica da justiga es- pecifica oaleance das demais dimensdes: diz quem esti incluido © quem esta excluido do conjunto daqueles intitulados a uma justa distribuigdo e re- 7 Foi a parr do didlogo ¢ conffonto com outa tériea politica feminista de flego, Iris Young (2009), que surgiu 4 reflexio sobre a imposigio arbitra de apenas dss categorasfocas para se conebor a justiga social. Segundo ‘Young: “... ssa categorizagio parece no deixar espago para um terceiro aspecto, politico, da realidade social, re- Intvo as institigBese priticas do dreto, da cidadania, da ‘adminstragao e da participasao politica” (idem, p. 199), conhecimento reciproco. Estabelecendo as regras de decisio, a dimensio politica estabelece os pro- cedimentos para colocar e resolver as disputas em ambas as dimensdes economica e cultural: diz no somente quem pode fazer demandas por rodistribuigio e reconhecimento, mas também como tais demandas devem ser colocadas ¢ adjudicadas” (idem, p. 44). ara Fraser, agora preocupada com a questo 4a justiga numa perspectiva global etransnacional (ou pos-vestifaliana), algumas questdes passari- am a se colocar como centrais, quais sejam: qual seria a moldura adequada dentro da qual conside- raras questoes de justiga de primeira ordem? Quem seriam os sujeitos relevantes titulares de uma dis- tribuigao justa e de um reconhecimento reciproco «em dado caso? E como deveriamos determinar “quem” seria finalmente relevante? Em um mun- do globalizado, portanto, no somente o contet- do da justiga, mas também a sua moldura estaria em disputa. Dizer que o politico é uma dimensio conceitualmente especifica da justiga seria tam- bbém dizer que ele pode dar margem a espécies conceitualmente especificas de injustigas: ou seja, que haveria obsticulos especificamente politicos a paridade de participagao, e estes, por sua vez, no seriam redutiveis & mi-distribuigdo ou ao ndo- reconhecimento, e surgiriam da constituigao poli- tica da sociedade. A dimensao politica da justiga referir-se-ia, portanto, a representagio ~ questio definidora do politico para a autora ~, sendo que para alcangar as esperadas operagdes da “politica da represen- taco” seria preciso alcangar trés niveis: 1) con- testar a falsa representagio politica comum; 2) contestar a0 mau enquadramento; ¢ 3) colocar como uma meta da justiga social a democratiza- so do proceso de estabelecimento do enquadramento (frame-setting). Portanto, o ter- ceiro nivel de injustiga referir-se-ia 4 questio rela- tiva ao “como” deve-se operar na busca pela jus- tiga social: a md representacdo meta-politica, se- ‘gundo a qual a auséneia de arenas democriticas nega maioria a chance de se engajar em termos de paridade nas tomadas de decisdo sobre 0 impeditia muitos esforgos para se supe- rar as injustigas. Nesta fase das discussdes, para Fraser, have- ria entio dois diferentes niveis de mé-representa- ao: 1) a falsa representacdo politica comum: em que as regras de decisio negariam a alguns a "1 MOVIMENTO E TEORIA FEMINISTA chance de participar como pares (a questo cen- tral sendo ada representagio intra-moldura e, mais especificamente, a dos sistemas cletorais que ne- gam injustamente a paridade participativa a um conjunto significative de minorias ou daquelas regras ainda cegas em relagiio ao género que tam- bbém fuuncionam de forma a negar paridade de par- ticipacdo politica as mulheres; 2) 0 maw enguadramento (misframing): referit-se-ia a0 as- pecto do politico de delimitagao das fronteiras. A injustiga surgiria quando as fronteiras da comuni- dade sto desenhadas de forma a excluir, de todo ¢ pot completo, algumas pessoas da chance de par- ticipar nas disputas autorizadas acerca da justiga. E esta seria, em tltima instincia, 0 tipo de injusti- 64 definidora da era globalizada, Trata-se, aqui, de um aspecto da gramética da justia freqiientemente negligenciado, O terceiro nivel de injustiga refere-se, portanto, a questio do “como”: diz das falhas na instituefonalizaglo da paridade de participagao no nivel meta-politico. Fa falsa representacio metapolitica, segundo a qual a au- séncia de tais arenas democraticas correntemente nnegam & maioria a chance de se engajar em ter- ‘mos de paridade nas tomadas de decisio sobre 0 “quem”, além de impedir também os esforgos para se superar a injustiga (mesmo aquelas experimen- tadas em outras dimensdes). A justiga como pari- dade de participagao expressaria o carter ineren- temente reflexive da justiga democritica no mun- do contemporineo, na medida em que esta seria ‘uma nogio de resultados que indicaria um prinei- Pico substantivo de justiga pelo qual se pode avaliar 6s arranjos sociais —“{...] s6 sio justos se permi- tem a todos os atores relevantes participar como pares na vida social” (FRASER, 2005a, p. 59)—e seria ainda uma nogao de processo, pois indicaria um padro procedimental pelo qual se torna pos- sivel avaliar a legitimidade demoeritica das nor- ‘mas: “[..] sio legitimas se podem garantir 0 as- sento de todos os envolvidos em um processo justo e aberto de deliberagio, em que todos parti- cipam como pares” (ibidem). Diante disso, coma mudanga no enquadramento tedrico, haveria uma nova proposta de modelos que acomodassem os processos politicos de tomada dedecisio, principalmente por meio da deliberagio democritica, levando A transformago da gramati- ca pripria no ambito das teorias da justiga: em vez de teoria da justiga social, usar-se-ia a idéia de teo- ria da justiga democritica, Entaio, ao adotar uma abordagem democritica e critica sobre a justica, 0 ‘modelo tedrico tridimensional —redistribuigao, re- conhecimento e representagio — de Fraser confor- ‘mat-se-ia em uma teria da justiga democratic pos- vestfaliana (Quadro 1). QUADRO 1 ~ATEORIADA JUSTIGA DEMOCRATICA POS- VESTIFALIANADE NANCY FRASER, DIMENSOES DO. PARADIGMA DA SUSTIGA SOCIAL, “PROBLEMAS" DA JUSTIGAY INJUSTIGAS ECONOMICA CULTURAL, POLITICA, INJUSTIGAS REFERIDAS AWA DISTRIBUIGAO Ocorrem quando 0 ordenamento econéenica da sociedad Impede algurnas pessoas de destrularem a “plena partcipaeo"polfica INJUSTIQAS REFERIDAS AO NAO-RECONHECIMENTO ‘Ocorrem quando as pessoas também podem ser impedidas de interauir poliicamente como pares e em condie6es de igualdade “por hierarquias insttucionalizadas de valor cultural que thes nega a laatinidade necesséria® INJUSTICAS REFERIDAS A FALSA REPRESENTACAO 1. False represertaco pole coruan. acorrem quando as regras polticas deriv de um deterrnhado Estado nacional podem impedifirmtat/constranger a patlclpagao de alguns, 2. Mau enauactementor ocorrem quando os imtes de uma comunidade, incorretamente, excluem algumas pessose/grupos, removendo sua capacidade ‘de participacao, 3, Faisa rqpresentag 0 metaooltica: ocorrem quando as eftes, nacionals ou Iransnacionais, monopolar a atvidade de delimitaro do enquadramento, nnegando voz aqueles que padem ser prejudicadas no processo, e bloqueando a Crag 60 de instanclas democraticas, onde as utlnas afirmag des podem ser avaliadas e cortigidas” FONTE: Held e Kaya apud Oypriana (2010). R REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLITICA V. 18, N° 36: 67-92 JUN. 2010 Dessa forma, vé-se que a tematizagio sobre a justiga social na obra de Fraser interpenetraria, cada vez mais, a diseussio sobre democracia (€ no se constituiria como excludente ou antagoni- ca.a esta) e, como ser possivel notar, também a dimensio politica do Estado, que, também segundo ‘Young (2000a), dar-se-ia sob o olhar da busea por maior inclusdo politica. Os dois elementos —

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